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Os caprichos de Goya

Bárbara Dantas

RESUMO:
Convulsões fizeram do séc. XVIII e XIX uma época singular. A sociedade espanhola absorveu os ideais
iluministas, sentiu as ondas da Revolução Francesa e da Guerra de Independência Americana. No início do
século XIX, cada uma das colônias espanholas na América proclamaram a independência. Períodos difíceis
produzem grandes homens, um destes foi Francisco Goya y Lucientes. Natural de uma pequena vila, Goya
ganhou a Espanha e a Europa com um estilo peculiar de representar o universo humano. Para alguns estudiosos,
ele foi o único artista espanhol de seu tempo a expor a própria opinião em suas obras e não fechar os olhos ao
sofrimento e vícios humanos. Goya alcançou a fama com inteligência e persistência. A doença que quase o
matou em 1792, tirou-lhe a audição, mas, realçou seu tom satírico e aumentou suas potencialidades artísticas.
Seu estilo se tornou inconfundível e o realismo de suas séries de gravuras, dentre as quais “Los Caprichos”,
retratam o grotesco frente ao belo, o belo promíscuo, o promíscuo beatificado, o beatificado frente ao cruel.
Enfim, o violento e corrompido mundo no qual Goya viveu.

PALAVRAS-CHAVE:
Espanha, arte, gravura.

ABSTRACT:
Convulsions made the eighteenth and nineteenth centuries an unique time. The spanish society absorbed the
Enlightenment ideals, felt the waves of the French Revolution and the American War of Independence. At the
beginning of the XIX century, each of the Spanish colonies in America proclaimed independence. Difficult times
produce greats men, one of these was Francisco Goya y Lucientes. Born in a small village, Goya won Spain and
Europe with a unique style to representing the human universe. For some scholars, he was the only spanish artist
of his time to expose your own opinion in his works and not turn a blind eye to the suffering and human vices.
Goya achieved fame with intelligence and persistence. The disease that almost killed him in 1792, took his
hearing, but highlighted his satirical tone and increased their artistic potential. His style has become
unmistakable and the realism of his drawing series, among them "Los Caprichos", portray the grotesque in the
opposite of the beautiful, the beautiful promiscuous, the beatified promiscuous, the beatified against the cruel. In
the end, the violent and corrupt world in which Goya lived.

KEYWORDS:
Spain, art, drawing.

1. Introdução
Figura 1. Autorretrato de Goya. Primeira página da série de gravuras, Los Caprichos. 1799. Metropolitan
Museum Of Art. Água-tinta e buril. Disponível em: http://www.metmuseum.org/art/collection/search/334137
“Quando folheio o passado e seus fantasmas saem da sombra, sinto surgir da
inteligência uma profunda emoção: uma fraternidade nos une” (LEFEBVRE, 2008, p.27).
Esta seria a empatia que sentimos por Goya ao “folhear” sua vida e obra. Neste artigo,
pretende-se contextualizar Francisco Goya y Lucientes para demonstrar que o seu singular
estilo artístico e imaginativo na série de gravuras “Los Caprichos” se processou muitos anos
antes de 1793, data da publicação da obra.
Goya viveu a ideologia Iluminista, teve dificuldades para alcançar fama como artista,
influenciou-se pela técnica de Velázquez, Rembrandt e Hogarth. Mas sua maior inspiração foi
o povo, ele desejava a racionalização social e o desaparecimento das crendices populares e
religiosas que afastavam a Espanha de sua vida dura e vulgar.
Ao contrário de outros artistas que em suas séries de gravuras não trabalhavam temas
distintos, Goya se destacou nesta técnica, pois, na série “Los Caprichos” é possível observar
uma grande diversidade temática. Demonstra, sobretudo, que se destacou tanto na gravura
quanto na pintura por sua postura alheia às normas do passado (GOMBRICH, 1979, p.385).

2. Goya e seu tempo

2.1. O Velho e Novo Mundo


Figura 2. Goya. La boda, 1791/92, óleo sobre tela. Museu do Prado, Espanha. Disponível em:
https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/la-boda/6340b840-5e11-49cd-9151-0c1fdd240389
A segunda metade do século XVIII e o início do século XIX na Espanha, Europa e
nas Américas transcorreram em meio a transformações importantes em suas estruturas mais
enraizadas. Em 1789, a modernidade se impôs violentamente com a Revolução Francesa, mas
seus questionamentos e ideais já circulavam desde o início do século XVIII, conhecido como
o Século das Luzes. Aquela luz era da razão, da quimera por uma maior igualdade de direitos
entre os homens, tão difundida por pensadores como Jean Jacques Rousseau (1712-1778).
Goya e seus congêneres eram ilustrados, abraçaram o Iluminismo (HUGUES, 2007,
p.23). O ideal iluminista (na Espanha, Ilustración) foi a filosofia que embasou os ideais de
liberdade que convulsionaram a Europa, chegaram à Espanha e atravessaram o Atlântico
rumo às Américas, inclusive ao Brasil. Ao contrário do que se pensa, não houve uma guerra
contra a instituição da igreja católica, e sim um novo questionamento sobre suas práticas e seu
papel social. A ciência foi uma das armas utilizadas por intelectuais como Diderot e sua
Enciclopédie (1751) para inaugurar um período no qual a razão se tornou o ponto a partir do
qual a humanidade seria entendida.
Humanidade que, por meio de sublevações, lutou contra a ordem estabelecida pelas
metrópoles europeias. Em 1776, a Guerra de Independência Americana espalhou o desejo de
liberdade nas colônias da América e suas consequências causaram uma enxurrada de
proclamações de independência na América Espanhola. Dessa, forma, a base econômica do
Absolutismo Monárquico tremeu.
2.2. Vida e obra

Figura 3. Goya. El nombre de Dios adorado por los ángeles, 1772. Afresco do coro da Basílica de Nuestra
Senora del Pilar, Zaragoça - Espanha.
A maioria dos artistas espanhóis que foram contemporâneos de Goya não deixou
nenhum traço de opinião sobre a sociedade e a política em suas obras. Eles foram
artesãos; retrataram seus semelhantes, fizeram o trabalho que se esperava que
fizessem, e nada mais. Goya foi uma criatura diferente; ele não podia ver e vivenciar
nada sem formar alguma opinião a respeito (HUGUES, 2007, p.23).

Natural do bucólico povoado de Fuendetodos, em Zaragoza, Francisco Goya y


Lucientes (1746-1828), teve uma vida longeva se considerarmos que a classe alta da
sociedade espanhola vivia, em média, cinquenta anos e a classe trabalhadora não passava dos
35 anos de idade. Goya viveu até os 85 anos de idade e produziu cerca de 700 quadros, 900
desenhos, 270 gravuras e 02 grandes afrescos (HUGUES, 2007, p.35).
Ainda jovem e com parcos recursos próprios, viajou à Itália para aperfeiçoar sua
técnica artística. Mas, devido à sua origem da pequena burguesia artesã de uma vila de pouca
importância, sua carreira como pintor deslanchou tarde. Tinha já 29 anos quando quebrou a
barreira social imposta pelo meio artístico: tornou-se, enfim, retratista da nobreza e da família
real espanhola. Goya foi, a partir dali, reconhecido, rico e influente.
Seu realismo nos retratos nem sempre agradou aos clientes, mas fez pinturas
esplêndidas e aplaudidas como o afresco do coro da basílica Del Pilar, em Zaragoza (1772),
seu primeiro trabalho oficial. Além de talentoso, foi persistente na busca por seu sonho de
viver como artista: sabe-se que este primeiro trabalho na basílica Del Pilar surgiu porque, ao
contrário de Velázquez - mestre contratado para decorar a basílica -, cobrou a metade do
preço e o concluiu na metade do tempo pedido pelo ilustre concorrente.

3. A Arte da Gravura

3.1 “O desenhador”

Figura 4. Goya. Desenho do Álbum Sanlucar e gravura de Los Caprichos (HUGUES, 2007, p. 209).
O desenho foi para Goya uma distração que possibilitava a representação de suas
próprias impressões a respeito de toda e qualquer coisa que via (HUGUES, 2007, p.207). Foi
“um desenhador”, segundo Chabrun (1974, p.101). Seus desenhos não são meros esboços,
rascunhos apressados ou estudos de quadros. Os desenhos de Goya tem mais que
representações, são representações da opinião do artista.
Oito blocos de seus desenhos sobreviveram. São testemunhos iconográficos das
impressões que Goya tinha da sociedade espanhola. Goya fez muitos desenhos de paisagens,
mas seu tema favorito sempre foi o povo. No conhecido Álbum de Sanlucar (1792), Goya
demonstrou seu desdém a respeito da hipócrita e volúvel ‘alta sociedade’ espanhola.
Já o Álbum de Madri (1796-7), compõe-se de desenhos que, com a liberdade que se
permitia como artista reconhecido e rico, Goya representou acontecimentos do cotidiano,
pessoas comuns, hábitos usuais por meio de todo seu repertório de “sátira, alegoria e
zombaria dramática” que tão impregnado estará nos “Caprichos” (Hugues, 2007, p.208).

3.2 A difícil técnica da gravura


Figura 5. Abraham Bosse. Oficina de um gravurista. 1642. Água-forte e buril. Museu Oscar Niemeyer-MON.
Quando Goya realizou a série de gravuras “Los Caprichos” já era um reputado
desenhista. Sua experiência se estendeu aos anos posteriores à publicação da série de gravuras
e o artista espanhol se tornou um dos maiores desenhistas da história europeia. (HUGUES,
2007, p.207). Ser um exímio desenhista é qualidade primordial a um gravador. A técnica da
gravura exige grande perícia, talento e mão firme do artista, pois, qualquer deslize ficará
gravado e a matriz será descartada.
Foram catalogadas um total de 270 gravuras de Goya, compostas por suas 04 grandes
séries: “Los Caprichos”, “Desastres de La guerra”, “Los disparates” e “Tauromaquia”, todas
subsequentes, bem como de outras séries menores. Aquele número de gravuras foi único na
arte espanhola, inclusive no âmbito europeu.
As quatro séries de gravuras de Goya exigiu um processo: a primeira fase da
produção era a inspiração e a criação do desenho com tinta e pincel; seguida da inscrição das
imagens numa chapa de cobre utilizando ora a água-forte, ora a água-tinta (esta foi uma
novidade da época e usada com maestria por Goya e sua equipe); a qualidade de uso do buril
e da ponta-seca também é única em Goya; e, finalmente, a impressão das reproduções.
A produção requer a combinação de vários processos que se justapõem na criação da
matriz de cobre e a posterior impressão das imagens em papel. A técnica exige a atuação de
vários profissionais que trabalham nas diversas fases de montagem da obra gráfica. Como foi
comum, Goya trabalhou com uma equipe de artesãos em seu ateliê de gravuras entre 1793 e
1799 dentro dos quais se dedicaram à produção das gravuras da série “Los Caprichos”.

4. Algumas inspirações

4.1. Willian Horgarth

Figura 6. Willian Hogarth. Hudibras encounters the skmmington. Séc. XVII. Gravura.
As gravuras inglesas entraram na Espanha no fim do século XVII pelo comércio
marítimo. Eram, sobretudo, caricaturas de propaganda política, que se difundiram no período
da Revolução Inglesa (1649-60) no qual as cisões e crises geraram grande panfletagem de
cunho realista ou satírico. Goya teve livre acesso a algumas dessas gravuras na coleção
particular do seu amigo, Martínez, que o abrigou no período de convalescência da doença que
se abateu sobre o artista.
Influenciou-se, entre outros, pelos trabalhos em gravura do inglês Willian Horgarth
(1697-1794), caracterizados por uma arte satírica e politicamente engajada fruto de um
imaginário brutal, sexual e escatológico (HUGUES, p.158, 2007). As temáticas das obras
inglesas em muito se associam às usadas por Goya, aqueles temas rudes e títulos satíricos
serão uma das principais características dos “Caprichos”.

Havia [na Inglaterra] uma gravura realista, uma gravura satírica, uma gravura
poética (...) não tinha ainda existido gravador que fosse, como Shakespeare na sua
dramaturgia, simultaneamente realista, satírico e poeta. Esse gravador, sem dúvida o
maior de todos os tempos, há-de chamar-se Goya (CHABRUN, 1974, p.105).
Foram estas obras que Goya reproduziu em gravura, usando ainda a técnica da água-
forte, mas ainda sem o refinamento técnico que demonstraria usando outra técnica, da qual se
tornou um mestre gravador tanto quanto o foi como desenhista e pintor: a água-tinta.

4.2. Diego Velázquez

Figura 7. Las Meninas, de Diego Velázquez segundo gravura de Goya. Las meninas, 1778. Água-tinta.
Metropolitan Museum of Art, Nova York. Disponível em: www.metmuseum.org
Antes de iniciar a produção dos “Caprichos”, Goya copiou obras de outros artistas
quando teve acesso às Coleções Reais de Madri. Na Espanha de fins do séc. XVIII era raro,
até para um influente pintor da corte como Goya, ter acesso às obras de arte colecionadas pela
dinastia dos Bourbons. Elas permaneciam enclausuradas nos corredores e salões dos palácios
e castelos da realeza, e só os mais ligados à Família Real podiam apreciá-los.
Quando o rei Carlos III decidiu abrir as portas dos palácios a alguns artistas com o
objetivo de que estes fizessem cópias das inestimáveis obras colecionadas por várias gerações
da família real, Goya pôde estar frente a uma obra de Diego Rodríguez de Silva y Velázquez
(1559-1660).
Goya copiou, mas sobretudo, analisou-as. Reproduziu em gravura o quadro “Las
meninas”, como vemos na Figura 7 e foi além: “a recordação dos quadros de Velázquez não o
abandonaria mais” e Goya reavaliou sua própria produção artística (CHABRUN, 1974, p.46).

4.3 Rembrandt van Rijn


Figura 7. Rembrandt. A mulher da panqueca. 1635. Água-forte. Museu Oscar Niemeyer.

No final da vida, Goya teria declarado: “Tive três mestres, a natureza, Velázquez e
Rembrandt” (Chabrun, 1974, p.91). O pintor flamengo Rembrandt Harmenszoon van Rijn
(1606-69) foi um reconhecido talento na arte da gravura. Sua técnica à água-forte na qual
utilizou com maestria a ponta-seca e explorou os contrastes claro-escuro foi inovadora mais
de um século antes da produção gráfica de Goya.
Durante toda sua vida trabalhou em suas obras gráficas nas quais os temas preferidos
foram os bíblicos. Mas não deixou de notabilizar-se por representações do homem. Foi um
dos primeiros a representar a intimidade humana. Explorou o nu, a vulgaridade e a escatologia
em interpretações muito particulares em estilo e técnica. Foram estas reproduções do homem
que chegaram às mãos de Goya e o inspiraram na produção da série “Los Caprichos”.
A partir do séc. XVII, a produção artística dos Países Baixos - a Flandres da época -
era livre dos cânones religiosos e buscou novos estilos e temas. Aquela liberdade de expressão
se disseminou e reproduções gráficas produzidas por Rembrandt se espalharam por toda
Europa. Em Madri, Até a abertura das coleções de arte reais no reinado de Carlos III, as
gravuras de Rembrandt as primeiras obras de outras regiões fora da Espanha a que os artistas
espanhóis acessaram (HAUSER, 1995, p.479).
“O que Rembrandt fez pela gravura a água-forte de linhas, Goya e seus colegas
fizeram pela água-tinta, e o fizeram com uma extraordinária explosão de criatividade”
(HUGUES, 2007, p. 217).
5. Personagens triviais e vícios clericais

Figura 8. Goya. La Nevada o El Invierno. 1786-87. Óleo sobre tela. Disponível em:
www.museodelprado.es/coleccion/galeria-on-line/galeria-on-line/obra/la-nevada-o-el-invierno

Entre 1775 e 1792, Goya trabalhou como pintor do rei Carlos III e sua principal
atividade neste período foi a pintura de cartões para a Fábrica de Tapeçaria Real. Produziu
mais de 60 cartões que serviam de modelo para as enormes tapeçarias - algumas com 4 m de
largura - que decorariam os salões da realeza. Na idade de 29 anos, “começava o período mais
exuberantemente ocupado da vida de Goya, repleto de tapeçarias, retratos, quadros,
encomendas privadas e da Igreja e de maquinações sociais” (HUGUES, 2007, p.105).
Como bom ilustrado e ao gosto da Família Real, Goya se permitiu representar cenas
do cotidiano espanhol em seus cartões, pois seu objetivo era agradar e divertir: inspirava-se
em personagens triviais em atitudes cotidianas. Representou a violência e o drama de forma
jocosa e irônica (HUGUES, 2007, p.108). Nos últimos anos de trabalho na Fábrica Real de
Tapeçarias, Goya começou a pintar de forma mais satírica e representou figuras rudes, além
de situações de violência. Naquele período já transpareceu o ceticismo com o qual enxergava
o mundo e se tornaria o topos característico da série de gravuras “Los Caprichos”.
Naqueles tempos de trabalhos para a realeza, também realizou célebres trabalhos
para a Igreja. Usou metáforas visuais para deixar implícito seu repúdio ao Clero Espanhol e
correu o risco de ser pego na malha fina da Inquisição Espanhola. Os personagens religiosos
que repudiou se adequaram aos que, quinze anos mais tarde, ele ridicularizou nos “Caprichos”
(HUGUES, 2007, p.131).
6. O silêncio...

Figura 9. Goya. Los Caprichos, nº 43, El sueno de La razón produce monstruos. 1796-7. Água-tinta. Museu do
Prado. Disponível em: https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/el-sueo-de-la-razon-produce-
monstruos/e4845219-9365-4b36-8c89-3146dc34f280

Ainda há muita discussão no meio historiográfico e da história da arte sobre as


circunstâncias da misteriosa doença que se abateu sobre Goya em 1792. Naquele ano,
aparentava cansaço nas suas atividades na Fábrica Real de Tapeçaria. Estava, também, mais
deprimido e colérico que o normal. Quando pediu para se afastar da Fábrica e retirou-se para a
casa do amigo Martínez, em Cádiz, a doença o dominou.
Não tinha controle para sequer levantar a cabeça da cama e não controlava suas
necessidades fisiológicas. Foi um longo período de convalescência. Parecia para muitos que
Goya não escaparia sem graves sequelas. A violência dos sintomas foi terrível: dores e
delírios a que era submetido, zumbidos fortes nos ouvidos e pesadelos horripilantes. Nos
pesadelos, era atormentado por monstros e bruxas e perseguido por seres noturnos de
aparência diabólica.
Até hoje não sabemos o nome da doença que o atingiu deixando-o surdo. Mas sua
recuperação permitiu que vivesse mais 35 anos, com algumas crises esporádicas de alucinação
e pesadelos. Como vimos, seu temperamento já forte e genioso tornou-se mais complexo e
rude nos anos que antecederam a doença, sua trajetória artística é um retrato disso. Mas a
surdez aguçou seus outros sentidos, definiu sua ideologia racionalista, aumentou sua
criatividade e aflorou no auge de seu estilo artístico que o tornou inconfundível na produção
de gravuras.

7. Los Caprichos

7.1. Caprices e Capricci

Figura 10. Tiepolo. La scoperta della tomba di Pulcinella, nº17 da série Scherzi di fantasia. 1743-1756.
A gravura começou na Espanha com os “Caprichos” de Goya (CHABRUN, 1974, p.
105). O sonho foi um importante instrumento de ideias para a produção dos “Caprichos”.
Houve até a intenção de usar a palavra “sonho” para intitular toda a série, como demonstra a
inscrição a lápis feita por Goya no desenho que virou a gravura nº43 El sueno de la razón
produce monstruos (Figura 09):

“Sueño uno. Ydioma universal. Desenhado e gravado por Francisco Goya no ano
1797. O autor sonhando. Seu único propósito é desenraizar ideias danosas,
comumente acreditadas, e perpetuar, com sua obra Los Caprichos, o testemunho
vigorosamente fundamentado da verdade” (GOYA apud HUGUES, 2007, p. 218).

Capricho: extravagância, fantasia, imaginação, ilusão passageira. (HUGUES, 2007,


p. 217). Os Capricci italianos - como os de Giuseppe Tiepolo (1695-1770), contemporâneo de
Goya - e Caprices franceses também foram utilizados por artistas em temas relacionados a
conjuntos arquitetônicos e figuras fantasiosas, frutos da imaginação artística. Goya, ao
contrário, deu um significado diferente ao termo ao relacioná-lo com uma crítica, seja ela qual
for, mas principalmente, uma crítica social.

7.2. “Preconceitos comuns e as práticas enganadoras”

FIGURA 11. Goya. Ya Tienen Asiento. Gravura 26 da série Los Caprichos. Água-forte. 1793-99.
Os trabalhos começaram no ano de 1793. Goya e sua equipe de gravadores iniciaram
a montagem das gravuras que formariam sua primeira série de gravuras, “Los Caprichos”.
Sabe-se que de um total de 96 gravuras, 80 foram publicadas. O processo artístico produziu
muitos esboços em desenho e diversas matrizes foram descartadas. Goya tinha interesse e
necessidade de vender as reproduções. Precisou mostrar que a doença e a surdez não
destruiram sua capacidade artística e também melhorar sua situação financeira que se
mostrava crítica, apesar da ajuda de amigos.
Das gravuras inglesas, tomou emprestado o uso de legendas para compor as
gravuras. Com profundo teor satírico e crítico, estas legendas, serviam como comentários e
título para as imagens gravadas, tinham o objetivo de firmar a ideia do artista sobre o que
representava na gravura. Goya, a partir do lançamento publicitário da série no “Diário de
Madrid” em 1799, afirmou que não representou nenhuma pessoa real nas gravuras como se
cogitou com a respeito da Duquesa de Alba (1762-1802) e o então ministro de Carlos IV,
Manuel Godoy (1767-1851).
7.3. Temas e personagens

7.3.1. O homem e a mulher

Figura 13. Goya. Bellos consejos. Gravura 17 da série Los Caprichos. Água-tinta. 1796-97. Disponível em:
http://metmuseum.org/search-results#!/search?q=goya%20bellos%20consejos
25 gravuras tem como tema assuntos ligados à sexualidade, Goya teve a intenção de
quebrar tabus. Comprometeu-se com a exposição da verdade, mas não afirmou que os vícios e
males humanos serão castigados, apenas os representou. Um dos tipos comuns nas gravuras
dos “Caprichos” é o das Celestinas: “cafetina ou alcoviteira” (HUGUES, 2007, p.222), velhas
que ensinam o ofício da prostituição à jovens e belas majas1 que, por vezes são suas filhas.
Outros tipos recorrentes na série são os velhos libidinosos que se casam com
gananciosas jovens ou compram o amor de jovens pueris vendidas por sua própria família.
Goya ironiza a promiscuidade das jovens espanholas que se vendem por dinheiro, o desprezo
e a falta de amor que tem pelos homens que as conquistam pela riqueza. Os homens, por sua
vez, são representados como incapazes de se comunicar, preso aos seus vícios e superstições e
vítimas de sua sexualidade, mas, na verdade, manipulados por mulheres ardilosas.

1
Jovens mulheres espanholas.
O autor está convencido de que é tão próprio da pintura criticar o erro e o vício
humano quanto o é da prosa e da poesia, que fazem o mesmo, embora a crítica, em
geral, seja considerada assunto exclusivo da literatura. Ele selecionou entre as
inúmeras fraquezas e insensatezes que podem ser encontradas em qualquer
sociedade civilizada, e entre preconceitos comuns e as práticas enganadoras e
capciosas que o costume, a ignorância e o egoísmo tornaram usuais, esses assuntos
que ele sente que são o material mais adequado à sátira e que, ao mesmo tempo,
estimulam a imaginação do artista (HUGUES, 2007, p.219).

7.3.2 “A sátira social”

Figura 12. Goya. Vingança de Família. Gravura 77 da série Los Caprichos. Água-tinta. 1799. Disponível em:
http://metmuseum.org/art/collection/search/334014
“Contra a ignorância, os charlatães, os vaidosos, os surdos voluntários ou
involuntários, aqueles que nada querem ouvir, os ambiciosos” (CHABRUN, 1974, p.111). A
miséria do cotidiano retratada de forma estilizada no inconfundível estilo de Goya. O artista
organizou as gravuras dos “Caprichos” de forma que cada uma tivesse sua particularidade
sem perder seu lugar na totalidade da obra.
Cada gravura, portanto, pode ser compreendida fora de sua série documental, pois a
natureza humana nelas impressa é visível em qualquer tempo ou lugar. Sua crítica da
sociedade espanhola aborda questões tais como a ganância e a falsidade que compõem as
relações sociais da população. Goya via em tudo um jogo de interesses, você me dará o que
em troca de quê?
A partir dos “Caprichos”, depreciou o clero espanhol ao representa-los como figuras
obesas, bêbadas e corrompidas pelo orgulho e pela lascívia. Eram tão rudes quanto o rebanho
de homens que deveriam conduzir à salvação em Cristo e eram os primeiros a recorrerem à
violência e às superstições por uma deplorável sede de poder.
Também representou a velhice assim como a via, grotesca, em oposição à beleza de
linhas suaves da juventude feminina. Talvez a juventude idealizada e desejada pelo já idoso e
doente pintor de então que Goya era.

7.3.3. A bruxaria

Figura 14. Goya. Linda Maestria! Gravura 68 da série Los Caprichos. Água-tinta. 1796-97.
O mais singular dos assuntos abordados foi a bruxaria, consequência de séculos de
atividades do Santo Ofício na Espanha. Já era o ano de 1781 e a última bruxa foi queimada
pela inquisição espanhola (HUGHES, 2007, p.242) acusada de provocar abortos e botar ovos
enfeitados. Portanto, contemporânea de Goya. Criticou o obscurantismo de práticas como
estas que, na opinião do artista, corrompiam as mentes da sociedade. Seres diabólicos que a
superstição popular produziu e que as mentes civilizadas de então tentavam, em vão,
combater.
O realismo de suas representações faz-nos esquecer, por instantes, que são
personagens irreais e nos enchem de horror. Mas seriam tão irreais assim? A pederastia não
seria uma anomalia denunciada pela mão geniosa de Goya?
Em algumas gravuras associa, perigosamente, o clero à bruxaria. Talvez tenha sido
este o motivo para o fracasso de venda da série. 300 conjuntos dos “Caprichos’ foram
colocadas à venda, mas apenas 27 foram comprados. A Inquisição bateu à sua porta e a série
foi retirada de circulação poucos dias depois de seu lançamento. Mas, para não ver seu
principal pintor em dificuldades, o rei Carlos IV compra as matrizes e algumas reproduções
em troca de uma pensão vitalícia concedida a Goya e sua família.

8. Conclusão

Figura 15. Goya. Aún aprendo. Álbum de Bordeaux I. 1824-8. Giz preto. Disponível em:
https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/aun-aprendo-album-g-54/f0c1615c-8c5f-4e80-b7bc-
702ec9f4d2f3
Georges Lefebvre (2008, p.30) afirmou o que poderiam ser palavras de Goya: “Que
na nossa vida cotidiana de simples cidadãos nunca nos faltem coragem e perseverança, para
que sempre possamos ser dignos deles”. Assim foi a vida e produção artística de Goya.
Na série de gravuras “Los Caprichos”, retratou os fantasmas que atormentavam não
apenas seus próprios delírios e pesadelos e sim o de toda a Espanha de então. Para Goya, a
imaginação humana produz monstros, feiticeiros e bruxas. Reflexo da mentalidade rude e
mística da sociedade espanhola de fins do séc. XVIII, ainda presa aos dogmas da Igreja
Católica fortemente enraizada na Contrarreforma e que ainda utilizava como meio de
opressão a temível Inquisição Espanhola.
Nota-se nos “Caprichos”, além do imaginário fértil, situações realistas de violência,
corrupção, promiscuidade e lascívia que estavam presentes em todos os níveis sociais, desde o
mais rude camponês à família real. Mostrou o que poucos queriam ver, mas que todos sabiam
existir. Das influências holandesas, inglesas e espanholas juntou em uma coletânea vivaz um
conjunto de representações únicas da alma e sociedade humanas na série de gravuras,
simultaneamente, poética, filosófica, crítica, satírica e caricaturada. Sobretudo, social e
politicamente engajada.
Nos anos finais de vida, exilado em Bordeaux, na França, produziu uma de suas
últimas obras. Na legenda está escrito: aún aprendo.

9. Referências

CHABRUN, Jean-François. Goya. Rio de Janeiro: Verbo, 1974.


GOMBRICH, Ernest. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
GAIGNEBET, Claude. Os Triunfos do Carnaval. Vitória: MAES, 2009.
GOYA. Museo del PradoDisponível em www.museodelprado.es. Acesso em 14 dez. 2009.
GOYA. Metropolitan Museum of Art. Disponível em www.metmuseum.org/toah/hd/goya.
Acesso em 14 dez. 2009.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
HUGHES, Robert. Goya. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
LE FEBVRE, Georges. 1789: O surgimento da Revolução Francesa. São Paulo: Paz e terra,
2008.
RICO, P J; Goya. Salvador: Museu de arte moderna, MAM-BA.
SLOOTEN, E O-V; HOLTROP, M; SCHATBORN, P. Rembrandt e a arte da gravura.
Curitiba: Museu Oscar Niemeyer-MON, 2004.

* Se precisar citar, tê-lo como referência, seguir:

DANTAS, Bárbara. Os caprichos de Goya. Trabalho apresentado no COLÓQUIO


HISTÓRIA E ARTE, UFRPE-Recife, 2011. Na internet em: www.barbaradantas.com

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