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Análise de documentos/fontes

Analisar uma pintura

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Édouard Manet, Olympia, 1863 (exposta no Salon de 1865). Óleo sobre tela, 130x190 cm, Museu d’Orsay, Paris.

A apreciação de uma obra de arte não pode, muitas vezes, reduzir-se ao plano estético. Algumas obras,
como a que aqui analisamos, tiveram um tal impacto na sociedade do seu tempo e no devir da própria arte
que, para além de valor estético, têm também um elevado valor histórico. Uma pesquisa breve, bibliográ-
fica ou via Internet, ajudará, nestes casos, a compreender melhor a obra analisada.

Regras de análise
Identificar a pintura: – Conteúdo (personagens principais e secundárias – suas atitu-
– Titulo/Tema (religioso, mitológico, histórico, retrato, «cena de des e trajos; paisagem; plantas; animais; edifícios; outros ele-
género», paisagem, natureza-morta); mentos);
– Técnica (aguarela, guache, pastel, fresco, têmpera, óleo…)/ – Forma (planos; linhas estruturantes – horizontais, verticais,
Suporte (papiro, pergaminho, papel, parede, madeira, tela, obliquas, curvas; perspetiva; geometrização das figuras e do
acrílico…); espaço; existência ou não de simetria e proporção; existência
ou não de desenho prévio; predomínio da linha/desenho ou da
– Dimensões;
cor; cores dominantes – quentes ou frias; zonas de luz e som-
– Data/Local de produção; bra; pincelada fluida, espessa, contínua, entrecortada; estilo
– Autor/Comanditário; figurativo, abstrato…).
– Local de exposição. Interpretar/Descodificar a pintura:
Identificar o contexto histórico em que a pintura foi produzida. – Sentido simbólico; relação entre a obra e o contexto histórico;
Discriminar os elementos representados e as suas intenções do autor e/ou comanditário;
inter-relações: – Corrente artística.
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Questões

1. Identifique a obra apresentada.

2. Caracterize a tendência cultural que marcava a Europa, à época da realização de Olympia.

3. Descreva o quadro: personagens representadas, técnica, composição, cores, influências…

Quando foi exposta ao público, em 1865, Olympia suscitou tal escândalo que só as precauções tomadas
pela organização do Salon impediram que o quadro fosse vandalizado. A obra foi, então, descrita pelos
críticos como «uma ofensa à decência», «uma indescritível obscenidade». Albert Woolf escreveu no
Fígaro: «O Sr. Manet deseja alcançar a fama escandalizando a burguesia».

4. Procure analisar a razão de tal escândalo.

Comentário

1. Olympia é uma das obras mais conhecidas de Édouard Manet (1832-1883), célebre pintor francês, consi-
derado um dos precursores da arte moderna. Pintado a óleo, sobre uma tela de dimensões considerá-
veis (130x190 cm), o quadro representa um nu feminino, num espaço interior. Foi pintado em 1863 e
exposto ao público dois anos mais tarde, na mostra oficial anual dos pintores franceses (o Salon). Encon-
tra-se, atualmente, no Museu d’Orsay, em Paris.

2. Em meados do século XIX, os Europeus tinham-se já deixado fascinar pelas extraordinárias realizações
técnicas e científicas que marcaram o advento da era industrial. A ciência parecia, então, constituir uma
via segura rumo ao Progresso, capaz de, com a sua análise racional e meticulosa, transformar o mundo.
Deste modo, o apreço pelo concreto, a convicção de que tudo, dos fenómenos físicos à realidade social,
deveria ser encarado com objetividade “científica” impregnou os espíritos e, com eles, a literatura e a
arte. Nasce, então, o Realismo.
Numa atitude diametralmente oposta ao sentimentalismo romântico, os realistas procuram mostrar as coi-
sas tal como elas são, sem adornos nem subtilezas artísticas. Política e socialmente comprometidos, fazem
da arte um meio de contestação e chocam, deliberadamente, a classe burguesa, moralista e conservadora.

3. O quadro de Manet remete-nos para o interior de uma alcova, onde se encontram duas mulheres: uma,
jovem e desnuda, recosta-se sobre as almofadas da cama desfeita e fixa o espectador. A outra, negra e
completamente vestida, aparenta ser uma criada. Traz na mão um ramo de flores e, pela atitude, parece
apresentá-lo à jovem patroa, a quem certamente se destina.
Aos pés da cama, encontra-se um gato preto, de olhos brilhantes e dorso arqueado.
A obra, em que predominam os tons frios, enquadra-se, tanto pela composição como pela técnica, nos
preceitos académicos a que, desde o Renascimento, obedecia a pintura. Sobre um desenho de traço
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rigoroso, Manet tira partido das possibilidades da pintura a óleo, conferindo o brilho de seda ao lenço
desdobrado sob a modelo, realçando a textura dos lençóis, acentuando o contraste entre a pele branca
da jovem e a tez escura da criada negra. As flores têm o encanto das naturezas-mortas que, frequente-
mente, se encontram nos quadros do pintor e às quais Manet deve parte da sua fama.
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A composição é cuidada e simétrica: as almofadas

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sobrepostas e o tronco semilevantado da rapariga,
que ocupam o lado esquerdo, encontram o seu
equilíbrio na figura da criada, no lado oposto. O
espaço livre, aos pés da cama, é preenchido pelo
gato preto.
A representação da mulher nua reclinada sobre o
leito não é inédita na arte europeia, remetendo-nos
para pintores tão conhecidos como Goya (A «Maja»
Despida, 1797-8) ou o renascentista Ticiano, cuja
Vénus de Urbino (c. 1538) parece ter servido de ins-
piração a Manet: as cortinas da alcova, a jovem des-
1. Ticiano, A Vénus de Urbino, c. 1538.
nuda reclinada sobre as almofadas, a mesma posi- Ticiano rodeou de símbolos a jovem mulher: na mão, um punhado de rosas,
flores ligadas à deusa Vénus remetem para o prazer e a fidelidade no amor;
ção pudica da mão, a presença da(s) criada(s) no a mesma fidelidade simboliza o cão e o vaso de murta, colocado na janela.
quarto, as flores em destaque, o pequeno animal
aos pés da dona.

4. Inventado pelos Gregos e revalorizado no Renascimento, o corpo humano, na sua nudez plástica, foi,
durante séculos, um dos temas centrais da arte europeia.
Idealizado, recriado pelo pintor, o corpo feminino encarnava a ideia de belo e, sendo a representação de uma
ideia, tornava-se admirável, não arrastando consigo sentimentos de desconforto ou impudor. Para mais, o nu
artístico, tal como fora e era concebido, adquiria geralmente um significado simbólico (como na obra de
Ingres, fig. 2), ou servia na recriação de cenas de um passado distante, muitas vezes com carácter mitológico.
A nudez cobria-se, assim, com o «filtro da História», representando cenas e pessoas inexistentes.
Ora, não é esse o caso de Olympia. Ao olhar o quadro, o público viu-se perante uma mulher completamente
despida, que o fitava com olhar desafiador. Não se tratava de um “nu artís-
tico” mas de uma mulher real, na qual facilmente se reconhecia a jovem
Victorine Meurant, modelo e companheira do pintor. Para mais, o título da
obra não deixava dúvidas: Olympia era um nome associado, por vários
escritores do século XIX (Dumas, Baudelaire …), à figura de uma cortesã.
Tratava-se, pois, de uma cena de bordel!
E tudo o confirmava: as chinelas, a flor e a fita preta tornavam ainda mais
obscena a nudez do modelo; o ramo de flores sugeria o cliente que, fisica-
mente ausente do quadro, assim era evocado; aos pés da cama, o
pequeno cachorro do quadro de Ticiano, símbolo da fidelidade, fora substi-
tuído por um gato preto, de pelo eriçado, numa conotação sexual explícita.
A obra tinha, pois, todos os ingredientes para chocar a moral burguesa e
despertar sentimentos de condenação e repúdio.
Manet tivera a ousadia de despir uma mulher real, de expor uma faceta
escondida e reprovável da sociedade parisiense. E, não contente com isso,
fizera-o numa grande tela, com quase dois metros de comprimento, que
expunha aos olhos de todos.
Em suma, Manet subvertera um tema académico, transportando-o para a
realidade crua do presente. Executara, assim, o nu realista mais famoso da
2. Ingres, A Fonte, 1820-1856. História da arte europeia.

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