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%6 ‘TRANSFIIDADE SEUS CONTEXTOS DE USO (16)... eu namorei muito tempo com: esse vizinho aqui .1é da outra casa... (Corpus Discurso & Gramatica, p. 226). Logo, o desvio da transitividade prototipica esté associado & ical dos verbos. Como se ve, a proposta de Givén a transitividade como uma nogio gradient nao dico- Vale abservar, cont 1¢ 0 gran de afetamenta da abjeto depende nao s6 da semantica do verbo, mas também de outros elementos presentes na oragdo, como a completude da agao verbal a definitude ou individuagao do objeto, por exemplo. A esse pro- pésito, comparem-se: (17)a. They build houses “Eles constroem casas’ . They would demolish the house ‘Eles demoliriam a casa’ As oragdes acima nao asseveram o afetamento do objeto, jé ‘que ou a aglo verbal nfl se dirige a uma casa espectfica, referen- ial (17a), ou nao se realizou (17b). Esses pontos serdo retomados na seqao seguinte. 2. A transitividade da oragao: a proposta de Hopper e Thompson Ao estudar a estrutura da narrativa e 0 modo pelo qual ela se identifica com determinadas formas gramaticais, Hopper € ‘Thompson (1980) formulam a transitividade como uma nogio continua, escalar,ndo categorica. Diferentemente do ponto de vis- ta da gramitica tradicional, para esses autores nao ha necessidade da ocorréncia dos trés elementos — sujeito, verbo, objeto — para que uma oragao seja transitiva. A transitividade é concebida como [MARIA ANGELICA FURTADO DA CUNHA & MARIA MEDIANEIRA DE SOUZA 37 um complexo de dez parimetros sintético-semanticos indepen- dentes, que focalizam diferentes angulos da transferéncia da agao em uma porgio diferente da oragao. Embora independentes, os a tragos da transitividade funcionam juntos e articulados na lin- jue significa que nenhum deles sozinho é suficiente para ce te ileal oragio. Sao eles: Quadro 1: Parametros da transitividade ‘Paniiernos: ‘Taanstvibabe | ‘Taansmivibane Aura BAKA 1. Partcipantes doisou mais. | um 2.Cinese asso nilo-agso 3. Aspecto do verbo perfectivo io-perfectivo 4. Pontualidade do verbo pontual nio-pontual 5.Intencionalidade do sujcito | intencional | _néo-intencional afirmativa negativa modo realis | modo irrealis 8. Agentividade do sujeito agentivo no-agentivo Afetamento do objeto afetado nao-afetado 10. Individuacao do objeto individuado | nao-individuado Cada componente da transitividade envolve uma faceta dife- rente da eficdcia ou intensidade com que a agao € transferida de um participante para outro, como demonstrado a seguir: ‘a. Participantes: nao pode haver transferéncia a menos que dois participantes estejam envolvidos. 1b. Cinese: aces podem ser transferidas de um participante a on- 10; estados, nao. Assim, algo acontece com Pedro em Eu abra- cei Pedro, mas nao em Eu admiro Pedro. & Aspecto: uma agdo vista do seu ponto final, isto é uma a¢ao perfectiva ou télica, € mais eficazmente transferida para um participante do que uma agao que nao tenha término, Na ora- fo télica Eu comi o sanduiche,a atividade de comer € apresen- tada como completa e a transferéncia ¢ totalmente realizada; ‘mas na oragao atélica Eu estou comendo o sanduiche, a transfe- réncia € realizada apenas parcialmente. TTRANSITIVIOADE E SEUS CONTEXTOS DE USO Pontualidade: acbes realizadas sem nenhuma fase de transi- ‘¢40 dbvia entre 0 inicio e o fim tém um efeito mais marcado sobre seus pacientes do que ages que sio inerentemente con- ‘inuas. Veja-se, por exemplo, 0 contraste entre chutar (pon- tual) e carregar (nao-pontual). Intencionalidade: o efeito sobre o paciente € tipicamente mais aparente quando a agdo do agente ¢ apresentada como propo- sital. Contraste, por exemplo, Eu escrevi seu nome (intencio- nal) com Eu esqueci seu nome (nao-intencional). Polaridade: aces que aconteceram (oracao afirmativa) po- ddem ser transferidas, agdes que nao aconteceram (oragao ne~ gativa), nao, Em O menino nao comeu o sanduiche, por exem- plo, aorayiv esti iva, o que indica quea transferéncia da acao nao aconteceu. Modalidade: esse parametro se refere A distingao entre a codi- ficagao “realis”e “irrealis” de eventos. Uma agao que nio ocor- eu, ou que expressa um evento hipotético, ou ainda que é apre- sentada como tendo ocorrido em um mundo nao-real, contingente, incerto, é obviamente menos eficaz do que uma ago cuja ocorréncia é de fato asseverada como corresponden- do aum evento real. Em Maria vai comprar um vestido novo, 0 verbo esté no tempo futuro, o que indica que a agao de com- prar ainda nao ocorreu; a oragao é marcada como irrealis. ‘Agentividade: participantes que tém agentividade alta podem. cfetuara transferéncia de uma ago de um modo que partici- antes com baixa agentividade nao podem. Assim, a interpre- tagao normal de Joao me assustou é de um evento perceptivel com conseqiiéncias perceptiveis, mas O filme me assustou po- deria ser somente uma questo de um estado interno. “Afetamento: 0 grau em que uma agao ¢ transterida para um paciente éuma fungdo de quao completamente esse paciente é afetado. Assim, por exemplo, 0 afetamento é mais efetivo em Ex bebi o leite todo do que em Eu bebi um pouco do leite. Individuagao: esse componente se refere tanto a0 fato de o paciente ser distinto do agente quanto a distingao entre 0 MARIA ANGELICA FURTADO DA CUNHA & MARIA MEDIANEIRA 0€ SOUZA 38 paciente eo fundo em que ele se encontra. Assim, os referentes dos substantivos que tém as propriedades a esquerda no qua- dro 2, a seguir, sdo mais altamente individuados do que aque- les com as propriedades di (Quadro 2: Propriedades da individuacao | Inpmptapo Nio-Innivipuapo | préprio comum hhumano,animado | inanimado concreto abstrato singular plural contével incontével referencial,definido | ndo-referencial Uma ago pode ser mais eficazmente transferida para um pa- ciente que é individuado do que para um que nao é; desta forma, um objeto definido ¢ considerado como mais completamente afe- tado do que um objeto indefinido. Como explicam Hopper € ‘Thompson (1980, p. 253), em Pedro bebeu a cerveja, hé uma im- plicagio de que cle consumiu toda a cerveja disponiv enn Pedro bebew alguma cerveja & dificil obter essa implicacao (essa implicagio s6 seria possivel, por exemplo, em uma situacdo em que havia tio pouca cerveja que beber alguma seria equivalente a acabar com ela). O mesmo acontece com pacientes.animados € inanimados: em Eu me choquei com Pedro é provavel que haja um foco de atengao no efeito do evento em Pedro, ou em ambos os Participantes (‘eu’e‘Pedro’); mas em Eu me choquei com a mesa, 6 ‘menos provavel que algo tenha acontecido com a mesa, ¢ mais provivel que 0 efeito sobre o agente (‘eu’) esteja sendo ressaltado. Considerada, portanto, no seu sentido literal ~ como a trans~ feréncia de uma agao de um participante para outro —a transitivi- dade pode set decomposta em suas partes componentes, cada uma delas focalizando uma faceta dessa transferéncia em uma porgao diferente da oracao, 0 TRANSIHIVIOADE E SEUS CONTEXTOS DE USO. Cada um desses parimetros contribui para a ordenagao de oragdes na escala de transitividade, de acordo com 0 grau de transitividade que manifestam. Assim, é toda a oragdo que € clas- sificada como transitiva, c nao apenas 0 verbo. Tomados em con- junto, esses parimetros permitem que as oragdes sejam classifica- das como mais ou menos transitivas: quanto mais tragos de alta transitin _ do transitiva canonica—amais alta na escala de trat aquela em que os dez tragos sio marcados positivamente, Logo, aferigao do grau de transitividade de uma oragai ibuin- do-se um ponto a cada parametro de alta transi ide presente na ora¢ao (cf. Quadro 1). Cabe observar que os pariimetrus que caracterizam a oracio transitiva estao relacionados ao evento causal prototipico, defini- do como um evento em que um agente animado intencionalmen- tecausa uma mudanga fisica e perceptivel no estado ou locagio de ‘um objeto (SLOBIN, 1982). Sao esses os eventos que a crianga pri- imeiro percebe e codifica gramaticalmente. Ha, portanto, uma cor- relago entre os tragos que earacterizam o evento causal prototipi- co € 0s parimetros que identificam a oracao transitiva candnica, Q gran de transitividade de uma oracao reflete o grau de saliéncia cognitiva da aco transferida de um agente para um paciente, Logo, a universalidade do complexo de transitividade parece fato de que os parametros que 0 compdem refletem eleme cognitivamente salientes, ligados ao modo pelo qual a experiéncia humana ¢ apreendida. [A titulo de ilustracdo, serao apresentados aqui alguns exer plos de Hopper e Thompson (1980, p. 253-4): (18)a. Jerry knocked Sam down ‘Jerry nocauteou Sam’ b. Jerry likes beer ‘Jerry aprecia cerveja’ ¢. There were no stars in the sky ‘Nao havia estrelas no céu’ d. Susan left ‘Susan partiu’ Segundo a formulacao de Hopper e Thompson, (18a) ocupa lugar mais alto na escala de transitividade (grau 10), uma vez.que [MAnIA ANGELICA FURTADO DA CUNHA & MARIA MEDIANEIRA DE SOUZA contém todos 0s dez tracos do complexo: dois participantes (Jerry afirmativa; oragio re objeto afetado e individuadn (Sam ~ referencia husmano, pro- prio, singular). Ocupando o segundo lugar na escala de transitividade, temos (18d), classificada como intransitiva pela gramética tradicional. aspecto perfect afirmativas modal (18b) esta mais abaixo na escala (grau 5 de transitividade): nio tem acao, perfectividade, pontuali dualizagéo do objeto. Por uiltimo, a oragio com menor grau de itividade (grau 2) € (18c), que s6 apresenta os tragos modali- perfectividade. tar que, pela classificagao da gramética tradicional, as tres primeiras oragdes de (18) slo transitivas, pois apresentam um objeto como complemento do verbo: Sam, cerveja e estrelas, res- pectivamente. Do que foi exposto, conclui-se que as abordagens da graméti- cea tradicional e da lingiistica funcional norte-americana ao fend- meno da transitividade sao divergentes: enquanto aquela trata a transitividade como uma propriedade inerente ¢ categ6rica do verbo, estaa concebe como uma propriedade gradiente da oragao como um todo. Hi também semelhangase diferencas entre as abordagens fun- cionalistas de Chafe, Givon e Hopper e Thompson. Em primeiro lugar, Chafe nao formulou uma proposta especifica para a transi- tividade, como os outros dois linglistas. O que 0s aproxima é 0 fato de compartilharem os mesmos pressupostos teGricos a res~ peito da relacio forma-funcao, da maleabilidade da lingua e da plasticidade da gramatica, da origem da gramética no discurso e da defesa de uma lingiistica baseada no uso, em que se levam em consideracio as determinacoes do contexto lingiistico e da situagao 2 TRANSITIVOADE E SEUS CONTEXTOS DE USO extralingaistica. Por outro lado, o trabalho de Chafe (1979) sobre ‘a estrutura semantica do verbo em inglés tornou-se um clissico na érea e tem servido como referéncia para muitos estudos sobre a relagao entre o verbo e seus complementos nominais. No que diz respeito aos modelos de Givén e Hopper e Thomp- son, 0s pontos em comum estdo representados pela descrigao sin- tatica e semAntica da trat ide, pelo tratamento gradiente, cescalar, dese fendmeno, pela utilizagao da nogao de prototipicidade ‘versus desvio, pela consideragao de aspectos comunicativos (pro- P6sitos interacionais do falante e sua percepgao das necessidades informativas de seu interlocutor) e cognitivos (apreensio e codifi- cayao da experiéncia humana) na manifestagao da transitividade. As diferengas se devem ao fato de que Giv6n concentra-se nas pro- priedades do agente, do paciente e do verbo, e nao focaliza a ora- a0 como um todo, embora reconheca a interferéncia de aspectos oracionais sobre o afetamento do objeto. De fato, seu foco privile- giado de anilise recai sobrea (sub)classificagao dos verbos deacor- do com o grau de mudanga fisica registrada no estado do paciente. Nesta se¢o, vamos analisar a transitividade em oragoes do portugués do Brasil, aplicando a proposta de Hopper e Thomp- son (1980) e confrontando-a com a da gramética tradicional, e fazendo uso das propriedades semanticas do agente, paciente e ‘verbo na oragao-evento, tal como formuladas por Givén (2001). Paralelamente aos exemplos do inglés discutidos em ‘ma, vejamos algumas oragdes do portugués, retiradas de uma nar- rativa que reconta o filme Bu uiblicada nv Corpus Discurso & Gramatica (FURTADO DA CUNHA, 1998), doravante Corpus DeéG: ( )a. Batman derrubou o Pingliim com um soco. b. Mulher Gato nao gostava do Batman. MARIA ANGELICA FURTADO DA CUNHA & MARIA MEDIANEIRA DE SOUZA ¢. Esse rio tem uma forte correnteza. d. Entao o Pingtiim chegou na festa. Pela formulagio de Hopper ¢ Thompson a vragdu em (19a) € a que ocupa o ponto mais alto na escala de transitividade (grau antes (Batman e Pingiim), verbo de agio (derrubow), aspecto perfectivo (agao conclufda), verbo pontual (a¢ao nao durativa), individuado (0 Pingitim — substantivo referencial, humano, pr6- prio, singular), Seguindo a classificagao da gramitica tradicional, as tres primeiras oracoes em (19) sao transitivas, pots apresentam ‘um objeto como complemento do verbo: o Pingiiim, Batman e uma forte correnteza, respectivamente. Ocupando o segundo lugar na escala de transitividade, temos a oragdo (19d), classificada como intransitiva pela gramitica tra~ dicional. Essa oragao apresenta sete tragos do complexo (grau verbo de agio (chegou), aspecto perfective (ago conchuida), ver bo pontual (ado ndo durativa), sujeito intencional (o Pi idade afirmativa, mod: (modo indicativo) e su jeito agente (o Pin {A oracio em (19b) se posiciona mais abai aptesenta trés tragos positivos (grau 3 her Gato ¢ Batman), objeto individuado (Batman) e modalidade realis (modo indicativo). Finalmente, a orago com menor grau de transitividade (grau 2) & a (19), que s6 apresenta os tragos ‘modalidade realise polaridade afirmativa, ‘Vejamos mais algumas ocorréncias. Tomemos, primeiramen- te,0s verbos que, pela sua propria semintica, se referem a transfe- réncia da atividade de um agente para um paciente que ¢ tot: mente afetado, ou seja, os verbos que, em jicamente transitivos. Uma andlise qu: na escala, pois ipantes (A Mu- “ TRANSITIVIDADE E SEUS CONTEXTOS DE USO

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