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Aluno do Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) – área de concentração: Leitura
e Cognição. Bolsista CAPES. E-mail para contato: julinhoc@terra.com.br
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Professora do Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), disciplina Estética e
Cognição. E-mail para contato: piazza@unisc.br
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Machado, enfim, não poderia ter feito melhor escolha: uma sociedade de
aparências, em que a mesquinharia e o oportunismo refugiam-se na moral e nos
costumes, torna-se de fato o cenário ideal para investigar a complexidade do ser
humano. É a que o autor se propõe, usando como ferramentas o humor e o
ceticismo. Em Memórias Póstumas, o primeiro manifesta-se nas contradições entre
fatos e idéias, nas frases curtas – mas de efeito – e na ironia das metáforas. O outro,
na refutação. “E a atividade refutatória não apresenta nenhuma outra intenção que
não seja a de mostrar que tudo, seres e atos, têm mais de uma face e, portanto, a
crença de uma única é sempre falsa” (GAI, 1997, p. 159).
Nem mesmo o protagonista é poupado do olhar analítico de Machado. Brás
Cubas, o personagem que, depois de morto, decide escrever suas memórias, passa
longe do perfil clássico do herói romântico. O rótulo de parasita é o que melhor lhe
convém. Herdeiro de uma família de grandes posses, foge do trabalho na mesma
intensidade em que persegue a fama fácil, o que se evidencia em passagens como
esta: “A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito
mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a
solenidade do estilo” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 64). Sua vida, portanto, é um
inventário de fracassos:
- apaixona-se por Marcela, uma prostituta de luxo pela qual gasta quase todo o
dinheiro da família;
- como forma de repreensão, é mandado pelo pai à Europa, para formar-se
numa universidade;
- após o retorno, apaixona-se pela humilde Eugênia, mas acaba deixando-a
para casar-se com Virgília, cujo pai lhe daria grande projeção política;
- perde Virgília e a carreira para Lobo Neves;
- torna-se amante de Virgília, com a qual teria um filho, mas o bebê morre antes
de nascer;
- separado de Virgília, fica noivo de Eulália, que morre vítima de uma epidemia;
- tenta, novamente em vão, a carreira política;
- e, no esforço derradeiro para alcançar a celebridade, trabalha na fórmula de
um remédio que levaria o seu nome, mas, ironicamente, uma pneumonia o debilita
até a morte.
Cansado, prezado leitor? Agradeço-lhe pela paciência, pois aqui dou início ao
ponto crucial do presente trabalho. Observando a síntese acima, pode-se afirmar
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que, à luz de uma sociedade movida pela cobiça, a relação entre vencedores e
vencidos rege boa parte das memórias de Brás Cubas. Temos, de fato, os itens
essenciais para uma competição: a vitória vem com a riqueza e a aceitação pública,
ao passo que os concorrentes compõem a alta roda da sociedade fluminense –
desde os senhores de terras e os políticos até os não tão providos de recursos,
como os pequenos comerciantes e os literários. E as regras? Estas, cada um
delimita ao seu bel prazer, conforme suas influências, valores materiais ou outros
artifícios. Os escravos, é claro, apenas assistem a esse jogo. De pé, mesmo.
Escorados no alambrado.
Em suma, os mais aptos sobrevivem e os menos dotados se extinguem. O
princípio é o mesmo da Teoria da Seleção Natural, de Charles Darwin. Mas, ao
invés de répteis em Galápagos, aqui nos referimos a outros seres rastejantes. Estes,
aliás, também se adaptam às exigências do meio para prevalecer sobre as demais.
O casamento em Memórias Póstumas, por exemplo, virou condição para ascender
socialmente. Assim recomenda Cotrim ao seu cunhado, Brás Cubas: “Acho que é
indispensável casar, principalmente tendo ambições políticas. Saiba que, na política,
o celibato é uma remora” (Ibidem, p. 206). A sociedade ditava a sua moral e, aos
ambiciosos, cabia a tarefa de cumprí-la – ainda que somente na aparência. É a
razão do seguinte lamento de Brás Cubas, ao perceber que sua amada Virgília
jamais abandonaria a família para que vivessem seu amor proibido:
Vi que era impossível separar as duas coisas que no espírito dela estavam
inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era
capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens,
e a fuga só lhe deixava uma (Ibidem, p. 135).
Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma coisa, corria à minha casa, e
entrava a girar em volta de mim, à espreita de um juízo, de uma palavra, de
um gesto, que lhe aprovasse a recente produção, eu falava-lhe de mil
coisas diferentes – do último baile do Catete, da discussão das câmaras de
berlindas e cavalos – de tudo, menos dos seus versos ou prosas. Ele
respondia-me, a princípio com animação, depois mais frouxo, torcia a
rédea da conversa para o assunto dele, abria um livro, perguntava-me se
tinha algum trabalho novo e eu dizia-lhe que sim ou que não, mas torcia a
rédea para o outro lado, e lá ia ele atrás de mim, até que empacava de
todo e saía triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar de si mesmo,
desanimá-lo, eliminá-lo (Ibidem, p. 105).
Talvez Machado não tivesse concebido Quincas Borba com um vasto bigode.
Entretanto, é inegável relacionar a filosofia que criara ao pensamento de Nietzsche.
O teórico alemão também defende “a necessidade vital que o homem tem de
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Não por acaso esperei até aqui para escrever as minhas considerações sobre
as figuras femininas em Memórias Póstumas. Elas, provavelmente, são as que
celebram com maior veemência a vontade de poder nas páginas do romance. Justo
as mulheres, relegadas a um segundo plano nos moldes sociais da época – à
sombra dos maridos e à frente dos afazeres do lar – praticam astutamente o poder
da persuasão. Seria uma estranha controvérsia. Mas, não. É Machado de Assis.
Marcela, por exemplo, vivia com os privilégios que lhe renderam suas breves
aventuras no coração dos homens. A casa era própria. Os móveis, sólidos, de
jacarandá lavrado. E a ornamentação – espelhos, jarras, baixelas da Índia – regalos
de amores passados. Trabalho árduo, para quê? O ofício de Marcela era a sedução,
que exercia com o talento de poucos. Brás Cubas, um de seus mais generosos
provedores, que o diga:
Era meu o universo; mas, ai triste! Não o era de graça. Foi-me preciso
coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de
meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia sem repreensão sem
demora, sem frieza; dizia a todos que e era rapaz e que ele o fora também.
Mas a tal extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as
franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-
a a desviar alguma coisa, que me dava às escondidas. Era pouco; lancei
mão de um recurso último: entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a
assinar obrigações, que devia resgatar um dia com usura (Ibidem, p. 51).
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O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma
compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a
natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que
coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao
voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma (Ibidem, p.
86).
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Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo
que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao
contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita, mas a doença e uma
velhice precoce destruíam-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido
terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas,
declives e aclives, e davam uma sensação de lisa grossa, enormemente
grossa. [...] Essa mulher era Marcela (Ibidem, p. 92).
A essa altura, Marcela já não tinha mais a vida de privilégios que seus
admiradores lhe podiam comprar. Imagine, trabalhava! E isso também era um
anúncio da ruína. “Trabalhar só se admitia para o mundo feminino tratado por
Machado de Assis em última instância, como algo deplorável, quase vergonhoso”
(STEIN, 1984, p. 63). Numa sociedade em que as mulheres se valiam dos homens
para definir sua identidade, Marcela já não tinha mais artifícios para garantir a sua.
Que remédio? Deixou a vida como indigente.
Mas nem só do belo vive a vontade de poder. Tanto em Eugênia como na
Marcela decadente, podemos encontrar, ainda, outro fator determinante para a
extinção do ser na selva do falso moralismo: ambas contaminaram-se com o tédio
que, segundo Nietzsche, nada mais é do que a renúncia do desejo pela vida. Foge-
se, assim, do confronto com a natureza, pois não há mais forças para mobilização e
nem capacidade de transpor objetos, situações ou pessoas. Eugênia entregou-se ao
moralismo. Já Marcela esgotou seus recursos.
Foi esse mesmo tédio que penalizou Brás Cubas com uma vida sem
realizações, apesar de carregar consigo lampejos de humanitas. Como isso é
possível? Não podemos negar que o protagonista liberta-se da moralidade para
buscar o prazer nos braços de Virgília. Mas ela, segundo Gai (1997, p. 132),
“representa a única chance de felicidade do defunto autor durante sua vida terrena,
provavelmente o seu único foco de interesse”. Tão logo saísse da Gamboa, da
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
STEIN, Ingrid. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.