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Fichamento
“David e Goya são dois artistas que articulam os tempos do Antigo Regime com a
época contemporânea.” p. 19
“André Chastel assinalou o curioso paralelismo das duas biografias: Goya nasceu em
1746, David em 1748; ambos são pintores oficiais, ambos terminaram suas vidas em um
exílio que tem algo de voluntário: David morreu em Bruxelas, em 1825. Goya, em Bordeaux,
em 1828.” p.19
“Dos dois, David era, para a época, o mais moderno e certamente o mais universal. Ele
havia inaugurado, desde pelo menos 1784, a pintura dos novos tempos com O juramento dos
Horácios [...] O quadro dos Horácios oi o manieso pictural do neoclassicismo, movimento que
se salientou pelo caráter deliberado co que pretendeu restaurar a herança clássica [...]
impondo uma austeridade que anulava as complicações formais do barroco tardio.” p.19-20
“O juramento dos Horácios foi essa pintura lacônica. Causou impacto imenso: os
contemporâneos sentiram-na como inaugural e foram subjugados por sua força. Do ponto de
vista do desenho, das cores, da composição, tudo era novo, e nenhum dos elementos que
constituíram a tradição rococó podia sobreviver às novidades poderosas da nova tela. Os
Horácios significaram o abandono de uma virtuosidade brilhante e rápida por um fazer
pensado, refletido, dentro do qual a razão intervém a cada etapa.
Ao colorismo constitutivo, indissociado das pinceladas, tão característico de um
Fragonard, opõe-se o desenho do contorno [...] Os glacis, as transparências sem-número que,
na pintura do Antigo Regime, captavam a variedade cromática do mundo, são combatidos por
volumes nítidos, superfícies unidas por um só tom, organizados por claros e violentos efeitos
de contraste.” p.21
“Pintura pedagógica, virtuosa (no sentido virtus civica), heroica: tais qualidades
brotavam do supremo desejo de racionalização do mundo. A razão se mostrava também na
própria forma artística, menos “inspirada” do que “construída”. Nessa forma, a especialidade
individualizada conta menos do que um saber fazer coletivo - e a pedagogia se torna um
complemento do modo de pintar neoclássico.” p.23
“O neoclassicismo se quis uma ortodoxia: além de modas e de gostos, ele só podia ser
o único modo de pintar, pois evidentemente a razão é uma só.” p.23
“Em 1799, com as Sabinas, David decide radicalizar o arqueologismo que presidia
suas composições inspiradas da Antiguidade e apresenta despidos os guerreiros do imenso
quadro. O fato causou sensação: versos maliciosos, trocadilhos [...] e mesmo um vaudeville
satírico, fazendo referência à tela, é montado em Paris.” p.24
“Guizot e Stendhal sentiram-se incomodados pela obra. E é verdade que os dois
guerreiros nus, em meio às mulheres vestidas, exibindo suas formas de frente e de costas,
fazem com que o erotismo desvie.” p.24
“O culto pela virilidade nua não podia deixar de fazer surgir, no neoclassicismo,
imagens homossexuais. Bem o sentiram discípulos e sucessores de David, que avançaram
nesse caminho. Entre as telas por eles produzidas estão o Morfeu, de Guérin, tão
extraordinariamente efeminado, o Endimião, de Girodet, e outras, com o tema de Apolo e
seus amados: o Deus aparece acompanhado por Jacinto, na tela de Broc, e por Ciparisso, na
tela de Claude-Marie Dubuffe.” p.25
“Goya, ao contrário de David, foi um pintor que conheceu grande celebridade em seu
país, mas levou muito tempo para alcançar outras culturas. [...] Enquanto viveu, foi ignorado
internacionalmente. Construiu sua obra isolado do outro lado dos Pireneus. Ao vir para a
França, no momento do exílio, instala-se em Bordeaux, onde havia outros, espanhóis como
ele, que decidiram ou foram obrigados a deixar a Espanha, por causa do autoritarismo de
Fernando VII” p.26-27
“Goya, depois da segunda metade do século XIX, passou a fazer parte da galeria dos
maiores mestres de todos os tempos e incorporou-se, através de indiscutíveis afinidades, ao
gosto moderno.” p.27
“Goya, muito claramente, não disfarça a questão erótica e, com ele, tal questão não
sofre ambiguidade alguma.” p.27
“Goya possui, no entanto, um ponto comum com David: ambos veneram a razão. [...]
Esteve muito próximo dos iluministas e liberais espanhóis.” p.29
“‘O costume’, ‘a ignorância’, ‘o interesse’ –eis o que deve ser fustigado em nome do
projeto racional. A grande e notável exposição que ocorreu em 1989 mostrou, com
profundidade, o quanto Goya estava ligado ao espírito iluminista.” p.29
“Se a natureza da razão é universal, a obra de Goya parece nos dizer que ela poderá
nunca existir universalmente no mundo, porque é debilíssima e só urge transitoriamente. Seu
lugar é o do ideal e da perfeição, existentes apenas em algumas condições rápidas e
privilegiadas: seu reino não é o deste mundo. Os quadros de David são luminosos, mas
significam não mais que minúscula luz bruxuleante diante do negror espesso.” p.33
“Resta então ao pintor mergulhar nas misérias humanas, se ele não consegue
celebrar, como David, a vitória da razão. Seria impossível examinar aqui a gama dos terrores
que Goya expôs aos nossos olhos.” p33