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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras
Departamento de Letras Vernáculas
Setor de Literatura Brasileira
Profª. Maria Lucia Guimarães de Faria

SITUAÇÕES NARRATIVAS E REPRESENTAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

1. A mediação narrativa

. Mediação é a característica genérica que distingue a ficção de todas as demais formas


literárias.

. A mediação evidencia o caráter apriorístico da nossa experiência: não apreendemos


o mundo como ele é sem si mesmo, mas tal como aparece através da intervenção de
uma mente observante.

. Dois conceitos são fundamentais para a análise do processo mediativo:

1º) PONTO DE VISTA = posição a partir da qual uma história é narrada ou um


evento é percebido por um personagem.
. Perspectivação = necessidade de separar a visão do narrador da visão
dos personagens

2º) FIGURA DO NARRADOR = agente que se interpõe entre o evento narrado


e o leitor, deixando claro que a apreensão do real depende de uma instância de
observação e de um horizonte prévio de compreensão.
. Relatividade dos ditos narrativos

2. As situações narrativas

. O processo mediativo se chama situação narrativa. Dependendo do tipo de mediação,


podem-se distinguir três situações narrativas:

1ª) SITUAÇÃO NARRATIVA AUTORAL

. Pressuposto: o narrador não pertence ao universo ficcional.

. Criam-se, portanto, dois domínios separados:


a) aquele em que se movimentam os personagens;

b) aquele em que se processa o ato narrativo.

. Esta separação confere superioridade ao narrador, que se traduz em:


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a) onisciência = o narrador sabe tudo;

b) onipotência = o narrador tudo pode;

c) privilégios narrativos = interromper a narrativa, retardar e/ou antecipar


eventos, fazer digressões, voltar atrás, fazer interpolações, penetrar mentes,
em uma palavra, manipular.

. O centro de orientação do leitor é o aqui-agora do narrador; por isso, os eventos se lhe


afiguram passados.

. O ato de narrar suplanta em importância os eventos narrados.

2ª) SITUAÇÃO NARRATIVA DE 1ª PESSOA

. Pressuposto: o narrador e o protagonista são um e o mesmo.

. Daqui derivam duas consequências:


a) o narrador pertence ao universo ficcional;

b) a 1ª pessoa se biparte em dois eus: o eu narrante e o eu narrado, eu de agora e


eu de outrora, eu da consciência e eu da experiência.

. Entre os dois eus se abre uma distância temporal.

. Esta distância acarreta metamorfose existencial.

. O eu que narra pode nem mais se reconhecer no que foi.

. O centro de orientação do leitor é o aqui-agora do eu narrante ou se alterna entre o eu


de agora e o eu de outrora.

3ª) SITUAÇÃO NARRATIVA PERSONATIVA

. Pressuposto: o narrador se retrai.

. Duas estratégias são adotadas para simular o “desaparecimento” do narrador:


a) preponderância de uma apresentação cênica (= não narrativa) dos eventos;
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b) predomínio dos diálogos e principalmente dos processos de consciência.

. O centro de orientação do leitor é o aqui-agora de um personagem que atua como


REFLETOR.

. O refletor é a inteligência perceptiva, em cujo corpo e em cuja mente são refratados


os eventos narrados, que se afiguram presentes ao leitor.

. O refletor pensa, ouve, vê, sente, percebe, mas não fala ao leitor. Quem o faz é o
narrador.

. Assim, se estabelece uma DUPLA MEDIAÇÃO:

a) a primeira mediação é feita pelo refletor, que recebe e traduz, em suas


reações corporais e em suas elucubrações mentais, o impacto do mundo;

b) a segunda mediação fica a cargo do narrador, que organiza verbalmente o


fluxo de consciência do refletor e dá a ver o modo segundo o qual o mundo
repercute nos sentidos corporais dos refletores.

. O objetivo destas estratégias é jogar o leitor dentro da mente ficcional.

3. A representação da consciência

. O discurso do narrador sobre a mente do personagem se chama psiconarração. Esta


pode se dar de duas formas:

a) Dissonante = o narrador elucida e avalia criticamente a mente do personagem.

. São típicas nesse tipo de narração as generalizações no presente gnômico,


feitas pelo narrador. Os eventos narrados em geral são escolhidos exatamente
de modo a dar ensejo ao narrador para tecer as amplas considerações sobre a
natureza e a alma humana;

. Mais frequente na situação narrativa autoral, a psiconarração dissonante


exibe a agudeza e a perspicácia dos narradores, que se mostram profundos
conhecedores da condição humana.

b) Consonante = o narrador se limita a colocar em palavras o tumulto mental


do personagem, eximindo-se de julgamentos e comentários.
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. A marca mais visível deste tipo de narração são as interrogações e


exclamações, que, embora veiculadas pela voz do narrador, são fruto da
atividade mental do refletor, em particular em momentos de crise e de grande
agitação;

. Típica da situação narrativa personativa, a psiconarração consonante é a


estratégia de que se vale o narrador para “se ocultar” por trás do refletor,
cedendo-lhe o protagonismo dos atos mentais e abrindo mão de sua
onisciência.

. São basicamente duas as técnicas de representação da consciência na psiconarração


consonante:

1ª) MONÓLOGO NARRADO

- Trata-se de evidenciar como se comporta a MENTE do personagem.

- O monólogo narrado é o resultado da dupla mediação, vale dizer, do duo


firmado entre o narrador e o refletor: quem monologa é o refletor, mas quem narra
é o narrador.

- O monólogo narrado se entretece inconsutilmente no contexto narrativo, isto é,


não há costuras aparentes do acoplamento entre os discursos do narrador e do refletor,
porque todas as marcas da transferência de voz de um para o outro são abolidas: não há
verba dicendi (ele pensou, ela achava, parecia-lhe, a moça se interrogou etc.), não se
verifica mudança de tempo ou modo verbal, nem variação de pessoa gramatical.

2ª) REFLETORIZAÇÃO

- O foco agora é expor como responde o CORPO do personagem.

- Em pauta a apreensão sensorial pelo refletor. O narrador não descreve, mas


mostra o mundo na ótica e na pele do personagem.

. Na prática narrativa, o monólogo narrado e a refletorização se superpõem. O narrador


e o refletor se imbricam, de modo que a interioridade do personagem ressoa em todo o
texto, mesmo nas passagens puramente narrativas.

. Quando o narrador adota o idioma lírico-emotivo do refletor (contágio estilístico), a


sintonia entre as vozes narrativa e personativa é total.
Nesse caso, não há mais entrechos “narrativos” no sentido tradicional do termo. Tanto
a cena interna quanto a cena externa, a compreensão mental e a captação sensorial
são FOCALIZADAS pelo refletor, cuja mente e cujo corpo se tornam FILTROS de
apreensão e decifração da realidade.
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. Monólogo narrado e refletorização são o meio ideal para a revelação de uma mente
ficcional suspensa num instante presente, entre a recordação do passado e a antecipação
do futuro.
É do ponto de vista do refletor que se pode experimentar o passado como o domínio
alcançável pela memória e o futuro como o campo desconhecido, aberto à inquietação e
à fantasia.

4. Da representação da realidade à representação da consciência

. Em Mimesis, Erich Auerbach empreende uma investigação de fôlego da literatura


ocidental desde Homero, com o propósito de elucidar os modos e técnicas adotados pelos
escritores para realizarem, literariamente, a representação da realidade. Este objetivo
constitui, inclusive, o subtítulo da obra.

. O último capítulo do livro, no entanto, intitulado “A meia marrom”, traz uma novidade.
Nele, Auerbach dedica-se a explicitar que, na virada do século XIX para o século XX, a
literatura mostrou um interesse cada vez mais profundo em representar, não os fatos
propriamente ditos, mas o seu impacto sobre os seres humanos, e privilegiou a demanda
dramática de refletir os eventos nas respostas mentais e emocionais dos personagens.
Os acontecimentos se afiguram muito menos relevantes do que o efeito passional que
eles desencadeiam. A representação da consciência sobrepuja a representação da
realidade. A realidade é revelada pela mediação de uma consciência pensante.

. Movido pelo desígnio de evidenciar as diferenças entre os dois focos e modos de


representação, Auerbach toma como exemplo um episódio de To the Lighthouse, de
Virginia Woolf, em que Mrs. Ramsay está tricotando a meia com que presenteará o filho
do guarda do Farol.
No escrutínio minudente a que submete o texto, o estudioso expõe as grandes mudanças
que se verificaram no romance ocidental e com isso esboça o traçado geral da situação
narrativa personativa, sustentada pelas duas técnicas explicadas na seção anterior, o
monólogo narrado e a refletorização. Embora ele não empregue esta terminologia, as
observações que faz, e o próprio trecho selecionado para análise, sobejamente ilustram a
dupla mediação narrativa, garantida pelo acoplamento entre o narrador e o refletor.

. Eis os principais aspectos destacados e comentados pelo crítico:

- esfacelamento da ação exterior

- substituição do subjetivismo unipessoal pela consciência pluripessoal

- renúncia à representação dos personagens com pretensão a uma integridade


exterior que conservasse o decurso cronológico e acentuasse as mudanças significativas
do destino
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- deslocamento do foco de interesse: menos importância aos grandes pontos


cruciais externos e destaque a qualquer fragmento escolhido ao acaso: o todo pode estar
perfeitamente contido e expresso em qualquer uma de suas partes

- preponderância dos movimentos internos, isto é, movimentos que se realizam na


consciência dos personagens e podem ser desencadeados por acontecimentos casuais e
insignificantes. Os eventos exteriores apenas servem para deslanchar os interiores

- orquestração de elementos presentes e não-presentes à cena em desenvolvimento

- oscilações temporais e flutuações espaciais: o presente é abandonado em favor


de movimentos livres pelas profundezas temporais

- alongamento do instante pela narração lenta e minuciosa: sobressai


violentamente o contraste entre o curto lapso de um acontecimento exterior e a riqueza
dos processos de consciência que animam todo um universo vital

- elaboração do contraste entre tempo exterior e tempo interior

- tratamento exaustivo dispensado a um acontecimento cotidiano em lugar do


tratamento global cronologicamente ordenado, que persegue um tema do início ao fim

- substituição dos acontecimentos “épicos” do destino pela “sempiternidade


simbólica do acontecer”

- retração do narrador, que não se manifesta objetivamente sobre seus personagens


nem analisa criticamente os fatos narrados. Nada se sabe com certeza; tudo são
conjecturas, suposições e enigmas

- desaparecimento do narrador como instância suprema e diretriz

- ausência de um ponto de vista exterior ao romance

- dissolução da realidade em múltiplos e multívocos reflexos na consciência

- tratamento polifônico da imagem

- valorização da pletora da realidade e da profundidade vital de qualquer instante

Fontes:

AUERBACH, Erich. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental.


4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 471- 498.

COHN, Dorrit. Transparent Minds. Modes for presenting Consciousness in Fiction.


Princeton: Princeton University Press, 1978.
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STANZEL, Franz Karl. A Theory of Narrative. Cambridge: Cambridge University Press,


1987.

STANZEL, Franz Karl. Narrative Situations in the Novel. Bloomington-London: Indiana


University Press, 1971.

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