Você está na página 1de 47

https://artepensamento.ims.com.br/item/dos-libertinos-aos-estoicos-ou-seja-de-um-erotismo-ao-outro/?

_sf_s=libertinos

1996

DOS LIBERTINOS AOS ESTOICOS, OU SEJA, DE UM


EROTISMO AO OUTRO
por Jorge Coli

Resumo

Boucher, retratando as deusas gregas sedutoras e voluptuosas e os “derrières” das favoritas do corte de
retratando a intimidade feminina surpreendida; e Fragonard, com sua técnica fulminante e obras erótic
fizeram do século XVIII, na França, um século pródigo em imagens carregadas de erotismo e de celebra
feminino.

Também na Espanha, no final do século, Goya se dedica a pinturas de mulheres extremante sensuais e a
eróticos. Mas tal arte era, para a propaganda revolucionária, o símbolo de uma aristocracia decadente e

Contra a arte obscena de Fragonard, Greuze. Com uma grande qualidade pictural, Greuze retrata a virtu
recompensada, o vício punido, a família exaltada, os bons sentimentos paternos, maternos ou filiais.

Mas será David que retratará as imagens heroicas, com suas virtudes cívicas e domésticas tão necessária
Curiosamente, no resultado final o heroísmo cívico, patriótico, vem acompanhado por uma espantosa ec
homoerótica. Os homens, antes excluídos ou presentes apenas para exaltar a presença sexual das mulhe
agora seus traseiros e bíceps exibidos num elenco de nus masculinos. O corpo masculino é retomado em

O caráter involuntário dos exercícios do desenho anatômico, expandindo-se pelas telas e pela cultura vi
caminha ao lado da consciência das práticas homossexuais da Antiguidade, fazendo da antiguidade um
supremo — não apenas teórico ou cultural, mas comportamental.

Winckelmann, grande teórico da restauração neoclássica, celebrava a beleza dos efebos e isso criará um
específico no interior do movimento neoclássico. Práticas sexuais e cultura se mesclam. De maneira mui
surge uma moda homoerótica, uma presença do homoerotismo no interior do universo neoclássico.

Nos anos de 1790, surge um movimento arcaizante: o dos “Primitivos”, uma dissidência do neoclassicism
voltado para um desenho idealizado e simplificado, a partir dos vasos gregos. Os “primitivos” cultuam a
artistas que precederam Rafael, desdenham o realismo de David, concebem leis próprias às sinuosidade
apresentando superfícies unidas e simplificadas. É nesse meio que se encontram as obras que ilustram, m
significativamente, o erotismo homossexual.

E a presença das mulheres no interior da pintura neoclássica? A elas cabe um papel secundário. Nas rep
eróticas do neoclassicismo, as mulheres são vestidas, encarregadas somente de fazer sobressair a beleza
masculinos.

O neoclassicismo heróico, estóico, moral, viril, quis expulsar o erotismo feminino. Na idealização estétic
do neoclassicismo a sexualidade entre homens é suscitada através de uma cultura da virilidade.
O século XVIII deixou-nos imagens carregadas de um paroxismo erótico que celebro
prodigiosamente sensual, as carnes femininas. Essas imagens invadem mundos dive
principalmente, fê-las surgirem e afirmarem-se. Tanto pela técnica quanto pelos tem
universo que, de Fragonard a Goya, conservaria leis e coerência. Mestre supremo d
de Luís XV, ele tornou-se, por excelência, o pintor de deusas infernalmente sedutor
Vênus, datado de 1740, é, para o raciocínio que propomos, uma obra expressiva.
Figura 1 – François Boucher, O triunfo de vênus
A tela faz surgirem sobre o mar seres desgarrados de um olimpo: sobre o mar, coxa
nacarados misturam-se com as nuvens e as ondas, com os brilhos e reflexos dos vel
texturas voluptuosas, feitas de prazeres.

Como do Olimpo dos deuses ao Olimpo dos homens o passo é simples, Boucher ret
prazeres da corte. Entre vários exemplos, exporá algumas vezes alguns encantos ca
favoritas na corte de Luís XV.[1]

Figura 2 – François Boucher, Odalisca do cabelo escuro


Ele não hesita em centrar, como tema principal, o posterior da jovem: toda idéia de
do prazer carnal, imediato e concentrado. Objeto do gozo aristocrático, as seduções
de Boucher carregam-se dos desejos daqueles que os contemplam — o erotismo cir
exasperados do intangível, fazendo do espectador comum o voyeur do inacesso.

Do Olimpo e dos palácios reais para uma esfera doméstica mais próxima, a pintura
Regime oferece estímulos no cotidiano. Nicolas-Bernard Lépicié, em 1773, retrata,
lever de Fanchon. É a imagem de uma criada que acorda e que se veste para o traba
não parte da nudez, mas da intimidade surpreendida, que carrega de enlevos a açã
desfeita, o cabelo despenteado e mesmo o lânguido espreguiçar-se do gato, roçando
Fanchon é uma jovem de aparência sólida e agradável, com indiscutíveis encantos,
doméstica em qualquer boa casa. Ao contrário do que ocorre no quadro precedente
voluptuoso fica excitado aqui pelo caráter virtualmente acessível da situação. Aden
Fanchon quando ela se veste encontra-se na ordem do possível para o público a que
endereçado. Se no caso das favoritas aristocráticas ou reais, graças a uma evidente
exibicionista, o erotismo alimentava-se da inveja e da distância intransponível, no d
a situação em potência que produz os estímulos lascivos.

Fragonard foi o último dos grandes artistas franceses a criar um admirável conjunto
licenciosos. Ele o fazia através de uma técnica fulminante. As cores fúlgidas de sua
vertiginosa da pincelada, portadora de luz, de tons, cuja marca se evidencia sobre a
exacerbação da virtuosidade pictural própria ao seu tempo. O far presto barroco tra
prestissimo, que é motivo de orgulho — uma inscrição, no verso de um de seus céle
proclamava: “Retrato do sr. abade de St.-Non, pintado por Fragonard em 1769, em
A celeridade do pincel deixa seu rastro cromático e material, imprimindo nas super
percurso colorido.

As banhistas, que Fragonard pinta possivelmente em 1770, expressam a certeza des


sabe flagrar uma contínua mobilidade — da vegetação, das nuvens, das águas, das
das próprias pinceladas, reveladas sem disfarce — e sabe pôr em evidência setores
a serem exibidos, ora evidenciados pela luz, ora velados pela penumbra.
Fragonard é autor de algumas obras eróticas brilhantes. Tomemos uma delas. Ignor
pintor teria criado esta imagem, mas o formato e as dimensões sugerem claramente
boudoir, lugar para o qual o tema do estímulo sexual é adequado. O título — Fogo
um equívoco de gosto duvidoso: o desejo que toma conta do corpo de uma jovem d
por pequenos amores com tochas. Um deles estende a chama até o sexo da moça, c
púbis: o símbolo se torna metáfora, poética e visual, jogando com a ambivalência e
pêlos. É bem verdade que existe nesse quadro uma qualidade pictural tão alta, uma
desprovida de culpa, que a vulgaridade desaparece. Os irmãos Goncourt escreviam
décence” — a leviandade é sua decência. E mais: “A impureza […] não possui nem
nem vergonha […] O quadro permanece uma inspiração luminosa”.[2] Inspiração lu
mas a serviço de uma lubricidade maliciosa e estimulante.

Outra tela, Jovem fazendo dançar seu cão na cama, da Alte Pinakotheke de Munique
inocência e o estímulo tátil provocado pela cauda do cachorro entre as pernas da m
alto, incluindo ainda um efeito provocante de exibição e ocultação. Corpo, brinqued
sem peso e sem pejo.
Figura 3 – Jean Honoré Fragonard, Jovem fazendo dançar seu cão na cama

Essa exaltação das formas femininas, engendradas nas artes do século encontra, de
uma última e soberba transformação, que a conduz a um apogeu. Muito claramente
a questão erótica, mas não entra pelos meandros escabrosos, traçados na França de
um enfoque direto, quase brutal.

Goya pintara mulheres de radiosa sensualidade, como as Majas no balcão, e fizera t


desenhos licenciosos, sobretudo nos últimos anos do século XVIII, momento que co
com a duquesa de Alba. Mas o clímax desse erotismo encontra-se nas duas Majas d
1800. As razões dos dois quadros permanecem desconhecidas, e nenhuma hipótese
satisfatória foi avançada para explicar as suas origens.

Há um episódio curioso que revela bastante a respeito da natureza de ambas as obr


censura inquisitorial proibia os nus — até então, a pintura espanhola conhecera do
no espelho, de Velásquez, apresentada de costas e sublimemente idealizada. Por sin
Goya, embora se encontrasse desde a segunda década do século XIX na coleção da
Fernando, em Madri, foi exposta ao público apenas em 1900, ao ser transferida par
também que, em 1814, com a restauração de Ferdinando VII e consequentes depur
é acusado perante o tribunal da Inquisição da autoria de duas pinturas obscenas: “u
sobre una cama y una mujer vestida sobre una cama”.

O ato de acusação estava muito certo: é preciso considerar esses dois quadros em su
erótica. A Maja nua oferece seu corpo ao olhar, sem constrangimento, sem pudores
estado de graça em que todos os pecados e todas as culpas se foram. Goya celebra a
e transparentes, os ritmos curvilíneos, o púbis delicadamente escurecido. Mas, além
afasta qualquer veleidade idealizadora. Não se trata de uma Vênus da mitologia, nã
um “nu artístico”. Trata-se de certa maja madrilena, não nua, mas despida, pois a v
tomando a mesma atitude em outra tela. Neste ser duplamente apresentado o eroti
caso único das duas obras aponta para as soluções que a arte de veia realista encon
metade do século. Ele evidencia também um traço muito nítido do artista. Goya am
beleza e a juventude das mulheres. Este é o lado luminoso de suas telas, recorrente

Assim, a pintura do Antigo Regime concluiu-se carregada de um sensualismo centra


corpo feminino. As telas que evocamos até agora excluíam os homens. Quando eles
para exaltar a presença sexual das mulheres. É Fragonard ainda que nos oferece bo
Em O instante desejado, o amante, vestido, oculta-se para que se evidencie melhor o
ou, em A inútil resistência, esconde-se discretamente para cometer a indiscrição que
feminino. Neste último caso, o desejo é veiculado também pelas roupas, por meio d
que se acentua na célebre Escarpolette [Balanço], de 1766. Ali, percebemos muito p
físicas da jovem, mas o rapaz escondido entre as folhas espia por nós aquilo que a s
entrever, num voyeurismo por procuração — enquanto o velho, no fundo, involunt
jogo voluptuoso entre os dois moços.

Um desenho, A sessão particular de pose, pressupõe o artista, que desenha outro art
modelo — e de um modo emblemático indica o gozo visual do desenhista transferid
público. A arte se atribui a missão de exibir os poderes sexuais das formas feminina
aliás, qualquer homem que participe da cena enquanto personagem, ou enquanto e
invisível ou quase, desse erotismo que ele dispõe para seu próprio prazer. Ou, mais
mulher é o evidente objeto erótico, e o homem, o sujeito oculto.

O caráter licencioso dessa arte feria as intenções reformadoras das Luzes. Ele logo f
filósofos, a marca de uma aristocracia decadente que era necessário reformar. Com
propaganda revolucionária não hesitaria em insistir sobre a imoralidade do compor
enquanto sinal visível de um corpo social corrompido. Diderot milita por uma arte r
burguesia toma para si o exemplo das virtudes, em oposição aos inimigos sociais qu

Greuze foi o pintor que melhor exprimiu essa pintura moralizante. Grande artista s
sucesso perante um público que execrava a arte brejeira, ou por vezes francamente
Fragonard. Com uma qualidade pictural muito elevada, pedagogicamente demonst
recompensada, o vício punido, a família exaltada, os bons sentimentos paternos, m
exemplo, em O paralítico, ou Os frutos da boa educação, o pai, que soube incutir o a
recompensado em seu fim doloroso de vida pela assistência dedicada da família. Nã
perceber que o amor filial foi transformado numa moeda que rende juros a termo:
retorno na velhice… Os maus filhos são estigmatizados em outros quadros, assim c
todos os vícios, agentes destrutores das famílias, que sem eles poderiam ser prósper

Os temas familiares, regidos por uma escolha moral, possuem um sério limite: eles
parecidos entre si. Não é possível multiplicar indefinidamente lares felizes ou infeli
efeitos se repetem. Falta a eles a variação do episódico, do lendário, do histórico. A
a pintura de Greuze é por demais rica de graças para opor-se de modo definitivo às
Fragonard e de um Boucher. Mesmo com explícitas intenções piedosas, certas obras
matinal, faz despontar a sensualidade e a beleza carnal das mulheres através de pre
oração ao acordar permite a exposição das inocentes intimidades de uma adolescen
A pintura de Greuze não tinha a força necessária para tornar-se a verdadeira e defin
a vaga libertina que invadira as artes do Antigo Regime. Será David, com um vigor
aliar o poder da forma às ambições iconográficas da grandeza histórica, que oferece
imagens heróicas de que ela necessitava.

Diderot proclamava: “Il faut peindre comme on parlait à Sparte” — é preciso pintar c
Esparta. Em 1784, O juramento dos Horácios, de David, foi essa pintura lacônica. A
efeito. Os contemporâneos a sentiram como inaugural e foram subjugados pela sua
vista do desenho, das cores, da composição, tudo era novo, e nenhum dos elemento
tradição rococó podiam sobreviver às novidades poderosas que surgiam ali. Os Hor
abandono de uma virtuosidade brilhante e rápida por um fazer pensado, refletido,
intervém em cada etapa da fabricação do quadro. Ao colorismo constitutivo e indis
que Fragonard apresentava opõe-se o desenho dos contornos que se aprendia aplica
relevos da Antiguidade. Aos glacis, às transparências sem número que teciam, na pi
Regime, a multiplicidade cromática da natureza, da atmosfera, dos corpos, opõem-
superfícies unidas por um só tom, que se organizam em claros e violentos efeitos de
movimento é abolido, o efêmero é abolido: ficam as tensões de seres cristalizados n
fora do tempo.

Vão-se os velhos temas, amáveis, galantes, eróticos. Ficam as virtudes cívicas, os se


causas superiores, a glória heróica e guerreira. Vão-se as perucas empoadas, as maq
e as roupagens vivas, ficam os cabelos curtos, “à romana”, as togas antigas e severa
modernas e discretas. Vão-se as sinuosidades, ficam as linhas retas e rigorosas, herd
Nenhuma lubricidade, nenhum apelo forte aos sentidos, Vênus deixou de triunfar:
admiráveis das deusas do Olimpo e as nádegas sublimes das amantes de Luís XV, qu
nunca mais as intimidades fesceninas de Fragonard, as deliciosas obscenidades de s
tantos outros quadros de alcova, nunca mais essa natureza, essas mulheres, esses te
relance de uma temporalidade efêmera, mas só feita de prazer. A austeridade viril d
definitivamente a celebração do corpo feminino, que culminara durante os estertor
Nos Horácios, tudo se funda na construção paulatina que desenha o espaço — eis p
da arquitetura é preferida à desordem orgânica da natureza —; que desenha cada e
reconstitui a partir de sérios conhecimentos anatômicos; que desenha cuidadosame
objetos para articulá-los num conjunto firme e contrastado; que faz desaparecer o t
superfície lisa dos volumes. O resultado é uma prodigiosa e límpida força visual. O
de modo a receber claramente os personagens — o chão quadriculado e os três arco
lugar dos irmãos, do velho Horácio e das mulheres. Os homens, de pernas afastada
triangulações retesadas; às mulheres, ao contrário, as energias abandonam e elas d
apóiam as cabeças. O próprio desenho dos panejamentos, as próprias cores, obedec
oposição: vivacidade das dobras masculinas, peso dos tecidos femininos; brilhos e v
para os homens, tons baixos para as mulheres. Impactos essenciais através de contr
conta. Eles devem revelar a virtude cívica, a contenção enérgica, a presença familia
binária, eles devem situar o papel ativo dos homens, senhores da guerra heróica, e
mulheres, vítimas de conjunções que as ultrapassam.

As virtudes cívicas e domésticas estão aqui reunidas. O heroísmo é maior porque pr


sacrifício no âmbito familiar. A moral pública e a privada viram-se proclamadas num
visual. Elas ressurgiam, sucedendo aos moles prazeres aristocráticos e sensuais. E, n
antigo erotismo foi banido.

Não há sequer o luxo de ornamentos, de tecidos ou acessórios. As roupas cobrem m


os corpos, colaborando para sublinhar a austeridade heróica. David encontrara seu

O quadro dos Horácios data de 1784. Em 1814, depois de uma longa gênese de cato
conclui outra pintura, a última de suas obras-primas. Trata-se de uma enorme tela
aproximadamente — que representa o feito heróico de Leônidas, rei de Esparta, e s
Figura 4 – Jacques-Louis David, Leônidas nas Termópilas

Encarregado de defender o desfiladeiro das Termópilas, o pequeno contingente gre


gigantesco exército persa de Xerxes em 480 a. C., opondo a ele uma resistência fero
superioridade esmagadora do inimigo, Leônidas dispensou a maior parte de suas tr
com trezentos hoplitas espartanos, causando perdas consideráveis aos persas. David
intenções, num texto datado do ano de 1800:

Quero dar a esta cena alguma coisa de mais grave, de mais refletido, de mais religi
general e seus soldados preparando-se para o combate como verdadeiros lacedemô
perfeitamente que não sobreviverão; alguns absolutamente calmos, outros fazendo
ao banquete no reino de Plutão. Não quero nem movimento nem expressões apaixo
das figuras acompanhando o personagem que inscreve na rocha: “Passante, vá dize
filhos morreram por ela”. Quero caracterizar esse sentimento profundo, grande e re
amor pela pátria. Conseqüentemente devo banir todas as paixões que não somente
mas que ainda lhe alterariam sua santidade […] Meu Leônidas será calmo, pensará
morte gloriosa que o espera e a seus companheiros de armas.[3]
Entretanto, no resultado final o heroísmo cívico, patriótico, vem acompanhado por
homoerótica, onde traseiros e bíceps são exibidos num elenco de nus masculinos qu
atleta e ao homem maduro. Nas posições mais variadas, os corpos se tocam, se enla
afetuosos bailarinos: há aqui alguma coisa próxima de uma apoteose de teatro. Dav
na beleza viril, frontal, de Leônidas, cuja bainha da espada tenta disfarçar o sexo, e
sua volta — o soldado cego, na extrema esquerda, que volta para o combate, aquel
com o punho da espada, o jovem que amarra suas sandálias, cuja pureza dos conto
linearidade dos vasos gregos. À esquerda de Leônidas, um adolescente despido e co
um homem maduro que o acaricia ternamente sobre o peito. Análises modernas e p
essa dupla como um pai se despedindo de seu filho, mas ela é, antes, o avatar de im
Antiguidade, frequentemente encontradas na iconografia dos vasos gregos, represe
sexual do erastes e do eromenos .[4]
Figura 5 – Homem cortejando rapaz (final do século VI a.C), Grécia

É muito evidente que, do harém de Fragonard e Boucher para os guerreiros de Dav


erótica se operou. Cabe perguntar o que teria acontecido, dos Horácios, de 1784, ao
para que tal guinada se desse.

Poderíamos começar assinalando que o heroísmo neoclássico baseava-se numa refo


moralizada pelo desenho, e que esse desenho, preciso e analítico, encontrava sua co
no estudo aprofundado do corpo humano. Mesmo vestidos, era necessário desenha
personagens nus, para que o rigor anatômico não fraquejasse. Essa prática não era
utilizada desde o Renascimento. Mas o neoclassicismo conferiu-lhe um caráter siste
obrigatório. E com isso engendrou um corolário de efeito cultural: nesse clima heró
agentes, ativos, predominam, o corpo masculino é retomado insistentemente em su
por razões de método pedagógico e de técnica da composição —, passando a invad
representações neoclássicas, trazendo consigo a força, naturalmente involuntária, d
erotismo.

Não apenas os personagens do passado, mas os contemporâneos, como o príncipe E


destinado ao quadro A distribuição das águias, de David, datado de 1810, exigiam e
que partiam de modelos, aos quais eram acrescentadas as feições do retratado.
Figura 6 – Jacques-Louis David, desenho preparatório para A distribuição das águias

Esse cuidadoso desenho de nu, traçado pelo contorno, é transposto para a tela defin
quadriculado. Na tela, as anatomias desenhadas aguardavam o complemento das ro
objeto de estudo cuidadoso, panejamento por panejamento, tecido por tecido. Dest
neoclássico pressupõe, por trás de homens vestidos, uma alma anatômica nua, feita
não muito distantes dos que encontramos nos vasos gregos.

As práticas de escola levavam também os pintores ao desenvolvimento do exercício


na direção da pintura. Trabalho obrigatório, a bela anatomia masculina era executa
testemunhando em favor das capacidades, próprias ao artista, de construir com vig
corpo. David, ainda uma vez, nos oferece um altíssimo testemunho desse gênero co
homem, de 1780.

Esses exercícios de escola, que se iniciam no desenho e terminam por se tornarem ó


ainda e adquirem facilmente dignidade cultural graças a alguns poucos acessórios.
grandes qualidades, que prolonga a nobreza histórica de seu mestre Rivalz — isto é
clássica do século XVII — e anuncia o neoclassicismo como precursor muito precoc
Caronte passando as sombras, de 1734, de que maneira um evidente estudo de mod
facilmente numa figura mitológica.
Figura 7 – Pierre Soubleyras, Caronte passando as sombras

Visto de costas, apoiado num bastão, numa postura que faz parte dos repertórios de
de soberbas qualidades picturais vê-se acrescentado essencialmente, de cada lado, n
dois montes de tecidos que figuram as almas. Um fundo rubro para evocar as labar
temos, engrandecido, o estudo primitivo, cujas formas masculinas sobressaem aind
exaltadas.

Ao conceber seu Filocteto, Abildgaard, em 1774-5, utilizará os limites da tela para c


massa corpórea de seu personagem, acentuando a força expressiva da crispação do
ferimento no pé. Aqui, nem sequer os acessórios tornam-se necessários: basta a form
comprimida no tornilho da mise-en-page. Os efeitos de contradição sublinham a ene
corpo em desespero, e colorem a imagem em sofrimento de um tom sádico.
Figura 8 – Nicolai Abildgaard, Filocteto

Num registro necrofílico, Fabre pintará A morte de Abel. Isto em 1791, no mesmo an
Girodet realiza o Endimião, cujo papel, nessa década, para a afirmação do topos do
dois quadros, os jovens encontram-se deitados. Fabre procurará evocar a beleza clá
comovente, mas tratará a anatomia de modo realista, evitando toda abstração, exib
formas através da lisura muito branca da epiderme, fazendo tocar o púbis escurecid
animal que sugere maciez de contatos.
Figura 9 – François-Xavier Fabre, Morte de Abel
Figura 10 – Anne-Louis Girodet. O sono de Endimião

Na Inglaterra, o próprio Blake, malgrado sua postura antiiluminista, centrará algun


qualidades anatômicas masculinas, através de um traço sem dúvida fortemente pes
escapa à moda do arcaísmo dos vasos gregos. Sobejamente conhecido é seu Glad da
corpo — sem dúvida inspirada no famoso desenho de Leonardo — é celebrada por
cromática e luminosa, que parece surgir da própria força juvenil que o habita. Seu A
Virgílio no último círculo do inferno, de 1796, mostra, pela escala, pelo desenvolvim
corpo — que não deixa de evocar o Filocteto, de Abildgaard —, a presença dominan
masculina.
Figure 11 – William Blake, Anteu deposita Dante e Virgílio no último círculo do inferno

Desse modo, a prática da anatomia heróica propicia uma frequentação que faz eme
da nudez masculina. Trata-se de um surgimento, por assim dizer, insensível e invol
é corroborado e ampliado pela consciência indisfarçável que se tinha, no final do sé
homossexuais[5] na Antiguidade. Isso nos é revelado pelos quadros mais complexos

Um texto recente de Carol Ockman,[6] de grande interesse, assinala que o tradutor


Homero do final do século XVIII, Jean-Marie Bitaubé,[7] considerava que os amores
corrente e normal nos tempos da Grécia heróica. Isto assinala um aspecto novo, qu
práticas das representações do corpo masculino acima evocadas. Quero dizer que e
dos exercícios do desenho anatômico, expandindo-se pelas telas e pela cultura visu
ao lado da consciência das práticas homossexuais da Antiguidade, e essas práticas e
Antiguidade tornou-se o modelo supremo — não apenas teórico ou cultural, mas co

Winckelmann foi o grande teórico da restauração neoclássica. Ele exerceu uma infl
artes e a filosofia de seu tempo, particularmente através de dois textos que escreveu
imitação das obras gregas em pintura e escultura, de 1755, e sua História da arte ent
Leônidas, de David, herda certamente a idéia de calma estóica que Winckelmann de
característica das grandes obras clássicas. Mas Winckelmann celebrava também a b
corpo liso, quase abstrato, dos jovens — e isso, como veremos, engendrará um verd
específico no interior do movimento neoclássico.

É interessante, entretanto, notar que, em Winckelmann, essa beleza abstrata não se


sexualidade. Steffi Roettgen, num estudo sobre as relações entre Winckelmann e M
atenção para uma passagem das Memórias, de Casanova, passagem excluída das ha
expurgadas. Retomo aqui o resumo de Roettgen:
Casanova conta que, ao entrar um dia na sala de trabalho de Winckelmann — prov
Mengs —, viu fugir um jovem vestindo precipitadamente as calças. Sem embaraço p
assim em flagrante, Winckelmann lhe deu, de espontânea vontade, uma justificação
comportamento: inspirado por sua admiração pela Antiguidade, tinha descoberto q
praticavam a pederastia e viam mesmo nela um meio para escapar à culpa do adult
sentido inferior a eles se não os tivesse imitado e não podendo vir ao cabo “com a t
havia uns três ou quatro anos, a procurar-se experiências práticas com todos os ma
romanos.[9]

É conhecido o episódio no qual Mengs, para enganar seu amigo Winckelmann, erud
pinta, no final da década de 1750, uma contrafação de uma pintura da Antiguidade
Figura 12 – Anton Raphael Mengs, Júpiter acaricia Ganimedes

Winckelmann caiu na esparrela, entusiasmou-se pela obra, que elogiou por escrito,
sua História das artes. A obra representa Júpiter num trono, recebendo uma taça de
mesmo tempo que acaricia e procura beijar o jovem. Tratava-se, evidentemente, do
excelência, as relações entre o erastes e o eromenos. Como nota Roettgen, o tema f
cuidado, de modo a encantar particularmente Winckelmann através de sua sexualid
sexuais e cultura se mesclam dentro de um comportamento que não se engana a si

Existiu, de maneira muito pouco velada, uma presença do homoerotismo no interio


neoclássico. Creio que podemos falar mesmo numa moda homoerótica com poucos
efebos que Winckelmann exaltava em seus textos teóricos como modelos de beleza
pintura com estrépito através do Endimião, de Girodet (1791).

A tela, pintada em Roma e apresentada no Salão de 1793, ano do Terror jacobino,


sucesso. Conscientemente, Girodet quis afastar-se do mestre David — o David supr
primórdios: “Tento distanciar-me de seu gênero [o de David] o mais possível, e não
nem estudos, nem modelos, nem gessos. Se terminar por fazer algo de ruim […] se
E ainda: “Quero evitar os plágios”.[12] Girodet rompe com as academias dos Horácio
masculino segundo sinuosidades gráceis, disfarçando músculos e quaisquer relevos
epiderme lisa — isto é, as formas do efebo são tratadas como se fossem femininas.

Girodet retoma, incessantemente e de modos diversos, as relações da luz sobre a m


surpreendentemente novas. Podemos supor que, ao substituir a figuração de Diana
vem se deitar ao lado do jovem, pela luz que banha o corpo adormecido, ele tenha
obsessão luminosa. De resto, o pintor tinha conciência da novidade.

Quase copiei mesmo o Endimião antigo; mas acreditei que não devia representar a
Pareceu-me inconveniente pintar, no próprio momento de uma simples contemplaç
deusa célebre por sua castidade. A ideia do raio de luar pareceu-me mais delicada e
fato de que ela era nova, então.[13]

Como assinala Bernier,[14] uma vez que Diana foi suprimida e que o deus do amor
que os raios possam banhar o corpo do belo pastor, restam, um diante do outro, do
clareira onírica. Isto é, a efetiva ausência feminina, frágil álibi apenas no título, per
fingimento, um “deleite homossexual”, para empregarmos a expressão daquele auto
O impacto desse quadro inesperado vai afetar a evolução do neoclassicismo, e mesm
David. Seus alunos criaram uma atmosfera à qual ele não será insensível, e envolve
do fim do século.

A reação de David, por sinal, não se faz tardar. Ela vem um ano depois da exposiçã
com A morte de Bara, de 1794.

Figura 13 – Jacques-Louis David, A morte do jovem Bara


Não é necessário enumerar todos os nomes ilustres da história das artes e da cultur
Starobinski, assinalaram as formas femininas, ambíguas, a pose não muito distante
estatuária da Antiguidade clássica conferia aos hermafroditas, presentes na obra. A
mito de mártir fabulado pela propaganda revolucionária, permaneceu inconclusa. D
o aos extremos de uma força poética intensa, espraiando o jovem corpo num fundo
permite uma dinâmica em fluxos feitos de densidades diversas dentro dos mesmos
perder de sua força, integra-se na fina e calorosa luminosidade.

Com Endimião e com Bara o tema do grácil adolescente, celebrado e teorizado por
afirmou-se em visualidade icástica. Perceba-se, entretanto, a nova inflexão, operada
partir da obra do discípulo. É que o mestre, muitas vezes inconfessadamente, não é
novidades despontadas dentro de seu próprio ateliê. Ali, nesses anos de 1790, surg
arcaizante: o dos “Primitivos”, chamado ainda de “Barbudos” ou “Pensadores”. Diss
neoclassicismo ortodoxo, eles voltam-se para a força de um desenho idealizado e si
vasos gregos, revistos pela pureza do traço de Flaxman. Pré-rafaelitas avant la lettre
linearidade dos artistas que precederam o gênio de Urbino, desdenhosos do realism
concebendo leis próprias às sinuosidades dos contornos, suprimindo os modelados
superfícies unidas e simplificadas. É nesse meio, e na pintura de algum modo ating
convicções, que encontramos as obras que ilustram, mais significativa e diretament
homossexual.

Dentro desse campo inclui-se Dédalo e Ícaro, painel de Charles-Paul Landon, datado
Figura 14 – Charles-Paul Landon, Dédalo e Ícaro

Regis Michel[16] traçou uma justa análise da obra, preciso exemplo do que era poss
tradução moderna da pintura helênica, sem relevo e sem profundidade, onde o esp
geometria quase abstrata, onde o traço destaca, isola e encerra os personagens, rigo
perfil. Faltou, no entanto, lembrar a relação próxima dos dois personagens masculi
tátil dos corpos, dos braços lançados à frente, em efeitos que evocam apelo e fuga.
é o álibi da representação, a nudez e a figuração do binômio homem maduro/adole
volta o par do erastes e do eromenos. Binômio equivalente, e com o álibi muito mais
com o admirável desenho de Girodet — A educação de Aquiles.
Figura 15 – Anne-Louis Girodet, A educação de Aquiles

A morte de Jacinto, de Broc, do Salão de 1801, apresenta um dos exemplos mais ex


dos Primitivos, pela espantosa simplificação dos meios empregados, pela poderosa
contornos — razões pelas quais ele nos parece tão moderno. Mas a obra tem um ou
Figura 16 – Jean Broc, A morte de Jacinto

O tema é extraído das Metamorfoses de Ovídio, que contam os amores infelizes de J


Ciumento, ao se ver preterido por Jacinto, Zéfiro, o vento, desvia o disco lançado d
praticado pelos dois amantes, fazendo-o atingir mortalmente o jovem que lhe desde
de infinita tristeza, Apoio transformará o amado que morre em seus braços na plan
jacinto. “O episódio é carregado de um poderoso erotismo, cuja homossexualidade,
assinalada pelo historiador moderno, é indubitável: o artista pintou um hino ao am
límpida dos dois discóbolos, quase infantilizados pela representação dos sexos, o en
a ternura dos gestos, concebidos na abstração poderosamente sintética da tela, proc
ultrapassa as motivações individuais para integrar, sem máscara, uma concepção m
quiser, uma moda. Vinte anos depois, e com outros meios, Claude Marie Dubufe da
amores masculinos do mesmo deus, com Apoio e Ciparisso, cujo tratamento precios
matérias, contrasta com a secura de Broc, mas que traz o testemunho de uma sofist
manifestação dessa estética dos amores entre homens.
Figura 17 – Claude Marie Dubufe, Apolo e Ciparisso

Carol Ockman expõe uma das reflexões do homerista Bitaubé, a quem nos referimo
concerne aos “excessos” da sociedade grega nos tempos de Homero. Ele diz o segui
uma sociedade semicivilizada que as paixões e os sentimentos se desdobram com m
houve povo mais sensível do que os gregos”.[18] Esses poderes das paixões, meio de
“sociedade semi-civilizada”, podem levar-nos a uma obra muito forte de Girodet —
datada de 1810.
Figure 18 – Anne-Louis Girodet, A revolta de Cairo

Girodet explora o aspecto físico de raças não européias: enquanto pintava, “encontr
mamelucos que estavam morando, por assim dizer, em sua casa, e cuja beleza o ele
seu biógrafo Coupin.[19] À direita, o grupo principal: enquanto se defende de um m
árabe sustenta, afetuosamente, o corpo inerte de um guerreiro oriental, vestido de
árabe em questão, como para lutar melhor, ergueu sua djela-bah até o pescoço exib
constituição física. A mitologia e o Oriente são os lugares da homossexualidade pos
que, para essa dupla, Girodet inspira-se evidentemente no célebre grupo, conhecido
Galata, cópia romana em mármore de um original em bronze, helenístico, de 230 a
Figure 19 – Suicídio de Gálata, arte de Pérgamo

O árabe de Girodet tem exatamente a postura do guerreiro em mármore que se ma


significativa, entretanto: o gálata segura, com a mão esquerda, sua esposa sem vida
mulher é substituída pelo jovem e belo guerreiro morto. O primitivo casal transform
mesmo sexo, onde mantém-se a mesma união diante da morte.

Já nos referimos, algumas vezes, ao estudo aprofundado que Carol Ockman consag
Ingres Aquiles recebendo os embaixadores de Agamenon.
Figure 20 – Jean-Dominique Ingres, Aquiles recebendo os embaixadores
A multiplicidade dos diferentes nus masculinos, a forma serpentina do corpo de Pát
proximidade visual entre a mão esquerda de Aquiles, segurando a lira, e o sexo de
assinalada pelo autor. Aquilo que nos interessa por ora é, por um lado, o “primitivis
que aproxima muito a obra da sensibilidade pictural desenvolvida pelos Barbudos e
caráter homoerótico do conjunto, associados a um quadro que possui uma natureza
excelência, baseada num gosto oficial, pois foi com ele que Ingres triunfou no concu
Isso nos revela o quanto, com essa obra que data de 1801, o mesmo ano do Jacinto
“primitivistas” e as inflexões homossexuais haviam impregnado os critérios coletivo
se que, no século XIX, ninguém como Ingres, ninguém mais insistentemente do que
das mulheres, criando uma incomparável e numerosíssima galeria de corpos femini
utilizaria a linha serpentina num corpo masculino, como o fizera com Pátroclo. Isso
interpretar — numa direção um pouco diversa da de Ockman[20] — o caráter obses
nus femininos na pintura de Ingres como o topos que o pintor buscou explorar e ap
sua carreira. Assim, o Aquiles configura-se enquanto exceção, levado exatamente po
uma sensibilidade coletiva, como se quiser, que dominava nos meios picturais onde
imerso, sem que o homoerotismo, para ele, traduzisse o mesmo imperioso e insisten
levou a explorar visualmente as formas femininas.

Se nos interrogarmos sobre o papel dos homens na pintura do Antigo Regime, cabe
sobre a presença das mulheres no interior da pintura neoclássica. O primeiro aspec
que, quando surgem nessas representações eróticas do neoclassicismo, são as mulh
encarregadas de fazerem sobressair a beleza dos corpos nus dos homens — exatam
obras licenciosas do Antigo Regime. É assim com o admirável e precoce Os amores d
David, pintado em 1788; com o Amor e Psique, de Gérard, obra muito marcada pelo
Primitivos e grande sucesso no Salão de 1797. Íris e Morfeu, de Guérin, tela fascina
concorrência os dois nus, masculino e feminino, concebidos, entretanto, com a mes
e superfícies. É certo, porém, que o corpo despido das mulheres é bastante raro, ne
caso, pelo menos, o revela como indesejável.
Figura 21 – Pierre Narcisse Guérin, Íris e Morfeu

Trata-se de uma obra de Girodet. São pouquíssimos os seus nus femininos. Entre el
quadro alegórico de espantosa violência contra as mulheres: Mlle. Lange como Dâna
Figura 22 – Anne-Louis Girodet, Mlle. Lange como Dânae

Mlle. Lange era uma atriz célebre, casada com um homem muito rico, que pediu a
o retrato. Por sua vez, Girodet era jovem e muito bonito. Mlle. Lange esperava que
pudessem ser divertidas, mas Girodet mostrou-se indiferente aos seus encantos. Qu
exposto no Salão de 1799, Mlle. Lange enviou ao pintor o seguinte bilhete: “Queira
favor de retirar da exposição o retrato que, dizem, nada pode por sua glória e comp
reputação de beleza. Meu marido e eu suplicamos-lhe que faça com que ele não per
horas”.[21] Hubert Robert, célebre paisagista, encarregou-se, suplementarmente, de
Girodet mexericos maldosos. O autor do Endimião retira o quadro do Salão, rasga-o
ao seu modelo. E pinta então Mlle. Lange como Dânae.[22]

O próprio tema já é insultante: Dânae, penetrada por Júpiter que se transformou nu


por excelência, o símbolo do amor venal. Georges Lévitine trouxe elementos para a
satírica.[23] O modelo está nu. Sob a cama, uma cabeça de sátiro com uma moeda d
olho — é um dos amantes a quem Mlle. Lange havia custado muito caro; aos pés do
Asinário, de Plauto, onde se conta a história de uma cortesã que vende seus favores
o peru possuiria uma grande semelhança com o marido rico, ele é depenado por um
auxiliando Dânae a recolher as moedas caídas do céu, teria os traços da filha de Ml
precoce, principiara a seguir os passos da mãe. No fundo, uma lamparina atrai mar
suas asas.

A pintura é esplêndida, e Girodet desdobra seu talento em tratar os efeitos de luz, d


reagindo sobre matérias diferentes. Mas o quadro é de cruel e violenta misoginia —
belo, está ali presente para ser insultado.
Tal episódio ajuda a bem delinear certos aspectos da natureza especifica desse erot
neoclássica terminou por engendrar. Estamos num universo essencialmente mascul
ação. Ockman assinala a dualidade no Aquiles de Ingres entre otium e negotium. Os
um apelo para que o guerreiro retorne às batalhas; ele é encontrado no seu lazer, a
Pátroclo, cantando, acompanhado por sua lira, a glória dos heróis. Este é o otium d
A cena do quadro é inteiramente tomada pelos homens, seus interesses, suas ativid
amores. Em frisa, no primeiro plano, os heróis, musculosos como Ajax, sinuosos com
como Aquiles. No fundo, outros guerreiros exercitam-se nus no lançamento de disc
feminina, entretanto, isolada desse terreno público, ao ar livre, dos machos, encont
penumbra, dentro da tenda. Ela está fora da cena, limitada ao âmbito do doméstico
passividade e à sujeição, algo entre a escrava e o objeto: lembremos que o motivo d
o quadro é a devolução de Briseida, acompanhada por vários presentes de Agamen
mulheres de Lesbos, belas e ótimas para o serviço doméstico, sete tripés, vinte calde
Os quadros de David, aliás, já mostravam as mulheres tomadas de um sofrimento im
Horácios, no Brutus. Em A morte de Sócrates, Xantipa é conduzida para fora da cela,
suporta as lamúrias da esposa: são os homens que tomam a dianteira da imagem pa
meditarem sobre a morte.

Há também o caso das Sabinas, de 1799, obra ambiciosa, grande, de 4 x 5 m, repre


mas o momento no qual, três anos mais tarde, as mulheres separam os romanos do
vindo vingar-se e levá-las de volta.
Comportamento Costumes Estética Paixões

Outros itens da coleção


Libertinos libertários

ORIGENS DO DISCURSO LIBERTINO


por Luiz Roberto Monzani
A literatura libertina do século XVIII é muito diferente daquilo que antes se chamava libertino e que era basicamente...

TEATRO OBSCURO TEATRO OBSCENO


por José Celso Martinez Corrêa
No público do teatro, a miséria brasileira pode ser percebida. Na maioria das vezes, o público sai sem jamais ter...

CINCO PROPOSTAS SOBRE A FILOSOFIA LIBERTINA E UMA SOBRE ASSÉDIO SEXUAL


por Maria Rita Kehl
O antifeminismo radical dos libertinos bane da filosofia libertina a possibilidade da existência de um sujeito feminino...

O ASSÉDIO ELETRÔNICO
por Eugênio Bucci
O isolamento é requisito para usufruir da televisão. Por outro lado, nunca se falou tanto em interatividade. Ela que...

PARNASO DE BOCAGE, REI DOS BREJEIROS


por Antonio Alcir Bernárdez Pécora
Apreciado como autor libertino de anedotas (Nelson Rodrigues) ou como grande cultor da língua apesar de suas...

Você também pode gostar