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AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP

CASA VELHA
1. Breve biografia do autor publicado após o falecimento de Carolina, carrega tom
melancólico e traços autobiográficos. Pouco depois dessa
publicação, em 1908, falece Machado de Assis, em sua
No Morro do Livramento, Rio de Janeiro, em 21 de
casa, no bairro do Cosme Velho, aos 69 anos, rodeado de
junho de 1839, nasce Joaquim Maria Machado de Assis,
amigos e admiradores.
filho de pai mestiço, Francisco José de Assis, descendente
de escravizados alforriados, e de mãe açoriana, Maria
Leopoldina Machado. A família do escritor, embora de 2. Principais obras
parcos recursos financeiros e vivendo como agregada em
propriedade de dona Maria José de Mendonça, pertencia Peças teatrais
a um pequeno grupo social cujo privilégio “consistia em Hoje Avental, Amanhã Luva (1861)
saber ler e escrever1”. Aos 10 anos, fica órfão de mãe. Seu Desencantos (1861)
pai casa-se com Maria Inês, que trabalhava como doceira O Caminho da Porta (1863)
em um colégio onde o menino passou a assistir a cursos O Protocolo (1863)
regulares. “Aprendidas as primeiras letras (...), recebeu Quase Ministro (1864)
aulas de francês e latim de um padre amigo Silveira Os Deuses de Casaca (1866)
Sarmento; mas foi como autodidata que construiu sua Tu, Só Tu, Puro Amor (1881)
vasta cultura literária”2. Em 1856, assume a função de Não Consultes Médico (1899)
aprendiz de tipógrafo, na Imprensa Nacional. Em 1858, Lição de Botânica (1906)
ingressa no Correio Mercantil e se aproxima do círculo
literário de seu tempo. Em 1860, começa a trabalhar no
periódico liberal Diário do Rio de Janeiro. Sua entrada Romances
em um período de viés político colocou-o “na obrigação Ressurreição (1872)
de enfrentar o grande público, de dar a sua opinião sobre A Mão e a Luva (1874)
os assuntos do dia, fê-lo refletir, pensar. A disciplina da Helena (1876)
colaboração frequente [e] a sensação do contato com Iaiá Garcia (1878)
leitores de toda a natureza amadureceram rapidamente Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
esse rapaz de 21 anos”3. Em 1869, casa-se com Carolina Casa Velha (1885-1886)
Xavier de Novaes. Nos anos subsequentes, Machado Quincas Borba (1892)
produz romances e contos que ainda não apresentam os Dom Casmurro (1900)
traços que marcariam sua escrita – a ironia e o interesse Esaú e Jacó (1904)
pela análise psicológica, por exemplo –, mas também não Memorial de Aires (1908)
se submetem inteiramente aos preceitos românticos ainda
em alta à época do autor. Em 1881, publica Memórias Poesias
Póstumas de Brás Cubas, atingindo a “plena maturidade
Crisálidas (1864)
do seu realismo de sondagem moral que as obras seguintes
Falenas (1870)
iriam confirmar”4. O último romance, Memorial de Aires,
Americanas (1875)
1 MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: ensaio Poesias Completas (1901)
de biografia intelectual. Trad. de Marco Aurélio de Moura Matos. 2. ed. São Ocidentais (1901)
Paulo: Unesp, 2009. p. 66.
2 BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 46. ed. São Paulo:
Cultrix, 2008. p. 174.
3 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936. p. 80.
4 BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 46. ed. São Paulo:
Cultrix, 2008. p. 174.
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Coletâneas de contos na exploração da mão de obra escravizada e no paterna-


Contos Fluminenses (1870) lismo político. Embora aparente certa independência – o
Histórias da Meia-Noite (1873) padre Mascarenhas chega a compará-la a uma imperatriz
Papéis Avulsos (1882) (cf. CV, p. 111) –, conserva-se, entretanto, em restrita
Histórias sem Data (1884) sujeição à memória do marido, enterrado na mesma capela
Várias Histórias (1896) onde aos domingos a família reza missa. “Nascera dona
Páginas Recolhidas (1899) de casa; no próprio tempo em que a vida política do
Relíquias de Casa Velha (1906) marido, e a entrada deste nos conselhos de Pedro I podiam
tirá-la do recesso e da obscuridade, só a custo e raramente
os deixou (...). Era filha de Minas Gerais, mas foi criada
3. Casa Velha no Rio de Janeiro, naquela mesma Casa Velha, onde
casou, onde perdeu o marido e onde lhe nasceram os filhos
Personagens – Félix, e uma menina que morreu com três anos” (CV, p.
Em Casa Velha, Machado de Assis faz um retrato 71). Na primeira vez em que o narrador vai à Casa Velha,
crítico da sociedade patriarcal brasileira do século XIX. D. Antônia lhe conta um episódio familiar: seu avô foi
O núcleo familiar da trama, microcosmo dessa sociedade, quem construiu a casa após retornar de uma viagem à
será observado em sua perspectiva mais íntima, ou seja, na Europa, de onde “trouxe ideias de solar e costumes
rotina da casa – hábitos, crenças arraigadas, posiciona- fidalgos”. Um dia, dada a timidez da neta ante o paço
mentos políticos, segredos –, por alguém que não faz parte imperial, o homem exclamou indignado: “Menina, uma
desse núcleo. Há nisso uma espécie de jogo de opostos – Quintanilha não treme nunca!”(CV, p. 75). A esse episódio
fora/dentro; público/privado – que atravessará o enredo. o narrador atribuiu a gênese da “pontazinha de orgulho”
No que concerne à figura do narrador, não pertencendo à que se poderia notar nessa senhora “essencialmente chã”.
família, ele se situa como perspectiva de fora. Trata-se de
um estranho que, valendo-se, no entanto, da posição de padre, Félix: “(...) moço de vinte anos mais ou menos,
passa a frequentar assiduamente a casa de D. Antônia, simpático, fisionomia meiga e franca” (CV, p. 67). A certa
viúva de um ex-ministro de Estado. O narrador torna-se, altura, manifesta desejo de ingressar na política. Sobre
assim, íntimo dos moradores da casa, uma espécie de esse desejo pondera o narrador: “Creio que falamos ainda
confidente, e de dentro da trama contribui para os seus de política, e da política daqueles últimos dez anos5, que
desdobramentos. Abaixo, segue uma descrição mais não era pouca nem plácida. Félix não tinha certamente um
detalhada dos personagens. plano de ideias, e apreciações originais; através das
palavras dele, apalpava eu as fórmulas e os juízos do
Narrador-personagem: velho cônego da Capela círculo ou das pessoas com quem ele lidava para o fim de
Imperial que, em data imprecisa, relata um episódio por encetar [iniciar] a carreira. Agora, a particularidade dele
ele vivido em abril de 1839, quando contava com a idade era a clareza e retidão de espírito precisas para só recolher
de 32 anos. Há três camadas de tempo a serem observadas do que ouvia a parte sã [saudável] e justa, ou, pelo menos,
no início do romance: na primeira, temos o fato ocorrido a porção moderada. Nunca andaria nos extremos, qualquer
em um passado datado; na segunda, o relato produzido que fosse o seu partido” (CV, p. 98).
num passado longínquo, “há muitos anos”; na terceira,
uma voz heterodiegética – narrador em terceira pessoa – Lalau/Cláudia: afilhada de D. Antônia. A moça
traz à cena de abertura, no presente, a figura do sacerdote perdeu o pai, Romão Soares, muito cedo e depois a mãe,
e abre espaço para seu relato: “Aqui está o que contava, há Benedita Soares, por quem tinha verdadeira adoração.
muitos anos, um velho cônego da Capela Imperial” (CV, Vivia com a tia, D. Mafalda. Lalau “(...) era criatura
p. 65). O traço memorialista – ainda que encoberto por adorável, espigadinha, não mais de dezessete anos, dotada
uma narrativa bem concatenada – não deve ser de um par de olhos, como nunca mais vi outros, claros e
negligenciado. vivos, rindo muito por eles, quando não ria com a boca;
mas se o riso vinha juntamente de ambas as partes, então
D. Antônia/ Nhãtônia: “(...) era antes baixa que alta, é certo que a fisionomia humana confirmava com a
magra, muito bem-composta, vestida com singeleza e angélica, e toda a inocência e toda a alegria que há no céu
austeridade; devia ter quarenta e seis a quarenta e oito pareciam falar por ela aos homens. Pode ser que isto
anos” (CV, p. 71). Viúva de um ex-ministro de Estado, pareça exagerado a uns e vago a outros, mas não acho do
neta de um Quintanilha, D. Antônia, no “mundo insulado” momento um modo melhor de traduzir a sensação que
da Casa Velha (CV, p. 111), empenha-se para que perma- essa menina produziu em mim. Contemplei-a alguns
neçam inabaláveis, como os alicerces da casa, os preceitos instantes com infinito prazer. Fiei-me do caráter de padre
de uma sociedade fundamentada no privilégio de classe, 5 Vale lembrar que a história se passa em 1839, último ano da Regência.
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para saborear toda a espiritualidade daquele rosto outra. Bonita era, e a elevação do talhe delgado dava-lhe
comprido e fresco, talhado com graça, como o resto da um ar superior a todas as demais senhoras ali presentes,
pessoa. Não digo que todas as linhas fossem corretas, mas que eram medianas ou baixinhas, com exceção de Lalau,
a alma corrigia tudo” (CV, p. 84). que ainda assim era menos alta que ela. Mas essa mesma
superioridade era diminuída pela modéstia da pessoa, cujo
Romão Soares: pai de Lalau, “exercia um ofício de acanhamento, se era natural, aperfeiçoara-se na roça. Não
mecânico, e antes pertencera à guarda da cavalaria de olhou para mim quando chegou, nem ainda depois de
polícia” (CV, p. 84). sentar-se. Usava as pálpebras caídas, ou, quando muito,
levantava-as para fitar só a pessoa com quem ia falando.
Benedita Soares: mãe de Lalau, “era filha de um Como o pescoço era um tantinho alto demais, e a cabeça
escrivão da roça, e, segundo (...) a própria D. Antônia, foi vivia ereta, aquele gesto podia parecer afetação. Os
uma das mais bonitas mulheres que ela conheceu desde o cabelos eram o encanto da avó, que dizia que a neta era a
tempo do rei” (CV, p. 84). sua alemã, porque eles tendiam a ruivo; mas, além de
ruivos, eram crespos, e, penteados e atados ao desdém,
Ex-ministro: não há menção a seu nome de batismo, davam-lhe muita graça” (CV, p. 124).
aquilo que o individualizaria, mas à sua função,
ex-ministro de Estado, aquilo que garante, no presente da
narrativa, reconhecimento social à viúva e ao filho nascido 4. Resumo
dentro do casamento. No retrato, exposto na biblioteca,
aos quarenta e quatro anos, surge com “a cabeça altiva, o O narrador-personagem, um “velho Cônego da
olhar inteligente, a boca voluptuosa” (CV, p. 77). Na Capela Imperial”, rememora, em data imprecisa, aconte-
descrição feita pelo coronel Raimundo, dois traços de cimentos que o marcaram nos idos 1839. Começa dizendo
personalidade do ex-ministro são postos em evidência: que à época, com 32 anos de idade, uma obra escrita por
1) conservadorismo político – fosse vivo não toleraria as outro padre, Luís Gonçalves dos Santos, intitulada
insurgências populares em curso, em 1839; além disso, Memórias para Servir à História do Reino do Brasil,
não há menção de que tenha repudiado a Constituição de despertou-lhe o intento de escrever a história do Primeiro
1824, que dava poderes de monarca absolutista ao Reinado. Passa, então, a coletar jornais e documentos
imperador D. Pedro I; 2) promiscuidade sexual – “maroto públicos que versassem sobre o assunto quando fica
[malandro] com as mulheres”. “Velhaco [aquele que gosta sabendo que em casa de uma senhora, D. Antônia, viúva
de enganar] para amores”. “Veja aqueles olhos!”, exclama de um ex-ministro de Estado, havia uma vasta biblioteca
o coronel apontando para o quadro. “E não imagina como onde poderia lograr algum êxito em sua pesquisa. Com a
era gamenho [casquilho, diz-se de indivíduo que se veste intermediação de um amigo, também padre, passa a
com apuro excessivo, no rigor da moda; janota] e frequentar, com regularidade, a casa de ares aristocráticos,
requebrado [aquele que se move de maneira lascívia, construída pelo avô de D. Antônia. A Casa Velha, como
sensual]” (CV, p. 136). era chamada a propriedade, contava, além da biblioteca,
com um amplo pátio interno e uma capela; abrigava, além
Coronel Raimundo: “(...) era parente da casa; era de D. Antônia, seu filho Félix, moço de 20 anos mais ou
irmão de um cunhado do marido de D. Antônia, e fora menos, uma agregada, Lalau (Cláudia) – afilhada de
muito amigo e familiar dele (...). Conhecera muito o D. Antônia e educada por esta senhora desde que Lalau
imperador. Assistira à dissolução da Constituinte6, por ficou órfã, em 1831 – e um número não determinado de
sinal que estava nas galerias, durante a sessão permanente, escravos. Lalau dividia-se entre a casa de uma tia,
e ouviu os discursos do [Francisco Gê Acaiaba] de D. Mafalda, e a Casa Velha. O grande drama familiar, logo
Montezuma e dos outros” (CV, p. 120). percebido pelo narrador-personagem, diz respeito ao amor
inconfesso entre Félix e Lalau. D. Antônia, efetivamente,
Sinhazinha: neta de uma baronesa, “perdera o pai e a tem apreço pela moça, mas jamais aceitaria que seu filho
mãe e viera do Rio Grande do Sul para a fazenda da avó”, se unisse em casamento a alguém de posição social abaixo
herdeira única de vastas fazendas. “Sinhazinha era o da posição social dele.
oposto de Lalau. Maneiras pausadas, atitudes longamente A primeira vez que o padre-narrador se depara com
quietas; não tinha nos olhos a mesma vida derramada que Lalau, ante a beleza da moça, confessa: “Fiei-me do caráter
abrangia todas as cousas e recantos, como os olhos da de padre para saborear toda a espiritualidade daquele rosto
comprido e fresco, talhado com graça, como o resto da
6 Após a Independência do Brasil, em 1822, a convocação de uma Assembleia
pessoa” (CV, p. 84). Numa manhã, Lalau visita-o na
Constituinte se tornou uma das principais questões de interesse público no biblioteca, e dialogam sobre variados assuntos. A certa
país. Em maio de 1823, deputados eleitos foram à capital, Rio de Janeiro, altura, indagada sobre sua mãe, a moça deixa transparecer
incumbidos da tarefa de escrever a nova Constituição.
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o desmedido amor filial que devota à memória materna. manteve um relacionamento extraconjugal com o marido
Esse diálogo marca-o, profundamente: “A simpatia que de D. Antônia, mas Lalau não era fruto desse relacão.
me arrastava para ela complicava-se agora de veneração, Quando o ex-ministro e Benedita se conheceram, tinha
diante daquela explosão de sensibilidade” (CV, p. 97). Lalau três meses de vida. Às pressas, o narrador se dirige
Após um período distante da Casa Velha, em decorrência à Casa Velha. D. Antônia recebe-o desconfiada. Ele conta
de uma constipação (gripe), o narrador-personagem a ela tudo o que ouviu da tia de Lalau; conclui afirmando
recebe a visita de Félix. Conversam sobre Lalau, o rapaz que, diante das novas circunstâncias, nada impedia o
revela ao padre os intentos de D. Antônia – anda procu- casamento de Félix com a moça. Após ouvir toda a
rando noivo para a moça, cogita Vitorino, “o filho do história, D. Antônia confessa ao padre que não sabia dos
segeiro que nos conserta as carruagens” (CV, p. 103). Se, casos amorosos de seu marido: “inventara a filiação de
de um lado, a viúva do ex-ministro vinha tentando enviar Lalau, com o único fim de obstar [criar um obstáculo] ao
o filho à Europa; de outro, empenhava-se em arranjar casamento. Confessou tudo, francamente, alvoraçada (...).
casamento para a afilhada. Durante a conversa, Félix A razão é que o golpe recebido fora profundo” (CV, p.
confessa ao padre seus sentimentos por Lalau e ouve do 149). Tinha acreditado no amor conjugal, “adorava a
confidente a promessa de ajudá-los. Em sua volta à Casa memória do marido, como se pode fazer a uma santa de
Velha, o narrador-personagem percebe o contentamento de devoção íntima”. Passada a comoção inicial, D. Antônia
Lalau em vê-lo, deduz que Félix talvez tivesse contado à acredita estar sendo punida, em parte, com a descoberta da
moça tudo o que haviam conversado, na noite anterior, e se infidelidade do marido. Acrescenta, resignada, que
abate. Descobre-se também amando Lalau, dada sua precisaria receber uma punição maior e não havia outro
condição de padre, entretanto, “nada me fazia pensar em meio para isso senão unir Félix e Lalau em casamento.
semelhante cousa, o amor insinuou-se-me no coração à ma- Pede a seu interlocutor que explique a nova situação aos
neira das cobras” (CV, p. 106). Mesmo admitindo senti- dois e que traga a moça de volta à Casa Velha o quanto
mentos que até então não suspeitava que carregasse, o padre antes. Félix ouve a notícia alvoraçado. Lalau, no entanto,
se diz disposto – e com mais ímpeto ainda – a fazer feliz a abana a cabeça e responde que “nada estava alterado, a
moça junto ao homem com quem ela decidisse se casar. situação era a mesma”. “– Não poderia casar-me com o
Na manhã do dia seguinte, D. Antônia conduz o filho do homem que envergonhou minha família” (CV, p.
padre-narrador à capela anexa à Casa Velha. Mostra-lhe as 151). Mesmo diante dos apelos do narrador, a moça não
alfaias – vestes sacerdotais – que mandara fazer durante o cede. Algum tempo depois, Lalau se casa com Vitorino, o
período em que ele esteve ausente. Emendam conversa filho do segeiro. Félix, não muito depois, casa-se com
sobre Félix – o desejo que ela tem de enviá-lo à Europa. Sinhazinha, neta de uma baronesa. “No fim, cada qual se
O padre tenta dissuadi-la. O rapaz não aceitaria tal casa dentro de sua classe social, e o comentário final do
viagem, a menos que a fizesse casado. O padre-narrador, narrador é: ‘Se ele e Lalau foram felizes, não sei; mas
então, propõe à viúva do ex-ministro o casamento de Félix foram honestos, e basta7’”.
com Lalau. Alega que eles gostam um do outro e que a
moça tem virtudes e “distinção natural que supre o 5. Breve análise da obra
nascimento [a condição social]”. D. Antônia, escanda-
lizada, insinua, como último recurso – efetivamente, ela 5.1. Preâmbulo
não chega a afirmar com todas as palavras – que unir Félix O romance8 Casa Velha, de Machado de Assis, chega
e Lalau em casamento seria um ato incestuoso. Lalau seria às mãos do público leitor, no século XIX, sob a forma de
fruto de um caso extraconjugal do ex-ministro. Atordoado folhetim – eram assim chamadas as narrativas literárias
com a reviravolta dos fatos, o narrador se vê na obrigação publicadas por capítulos, regularmente, em jornal ou
de ajudar D. Antônia a separar os jovens enamorados. revista. Entre janeiro de 1885 e fevereiro de 1886, Casa
Ambos são postos a par do relacionamento. Félix sofre, Velha disputou espaço em A Estação, “jornal de modas”,
mas admite, ao cabo: “estou curado (...). O sentimento que com “modelos de vestidos, riscos de bordados, resenhas
essa menina me inspirou converteu-se agora em outro, e de festas, receitas de toucador [penteado]”9. Depois disso,
creia que pela imaginação já me acostumei a chamá-la
irmã” (CV, p. 140). Lalau se recolhe à casa de sua tia. 7 GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. Revista e
Já concluindo sua pesquisa histórica e recolhendo da Ampliada. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 39.
8 Na edição da Obra Completa de Machado de Assis, lançada pela Editora Nova
biblioteca todo o material produzido, o narrador-persona-
Aguilar, Casa Velha surge na lista de contos. Lúcia Miguel-Pereira se refere
gem se depara com um bilhete, escrito pelo ex-ministro e à obra como pertencendo ao gênero novela. Aqui, adotaremos a terminologia
esquecido dentro de um livro. O bilhete fazia menção a proposta por John Gledson, que se refere ao texto como romance.
“um anjinho”. Acreditando que o fato poderia ter ligação (GLEDSON, J. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. Revista e Ampliada.
São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 21).
com a família de Lalau, o padre se dirige à casa de 9 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prefácio ao romance Casa Velha. In: MACHA-
D. Mafalda a fim de obter explicações. Descobre, então, DO DE ASSIS, J. M. Casa Velha. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Livraria
que, verdadeiramente, a mãe de Lalau, Benedita Soares, Garnier, 1999. p. 50.
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a obra permaneceu esquecida, por mais de meio século, Pertencem a esse período, quanto aos romances, além do
sob as sombras dos arquivos pertencentes à Biblioteca já mencionado Memórias Póstumas, as seguintes obras:
Nacional. Em 1944, após minucioso trabalho de pesquisa Quincas Borba (1892), Dom Casmurro (1900), Esaú e
em periódicos para os quais colaborou o autor, Lúcia Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). A passagem da
Miguel-Pereira, crítica literária e biógrafa de Machado, primeira para a segunda fase, todavia, não deve ser enten-
descobre e republica Casa Velha sob o selo da livraria dida como uma cisão radical, uma mudança abrupta no
Garnier. percurso literário de Machado de Assis – afinal, como asse-
Antes de atentar para o lugar que esse romance ocupa vera Lúcia Miguel-Pereira, “o autor das Memórias Póstu-
no conjunto das obras machadianas, convém observar o mas de Brás Cubas já devia existir no de Ressurreição,
fato de que a produção literária de Machado de Assis vem como a Capitu da Glória estava na de Matacavalos”14.
sendo compreendida, por parte significativa da crítica No que se refere ao romance Casa Velha, sabe-se,
especializada, a partir de um corte temporal que distingue como dito anteriormente, que sua publicação se deu
as obras escritas na “fase de juventude” daquelas escritas inicialmente em folhetim entre os anos de 1885 e 1886.
na “fase de maturidade”. Nessa perspectiva, no que con- Trata-se, por conseguinte, de uma obra lançada quatro
cerne aos romances, Ressurreição (1872), A Mão e a Luva anos após a publicação de Memórias Póstumas. Isso
(1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) são ditos de significa dizer que quando o romance vem a público,
primeira fase ou “fase de juventude”, pois carregam Machado de Assis já tinha alcançado, com seu defunto-autor,
preceitos ainda vinculados à estética romântica, certo alto grau de refinamento literário. Casa Velha, no entanto,
ranço retórico, sem, contudo, submergirem em um senti- parece preso à temática comum à fase de juventude – a
mentalismo exacerbado. Assim, por um lado, o jovem, “luta entre o amor e as convenções sociais”15 – e, por esse
nascido como agregado, no Morro do Livramento, escreve motivo, não seria apropriado juntá-lo à lista de romances
“em oposição aos ficcionistas que faziam a apologia [a de maturidade. Tratar-se-ia de um trabalho “exumado” –
defesa] da paixão amorosa como único móvel [motivo] da “desenterrado” de gavetas onde teria permanecido por
conduta” – nessas obras iniciais, Machado, “travestindo anos – para atender a compromissos jornalísticos do
o problema pessoal [a origem pobre] em personagens escritor. Prova dessa exumação estaria nas próprias
femininas”, chega a defender a “ambição de mudar de páginas da obra: nelas não se verificaria “o melhor de
classe (...), mesmo à custa de sacrifícios no plano Machado”. Soma-se a esse fato certo traço autobiográfico.
afetivo”10; por outro lado, entretanto, “o estilo destoa Na tensão de classe presente no romance – os impasses
positivamente da ideia. Tentou fazer dissecção [disseca- de uma moça pobre que se apaixona pelo filho da dona da
ção] com flores de retórica. Para pintar, por exemplo, o casa – subsistiriam questões relativas à própria condição
feitio ambicioso de Guiomar [personagem principal de do escritor de origem humilde, mas que aspirava ao meio
A Mão e a Luva], lança mão de metáforas ao gosto da burguês. São esses os principais aspectos da argumentação
época11”. O que se anuncia nas obras dessa fase, portanto, apresentada por Lúcia Miguel-Pereira em seu prefácio à
é certo impasse – entre a matéria, o assunto, e a forma, a primeira edição do romance em estudo.
maneira de escrever – que impediria o alinhamento John Gledson, também estudioso da obra de Machado,
completo dessas obras à cartilha romântica, muito embora repõe a questão em outros termos. Em sua argumentação,
mantenham certos laços estilísticos com o Romantismo. aponta para outra linha possível de leitura da obra
Isso posto, o mais adequado, sugere Alfredo Bosi, seria machadiana, “um novo consenso”, em suas palavras. Para
chamá-las de “convencionais12” e não exatamente de além dos traços de ironia e pessimismo como elementos
“românticas”. norteadores do que se poderia chamar de “o melhor de
A publicação, em 1881, de Memórias Póstumas de Machado”, Gledson defende a ideia de que existe no
Brás Cubas – uma requintada exposição das “peças do escritor de Cosme Velho “um grau muito maior de
cinismo e indiferença com que [o defunto-autor] via mon- especulação intencional – e extremamente anticonven-
tada a história dos homens”13 – sela o início da segunda cional – em torno da natureza da sociedade brasileira, sua
fase da obra machadiana, a chamada “fase de maturidade”, história e sua política do que até agora foi percebido”16.
cujas marcas são o aprimoramento do estilo e da técnica Nesse sentido, sem se ater à metodologia de corte
entremeados a uma arguta sondagem psicológica. temporal, a distinção entre a fase de juventude e a de
maturidade, embora a reconheça, Gledson rearranja, sob
10 BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 46. ed. São Paulo:

Cultrix, 2008, p. 177. 14 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prefácio ao romance Casa Velha. In:
11 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. MACHADO DE ASSIS, J. M. Casa Velha. Rio de Janeiro/Belo Horizonte:
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 181. Livraria Garnier, 1999. p. 49-50.
12 BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 46. ed. São Paulo: 15 Ibid., p. 51.
Cultrix, 2008. p. 174. 16 GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. Revista e
13 Ibid., p. 177. Ampliada. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 38.
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um viés histórico, a disposição dos romances escritos a quela, mas, ao cabo, entrega esta. Não se trata, no entanto,
partir de 1880, dentre os quais Casa Velha. Dispostos aos de um arremedo. Trata-se de um jogo de contrastes entre
pares – primeiro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e o público e o privado, entre o geral e o particular, entre a
Casa Velha; segundo, Quincas Borba e Dom Casmurro; História e a história de tal modo articulado que a sorte dos
terceiro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires –, os romances indivíduos, por mais ruidosa e irrequieta na superfície –
recobrem, segundo o crítico, um momento particular da como na superfície é ruidosa e irrequieta a jovem
história do Brasil. Lalau –, desvela-se, por fim, circunscrita à ordem vigente.
Feito esse panorama geral do lugar que Casa Velha ocupa
O primeiro [par] enfoca um ancien régime [Antigo no interior da obra machadiana, passaremos a uma análise
Regime], com o domínio de uma oligarquia segura de si, mais detida do romance, nas páginas subsequentes.
baseada na escravidão (...). Já o segundo [par] mostra o
período de crise que mais fascinava Machado, qual seja, o
do final da década de 1860 e início da de 1870, quando pela 5.2. As ambivalências do padre-narrador
primeira vez se percebeu que ia acabar a escravidão, com Como dito anteriormente, sabemos pouco a respeito
uma nova classe comercial, ligada ao capital internacional, do narrador de Casa Velha. Cônego da Capela Imperial,
representando uma ameaça para o poder da tradicional contava, em 1839, com 32 anos, quando, a pretexto de
classe dominante (...). O último par leva essa história além estar colhendo material para a elaboração de uma obra
de 1871, mostrando a impossibilidade de transformação do
sobre o Primeiro Reinado, passa a frequentar assidua-
Brasil em benefício de seu povo (…)17.
mente a casa de D. Antônia, viúva de um ex-ministro. De
saída, certa imodéstia intelectual se anuncia na primeira
Não se pode negar o fato de que Machado de Assis,
visita que o padre faz à família. De um lado, revela-se um
nascido em 1839, testemunhou alguns dos principais
suposto e imediato reconhecimento das altas virtudes do
eventos políticos de nossa história. A Abolição da
padre-narrador, por parte de toda a família: “importa
Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889),
explicar o poder que desde logo exerci naquela casa”,
por exemplo, interessaram bem de perto ao escritor, seja
“Creram-me (...) um sábio”, “digno de admiração”. De
em sua atividade como jornalista, seja como literato. Nas
outro lado, por caminhos pouco virtuosos, o padre se
páginas de Memorial de Aires, o 13 de maio eclode pelas
entrega ao cálculo dos efeitos que seus gestos produziram
ruas da capital do Império. Ouvem-se aclamações. Há
nos moradores da casa. Assim, ficamos sabendo que
grande agitação. O narrador, atordoado em meio à
engendrava breves comentários cada vez que tirava um
multidão eufórica, arremata: “Ainda bem que acabamos
livro da estante e o abria. Esses comentários redundavam
com isto. Era tempo”. O fato histórico surge, a essa altura,
em elogio à memória do patriarca morto, ao mesmo tempo
como pano de fundo no decorrer da peripécia narrativa.
em que davam “de mim maior ideia”.
Roberto Schwarz, crítico literário, afirma, quanto a
Como se não bastasse, emenda uma observação sobre
Memórias Póstumas, que a própria maneira de escrever
a presença, no acervo da família, do que chama de “obras
adotada por Machado nesse romance – de uma
incrédulas”, ou seja, obras de Voltaire e de Rousseau19.
volubilidade constituinte e insuperável – dramatiza as
Dessa vez, o padre não se dirige a Félix, mas a nós, leito-
estruturas da sociedade brasileira do século XIX,
res, sob pretexto de tecer reflexões consigo mesmo. O
“escravagista e burguesa ao mesmo tempo18”. Em
intuito fica claro, na sequência. Em um rompante de since-
Memórias Póstumas, a história do país não aparece como
ridade nos faz saber que “aqui [na menção a tais obras] não
pano de fundo tão somente; ela aparece entranhada nas
havia afetar nada [afetação nenhuma] porque os conhecia
próprias escolhas estilísticas de Machado de Assis, que
[conhecia os filósofos], não integralmente, mas no princi-
faz surgir no interior de cada frase ou de cada raciocínio
pal que eles deixaram”. Subjaz a essa cena a elaboração de
as estruturas elementares da “problemática nacional”.
Em Casa Velha, que é a obra que aqui nos interessa – 19 Voltaire(1694-1778) opunha-se à união entre o Estado e a Igreja; adotou ao
mantendo no horizonte, entretanto, sua irmanação com longo da vida postura anticlerical e em Cândido ou do otimismo trata com
Memórias Póstumas de Brás Cubas, conforme os aponta- ironia e acidez certos dogmas de fundo cristão. Rousseau (1712-1778) figura
mentos de John Gledson –, certo período da história brasi- entre os “pais da Revolução Francesa” (1789). Em artigo intitulado “Rousseau,
a revolução e os nossos fantasmas”, Milton Meira do Nascimento se debruça
leira, o Período Regencial, será vislumbrado a partir de no tema da recepção de Rousseau, mais especificamente de sua obra Contrato
um núcleo familiar patriarcal e escravocrata zeloso de seus social, entre os revolucionários franceses. Em jornal de 1791, um elogio ao
filósofo o alçaria à condição de pensador da revolução, da qual ele não
privilégios de classe. A história do país se entrelaça e se participou efetivamente, posto que faleceu em 1778. “Ó Rousseau, virtuoso
confunde com a história de uma família: o narrador-perso- Jean-Jacques, fostes durante a vida o defensor dos direitos da humanidade, o
nagem, “velho cônego da Capela Imperial”, ocupa-se da- apóstolo da verdade, o amigo dos homens, o intérprete da natureza; recebei
após a morte, de uma nação esclarecida e reconhecida, governada por um
17 Ibid.,
jovem monarca, justo e generoso, a homenagem que ela presta à memória de
p. 26. todos aqueles que, como vós, a têm ilustrado” (NASCIMENTO, M. Rousseau,
18 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: a revolução e os nossos fantasmas. Discurso. Departamento de Filosofia da
Editora 34, 2000. p. 10. FFLCH da USP, São Paulo, v. 13, p. 172, 1983).
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uma mea-culpa – ele mesmo se diz envergonhado de seu tenho avó baronesa, sou só uma agregadazinha...” (CV, p.
comportamento com Félix –, mais do que isso, subjaz a 142). A fim de compreender o sentido geral dessa sua
tentativa de legitimação de sua autoridade como narrador. declaração, precisamos retornar ao capítulo VI. Nele,
Se falhou com o rapaz – deixando-se dominar pela narra-se a visita do coronel Raimundo e de suas filhas à D.
imodéstia –, não falhará conosco, pois todas as motivações Antônia. Além desses visitantes, quase costumeiros, temos
estarão sob escrutínio, sob a “resolução de dizer tudo”. É também a presença de uma idosa, “velha baronesa”, e de
nisso que ele quer que acreditemos. sua neta, Sinhazinha. O padre nota o tratamento afetuoso
Devemos dizer, além do mais, que sua posição de que a dona da casa dirige a essa moça: “D. Antônia (...)
clérigo lhe garantia certos privilégios na sociedade brasi- inclinou-se e beijou-lhe a testa com tanta ternura, que me
leira escravagista e patriarcal do século XIX, mas essa deu ciúmes pela outra [por Lalau]” (CV, p. 125). Isso
posição era pouco estável. A condição de clérigo era a de significa dizer que o padre, ao presenciar a cena, colocou-se
se saber na iminência do descrédito ou da perseguição, no lugar de Lalau, imaginando-a com ciúmes do afeto que
caso suas convicções contrariassem os interesses dos a madrinha dispensa à Sinhazinha. Pouco depois dessa
poderosos. Nesse caso, atacava-se o indivíduo, não a cena, o coronel, em presença de Félix, anuncia ao padre
instituição da qual fazia parte. Não por acaso, nesse que “a baronesa estava com ideias de casar a neta”.
sentido, D. Antônia lança ardilosa insinuação – em Algumas páginas à frente, ainda nesse mesmo capítulo VI,
momento tenso de um diálogo com o padre-narrador – D. Mafalda, tia de Lalau, vai buscar a sobrinha para passar
sobre o fato de Lalau tê-lo “enfeitiçado” (CV, p.113). Ao a Festa da Glória no bairro afastado onde reside.
se ver assim exposto, o padre ruboriza, sabe-se em risco D. Antônia, mesmo percebendo o interesse da afilhada em
de sofrer, como padre, alijamento do corpo clerical ao ter permanecer junto aos demais na Casa Velha, não faz nada
expostos seus sentimentos pela moça e sua tácita cumpli- para impedir a sua partida. Na ternura de D. Antônia
cidade em separar o casal de enamorados. Quanto a esse dirigida à neta da baronesa, passando pelo comentário do
último aspecto, lembremos da cena em que D. Antônia coronel, o padre prevê “alguma cousa em esboço” (CV, p.
sugere um laço de consanguinidade entre Félix e Lalau: 126). Sabemos, no capítulo IX, que a “cousa em esboço”
“Ela, na verdade, não articula – e nem pode – a mentira. também não passou despercebida para Lalau. Sabe-se uma
Instiga então o padre, para que ele chegue a conclusões “agregadazinha”, sem alianças familiares possíveis. Sua
em seu lugar. A mentira é um esforço conjunto”.20 força reside em sua altivez. Segundo John Gledson, Lalau
Outro aspecto que chama a atenção são os adjetivos representa “todas as classes não dirigentes”. Na disposição
com os quais o narrador caracteriza a si mesmo: diz-se de em trabalhar como costureira para ajudar a tia, Gledson
índole “quieta e eclesiástica” (CV, p. 82), não obstante observa “senso de independência”; na cena do incidente
esteja interessado em assuntos conturbados e mundanos – com a sege que a transportava, Gledson enxerga “vontade
a política “daqueles últimos dez anos, que não era pouca de correr riscos”. Esses dois fatores conjugados “a
nem plácida”(CV, p. 98). Mais adiante, nomeia-se “criatura colocam em oposição à fechada Casa Velha e a relacionam
espiritual e neutra” (CV, p. 105), embora se descubra à ‘experiência republicana’”.22
amando a jovem agregada de D. Antônia. Em conversa
com Félix, sobre os planos do rapaz de se tornar deputado, 5.4. A ordenação da casa
deixa escapar: “Sou antes especulativo que ativo; gosto de
e o firmamento do mundo
escrever política, não de fazer política” (CV, p. 97). O fato
é que não chegou a escrever política, a história do Primeiro Construída pelo avô de D. Antônia, depois de ele ter
Reinado, como pretendia. Entregou-nos outra história em passado uma temporada na Europa, a Casa Velha,
cujo desenlace teve “papel saliente”.21 carregada de traços senhoriais, mais do que espaço onde
se desenrola o enredo, funciona como alegoria de um
mundo firmemente assentado no regime escravocrata, no
5.3. A heroína e os dilemas de classe
orgulho da linhagem familiar, no culto ao patriarca –
A situação de Lalau como a de uma agregada na sepultado ali mesmo na capela de uso da família –, na
Casa Velha é referida pela própria moça em momento “convicção de que os sentimentos se regem pelas
muito decisivo da narrativa. No capítulo IX, percebendo conveniências”23, no privilégio de classe e não no direito
a frieza com que Félix a recebe depois de ter ela ficado do cidadão, na piedade religiosa refletida em uma Virgem
alguns dias fora, a moça, rompendo em lágrimas, declara Coroada, “rainha e triunfante”, e não na “Virgem foragida
ao padre-narrador: “eu não valho nada, não sou nada, não e caída nas palhas de um estábulo”.
20 GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. Revista e 22 GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. Revista e
Ampliada. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 42. Ampliada. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 52-3.
21 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prefácio ao romance Casa Velha. In: 23 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prefácio ao romance Casa Velha. In:
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Casa Velha. Rio de Janeiro/Belo MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Casa Velha. Rio de Janeiro/Belo
Horizonte: Livraria Garnier, 1999, p. 57. Horizonte: Livraria Garnier, 1999. p. 56-7.
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Com seus desníveis, suas escadarias, pisos inferiores esquecessem de que eram inferiores; que se lia muito
e superiores, a casa emoldura, num ponto de virada da Saint-Clair das ilhas; que a submissão dos filhos aos pais
narrativa, o drama que se desenrola no seio da família. devia ser completa e indiscutível.24
Como mencionado no tópico anterior – “A heroína e os
dilemas de classe” –, D. Mafalda se dirige à casa de Convém enfatizar que o ano de 1839 carrega em seu
D. Antônia com o intuito de buscar Lalau para passar a bojo uma rebelião em curso, iniciada em 1835 – a Guerra
Festa da Glória no bairro distante onde a tia da moça dos Farrapos –, que consistiu, muito resumidamente, em
reside. A casa está cheia de visitas e estão todas na varanda uma tentativa de descentralização política: “condenava-se
quando a sege, que a dona da casa tinha mandado a concentração de poder na corte, e apoiava-se a reversão
preparar, aproxima-se para levar as duas mulheres. “Tia e da autonomia das províncias”25. No capítulo VII do
sobrinha desceram os degraus da varanda”, comenta o romance, esse contexto aparece de forma muito
padre, “e quando eu ia ajudá-las a entrar na sege, contundente na indignação do coronel Raimundo. Ante a
atravessou-se-me o filho da dona da casa, que deu a mão a notícia de que “os farrapos invadiram Santa Catarina”, o
uma e outra, cheio de respeito e graça” (CV, p. 130). O velho militar declara que o “melhor de tudo era logo
padre permanece, então, no topo da escada, situado entre aclamar o imperador”. E acrescenta de maneira melodra-
o alto da varanda – onde estão D. Antônia e suas visitas – mática: “Dessem-lhe cinquenta homens, vinte e cinco que
e os degraus que levam à parte baixa – onde estão Lalau e fossem, e se ele em duas horas não pusesse o imperador no
sua tia prontas para partir. Félix, tendo descido a escadaria, trono, e os ministros na rua, estava pronto a perder a vida
fica no mesmo nível das duas mulheres, igualado no e a alma. Uns lesmas! Tudo levantado, tudo sublevado, ao
mesmo plano inferior para quem olha de cima. O coronel Norte e ao Sul...” (CV, p. 135). Chama a atenção o fato de
Raimundo, à vista dessa cena, sentencia: “— Nhãtônia, que nos apelos do coronel ecoam as aspirações de uma
disse o coronel rindo, este seu filho dava para camarista elite “liberal do tipo escravocrata e clientelista”26. Pedem
[servente] do paço”. No plano rebaixado em que o rapaz se um estratagema político, a maioridade de D. Pedro II, pois
encontra, junto às duas mulheres, o coronel enxerga, por acreditam que com isso reconduziriam o país, abalado por
analogia, um rebaixamento de classe. D. Antônia rebeliões populares – “Tudo levantado, tudo sublevado,
escandaliza-se. Para o coronel, a cena não passa de uma ao Norte e ao Sul” –, à ordem social vigente, ou seja, à
anedota: o filho de um ex-ministro de Estado compor- manutenção de seus privilégios de classe.
tando-se como um serviçal diante de uma agregada. Para O ânimo exaltado do coronel Raimundo, quanto aos
D. Antônia, ciente dos amores inconfessos do jovem casal, rumos políticos da nação, coincide com o ânimo exaltado
trata-se de um desvio que convém corrigir a qualquer de D. Antônia quanto aos rumos de seu drama familiar.
custo. Curiosamente, o modo como os jovens se separam, Quando advertida sobre a rebelião no Sul, a viúva do
na cena descrita, corresponde, no plano simbólico, ao ex-ministro não consegue disfarçar seu desinteresse, ao
modo como o romance termina: Lalau parte, rumo a seu menos por ora. Afinal de contas, “Tinha outra rebelião em
lugar devido, num bairro pobre; Félix sobe os degraus, casa, e, para ela, a crise doméstica valia mais que a pública”
ocupando, portanto, o espaço que lhe cabe, na varanda, (CV, p. 131). O casamento de Félix com uma agregada
junto aos seus. permanece em um horizonte possível, assim como a
reordenação política conflagrada pelos rebeldes. Esses
dois fatores – um no âmbito privado, outro no âmbito
5.5. História e ficção público – surgem como ameaça às alianças familiares e
Lúcia Miguel-Pereira traça um panorama do ao compadrio político. Sob o risco de sermos repetitivos,
entrelaçamento entre história e ficção, em Casa Velha, no salientamos que as alianças familiares e o compadrio
trecho que reproduzimos abaixo:
24 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prefácio ao romance Casa Velha. In:
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Casa Velha. Rio de Janeiro/Belo
A ação se passa em 1839, durante a regência de Araújo Horizonte: Livraria Garnier, 1999. p. 57-8.
Lima, e quem buscar informações sobre a vida dessa época 25 SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma
as encontrará fartas e claras (...). Verá que às senhoras biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 330.
horrorizavam as ideias que “entraram aqui depois de 31” e 26 A expressão usada por Roberto Schwarz para se referir a Cotrim, cunhado de
sobretudo as do padre Feijó, atribuídas a “achaques de Brás Cubas, lança luz sobre os princípios éticos pelos quais a elite brasileira
padre”; que o governo era impopular, reputado fraco para do século XIX se orientava (SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do
conter a revolta dos Farrapos [1835-1845], e a maioridade capitalismo. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 77). Note-se a contradição
dos termos. De um lado, essa elite se pretendia liberal, ou seja, adepta do
[de D. Pedro II, ocorrida em 1840 era] esperada com liberalismo, “doutrina baseada na defesa da liberdade individual, nos campos
impaciência; que as casas ricas tinham capela particular, econômico, político, religioso e intelectual, contra as ingerências coercitivas
onde às vezes se enterravam os mortos da família (...); que do poder estatal” (Dicionário Houaiss). De outro lado, na prática cotidiana,
os agregados formavam uma espécie de classe interme- essa mesma elite se beneficiava de um regime escravocrata e clientelista –
por clientelismo entende-se a “prática eleitoreira de certos políticos que
diária entre senhores e escravos, [e eram] tratados em pé de consiste em privilegiar uma clientela em troca de seus votos; troca de favores
igualdade [com os senhores] enquanto eles próprios não se entre quem detém o poder e quem vota” (Dicionário Houaiss).
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político estão na base do modo de socialização no Brasil. (CV, p. 77), bem como suas inclinações iniciais para a
Qualquer fissura nessa base instaura uma crise. Reto- política, reproduzindo “as fórmulas e os juízos do círculo
mando a figura do patriarca – encarnada em D. Pedro I; ou das pessoas com quem ele lidava para o fim de encetar
depois, em D. Pedro II e no estratagema da maioridade –, a carreira [como deputado]” (CV, p. 9); observemos,
retorna-se à ordem vigente, ou seja, elitista, autoritária e sobretudo, seu casamento com Sinhazinha “cujo nome
excludente, na esfera pública. Reconduzindo Félix para serve como indicação da condição de membro da classe
junto da imagem do pai, restitui-se a paz doméstica: superior”.
observemos suas semelhanças físicas com o ex-ministro

Exercícios
Texto para a questão 1. carapinha deste, ouvindo somente as palavras de
Félix; ora erguia-os para o moço, a fim de o mirar
Era dia de gala, ia trajada à corte; pelas calada ou falando. Ele é que olhava sempre para ela
portinholas do coche via muita gente olhando parada. atento e fixo (CV, p. 115).
Mas quando me lembrava que tinha de cumprimentar
o imperador e a imperatriz, confesso que o coração 2. No fragmento acima e ao longo do romance, o
me batia muito. Ao descer do coche, o medo cresceu, narrador-personagem de Casa Velha exprime profun-
e ainda mais quando subi as escadas do paço. De do desconforto cuja origem está vinculada à/(ao)
repente, lembrou-me um dito de meu avô. Meu avô, a) função de intermediário, em que se vê enredado,
quando aqui chegou o rei, levou-me a ver as festas da entre os caprichos de D. Antônia e os enlevos
cidade, e, como eu, ainda mocinha, impressionada, sentimentais do casal de namorados.
lhe dissesse que tinha medo de encarar o rei, se ele b) papel de conselheiro, em um drama familiar, que o
aparecesse na rua, olhou para mim, e disse com um arrasta para longe de suas reais atribuições como
modo muito sério que ele tinha às vezes: “Menina, representante da Igreja.
uma Quintanilha não treme nunca!” Foi o que fiz, c) participação mais ativa que assume ao longo da
lembrou-me que uma Quintanilha não tremia, e, sem trama, revelando sentimentos que preferiria não ter
tremer, cumprimentei Suas Majestades (CV, p. 75). experimentado.
d) renúncia, em razão de suas atribuições como padre,
1. No fragmento acima, D. Antônia rememora uma de do desejo de escrever uma obra sobre o reinado de
suas poucas visitas ao paço imperial, ainda menina, em D. Pedro I.
companhia do avô. A esse episódio o narrador-per-
sonagem atribui a gênese da Texto para as questões de 3 a 5.
a) piedade religiosa que se poderia verificar no dia a
dia da Casa Velha. Vai senão quando, um dia, estando só na biblioteca
b) parcela de orgulho que D. Antônia deixava ouvi rumor do lado de fora. Era a princípio um chiar de
transparecer em suas ações. carro de bois, de que não fiz caso, por já o ter ouvido de
c) perdurável incivilidade que se poderia observar nas outras vezes; devia ser um dos dous carros que traziam
classes mais abastadas. da roça para a Casa Velha, uma ou duas vezes por mês,
d) progressiva adesão das elites às demandas sociais fruta e legumes. Mas logo depois ouvi outro rodar, que
do tempo do Império. me pareceu de sege, vozes trocadas e como que um
encontrão dos dous veículos. Fui à janela; era isso
Texto para a questão 2. mesmo. Uma sege, que entrara depois do carro de bois,
foi a este no momento em que ele, para lhe dar
Violentei-me, não tirei a vista do grupo; precisava passagem, torcia o caminho; o boleeiro não pôde conter
matar em mim mesmo, pela contemplação objetiva da logo as bestas, nem o carro fugir a tempo, mas não
desesperança, qualquer má sugestão da carne. Olhei houve outra consequência além da vozeria. Quando eu
para os dous, adivinhei o que estariam dizendo, e, cheguei à janela já o carro acabava de passar, e a sege
pior ainda, o que estariam calando, e que se lhes galgou logo os poucos passos que a separavam da
podia ler no rosto e nas maneiras. Lalau era agora porta que ficava justamente por baixo de minha
mulher apenas, sem nenhuma das cousas de criança janela. Entretanto, não foi tão pouco o tempo que eu
que a caracterizavam na vida de todas as horas. Com não visse aparecer, entre as cortinas entreabertas da
as mãos no ombro do moleque, ora fitava os olhos na sege, a carinha alegre e ridente de uma moça que
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parecia mofar do perigo. Olhava, ria e falava para 4. As impressões que Lalau causa no narrador-per-
dentro da sege. Não lhe vi mais do que a cara, e um sonagem sofrem variações no decorrer da trama. Com
pouco do pescoço, mas daí a nada, parando a sege à base em seus conhecimentos do romance e a partir do
porta, as duas cortinas de couro foram corridas para que se afirma no texto, explique como essas mudan-
cada lado, e ela e outra desceram rapidamente, e ças de impressão ocorrem.
entraram em casa. (CV, p. 82).
5. Explique o ponto de vista espacial a partir do qual o
3. No texto acima, o narrador-personagem de Casa narrador observa a cena do incidente, relacionando
Velha menciona a primeira aparição de Lalau, em casa esse ponto de vista ao transcorrer da trama.
de D. Antônia, depois que ele passou a frequentar a
residência. Tendo por base o romance como um todo,
explique quais traços psicológicos da moça poderiam
ser apreendidos a partir dessa cena inicial.

RESOLUÇÃO
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP

CASA VELHA
1) À cena da visita de D. Antônia ao paço imperial, em em meio ao perigo. À mesa, quando tem a oportunidade de
companhia do avô, o narrador atribui “a pontazinha de vê-la mais de perto, o padre descreve-a como “uma criatura
orgulho” que nela se poderia notar. No fragmento, isso fica adorável (...) dotada de um par de olhos, como nunca vi
mais explícito na intenção do avô de imprimir na neta outros, claros e vivos, rindo muito por eles (...) toda a
orgulho de sua linhagem: “Menina, uma Quintanilha não inocência e toda a alegria que há no céu pareciam falar por
treme nunca!”, nem mesmo na presença dos imperadores. ela aos homens” (CV, p. 840). A certa altura, questionada
Resposta: B sobre a mãe, a moça, diz o narrador, perde toda a
frivolidade: “tudo o que havia nela de frívolo converteu-se
2) O incômodo fundamental experimentado pelo narra - em gravidade e compostura, e a criança desapareceu, para
dor-per so nagem na cena transcrita – expresso nas deixar a mulher com sua saudade filial” (CV, p. 93). Sob as
frases “Violentei-me [cometi violência contra mim lentes do narrador, Lalau, portanto, oscila entre a menina e
mesmo]” e “precisava matar em mim mesmo, pela a mulher.
contemplação objetiva da desesperança, qualquer má
sugestão da carne” – diz respeito aos sentimentos que 5) Na cena transcrita, o narrador-personagem observa o
vinha nutrindo por Lalau. incidente de um ângulo muito privilegiado – do alto de uma
Resposta: C das janelas da biblioteca onde estava recolhido: “Quando
eu cheguei à janela já o carro acabava de passar, e a sege
3) Em meio ao tumulto de um incidente envolvendo uma sege galgou logo os poucos passos que a separavam da porta que
e um carro de bois, surge, entre as cortinas da sege, a ficava justamente por baixo de minha janela”. Quando
“carinha alegre e ridente” de Lalau, que “parecia mofar conta para Lalau que tinha visto o incidente, a moça
[zombar] do perigo”. Esse traço alegre e pueril, manifesto pergunta onde ele estava. A resposta: “Estava no céu,
pela moça, chama a atenção do narrador, inicialmente. Ele espiando” (CV, p. 87). A cena é muito elucidativa da
a descreverá, ainda sob o efeito dessa cena inicial, como perspectiva que esse narrador desejaria ter na trama: um
alguém de ar “alegre e descuidado”. É preciso acrescentar, olhar de sobrevoo, de fora e do alto. Devemos lembrar que
porém, que no destemor demonstrado por Lalau ante um o padre passa a frequentar a Casa Velha sob pretexto de
incidente, John Gledson enxerga “a vontade de correr riscos colher material para a escrita de uma obra política, o
[que] a colocam em oposição à fechada Casa Velha e a reinado de D. Pedro I. A elaboração de uma obra dessa
relacionam com a ‘experiência republicana”27. envergadura exigiria dele distanciamento e imparcialidade
como métodos. A história sobre D. Pedro I, porém, não
4) Inicialmente, as impressões que Lalau produz no narrador chega a ser escrita. O padre nos entrega outra história.
estão intimamente relacionadas à cena descrita no Desejaria manter os mesmos métodos em relação a esta
fragmento, ou seja, à sua alegria e sua puerilidade, mesmo última, mas acaba envolvendo-se na trama familiar mais
do que o quanto gostaria de admitir.
27 GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. Revista e
Ampliada. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 53.
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