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TRANSCRIÇÃO MINI AULA 03

MEMÓRIAS PÓS-
TUMAS DE BRÁS
CUBAS
MACHADO DE ASSIS
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Introdução e comentários

Fala, galera, tudo bem?

Sejam muitíssimo bem-vindos à terceira e última miniaula sobre Memórias


Póstumas de Brás Cubas aqui no Clube do Raul 2022!

A miniaula de hoje será um pouco mais curta, e como já abordei dois assuntos
que julguei mais interessantes e urgentes para vocês, alunos, nas duas
primeiras aulas, resolvi mudar a ordem e adicionar, na última miniaula deste
mês, o que geralmente acontece na primeira: informações biográficas,
contextuais e históricas relevantes.

Quem me conhece sabe que não entrego informações meramente por entregar.
Tem gente que acha que qualquer informação, por ser um fato, já é relevante.

Não é.

Ninguém aqui é estudioso de Machado de Assis; ninguém quer fazer um


mestrado ou escrever um livro sobre o Bruxo.

O que você quer, leitor, é ler um bom livro do Machado de Assis e “pescar”
informações que sejam interessantes porque tenham alguma ligação com o
livro, ou porque o são para qualquer pessoa.

Interessantes no sentido de revelar alguma coisa sobre o autor, que por sua
vez vai revelar algo sobre a leitura.

Ínicio da aula

As informações que quero lhe entregar aqui hoje, leitor, são justamente aquelas
que irão ajudá-lo a criar uma imagem mais exata do sujeito que escreveu
aqueles livros, para que você o respeite, o admire e o ame ainda mais.

Desse modo, o respeito, a admiração e o amor poderão transbordar para o


livro, tornando a relação entre você, autor e livro, mais rica, mais profunda e
mais significativa.

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No fim das contas, essas picuinhas não ajudam em porcaria nenhuma você a
entender tanto os livros quanto o autor.

Portanto, comecemos dando uma brevíssima biografia sobre os primeiros anos


de Machado, para que você entenda de onde veio o autor, como surgiu seu amor
pelas letras, e para que compreendamos melhor a dimensão de seus méritos.

Os primeiros anos

Machado de Assis nasceu em meados dos anos 1800, e era mulato — não estou
usando a palavra “mulato” com qualquer sentido pejorativo. Estou, obviamente,
usando-a no mesmo sentido em que todos a usam, e no sentido que o próprio
Machado a utilizava.

Machado era filho de uma branca com um negro.

Assis de fato nasceu pobre, no Morro do Livramento.

E aqui quero desfazer o primeiro mito que criaram sobre o autor:

Se você der uma olhada no que o pessoal da esquerda diz, vai vê-los enfatizando
que Machado era favelado. Que ele seria quase o equivalente ao Mano Brown,
tendo surgido da mesma circunstância.

Não era assim.

O Morro do Livramento, à época, não era uma favela, e sim uma chácara.

Essa chácara era parte de uma propriedade bem maior, salvo engano chamada
Chácara do Livramento.

A mãe de Machado, uma portuguesa dos Açores, veio para o Brasil com a família
em condições complicadas, fugindo da pobreza. Naquela sociedade, ser um
português açoriano pobre era algo que fazia com que você fosse desprezado
pelos seus próprios compatriotas portugueses.

Ademais, ela se casou com um negro, que era trabalhador manual — muitos
dizem que era pintor, mas não se sabe ao certo.

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O pai de Machado fazia, quase sempre, trabalhos para a dona da Chácara do


Livramento — iremos chegar nela em breve.

A mãe de Machado supostamente era lavadeira: não sabemos disso ao certo,


especialmente porque naquela época, lembremos, Machado de Assis nasceu, e
durante décadas morou em um país escravocrata.

Na época de Machado de Assis havia escravos andando pela rua. Isso era
normal. Quero que você se lembre disso, leitor.

Naquele tempo, mesmo se você fosse um branco pobre como a mãe de


Machado, se recusaria a fazer trabalho de negros escravos. Por isso não
sabemos se a mulher foi ou não lavadeira.

O pai de Machado era um negro livre, alforriado, filho de pais negros livres. Ou
seja, os avós paternos de Machado eram livres. Já seus bisavós eram, com
certeza, escravos.

E, voltando à mãe de Machado, só para você ter uma ideia, muitas açorianas que
chegavam ao Brasil nas mesmas condições de penúria, muitas vezes viravam
prostitutas. Esse era o nível das portuguesas pobres que chegavam por aqui.

Essas eram as condições sociais de Machado. Se você acha que isso não tem
nenhum peso sobre a psicologia e a vida de Machado e sua família, então é
preciso que abra um pouco os olhos.

Agregados

Naquela época, a esmagadora maioria dos negros e mulatos eram escravos.

Havia, então, negros que tinham subido na vida?

Claro que sim, mas poucos. E era mais raro ainda ver um negro que houvesse
ascendido às maiores alturas na escala social. Machado e seus pais eram
agregados da dona da Chácara do Livramento, dona Maria José.

E o que era um agregado?

Agregado era alguém que vivia sob a asa de uma família mais rica, como José
Dias em Dom Casmurro, por exemplo.
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Os agregados ficavam numa espécie de meio-termo: não eram escravos nem


gente da alta sociedade. Livres, porém muito limitados. Estavam, basicamente,
sob a misericórdia de uma família rica.

José Dias era um agregado de nível superior, pois morava junto da família, na
casa desta; Machado de Assis e seus pais, não. Estes moravam numa casa
separada, dentro das terras de dona Maria José.

É certo que dona Maria José nutria afeição por Machado, senão não teria virado
sua madrinha. Porém algumas pessoas exageram essa afeição, dizendo que
Machado era como um filho para ela, alguém que Maria José tinha em alta conta.

Ninguém sabe disso ao certo.

O que sabemos é que Maria José foi sua madrinha e que Machado sempre falou
dela, e da Chácara, com uma nostalgia feliz.

Dona Maria José, por sua vez, era muito influente. Viúva de um deputado
bastante respeitado em vida, estava no topo da elite carioca. Além de deputado,
seu falecido marido fora ministro de Dom Pedro I, ou seja, um sujeito de
relevância na sociedade.

Logo, dona Maria José tinha trânsito livre entre as principais figuras da época:
uma pessoa realmente rica e influente.

Machado, por sua vez, possuía certa liberdade na Chácara; muitas vezes tinha
acesso à casa principal e observava as obras de arte contidas ali; muito
provavelmente acessava também a biblioteca.

E observava, claro, a desigualdade.

Machado, um menino mulato — e, ao que parece, um mulato de pele mais escura


— observava todas essas coisas. E tenho que dizer algo da qual eu mesmo já
desdenhei: parece mesmo que muitas fotos de Machado eram
esbranquiçadas.

Coloque-se no lugar de Machado por um momento, leitor: você, um menino


mulato de menos de dez anos de idade, vendo meninas loiras e brancas sendo
eternamente servidas por escravos negros.

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E você tem consciência de que é muito mais parecido com os escravos do que
com as moças ricas. Porém você não é nem escravo nem rico. Você é um
meio-termo; está no limbo.

Outra coisa importante é o fato de que os pais de Machado eram letrados,


coisa raríssima na época.

O pai de Machado, inclusive, assinava o almanaque cultural mais importante do


Brasil naquele tempo. Lá havia tanto informações jornalísticas quanto culturais:
resenhas, e até lançamentos de escritores.

Então podemos ver que Machado, nesse ponto também, encontrava-se numa
situação meio atípica, pois seus pais sabiam ler e tinham certo interesse pela
cultura. A família vivia uma vida simples, porém estável. Machado nunca passou
fome, por exemplo.

Mudança

Quando Machado tinha cerca de 7 anos de idade, dona Maria José morre e a
família deixa de ser agregada daquela casa.

Os pais de Machado faziam, quase sempre, serviços para a madrinha. Era um


trabalho fixo, e, por assim dizer, home office. Quando Maria José morre, isso
acaba.

Os trabalhos deixam de ser certos e próximos de casa.

Agora os pais tinham de se locomover até o centro da cidade, que era longe, por
uma estrada que era uma porcaria. Só isso já é um baque.

E o segundo baque acontece quando a irmã de Machado morre de tuberculose,


a mesma doença que acometera dona Maria José. Isso afeta grandemente os
pais de Machado. A família tem que sair do morro, se mudando para uma outra
casa.

Não bastasse toda essa sucessão de desgraças, com dez anos de idade
Machado perde também a mãe para uma febre tifóide. Na época o Rio de
Janeiro era um verdadeiro antro de epidemias.

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E, como o pai era pobre e precisava trabalhar fora, é bem provável que Machado
tenha começado a ficar sozinho em casa. Com dez anos de idade, mulato,
franzino, pobre, e agora sem uma madrinha influente, sem mãe e sem irmã.

Era esse o “Machadinho” daquele tempo. Machado era chamado assim por ser
muito afável com todos; o garoto tinha modos absurdamente cavalheirescos; era
educado, polido, fino.

Machado sempre foi do tipo que fazia amizades muito facilmente.

Esse menino viria a se tornar o maior escritor brasileiro de todos os tempos, e


segundo Howard Bloom, um dos maiores críticos literários do século XXI, o
maior escritor negro de todos os tempos.

Sim, leitor, esse é o nível do alcance de Machado lá fora.

Juventude e vida adulta

Depois de um tempo, Machado começa a tentar uma carreira como tipógrafo.


Com seus quinze anos consegue entrar em uma tipografia, e vai subindo na
carreira: de tipógrafo para revisor de textos; de revisor para tradutor; depois
começa a trabalhar num jornal, para mais tarde tornar-se funcionário público —
e um funcionário público exemplar.

Machado era um funcionário público irrepreensível, o que também é


interessante.

Como um gênio criativo absolutamente extravagante — e isso serve para mim e


todas as pessoas mais criativas que ficam com essa frescura de dizer que não se
prendem a prazos e horários porque têm o espírito criativo — ainda conseguia
ser um funcionário exemplar em seu emprego?

Isso é chocante pois é muito, mas muito difícil de acontecer.

Lá para seus quinze anos de idade, Machado escreve seu primeiro conto, e vai
escrever SEM PARAR até o último ano de sua vida.

São mais de 50 anos escrevendo sem parar!

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Se não estava escrevendo contos, eram crônicas; se não crônicas, poemas; se


não poemas, críticas literárias; se não críticas literárias, críticas teatrais; se não
críticas teatrais, peças de teatro; se não peças de teatro, traduções; se não
traduções, artigos de jornal; se não artigos, romances.

Repito: são 50 anos de produção quase ininterrupta, outra coisa que também é
praticamente um milagre.

Esquerda e direita

O resto nós meio que já sabemos: Machado ganha sucesso ainda em vida,
torna-se respeitadíssimo, funda a ABL — Academia Brasileira de Letras — e faz
amizade com as principais figuras literárias da época: José Veríssimo, Joaquim
Nabuco, entre outros.

E tem mais um detalhe que não mencionei quando estava falando da infância de
Machado: ele era epiléptico e gago.

Muito provavelmente sua epilepsia surgiu com o trauma da morte da mãe, e


talvez a gagueira também.

Tanto que, na ocasião da fundação da ABL, Machado não discursa, por causa da
gagueira. E olha que quase metade de Memórias Póstumas foi escrito com
Machado ditando o livro do hospital — ditando uma parte, e escrevendo outra —
pois tivera um ataque fortíssimo de epilepsia.

Então, leitor, é esse sujeito, que obviamente não pode ser reduzido à cor de sua
pele, mas que ainda assim foi um mulato, que conquistou todas essas coisas.

Não podemos dizer, como alguns da esquerda, que Machado não teve acesso à
cultura: ele teve, e isso não diminui seu gênio. Seus pais sabiam ler e talvez o
encorajassem a fazê-lo.

Machado tivera contato, na Chácara do Livramento, com grandes obras e com a


grandeza estética da aristocracia.

E aí temos o outro lado, a direita, que diz que não tem nada a ver falar sobre a cor
da pele de Machado. Eu mesmo já caí nessa, leitor, mas quer saber?

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O sujeito era mulato numa sociedade de escravos. Pare para pensar nisso.

Pare para pensar numa sociedade em que a cor da sua pele praticamente deter-
minaria ou não se você seria escravo. Mas mesmo que não fosse um escravo,
você acha mesmo que as pessoas não o tratariam diferente só por ser livre?

Você acha mesmo, leitor, que a cor da pele não contava?

Agora pense o seguinte: o sujeito, tendo essas condições, pura e simplesmente


almeja a glória literária. Quer subir ao topo da cadeia cultural brasileira. Quer ser
um grande artista. Neto de escravos. Filho de pais humildes, trabalhadores bra-
çais. E o sujeito consegue.

O sujeito se torna, de fato, o maior artista das letras do Brasil de todos os


tempos.

Esse é Joaquim Maria Machado de Assis.

Conclusão

Leitor, decidi lhe entregar essa brevíssima biografia porque não quero que nós
nos esqueçamos que esse homem, Machado de Assis, não é só um gênio: ele foi
se construindo com muito esforço.

Machado se moldou com um gênio metódico de repetição quase inacreditável.


Com uma ambição que, definitivamente, não condizia com suas circunstâncias
de nascimento.

Esse foi o homem que escreveu Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Encerramento da aula

Com essa brevíssima história, espero que seu amor, respeito e admiração por
Machado tenham aumentado, como aconteceu comigo, leitor.

E agora, a leitura do livro se enriquece com a imagem do autor: um homem


extremamente galante, educado, fino. Completamente civilizado, mesmo
quando se opunha publicamente a alguma coisa.

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Um homem que fez amizades com pessoas que pensavam diferente; um escri-
tor que escreveu obras magistrais, e conciliou tudo isso com sua carreira exem-
plar de funcionário público.

Um sujeito que morou até seus últimos dias numa casa simples — que foi,
pasme, demolida por algum idiota, e subiram um prédio no lugar. Esse é o
Brasil…

Enquanto em Portugal o último quartinho onde ficou Fernando Pessoa virou


museu, aqui no Brasil deixaram demolir a casa do maior escritor brasileiro
que já existiu.

Portanto, o que podemos fazer aqui, leitor, é jamais deixar que essa gigantesca
alma seja esquecida.

Que leiamos suas obras, que as apresentemos para nossos filhos e que nós
mesmos sejamos mudados tanto pelos livros quanto pelo autor.

Então é isso, leitor!

Agora restam apenas as duas aulas principais, em que entraremos de cabeça


em Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Brigadão por tudo, e até a próxima aula!

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