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BERLIM E A MÚSICA DO ENTREGUERRAS

da atonalidade ao fascismo, um percurso social e político

Afonso Silvestre

I. INTRODUÇÃO:

A CENA ESTÉTICA, SOCIAL E POLÍTICA

O século XX traz uma carga de informações muito grande, consequências diretas dos
ajustes geopolíticos, econômicos e sociais ocorridos ao longo dos seus eventos e sobre
como eles afetaram as pessoas. Suas imagens são de horror e beleza, espanto, imagens
formidáveis, talvez não simplesmente por ter sido um tempo de eventos de grandes
intensidades (ora, todos os séculos da modernidade o foram), mas em grande parte pela
explosiva evolução da tecnologia e dos meios de comunicação. Mas também, para além das
imagens, é preciso pensar nos sons produzidos pelo século XX, como elementos igualmente
carregados da identidade desta época, e que descreveram sua paisagem.
Em 1912, em Paris, Claude Debussy (1862-1918) apresentava o seu balé Prelúdio à
Tarde de um Fauno (composto entre 1892 e 94), rompendo com o modo tradicional de
utilização do sistema de tonalidades conhecido. As 29 primeiras notas, distribuídas nos
quatro compassos iniciais causaram espanto público, indignação dos críticos e a visão de
novos caminhos aos artistas. Como disse o próprio Debussy, era preciso encontrar meios
sinfônicos para expressar os novos tempos, “meios que evoquem o progresso, o arrojo e as
vitórias dos dias modernos”. Mas nem ele próprio havia chegado propriamente a quebrar
um sistema, e sim apresentado uma renovação dele, o que foi devidamente criticado no
manifesto Futurista da música, escrito em 1911 pelo músico italiano Balila Pratella (1880-
1955).
Na mesma época, em Viena, Schönberg via no serialismo e no dodecafonismo o
caminho natural a ser percorrido pela música alemã. Ao contrário de Debussy, o vienense
não viu em Wagner “um belo crepúsculo que foi confundido com uma aurora”, comentário
feito pelo francês. Gustav Mahler (1860-1911) e Richard Strauss (1864-1949) já vinham
produzindo na contracorrente dos franceses, e agora, na primeira década do século XX, o
jovem Schönberg. Este não se considerava exatamente um vanguardista, mas via suas
aventuras pela atonalidade como uma compulsão a continuar a desenvolver o que viera
antes, “mesmo contrariando a vontade consciente”1. Incompreendido em Viena, e
perseguido por sua condição de descendente de judeus, Schönberg parte para Berlim no
início dos anos de 1920, vivendo como orquestrador de operetas e músicas de cabaré,
sendo, em 1925, nomeado professor da Academia de Artes de Berlim, onde permaneceu até
1933, com a ascensão do nazismo.

1
A Música Moderna: uma história concisa de Debussy a Boulez.
Para Berlim seguiram os músicos mais próximos desta estética germânica, onde
começavam se reunir vindos de diversos lugares, principalmente do interior do Império
Alemão, mas também do Leste, como a Áustria, o Império Russo e do novo continente, os
Estados Unidos e outros países da América. Esses músicos realizaram, em diversos
movimentos e correntes, rompimentos com a ordem estética e, com isto, provocaram
conflitos morais, políticos, sociais. Naquele momento, o Império Alemão entra em guerra,
o que viria a trazer uma derrota vergonhosa, causadora de danos que perdurariam por mais
de uma década, fazendo surgir fenômenos sociais marcantes.
No caso da cultura, o mundo assistiu ali o nascimento da estética expressionista.
Primeiro nas artes plásticas, depois na literatura, no cinema, na música. Nas artes plásticas,
desde van Gogh, Gaugin e Edvard Munch, no final do século XIX, já se podiam notar as
distorções das linhas e perspectiva, o emprego das cores destacando uma angulosidade
pervertida, bem como o enquadramento e a profundidade. Uma visão distorcida que parecia
anunciar o estado de coisas do século seguinte, como se através dO Grito, quadro de Munch
de 1893, os tempos que viriam fossem anunciados em todo o pavor que causariam aos
homens e mulheres, diante da realidade incontrolável por eles criada. Desprezar a coerência
formal do naturalismo para anunciar como num grito de cores os novos tempos. Isto foi o
que fez o pintor norueguês ao realizar seu trabalho e causar um intenso debate estético na
cena berlinense.
A arte do seu tempo cumprindo sua função, a de mostrar a vida sob um olhar estético,
estampando a realidade crua e causando o tremor que se pode ter ao deparar-se consigo
mesmo. A circunstância da grande cidade, Berlim, enquanto representante do que há de
vanguarda em industrialização, técnica científica e administrativa, superpopulação, miséria
e riqueza compartilhando o mesmo solo caótico; uma arte inovadora, anunciadora do século
e seus horrores. A partir dos insights libertadores de artistas como Debussy, e muitos
outros, como veremos, irromperam novas linguagens que realizaram quebras muito mais
radicais de formas e conteúdos.
Na política, criaram-se condições para a legitimação do precário, a crueldade extrema, o
exercício da ganância, da produção do crime organizado e desigualdade social. A
instabilidade dos governos durante a República de Weimar (1919-1933) agravava esta
situação de descontrole. Havia um clima de violência política, o uso da propaganda pela
extrema direita, atentados, e isto gerou uma situação de medo e apreensão nas pessoas,
além da insegurança de estarem vivendo sob índices de inflação em grande escala. E
também o crescimento e fortalecimento da ideologia nazifascista que, muito além da mera
política, mostra-se um jeito de ver o mundo, como quem olha por uma greta, mas tem a
certeza absoluta de estar vendo a totalidade. E que veio encerrar-se, após um período de
crescente exercício da crueldade, do preconceito e do desprezo pelo outro, com a Segunda
Guerra Mundial.
Entre os músicos, causaram maior “barulho” os futuristas. Em comparação aos
rompimentos estéticos realizados em Paris, entre esses, instalados em Berlim, o
rompimento deveria ser mais radical, por assim dizer, mais expressionista e menos
impressionista. Perceber a beleza na violência daqueles tempos, a audácia das rebeliões e a
genialidade que deveria nascer de todas aquelas convulsões sócio-políticas. E também a
atmosfera de fuligem, barulho e engrenagens que moviam e controlavam as pessoas, a
percepção e a representação do ritmo daquele alvoroço de ascensão do capital.
Essas idéias estavam representadas em obras como o Ballet Mécaniche (1926) do norte
americano George Autheil (1900-59), nos Intonarumori, ou “entoadores de ruídos”,
instrumentos experimentais construídos por Luigi Russolo (1885-1947) até 1930. Eram
caixas para produção de ruídos de diversos tipos e intensidades, causando sensações no
ouvinte. Seguiam o Manifesto da Arte do Ruído, escrito pelo próprio Russolo (como o
autor não tinha formação musical, não houve anotações ou partituras, o material gravado
foi totalmente destruído no ataque dos nazistas a Paris durante a Segunda Guerra, resta hoje
apenas um velho disco arranhado de 78 rotações)2. Houve também Pacific 231 (1923) de
Arthur Honegger (1892-?), uma obra futurista, embora ainda sob a forma do poema
sinfônico convencional, mas que exerceu influências rítmicas sobre As Bodas (1923), de
Stravinsky3 (1882-1971). Esta obra, não futurista, foi, no entanto, completamente inovadora
do ponto de vista rítmico e representou uma entre diversas outras formas de expressão
daquele tempo além da futurista.
Também o balé Aço, do russo Mossolov (1900-73), uma tentativa de criar “música
apropriada para as novas perspectivas de esperança que se abriam para o estado operário”4.
É uma música descritiva, como a música do Romantismo, que se convenciona surgir com a
Eroica (1804), terceira sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827) e durar até Brahms
(1883-1897), quando começou a adquirir novas formas, tardo-românticas por assim dizer,
vistas na época como deformações. Mas, enquanto a música romântica anterior inspirava a
forma dos primeiros futuristas, diferenciavam-se uma da outra fundamentalmente num
aspecto. A música Romântica alemã descreve a paisagem bucólica e os trabalhadores do
campo, evoca sentimentos subjetivos, intuitivos, e querem engrandecer o povo. Também
fala das dores da alma, das dúvidas iluministas. Seus continuadores e reformuladores
futuristas descreviam a paisagem urbana e industrial, barulhenta, e a pequenez do homem
diante do mundo horrível que havia construído. Um homem incapaz de lidar com sua obra,
indefeso diante dela, dependente e dominado.
A combinação de ritmos, timbres obtidos de maneira não convencional, elementos que
descreviam as circunstâncias e o estado mental das pessoas, a profusão de informações.
Essas imagens estavam presentes praticamente em toda a música erudita das duas primeiras
décadas do século XX. No caso do balé Aço, ou Fonderia d’Acciaio (fundição de aço),
podemos “ver” a marcha dos trabalhadores, a dinâmica e a grandeza das máquinas, o medo
constante e algumas vezes crescente. Os românticos anteriores eram idealistas, tinham o
conteúdo da consciência como o único evento ou entidade possível de se conceber. E,
sendo assim, não poderiam estar certos a respeito desses eventos ou entidades do mundo.
No caso dos futuristas, a realidade era palpável. E assustadora.
O Futurismo, como se pode notar, tem um caráter cuja relação é válida tanto com o
dadaísmo nas artes plásticas quanto com o anarquismo na política. Mas é importante
pontuar que, politicamente, esses realizadores se identificavam mais com o comunismo.
Seus elementos para construção do trabalho eram as máquinas industriais recém-surgidas,
os sons gerados por elas. Em seu discurso, aquela música retratava a multiplicação da
2
Material disponível em Spotify.
3
Entre 1910 e 1914, por conta das suas condições de saúde Stravinsky viveu em diversas cidades fora da
Rússia, entre elas Berlim, onde deixou importantes contribuições formais para a música produzida ali.
4
citação de Paul Grifths, em A Música Moderna – Uma História Concisa de Débussy a Boulez.
capacidade de produção e acumulação, num sistema que todos conhecem, seja
teoricamente, seja sentindo na pele (pelo bem ou pelo mal). O belo no sentido platônico
deixa de ser a orientação estética usual, tratava-se da visão de belezas incomuns, que não
cabiam na percepção viciada e na conceituação dogmática clássica, chamada de
“reacionária” pelos futuristas. Mas eram belezas por se mostrarem com ordem, simetria e
limite. A forma dita “reacionária” permaneceu, mas seu conteúdo foi inundado por novos
discursos de intertextualidade, onde a arte deixa de ser apenas por si, tornando-se veículo
de reivindicações e protesto. A politização da arte, abrindo caminho para os movimentos do
século XX, que em muitos casos se resumiu na redução dos aprimoramentos em função de
fazer-se caber ali o discurso político. Mas isto não foi prática generalizada, como nos
mostra o exemplo de Edgar Varèse (1883-1965), que utilizou extrema sofisticação para
retratar a barbárie.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi o grande motivador do pessimismo dos
músicos futuristas e de outras correntes. A violência, crueldade e banalidade daquele
conflito mostraram em fatos o que a arte apontava, desde anos antes, como novas formas de
valor estético. A utilização da tecnologia como elemento por compositores como Varèse, a
introdução de novas concepções de ritmo, neste caso por outros não futuristas como a
atonalidade de Schönberg, Alban Berg (1855-1935) ou Anton Webern (1883-1945), e
outros desvios formais como os promovidos por Debussy em Paris ou Bartók (1881-1945)
percorrendo a Hungria e Romênia, juntamente com com Zoltán Kodály (1882-1967),
pesquisando a música popular, pareciam anunciar os novos valores do século. Em muitos
momentos, a guerra determinou a forma das obras desses artistas. A História do Soldado
(1918), de Stravinsky, por exemplo, foi concebida para uma companhia itinerante, reduzida
de maneira perfeitamente adequada às condições restritivas daqueles tempos. Essas
adaptações influenciaram na forma de música produzida posteriormente, nos anos
entreguerras. Entre os novos elementos estava o uso de um narrador para contar histórias de
personagens do povo, uma nova forma para o drama musical que, diga-se de passagem, não
foi ainda totalmente esgotada.
O absurdo daquela guerra pautou o comportamento das pessoas, dos estados-nações,
dos artistas. O período que dura entre a Primeira Guerra e a Segunda representa uma só
convulsão social. Naturalmente, foi uma época mal interpretada pelos que viveram nela,
porque guardava horrores que só vieram a ser compreendidos depois, gerando um mal-estar
tremendo. Naquele tempo, grande parte desses artistas, muitos vistos como “degenerados”
em seus países, foi acolhida pela vida boêmia dos cafés parisienses, vienenses, berlinenses.
No caso de Viena, foram se esvaziando, muitos compositores se mudaram para Berlim,
como foi o caso de Schönberg. De qualquer forma, em Berlim se encontraram artistas de
quase todas as nacionalidades, que conviveram promovendo, geralmente na
clandestinidade, uma arte nova e unificadora dos anseios, uma linguagem universal para
expressão estética das angústias e dos medos do homem comum no mundo ocidental.
A reunião desses artistas em Berlim fez nascer, ali especificamente, além das
manifestações futuristas, a música chamada Expressionista, que provocou espanto e gerou
reações extremas, chegando ao ponto de espancamento e pancadaria em algumas ocasiões.
Este comportamento do público era reflexo justamente do medo de seu tempo e da
imprevisibilidade dos eventos, que estavam estampados e refletidos ali na nova música, na
nova arte, criada no momento, como reflexo das mudanças do mundo, e por isso assustava.
Estas manifestações de incompreensão conservadora aconteciam também nas artes
plásticas, no teatro e no cinema. Como cita Hans Richter, em sua carta a Helga Kliemann
em 1967, “O público ficou tão irritado ao ver o enterro do camelo de René Clair e a dança
das baterias de cozinha de Léger, que reagiu com violência ao meu filme Rhytmus, que
mostrava apenas retângulos e quadrados, e espancou o pianista, que nada tinha a ver com a
coisa”5.
Independente do estilo, eram muitas correntes novas de pensamentos e concepções
explodindo simultaneamente, praticamente toda a música produzida naquele tempo
chocava. O jazz também foi uma linguagem bastante utilizada e igualmente vista como
revolucionária. A integração dos seus elementos na música erudita começava a aparecer, e
viria a ser uma referência importante nos anos seguintes, da qual os compositores europeus
sempre lançaram mão. Esses estilos provocavam a ira dos conservadores que, durante a
República de Weimar, derrotados política e moralmente, foram ganhando fôlego para
protestar contra o que eles chamavam de atentados aos costumes, traição do romantismo,
expressões de mau gosto, desrespeito e baixo calão.
Os acontecimentos revolucionários do final de 1918, a abdicação de Wilhelm II e a
fundação da República trouxeram todas as possibilidades de renovação social e estética.
Uma nova sociedade, as ideias em exaltação, como escreveu o pintor e escritor Karl Jakob
Hirsh em suas memórias6, Berlim torna-se uma metrópole artística da Europa. As
experiências audaciosas acontecem todo o tempo, em todos os lugares. Porém, mesmo
tendo o governo nacionalista e racista se retirado, seus seguidores permaneceram ali, no
meio da evolução, ressentidos e sentindo-se oprimidos por ela. Inicialmente, suas
manifestações de frustrações eram veladas, mas, com o tempo, foram ganhando espaço à
medida que se assumiam, reconheciam-se no meio do povo e se fortaleciam. Geralmente, o
principal gatilho era o horror provocado pela arte, que o colocava diante de si mesmo.
Aqui se desvelam os atos desses conservadores. Eram os derrotados, ligados ao Império
que se desmoronou após a Primeira Guerra. Entregam o poder aos democratas, a quem
coube a rendição e a responsabilidade de reconstruir a Alemanha. Neste momento, cresce
uma oposição mais contundente, que deseja a volta dos militares. A linguagem, em geral, é
chula. Assim escreveu Paul Zschorlich no artigo “Getstotter in der Staatsoper” (“gagueira
na ópera do Estado”), publicado em 15 de dezembro de 1925 no Deutsche Zeitung:

“Quero me chamar Moisés Cheiro de Esgoto se a coisa não


for uma trapaça pura e simples. Se Arnold Schönberg ensina hoje
essa arte de fuga na Academia de Belas-Artes, seria melhor que
se transformasse o estabelecimento em piscina. Pelo menos, seria
um negócio limpo.”7

5
Citado por Jürgen Schebera no artigo Explosão Artística e Contestação, na coletânea Berlim, 1913-1933: A
Encarnação Extrema da Modernidade, organizado por Lionel Richard.
6
Idem.
7
Ibidem.
Os ataques aos revolucionários cresciam, esses eram chamados de “envenenadores de
fontes”, ou realizadores de uma espécie de “bolchevismo musical”, que os conservadores
desejavam “eliminar pela raiz”. Este ódio cresceu junto com o ódio antissemita no período.
As ameaças começam a ser diretas e aludem à violência. Como o texto de Edmund Kühn
direcionado a Schönberg, em 17 de dezembro de 1925 (dois dias depois do texto de
Zschorlich) no jornal Germania, falando em combater sem cessar a obra do compositor e
seus sequazes. No caso do crítico do Deutsche Zeitung, nota-se o antissemitismo direto. Em
1923, Wassily Kandisky, pintor expressionista russo vivendo em Berlim, questionou: “a
que pode levar o antissemitismo senão a atos de violência?”8 Logo que se instalou na
cidade, lecionando na Academia de Belas-Artes e compondo, Schönberg percebeu que
sofreria ali a mesma perseguição que ocorria em sua cidade natal, Viena.
Na Alemanha, naquele momento, não exclusivamente em Berlim, mas lá em caráter
bem especial e com um espírito mais universal e menos “germânico”, mais cosmopolita,
havia uma concentração muito grande de investimentos, potencial econômico e de
expressões intelectuais. Mesmo sendo tão difíceis aqueles tempos de derrota no pós-guerra,
e consequente inflação que cresce de forma exponencial. Berlim atraía escritores,
teatrólogos, artistas plásticos e músicos. Ali também se concentravam matemáticos, físicos,
geógrafos e uma infinidade de cientistas que também realizavam trabalhos de relevância
mundial.
Como disse Karl Zuckmayer em “Als wär ein Stück von mir” (suas memórias, “como
se fosse um pedaço de mim”), “Berlim tinha o gosto do futuro, e, em troca disso,
aceitávamos de bom grado a sujeira e o frio”9. Uma cidade receptiva aos jovens criadores,
que vinham de outras cidades da Alemanha, mas também do Leste dos recém-criados
países comunistas. Assim, à medida que a cidade se desenvolvia industrialmente,
tecnologicamente e esteticamente, crescia insistente uma resistência conservadora, com
tendências políticas muito claras, contra aquilo que se manifestava em diversas formas e
expressões artísticas mesmo antes da Guerra.
Em Berlim, grupos de artistas acabaram se organizando também politicamente. Eram
bastante heterogêneos inicialmente, com realizadores que defendiam a pluralidade da
república burguesa ou, em menor número, aqueles que defendiam uma arte marchando ao
lado da revolução social. Na medida em que fortaleciam suas convicções, esses grupos
foram se separando. Um deles, o Novembro, formado por artistas plásticos, assumiu
posições radicais e teve bastante sucesso nisto. A partir de 1922 (1918-1932), passou a
aceitar músicos e escritores em seu círculo. Jovens músicos como Hanns Eisler (1898-
1962), Kurt Weill (1900-1950), George Antheil e outros, alguns egressos da escola de
Schönberg, tornaram-se representantes da principal vanguarda musical em Berlim.
No que diz respeito à lírica, aos textos, muitas vezes estes músicos utilizavam-se de
argumentos voltados para as massas, temas aparentemente frívolos, que eram na verdade a
utilização do homem comum e sua vida cotidiana como os condutores de pequenas
histórias retratando que a banalidade não era dos homens, mas estava representada nas
ações do Estado. Uma dessas obras é a canção Youkali, de Kurt Weill (1900-50), uma ária
da ópera Marie Galante, mostrando o devaneio de uma prostituta raptada e abandonada à

8
Ibidem.
9
Ibidem.
própria sorte, na sarjeta, numa rua de uma cidade panamenha. As peças de Kurt Weil, como
de muitos outros compositores e seus parceiros escritores, como Bertold Brecht ou Jacques
Delval (no caso de Marie Galante) eram parábolas da sociedade moderna, obras com as
sonoridades e o caráter comercial do jazz que representavam metáforas da corrupção do
estado capitalista.
Grande parte da produção desses compositores desembocava nos cabarés, como forma
de ganhar algum dinheiro. Muitos tocavam e compunham canções executadas nesses
lugares para todo tipo de público, do submundo à alta burguesia. Compositores como
Mischa Spoliansky (1898-1985), Kurt Weill, Friedrich Holländer (1896-1976) e outros.
Suas obras, durante aquele período, embora fossem consumidas em sua maior parte por
pessoas comuns, trabalhadores e gente que vivia da noite e na noite, acabaram tornando-se
diversão elitista. Mas perduraram de forma bastante popular, sendo gravadas
posteriormente por intérpretes como Elvis Costello, Nick Cave, The Doors, Tom Waits, Ute
Lemper, Lou Reed, Betty Carter, Marianne Faithfull, John Zorn, e Chico Buarque
(Homenagem ao Malandro, uma versão de Die Moritat von Mackie Messer, cuja tradução
seria algo como A Balada do João Navalha).
O humor contido na expressão dos artistas nesse período retratou a condição humana de
maneira visceral, mergulhando nela e nas pequenas tragédias individuais, resultados da
tragédia social à qual o Ocidente foi conduzido ao longo do século, a partir da Primeira
Guerra. O caráter da associação da idéia de “inocência perdida” com a utilização de novos
veículos para expressar a forma musical acabou por fortalecê-la e permitir que perdurasse
influenciando a criação pós-moderna. Toda a ironia contida nesse discurso, ao invés de
tornar mais leve, mostra a realidade em seu caráter absurdo.
Este era o quadro da cena cultural na cosmopolita e agitada Berlim durante a República
de Weimar. Revolucionária e conservadora, com suas zonas muito bem definidas entre
tipos, grupos e classes sociais, da alegre e perdulária burguesia à perigosa, prostituída,
criminosa e criativa massa de classes inferiores.
II. AS BASES, SOCIAIS, POLÍTICAS E ESTÉTICAS

Os alemães são mesmo um povo esquisito! Com as idéias e os


pensamentos profundos que buscam em toda parte e aplicam a tudo,
acabam tornando a vida muito difícil. Ora! Tenham, ao menos uma vez, a
coragem de se entregar às impressões (...), e não julguem sempre vão
tudo que não seja uma idéia ou um pensamento abstrato.
(Goethe, em Eckermann, Conversas com Goethe, 1827)

IMAGENS: EM BERLIM, O CAOS, A MISÉRIA E A PROSPERIDADE

Num retrato da Alemanha logo após o Reich Bismarckiano, feito em grossas e rápidas
pinceladas, podemos ver uma nação surgida a partir de uma unidade forçada pelas guerras.
Por causa da necessidade de preservar o Império, a nova nação é artificial, formada por
“pequenas pátrias” distintas, como Bavária, Saxônia, Renânia, Prússia. E Berlim, a capital,
tornara-se a principal sementeira de uma nova ordem cultural ainda em gestação. A partir
de 1871, com a unificação, Berlim é uma cidade mais influente que Viena, porém não mais
que Paris. Mas a capital alemã coloca para funcionar o seu metrô em 1887, antes de Paris. É
uma cidade limpa, saneada, que desfruta da tecnologia com a intimidade de quem a criou.
A cidade é moderna, agradável e sua rede ferroviária conduz a todos os lugares da Europa.
Em 1871, a França, derrotada na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), presenteou os
alemães com a Siegsäulle, imponente estátua dourada instalada na avenida 17 de Junho, na
Grosser Sterne. Rodeada de jardins, no centro da capital mais verde da Europa, o
monumento representa o momento da unificação alemã. Com o fim do regime monárquico
francês, a queda de Napoleão III, a Nação Alemã desfruta de certa “tranquilidade”, pois em
seu parlamento, entre os opositores, não há quem conteste de maneira mais firme o Poder
Imperial. Em 1884, a Alemanha começa a estabelecer colônias fora da Europa, tanto por
iniciativa estatal quanto privada. A indústria se fortalece impulsionando o crescimento
econômico e a qualidade de vida da população.
Sempre houve um orgulho muito particular em ser berlinense. Sua infraestrutura, desde
meados do século XIX, é exemplar entre as grandes metrópoles europeias. Nenhuma capital
era dotada de uma rede ferroviária tão desenvolvida, e é a maior cidade industrial de todo o
continente. No prólogo da obra “Berlim, 1919-1933 – a encarnação extrema da
modernidade”, o pesquisador Lionel Richard afirma ser um lugar detentor de todas as
esperanças ou de todas as imperfeições. A cena evoca e representa o caos e a velocidade
dos tempos, as artes estão em plena produção inovadora, influenciando toda a Europa, um
cenário urbano que evoca as formas de um “Moloch devorador”, nas palavras de Richard,
em seu “movimento incessante, burburinho, anonimato, solidão, corrupção, prostituição
(...), alguns dos elementos que povoam o universo berlinense dos poemas de Gottfried
Benn e de Georg Heym, ou dos quadros de Ernst Ludwig Kirchener e Ludwig Meidner.”
O Moloch devorador ao qual se refere o autor é uma divindade amonita, povo que
habitava a Palestina cerca de 850 a.C., com corpo de homem e cabeça de touro, em cuja
estátua (condenada por Moisés) havia um local onde se colocavam brasas para serem
depositados bebês em sacrifício. Moloch era devorador, consumidor e purificador; porém
era carismático, a ponto de o próprio Salomão ter erguido a ele um santuário, como é
contado em Reis e Jeremias. Tempos depois, o chanceler Adolf Hitler seria comparado a
Moloch, no aspecto em que seduziu a todos, até mesmo suas futuras vítimas, incluindo
Winston Churchill.
Em Berlim nasce o movimento expressionista na pintura. A literatura e o cinema
alemães seguiram esta tendência, já praticada em conceito pela música de Viena a partir do
final do século XIX, onde compositores como Richard Strauss descreviam paisagens
sombrias numa espécie de romantismo tardio, onde se despejavam toda a carga e densidade
de emoções e sentidos. A atonalidade, a distorção, o sombrio, a velocidade, a tecnologia e a
angústia daqueles tempos estavam representados na arte. Criada a partir dos conflitos e
frustrações gerados pela história europeia a partir de meados do século XIX e agravados,
sobretudo, pela Primeira Guerra Mundial, banida quando alguns dos perpetuadores daquela
desgraça em 1914 voltaram ao poder em 1933, sob a adoração do povo. Como um Moloch
sedutor e destruidor.
O fato é que Berlim tornara-se, antes de 1914, uma referência, um local que agregou
uma nova linguagem e visão de mundo em processo de elaboração. Esta imagem percorreu
o mundo, levada pela música, pelas artes plásticas, pelo cinema, pela tecnologia industrial e
pelos avanços em diversos setores da ciência e do conhecimento filosófico. Esta era a
imagem da contradição. Em 1919, derrotada pela Guerra, a Alemanha tentava refazer-se do
rastro de estragos morais e econômicos deixados pela política. Durante a tentativa de
reconstruir o país, cresceram junto com as inovações da arte movimentos conservadores
ligados à política e à religião, o desejo da “volta de uma ordem”, que fortaleceram a velha
política e recolocaram na cena como arautos da moral, os velhos políticos nacionalistas
desmoralizados do passado.
Em 1929 é publicado o romance Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, e em 1931
Phill Jutzi lança a primeira versão para o cinema. Quatro anos antes de instaurado o
Terceiro Reich, o livro conta a história de Franz Biberkopf, um representante da classe
operária que assassinara a mulher por esta ter se prostituído para se alimentar e, ao sair da
prisão, enfrenta dificuldades em se adaptar àquela Berlim da República de Weimar que
encontrou. Nesta obra expressionista é possível observar o crescimento do ódio antissemita,
do moralismo e da corrupção no submundo de uma Alemanha que vem tentando a duras
penas recuperar sua economia e cujos governos perdem gradativamente a credibilidade de
uma população profundamente ressentida.
Antes mesmo que a extrema direita reassumisse o poder na Alemanha em 1933, já
havia sido declarada uma guerra estética. O pensamento fascista decretou ser feio tudo o
que não poderia compreender, e por isso não gostava, ou temia. E o que era feio passou a
ser perseguido e banido. As artes reproduziam as sensações do seu tempo, e era um tempo
de horror retratado por pintores como Edward Münch que, a partir de “O Grito”, declarou o
estado de alma do homem contemporâneo. A dúvida, o pavor, a solidão, a peste, tudo
retratado pelos artistas da época, estampado na cara do homem comum como um espelho.
Feia era a condição daquela nação devastada pela Primeira Guerra Mundial. A
população, mergulhada em desgraça material e moral, estava ávida pela ideia da “volta de
uma ordem”, e por isso apoiou a ascensão do novo regime do Terceiro Reich, ou seja, os
velhos políticos que abandonaram a chefia do Governo, entregando-o aos democratas. Os
mesmos homens que haviam causado a guerra, e insistido nela, derrotados, deixando o
poder nas mãos dos democratas, a quem coube a rendição e a tentativa de organização de
um país devastado. Os militares retornam então, pouco mais de uma década depois, e dizem
ao povo: “vejam o que eles fizeram! Renderam-se covardemente e trouxeram o estado de
caos para o país”. Retornam ao poder com vasto apoio popular em 1933.
De 1919 a 1933, a República de Weimar era uma Democracia Representativa
Semipresidencial, embora o nome do país tenha permanecido, Império Alemão,
representando o desejo mais íntimo dos cidadãos. Assim, gradativamente, toda a
diversidade, efervescência e pulsão germânica pela representação estética passa a ser
perseguida e condenada, provavelmente por representar de maneira bastante contundente
toda a convulsão, velocidade, explosão criativa e violências decorrentes daquele estado de
coisas.
Diferente dos tempos do Reich Bismarckiano, quando o Reichstag delibera sem muitos
confrontos entre os apoiadores da política imperial e seus opositores, a partir da
Constituição de 1919 tem-se uma dinâmica mais condizente à democracia representativa.
Porém, os estragos morais e econômicos, políticos e sociais já estavam postos. As cenas de
uma Berlim próspera no final do século XIX são substituídas, logo depois da Primeira
Guerra, pela visão da pobreza, degradação, desemprego, inflação. Mas mantém o charme
de modernidade e progresso, e esta distinção era muito clara quando se movia entre os
setores Leste e Oeste da cidade.
No Oeste elegante, ruas iluminadas e movimentadas, salas de cinema, teatros, cabarés,
restaurantes e cafés, cervejarias que servem de dois a três mil consumidores por noite entre
nove da noite e três da manhã. Ostentação e modernidade. Ao Leste, miséria, criminalidade.
Em torno da Alexanderplatz, quadrilhas disputam espaço entre si, mendigos e prostitutas se
esfaqueiam por um pedaço de calçada. Em toda a cidade, a vida noturna é intensa, o sexo
está disponível em salas discretas, cocaína barata. Há em Berlim neste momento nove
prisões, uma só para mulheres.
A cidade era um foco de agitação social. Sua população pobre cresceu em função de
aglomerados habitacionais operários, como o distrito de Neukölln que, em 1925, oferecia
65 mil empregos enquanto viviam ali 160 mil pessoas economicamente ativas.
Trabalhadores e suas famílias com entre duas e quatro crianças amontoavam-se em prédios
de cinco andares construídos pelo Governo, em apartamentos que só tinham um ou dois
cômodos além da cozinha, que era o único local aquecido da casa.
Neukölln fica a Sudeste de Berlim, onde havia algumas indústrias, mas a maioria delas
estava localizada no extremo Norte, obrigando os operários a atravessarem a cidade todos
os dias. Construíam-se cerca de 1.500 apartamentos por semestre. Depois da Guerra, as
construções cessaram e as condições das moradias tornam-se ainda mais graves pela
degradação. Devido à inflação descontrolada, a República oferecia alimentação e construía
hortas comunitárias, ou operárias como eram chamadas, que serviam às famílias nessas
aglomerações. A administração desses espaços era feita pelos próprios trabalhadores, que,
com o tempo, organizaram-se, em números iguais, entre socialdemocratas e comunistas.
Em Neukölln surgiram sindicalistas importantes, e também artistas e cientistas. Porém,
mesmo com a incorporação de comunas como aquela pela Municipalidade, uma grande
Berlim vermelha, pavor dos burgueses, não ocorreu. Isto porque a Velha Berlim era muito
grande e a união de todos os operários os levou a uma frágil e fragmentada maioria, e os
democratas continuaram dando as cartas.
Quase dois terços da população de Berlim não era natural. Operários, empreendedores,
artistas, aventureiros, prostitutas, cafetões, estelionatários, mafiosos, todos iam para lá. A
desvalorização do marco, as consequências econômicas da guerra, a inflação crescente e
assustadora, nada disso desanimava as pessoas. Pelo contrário, muitos ganhavam com a
situação econômica, principalmente os trambiqueiros, dos quais a cidade estava repleta. No
meio dessa população heterogênea, estavam os trabalhadores ligados à arte e a cultura, e
eles representavam, do total no país, 40% dos empregados em editoras (mesmo número que
nos organismos de crédito), 40% dos pintores, escultores e escritores e 28% dos atores e
músicos.
A Alemanha não vinha cumprindo as determinações do Tratado de Versalhes e as
sanções econômicas externas vieram. As condições econômicas se agravam, desvalorização
do marco, inflação em índices estratosféricos prejudicavam o cumprimento do acordo. O
vale do Ruhr, região industrial importante, é ocupado pela França como caução. As tensões
crescem, os grupos políticos de extrema direita começam a se aproveitar da situação,
acusando Weimar de ser uma República de Judeus que governava em nome dos
“criminosos de novembro”, referindo-se à revolução que instala a República em 9 de
Novembro de 1918. Iniciam-se uma série de assassinatos de personalidades políticas e, em
9 de novembro de 1923, um dos derrotados morais e políticos do passado, chamado Adolf
Hitler, tenta um golpe convocando uma “Marcha sobre Berlim”, mas foi detido pela polícia
antes que conseguisse chegar ao Monumento aos Mortos, como havia planejado.
Naquele momento, meio quilo de pão custava 80 bilhões de marcos. Havia 210 mil
desempregados, e a cidade explodia em saques e tumultos realizados por gente esfomeada.
Quando o dólar chegou a 4,2 bilhões de marcos, adotou-se uma reforma monetária. Esta
mesma Berlim, neste mesmo tempo de horror, vivia seu maior momento. Era o centro
administrativo da Alemanha, seu principal mercado capitalista, maior cidade industrial da
Europa, com 900 mil operários. Esses trabalhadores, formais e informais, cruzavam a
cidade todos os dias, a pé, de bicicleta, trem ou metrô, fazendo dela uma metrópole
pulsante que, vista de cima, pareceria um organismo em perfeito funcionamento. Por
dentro, porém, aquilo estava à beira de um colapso, um abismo cuja visão não se poderia
imaginar.
Um dos principais horrores vividos por conta dessas condições foi o antissemitismo.
Grande parte dos judeus chegava em condições miseráveis, eram fáceis de identificar.
Extremamente pobres, vestidos de preto e moradores do Leste da cidade, eram vistos como
negros. Esta parcela significativa de judeus, cerca de um quarto do seu total, passou a ser
alvo de críticas e do desprezo dos adeptos ao nacionalismo de extrema direita, e da
necessidade de preservação da “raça alemã”. Em geral, são refugiados políticos ou
econômicos, vêm da Europa Oriental e tudo o que têm é o nome e a roupa do corpo. Não
assimilaram a cultura, embora tenham migrado atraídos pela orientação liberal da
República, eram vistos como os estraga-prazeres, que vieram trazer a crise e o tifo.
Um delegado de polícia alertou para os perigos de se tratar bem aqueles judeus, porque
eles produziriam grandes perigos para a economia, para a política e para a saúde pública.
Judeus famintos e errantes, ambulantes, dançarinos nus, viciados, desempregados,
proxenetas, burgueses, artistas, todos circulavam em meio a uma cidade em ebulição. Este
estado de coisas é mostrado no livro de Döblin. É da prisão de Tegel, onde hoje funciona
um dos dois aeroportos internacionais de Berlim, que sai o personagem Franz Bieberkopf,
e, no portão, ao deparar-se com a cidade, tem uma crise de pânico e quer voltar para sua
cela, apavorado diante da possibilidade de ser devorado por aquele Moloch. Momentos
depois ele vai estar bêbado, em posição fetal, chorando convulsivamente, no chão da sala
de um bondoso judeu, sendo por este consolado e depois roubado. Esta é a imagem da
identidade contraditória de Berlim.

SONS: ARTE E POLÍTICA, A RENOVAÇÃO DO ROMANTISMO E A RUPTURA BRUSCA

Franz Bieberkopf, o personagem de Berlin Alexanderplatz, após sair da prisão, faz o


esforço inútil para vencer naquele ambiente que sufocava, e, por mais forte que fosse o
homem, não poderia suportar o peso causado pelo ambiente ao redor. O barulho da cidade o
amedronta. Ele quer ser um homem bom, mas as circunstâncias o envolvem sempre em
contratempos. Ele perde um braço por ser submisso e tratar bem quem o maltrata, ainda
assim continua sendo. A máquina, a indústria, o capital, a crise, o crime, tudo oprime e
conduz aquele homem a um caminho instável e confuso, como nas visões de perspectivas
tortuosas do Expressionismo em seu tempo.
Para retratar aquele ambiente completamente diferente da vida no século que se
encerrara, e que exigia sons novos, a música passa a utilizar novos recursos para expressar
aquela angústia do homem comum. Se o romântico Franz Liszt (1811-1886) afirmou, um
século antes, que cada composição deve conter pelo menos um novo acorde, a partir da
década de 1910, o experimentalismo toma conta da música europeia. Por volta de 1908,
Arnold Schönberg, ainda em Viena, começa a compor sem temas ou tonalidades. De Paris,
Debussy passa a fazer uma música análoga ao sonho, com sugestões de cores e
movimentos, associações espontâneas de ideias, descrições (ou sugestões) de imagens.
Uma terceira via talvez possa ser representada pelo russo Stravinsky (que num curto
período, entre 1910 e 1914, viveu nas duas cidades e em Berlim), mais livre e inventivo,
avesso ao engajamento político da arte, mas que, de um jeito ou de outro, acabou fundindo
os dois polos em sua obra e acrescentando nela também o elemento neoclássico. Ou seja,
havia “de tudo” naqueles anos que precederam a Primeira Guerra Mundial.
Divergências também existiam. Boa expressão delas foi a preocupação de Debussy, em
1915, com as influências de Schönberg sobre o jovem compositor russo, referindo-se às
Três Canções da Lírica Japonesa (Stravinsky, 1912), cuja instrumentação e matizes
sugeriam certa admiração pelo Pierrot Lunaire do compositor vienense, escrito em 1912.
Fora isso, a obra não tem nada a ver com Schönberg, mas havia razão na preocupação do
francês, uma vez que estavam em plena Guerra, quando qualquer inclinação pelas formas
germânicas seria, no mínimo, motivo de atenção e cuidado, quando não, protesto.
Mas o que era o chamado “serialismo”, que viria revolucionar a música moderna e abrir
caminhos até então não imaginados? Era uma ideia fixa em Schönberg, e ele tinha
consciência de que estava desenvolvendo uma forma de expressão musical nova. Em 1921,
anunciou a um aluno ter feito uma descoberta que iria garantir a “supremacia da música
alemã por algumas centenas de anos”10. O desejo do compositor era o de que a música
alemã desse mais um passo, e ele buscava um modo que permitisse este novo passo. O
serialismo não era exatamente um sistema, porém um método que fornecia elementos e
sugestões ao compositor, permitindo mais liberdade criativa que a harmonia diatônica.
Algo simples, em que as doze notas da escala cromática são dispostas numa ordem fixa,
que é a série, estando presente em toda a composição e sendo utilizada na geração de
melodias e harmonias. Uma espécie de tema oculto, que não precisa ser apresentado como
tal, mas se estabelece como uma referência básica de ideias à qual se lança mão ao longo da
obra. O serialismo veio dar às experiências atonais de Schönberg (e também Berg, Webern
e outros) uma coerência harmônica. Mesmo nas suas experiências anteriores, embora fosse
intuitiva a escrita atonal, as composições eram baseadas em pequenos grupos de notas que
são dispostas e transpostas de maneiras diversas. Para obter clareza estrutural, os músicos
atonais utilizavam recursos sofisticados de contraponto, de modo que um caminho estava
sendo intuitivamente preparado. O serialismo foi a lei que regulou este sistema. Um truque,
uma saída intuitiva, por assim dizer, para manter uma ordem, simetria e limite a algo tão
livre e inventivo. O traçado complexo da música serial pode ser observado em obras pouco
anteriores, como a de Richard Strauss, e também na escola polifônica holandesa do início
do século XVI e, como lembra Griffiths, até mesmo em Machaut ou Bach, contrariando,
assim, os que dizem ser o serialismo uma música “matemática demais”. De qualquer forma,
para Schönberg, a ordem era “usar a série e em seguida compor como antes”.
Schönberg criou um modo de compor que tornava possível trazer de volta releituras de
estilos antigos de composição, porém de modo crítico e contextualizado, adequado aos
tempos. Sua Suíte para Piano (1920-1923) tem moldes barrocos. Isto, bem lembra Griffiths,
corresponde muito com o neoclassicismo de Stravinsky e Hindemith, embora Schönberg se
opusesse severamente a este estilo, o que é uma ironia. Mas o próprio compositor tinha
clareza sobre isto, como aponta o autor:

“Schönberg não parece ter reconhecido isto. Mantinha-se


intransigente em sua oposição ao neoclassicismo, pois lhe parecia
irresponsável a atitude do compositor que aproveitasse os velhos
materiais e formas sem se preocupar com qualquer motivação
harmônica tradicional, fosse de origem tonal ou serial. Enquanto
ele tentava forjar a continuidade da grande tradição, Stravinsky e
Hindemith limitavam-se, em sua opinião, a revolver o patrimônio
das ideias musicais adquiridas, mais uma vez algo moralmente
indefensável.”11

10
Paul Grifths
11
Op. cit. pp 85-86
Não obstante aquele rigor teórico, a maioria dos compositores daquele tempo estava
decidida a basear sua música na arte popular. Tratava-se de uma motivação política, com a
finalidade de afastar sua criação dos modelos austro-germânicos que representavam o risco
de dominação e eliminação de culturas. Há que se destacar nomes como o de Béla Bártok
na Hungria, Leos Janacek na Tchecoslováquia, Manuel de Falla na Espanha e o próprio
Stravinsky, especialmente no período entre 1914 e 1920, quando este se adaptou às
restrições do seu tempo, reduzindo a execução de grandes orquestras (como em Petrushka,
1911 ou A Sagração da Primavera, 1913) para pequenos grupos itinerantes (como na
História do Soldado, 1918, que pode ser chamada “ópera de bolso”).
Daí nasce também a música neoclássica, do desejo de romper com as fontes austro-
germânicas, em especial o romantismo do século XIX. Stravinsky chegou a afirmar que a
música, por natureza, seria incapaz de expressar qualquer sentimento, estado psicológico ou
fenômeno da natureza, mas “o fenômeno musical nos é dado com a única finalidade de
estabelecer uma ordem nas coisas, inclusive e sobretudo na coordenação entre o homem e o
tempo”12. Sob um olhar superficial, a afirmação pode parecer contraditória ao se compará-
la ao resultado das obras neoclássicas deste compositor. Mas não é. Com um pouco de
atenção e o conhecimento desta afirmação, é possível compreender as interrupções bruscas
em frases mais “sentimentais” para a entrada de massas sonoras súbitas, antirromânticas e
extremamente densas (“Stravinsky tem medo dos sentimentos românticos” ou “das
emoções fortes”, li isso certa vez, provavelmente escrito por um jovem crítico...).
O Neoclassicismo atingiu a França (Francis Poulenc), a Alemanha (Paul Hindemith) e a
Inglaterra (Benjamin Britten) exatamente no período entreguerras. Também influenciou
compositores norte-americanos, como Aaron Copland (1900-1990). Um neoclassicismo
mais “puro” pode ser encontrado em Paul Hindemith (1895-1963) que, como bom alemão,
mergulhou mais fundo e buscou no barroco os seus elementos. É importante notar também
que as preocupações de Hindemith eram mais sociais que políticas. Na Rússia, os principais
seguidores de Stravinsky foram Dmitri Shostakovich (1906-1975) e Serge Prokofiev (1891-
1953). Em comum, todos eles tiveram a mesma tendência neoclássica para o ecletismo,
com algumas doses de ironia. A beleza dos acordes, o colorido orquestral, as releituras do
classicismo e do barroco funcionaram, na verdade, como contraponto à crueldade daqueles
tempos. O risco de extinção das culturas era combatido com novas leituras sobre o folclore,
com a adição do elemento acadêmico à cultura popular. Parece que, de maneira
inconsciente, esses artistas invocavam as formas clássicas estabelecidas para contrapor o
romantismo e combater o Estado opressor que gerava a miséria moral das pessoas.
Durante o período entreguerras, a Europa experimentou uma infinidade de opções de
leitura do seu tempo através da música. Da música de sugestão simbolista de Debussy,
passando pela exacerbação do Romantismo e a estilização do fantástico pelo
Expressionismo e suas variações atonais, dodecafônicas, seriais, pelas manifestações muitas
vezes anárquicas do Futurismo, até o Neoclassicismo despretensioso e ao mesmo tempo
extremamente elaborado, e também as incursões das melodias populares através das
pesquisas de Bartók e outros compositores do Leste, e o jazz americano.
De 1919 a 1939, houve um intercâmbio intenso dos grandes jazzistas norte americanos
com os músicos europeus. Essa troca de experimentalismos, improviso e politização da arte

12
Croniques de Ma Vie, 1935.
acabaram gerando o be-bop no jazz e composições inesquecíveis de artistas como
Stravinsky, Shostakovich, Weill, Spoliansky e muitos outros. Ambos acrescentaram
bastante, um ao outro, explorando cada um a seu modo as novas formas de composição, de
tratamento rítmico e harmônico.
O fim desta relação direta de deu de modo brusco e até mesmo violento, mas que pode
ser “romantizado” através de um fato ocorrido com o pianista e compositor norte americano
Duke Ellington (1899-1974).

Em 1939, Duke e sua banda partem para uma turnê na


Europa. Foi um impacto muito grande, para o público e para ele.
Nos EUA, ele era ofuscado pelas bandas que faziam um jazz mais
comercial, mas na Europa era o preferido. Com a recepção que
tiveram, pela primeira vez na vida aqueles músicos sentiram-se
respeitados. “Me senti aceito como um artista, como cavalheiro,
como um membro da raça humana”, disse o trompetista Rex
Stuart. Em Copenhagen, fãs encheram o quarto do Duke com
flores, como presente pelo seu aniversário de 40 anos. Realmente,
críticos e artistas elevaram a música do Duke a um pedestal junto
com poucos nomes na história, vista por eles não apenas como
nova música, mas uma nova razão para viver, como disse o poeta
Blaise Cendras. Mas durante as viagens dentro da Alemanha,
viram diversas vezes metralhadoras sendo posicionadas em valas.
Em Hamburgo, o trem foi detido por homens uniformizados e
com cara de nenhuma conversa. Impediram os músicos de descer
do trem. O fato é que a “música negra judia”, como era conhecido
o jazz na Alemanha pós-Weimar, havia sido proibida. Voltaram
para Paris, onde se apresentaram. Tocaram num teatro de subsolo,
feito para suportar o bombardeio alemão que já era esperado.
Voltaram para os EUA em maio, assustados. A Guerra começaria
três meses depois.13

Para compreender o espanto causado nos europeus pela música de Duke Ellington, é
preciso concentrar-se no evento promovido por Debussy em 1912, rompendo com o
sistema tonal na busca por caminhos de expressão para o seu tempo. Era isto o que o jazz
buscava, do outro lado do planeta! Uma forma que pudesse expressar a identidade daqueles
tempos, que pudesse fazê-los compreendidos ainda que tudo se passasse como num flash.
Abria-se no mundo um princípio universal entre os músicos de vanguarda, representar cada
povo as opressões que sofriam do seu respectivo Estado. Enquanto os EUA produziam o
jazz e reproduziam a escravidão mesmo após sua abolição, na Europa, Schoenberg,
Stravinsky, Debussy e outros abriam portas para um experimentalismo cada vez mais
radical que, como nos EUA, refletia a alma de um povo confuso, vítima das mudanças, da
incompreensão sobre como se move a máquina deste novo mundo.

13
SILVESTRE, Afonso. Improviso em branco e preto: percepções da política e sociedade norte americana
através do jazz (1860-1960)
A profusão de correntes musicais e explosão criativa em Berlim trouxeram ruídos e
tremores para aquela sociedade, provocando mal entendidos e explosões de violência,
posteriormente institucionalizada. Estava colocada em jogo a moral tradicional daqueles
antigos imorais governantes e seus ressentidos apoiadores no meio do povo. Os
movimentos da arte e da cultura eram uma afronta aos ineptos e ressentidos do passado.
Era, no início, um pequeno rumor, ainda abafado pelos sons dos novos tempos.
Nos cabarés, em meio à gritaria, tocavam-se canções com histórias da Guerra e de
personagens comuns. Ouviam-se hinos como Lilly Marlene, uma história cantada na
Primeira Guerra pelos soldados alemães. Esta personagem continuou sendo adorada pelos
soldados, inclusive na Segunda Guerra; mas também foi cantada pelos aliados nas
retomadas de territórios como forma de humilhação do inimigo. A mesma canção, entoada
em momentos alegres pelos opressores, sendo usada por uns e outros para acompanhar o
esmagamento covarde daquelas populações miseráveis. Marlene é o símbolo do poder
imperialista, é quem todos desejam, de quem todos precisam para se sentir potentes.
Marlene é um fantasma, o fantasma do Imperialismo que seduz os homens, que não
resistem à sua beleza e poder de atração... O que todos procuram nada mais é do que este
objeto, troféu, adereço de ostentação do poder. Moloch.
Também se ouvia nos cabarés Das Lilla Lied, ou “a canção da lavanda”, talvez o
primeiro hino gay da história. Composta em 1920, com letra de Kurt Schwabach, conhecido
dramaturgo da região de Schöneberg em Berlim, e musicada pelo maestro Mischa
Spoliansky, judeu nascido sob o Império Russo, migrado para a Prússia aos 10 anos, após a
morte do pai, e refugiado em Berlim a partir de 1914. O maestro, na época da composição
desta canção, atuava sob o pseudônimo Arno Billing, por conta da perseguição antissemita
e discriminações de alusão machista. A canção da lavanda foi possível graças à liberdade
gerada por políticas públicas direcionadas a minorias durante a República de Weimar. E foi
um dos motivos mais perturbadores a despertar a balbúrdia dos conservadores. A canção
era uma afronta porque se afirmava enquanto panfleto político pelo reconhecimento e
direitos dos homossexuais e afins. “O que você quer? Isto é Cultura”. “Por que o desespero
em nos impor uma moralidade que é dos outros?”. E o refrão repete que “somos diferentes
de quem só ama em sintonia com a moralidade, para quem existe apenas a banalidade...”14.
Em “Alles Schwindel” (1931) (todos trapaceiam), também de Spoliansky, a canção diz
que “mamãe trapaceia, papai trapaceia, e vovó é uma ladra mentirosa”, “a honestidade está
esquecida”, “a vida é uma grande trapaça”, “as lojas enganam os compradores que
enganam as lojas”, “pegue o dinheiro enquanto ele flui”, ou, “se todo mundo engana um
pouco, por que rejeitar um cheque, és louco?”15 São manifestações espontâneas do
desespero em deparar-se consigo mesmo ao observar essas verdades inevitáveis da vida. Ao
final, a canção diz:

14
Tradução livre do autor, a letra completa no original está fartamente disponível na internet.
15
Idem, idem.
Políticos são mágicos que fazem desaparecer fraudes
Os acordos assinados e a propina recebida
Nunca vão alcançar nossos ouvidos nessa vida.

A esquerda trai, a direita não faz nada;


O país quebrou e... adivinha quem paga!
Se tributassem fraudes, a nação estaria saneada.
(...)
Se todo mundo engana alguém,
Então vota em quem rouba pro teu bem!

Alles Schwindel, a canção, é extraída de uma opereta com o mesmo nome, um


espetáculo de bolso, com poucos músicos. Em geral, a música reproduzida nos cabarés
trazia um cunho de ironia e crítica social e política muito forte. No todo, a música
produzida em Berlim retratava de todas as maneiras, sob todos os olhares, as suas
realidades, e as reações que ela produzia iam de um extremo a outro. Dentro ou fora da
Alemanha, aqueles sons repercutiram de maneira avassaladora, marcando e ilustrando um
tempo de muita incerteza, medo e insegurança para a maioria das pessoas. Berlim passa a
ser estudada pelo mundo, artistas e outros pensadores seguem para lá. Mesmo que todos
soubessem dos rumores de que lá não era o paraíso.
Em meio a esta profusão de sons produzidos por jovens artistas, que se adequavam aos
sons do tempo, da cidade, sua dinâmica, o ruído antes quase imperceptível ou muitas vezes
vazio e insustentável, começa a ganhar volume, porque os que o emitem começam a juntar-
se como num feixe crescente. Uma espécie de grunhido, entoado cada vez por mais
pessoas, trazendo um discurso nacionalista, racista, saudoso de velhas práticas que
beneficiaram a poucos por séculos. Os componentes deste coro bizarro, todos os velhos
trapaceiros da política, que, inspirados pelas ideias vindas da Itália, passam a formar a seu
modo seu próprio feixe, um feixe de frágeis alemão. Ecoam brados pelas ruas, declaram
degenerada toda a nova arte produzida e passam a afirmar-se através de antigas canções
nacionalistas, folclóricas, patrióticas, marchas militares, provocando dissonância e
proporcionando uma convivência impossível.
Uma explosão de ódios raciais foi usada para justificar a violência. O velho judeu, que
antes apenas recebia xingamentos nas ruas por ser inconveniente, passou a apanhar após ser
obrigado a limpar os pés de cidadãos alemães. Não apenas se escreviam insultos em
colunas assinadas, mas espalhava-se aos pés de ouvidos calúnias que geravam e
multiplicavam ódio. Rumores que indicavam desdém pela democracia, ojeriza pela estética
revolucionária e uma supervalorização dos símbolos nacionais, além de um desejo de
passado, de uma antiga ordem que vigorou antes da sua desmoralização e causando todo o
seu ressentimento.
Em 27 de fevereiro de 1933, as sirenes dos bombeiros atravessaram a madrugada em
direção ao parlamento, o Reichstag, que ardia em chamas. Naquele momento, num filme de
Luchino Visconti, La Cadutta Degli Dei, uma família de industriais milionários, ao receber
a notícia do atentado, constatava: “tudo o que fizemos foi dar à Alemanha uma democracia
doente, apenas por medo do sindicalismo.” Era tarde. O rumor, aquele grunhido inicial, não
teve a atenção devida enquanto ainda era um desejo. Talvez exatamente por isso não
houvesse o que fazer, por não ser algo concreto, mas apenas um desejo.
IDEIAS: NASCE O NAZI-FASCISMO

A ideia de “purificar” a Alemanha, de promover um retorno ao passado, embora tivesse


sido inicialmente ridicularizada e subestimada, era o desejo de muitos. E, se antes era
apenas uma ideia, intangível, imediatamente converteu-se num terrível coro dissonante e
insuportável que repetia o ódio e o ressentimento. A família do filme de Visconti,
representando todas aquelas que fortaleceram economicamente o nazi-fascismo por medo
das esquerdas, corrobora a ideia de que em momentos de crise os interesses econômicos
estão acima das razões de Estado. Para o capital, nada pode impedi-lo de operar sem
limites, de utilizar-se ao máximo da força de trabalho individual, desvalorizando seus
custos e estimulando o acúmulo entre poucos. Nos momentos de perigo a esta ordem, em
que já se encontram abaladas a democracia, o sistema político, as relações sociais, a
credibilidade das instituições, o fascismo torna-se a via para a manutenção dos desejos do
capital.
A República de Weimar era frágil. Seus governantes carregaram o estigma da derrota
na Guerra, causa imediata da situação de fragilidade vivida. Desde o início, com a
promulgação da Constituição em 1918, surge uma onda saudosista dos tempos do Império,
que crescia com o tempo. O país estava tomado por investidores estrangeiros, grandes
indústrias, mas a Nação devia muito, fora responsabilizada no Tratado de Versalhes (1919)
como causadora da Guerra. Seus produtos internos eram corroídos por uma inflação cruel e
de números elevados a potências assustadoras.
Nos anos da República de Weimar seguiram-se governos que não podiam sustentar-se
diante da crise econômica e social. Crescia muito o rumor conservador, que ganhava força a
cada ato de violência civil, e a cada movimento desses políticos no Parlamento. Um dos
rumores da discórdia espalhado pelos conservadores era sobre a razão da derrota na Guerra.
Não teriam sido as falhas militares, mas a Revolução promovida pelos comunistas. Entre
esses, os mais à esquerda, desejavam a abolição de um governo capitalista e a implantação
de uma Rätterebublik, uma república de conselhos, outros queriam criar uma república
soviética pangermânica. Os sindicatos, cada vez mais sob as capas do capitalismo, a
corrupção sem freios. Partidos criavam grupos paramilitares que cometiam assassinatos
políticos e outros favores. A instabilidade presente, a insustentabilidade dos sucessivos
governos, o medo e o ódio crescente no meio do povo, grande parte desempregado.
Uma publicação citada aqui anteriormente, o Deutsche Zeitung,16 como todas elas,
empregavam críticos que eram artistas fracassados. No caso da seção de música deste
jornal, Paul Zschorlich, o colunista, teve seus textos sobre a nova música como guia para a
formulação da “política nazista para a música”. O ódio disseminado pelo colunista contra a
ópera serial deAlban Berg, Wozzeck, colocou, em 1925, holofotes no ódio presente entre a
direita. Desta mesma onda de ataques também foi alvo Schönberg, ambos acusados de
criminosos da composição musical. A autoridade desses “críticos” era concedida pelos
partidos aos quais pertenciam, e sua incapacidade para estar, como músicos, à altura
daquela Berlim, era anulada por certificações oficiais conseguidas através das influências,
infiltrações e das ramificações desses grupos políticos.

16
Op. cit.
O teatro também sofreu perseguições. Não agradavam à extrema direita o trabalho de
Leopold Jessner, socialdemocrata e com cargo no governo, com suas montagens de obras
clássicas sob um olhar do seu tempo, tal como Otelo usando um capacete de motoqueiro.
Para o diretor, os tempos não permitiam mais que os clássicos fossem representados como
antes, era preciso encontrar neles as referências com a realidade presente. Assim como
Jessner, Max Reinhardt também foi uma referência importante do teatro da época. Seus
efeitos de iluminação, a forma de representar dos atores, suas referências nos quadros do
Renascimento e do Barroco, tudo isto influenciou o cinema Expressionista alemão,
principalmente Paul Wegener e Fritz Lang. O mesmo cinema que foi um dos mais
importantes críticos do nazi-fascismo.
A música, o teatro e o cinema estavam intimamente ligados, esses artistas circulavam
nos meios, trabalhavam juntos, discutiam estética e política. Estes produtos eram bastante
consumidos pela alta sociedade alemã, que experimentou certa estabilidade econômica
entre 1924 e 1929 e ajudou a promover a arte inovadora neste período. Esta alta sociedade
se dividia em dois grupos, de um lado o antigo métier ligado à corte imperial, os
conservadores, ainda com alguma influência, e de outro os novos detentores do poder, os
republicanos. Entre esses dois grupos, o mundo dos negócios e das altas finanças, aberto a
conversar com todos.
Ainda assim, em 1927, em Berlim, dois mil artistas não têm trabalho e vivem da ajuda
do Município aos mais necessitados. Entre janeiro de 1929 e setembro e 1930, o número de
desempregados na cidade passa de 220 mil para 350 mil, chegando a 650 mil dois anos
depois. O impacto da quebra da bolsa de valores nos Estados Unidos em 29 de outubro de
1929 foi sentido na Alemanha como uma ferida em cima de outra ferida. Mais falências,
mais desemprego, bancos em bancarrota e o colapso do sistema financeiro. Diante deste
caos, a extrema-direita ocupava os espaços com sua propaganda. Utilizava-se dos jornais
para atacar o governo, a quem culpavam da situação econômica, e culpavam os comunistas,
os artistas degenerados, estrangeiros – principalmente judeus.
Em dezembro de 1930, a exibição do filme pacifista Nada de Novo no Front (Lewis
Millestone, EUA, 1930), adaptação do romance do alemão Erich Maria Remarque para o
cinema, provoca manifestações nazistas e tumulto. O setor de extrema-direita do
Parlamento, com destaque para o partido nacional-socialista, pressiona o governo
prussiano, que proíbe as exibições. Embora não tivessem tanto poder, a maioria pertencia
aos socialdemocratas e aos comunistas, os nazistas conseguiam pressionar através do apelo
populista pela volta da moralidade e pela reconstrução de uma Alemanha grandiosa como
fora no passado. Porém, Berlim era tradicionalmente operária, com tendências comunistas,
e tinha criado organizações com ajuda da República, o que ajudou, portanto, à classe
fortalecer-se. Isto despertou em Goebbels, uma vez ministro em 1933, o desejo de
promover uma limpeza na cidade. Mas esta conquista, esta “limpeza”, começou antes, a
partir dos jornais financiados pelo partido. A violência verbal rotula qualquer pessoa com
mínimas inclinações sociais como “judeu” ou “bolchevique”, e criam o medo de uma dita
“ditadura bolchevique”.
Em 1931, Kurt Weil e Bertold Brecht estreiam a Ópera dos Três Vinténs (Die
Dreigroschenoper), feita para os pobres e miseráveis. O musical inicia-se com um aviso de
que a ópera a ser apresentada foi “planejada de forma tão pomposa como só um mendigo
poderia sonhar, e por ela ser tão barata a ponto de mendigos poderem pagar, ela se chama A
Ópera dos Três Vinténs17". O compositor e o dramaturgo foram violentamente atacados, e a
obra classificada como nociva ao sangue alemão. A arte passa a servir de arma contra ela
mesma. Degenerada, assim era classificada toda manifestação que não estivesse de acordo
com o famigerado discurso proferido em 1933 por Joseph Goebbels, arremedado em 2020
por um secretário de cultura brasileiro, demonstrando estar correta a afirmação de Brecht,
de que “a cadela do fascismo está sempre no cio.”
Os nazistas ostentavam um discurso que tirava vantagem da situação de emergência
econômica, culpavam os democratas pela situação e prometiam romper com o Tratado de
Versalhes, fortalecer a economia, assegurar empregos, dar oportunidades aos pequenos e,
acima de tudo, exterminar judeus, comunistas e artistas degenerados. Não é o fascismo que
destrói a democracia. Ele surge quando ela está abalada politicamente, economicamente,
moralmente. É uma ferramenta extrema, com a qual topa jogar o capital.
No dia seguinte ao incêndio do Reichstag, o parlamentar Adolf Hitler insiste com o
presidente Hindenburg que aprove o decreto emergencial do incêndio. Este ato suspendeu
direitos e permitiu a realização de prisões sem mandato. Foi uma caça generalizada e
institucionalizada, no mesmo ano em que o parlamentar seria nomeado Chanceler. Moloch
sussurrando nos ouvidos dos proprietários dos meios de produção na Europa. Um assédio
tentador, um pecado irresistível a mostrar a fragilidade da democracia diante da corrupção
do Estado pelo capital e vice-versa. Cento e trinta anos depois da Revolução Francesa de
1789, numa reunião, Mussolini prometeu ao grande capital uma Itália livre de direitos
trabalhistas e sindicais. O fascismo nasceu do apoio de interesses econômicos contra o
socialismo, o sindicalismo, os agricultores. O nome, fascio, um feixe de frágeis e uma
oferta irrecusável a grandes investidores. Era o disfarce de Moloch, que devoraria a todos.
Em pouco tempo o fascismo italiano e o nazi-fascismo alemão obtiveram apoio dos
grandes industriais em toda a Europa. Não é irrelevante lembrar que alguns deles eram
semitas. Passaram a admirar o fascismo porque a concentração de capital é sempre vendida
como desenvolvimento. O fascismo é uma tentação. O canto de Moloch, que seduziu até
mesmo Winston Churchill, primeiro-ministro inglês, que posteriormente viria a combater o
nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial. Porém, em 1936, elogiou Mussolini e Hitler.
Sobre o primeiro, disse que, se fosse italiano, estaria envolvido de coração na sua luta,
contra os bestiais apetites e paixões do leninismo. Sobre o segundo, afirmou que seu livro
Mein Kampf não poderia ser lido sem admiração, pela coragem, perseverança e força vital
que permitiram a Hitler desafiar qualquer um que atravessasse seu caminho. O fascismo
obteve poder oferecendo poder ao grande capital. A lição, todos a têm de memória, ou seria
mais adequado dizer de amnésia. A expressão de medo no rosto dos personagens do filme
de Visconti mostra o momento em que os capitalistas percebem tudo ter fugido ao controle,
que o poder dado ao Führer multiplicara-se a dimensões perigosíssimas.

17
Do Libreto de “Die Dreigroschenoper”, de Kurt Weill e Bertold Brecht.
Neste momento, explodem os acordes dramáticos e “originalmente alemães” de Richard
Wagner (1813-1883). O Terceiro Reich apodera-se dos dramas musicais grandiosos, da
complexidade das texturas, dos temas que remetem ao período clássico e algumas vezes de
cunho antissemita. Este retorno ao passado romântico ofusca os sons da modernidade
encantadora de Berlim, como a sombra negra da águia teutônica cobre paulatinamente toda
a Alemanha, na intenção de torna-la uma nação homogênea, sob uma nova ordem baseada
no ódio, no patriotismo e numa dita moralidade.
Os rumores dos excessos deste governo não chegavam aos ouvidos do Poder Judiciário.
Nas ruas, os pedidos de socorro das minorias espancadas por civis eram respondidos pela
polícia com mais pancadas. A democracia fora destruída na Alemanha pelo nazi-fascismo?
Mas o povo nunca governou, nem mesmo na República de Weimar, derrubada por um
acordo do partido nacional-socialista com o então Chanceler Hindemburg, que defendia
abertamente os militares. Este nomeia Hitler (que nos anos de 1920 já havia sido preso por
tentativa de golpe de Estado) Chanceler. Um acordo nada bem-intencionado, menos ainda
lícito do ponto de vista republicano e constitucional. Este partido convenceu a todos de que
um estado socialista não poderia prosperar porque o povo não era capaz de caminhar sem
um líder. Era o argumento que legitimava os ataques à jovem Constituição, culminando
com a nomeação do novo Chanceler. O povo, mesmo, sequer votou, embora tivesse
demonstrado apoio massivo. O fascismo ascende fácil quando a formalidade não dá conta
dos seus excessos, das suas consequências.
Muitos dos compositores aqui citados tiveram que se exilar, como Paul Hindemith, Kurt
Weill e outros, partindo para os Estados Unidos e conseguindo lá estabilidade em suas
carreiras. Também foram para os EUA o húngaro Bela Bartók e o austríaco Arnold
Schönberg, mas que não tiveram a mesma sorte. Tanto por terem origem judaica quanto por
produzirem uma obra “degenerada” aos olhos da nova ordem, esses músicos tiveram que
abandonar seu ambiente. Outros permaneceram e acabaram morrendo em campos de
concentração.
Em 1899, Schönberg escreveu Verklärte Nacht, a noite transfigurada. A música é uma
paisagem sonora que descreve uma floresta sombria onde conversa um casal. A conversa é
sobre o perdão, e o compositor, na época, afirmou desejar apenas representar musicalmente
a natureza e os sentimentos humanos. Filho de Brahms e Wagner, explorou de maneira
refinada os timbres através das possibilidades dos instrumentos, criando uma atmosfera
sombria e repleta de cores assustadoras. Esta genialidade despertou em Viena o ódio àquele
jovem judeu de etnia, católico de religião maternal e protestante convertido. Não obstante o
espanto causado pelas suas incursões na atonalidade e no desenvolvimento do Serialismo, a
fama não foi suficiente para mantê-lo naquela Viena conservadora. Partiu para Berlim anos
depois, de onde teve que sair pelos mesmos motivos.
A ordem populista do discurso do novo governo após o frágil período de democracia
conquistou multidões, com seu líder mostrando orgulho em dizer que não fora a
intelectualidade que o apoiara nos tempos mais difíceis, quando passava fome, mas sim o
povo humilde, trabalhadores e camponeses. Pura redundância, fala obtusa e desnecessária
por ele estar no século XX, e, portanto, com quem mais um político como ele poderia
contar?
Aos desavisados, o que se ouve é promissor, encantador, atraente. É a tentação daquele
que possui ressentimento e frustração, diante da possibilidade de tornar-se algo mais.
Tornar-se mais do que se é pode ser algo perigoso. Neste momento, encarna aqui uma
característica que faz do Fascismo original algo além da política. Ele torna-se um modo de
ver o mundo. Ele nasce da necessidade de justificar uma posição, sendo esta contrária a
qualquer ideia ou conceito racional. Através da força e da mentira ele se impõe sobre a
racionalidade. Seja a força física, seja a grosseria do capital que destrói a memória e as
individualidades, seja a força da pressão sobre a população usando o medo e o ódio. Olhar
por uma greta e ter a certeza de que o campo visto é a totalidade.
Praticamente toda a Alemanha estendeu os braços em gesto de apoio ao Terceiro Reino.
A tentação das almas simples em verem-se exaltadas, a legitimação do precário, a
desqualificação da técnica, da ciência, da arte e da história. Os comícios eram grandes
espetáculos com a finalidade de intimidar e transformar as pessoas simples em animais
brutos que se sentiam heróis ou deuses. Golpeiam os comunistas, seguem golpeando
socialdemocratas, líderes sindicais, e todos os que ousassem pensar diferente. E os judeus,
ah, principalmente os judeus, mas não somente eles!
“Os alemães foram chamados para dominar o mundo”, “a maioria dos russos deve
morrer e os que sobreviverem devem ficar analfabetos”, “eslavos são uma raça inata de
escravos”; “deverei levar grilhões à Ucrânia e a todos os povos coloniais”; “árabes são
macacos e os italianos volúveis”. O ódio aos povos do Leste também estava contido nas
falas do líder. Estas eram o seu forte. Diferente do seu fascista original, o Mussolini, que
era mais forte, mais cínico e desinibido. Mas na Alemanha, berço do pragmatismo, tudo o
que precisou foi de um gesto. Este se reproduziu em outros, políticos, alguns golpistas,
outros meramente hábeis, e uns de séria gravidade, que era a expressão de ter os direitos
sobre os corpos, de deixar viver ou fazer morrer. O fascismo amedrontava as pessoas. A
discordância gerava o medo, o pavor, escondidos por uma admiração doentia.
Assim, chegariam ao poder gente obtusa e presunçosa, incapacitadas técnica, moral ou
cognitivamente. Fariam qualquer coisa para converter o homem num bruto inculto e
arrogante. Enquanto se queimavam Thomas e Heinrich Mann, Voltaire, Rolland, London,
Heine, Remarque, Brecht, Mayakovski, Tolstoi e outros, Goebbels discursava em
universidades sobre o triunfo da nova Alemanha, de uma arte que “será heroica, de um
romantismo ferrenho, objetiva e sem sentimentalismos, nacional com um grande pathos e,
ao mesmo tempo, igualmente obrigatória e vinculante, ou não será nada.” Ou seja,
enquanto o homem comum, poderoso e sem técnica fala em tom ameaçador, o pensamento
humano vai sendo queimado. Pushkin por ser eslavo de sangue negroide. Tchekov e
Einstein tinham crânios incorretos, “inferiores”.
O fascismo está no coração das pessoas. Crê-se melhor que os outros só por ser alemão.
Escritores medíocres viram celebridades, assistem Goebbels, dizer-lhes o que escrever. Os
gestos revelam intenções muito claras de dissimular. Hitler tinha sempre uma mão cobrindo
o baixo-ventre. Este gesto de quem esconde foi marca de uso comum entre os adeptos do
nazismo. Este e o da mão estendida. Enquanto a mão direita mostra a sua palma, a esquerda
oculta o sexo. Hitler era hipócrita. Já seu par italiano, o Mussolini, era cínico. Não escondia
nada, gesticulava excessivamente, ria com ar de desprezo, divulgava imagens reificadas
com desafetos apagados. Ambos impiedosos e destemidos, desprezavam a inteligência e
arregimentavam massas de seguidores, desejadores do fácil e do mau-contado.
Este ambiente de mediocridade transformou Berlim num lugar cada vez mais obscuro e
triste. A sombra da águia escureceu os juízos, os rumores haviam se tornado coros
dissonantes e perturbadores. A Alemanha agora é um lugar triste, onde reina o medo e o
ódio. Hindemith, Schönberg e Weill haviam sido substituídos por Bruckner, Wagner e
Bach, que voltaram a ganhar destaque, celebrando um passado não mais tão recente, sequer
lembrado pelos mais jovens.
Esta sombra sobre o desenvolvimento da cultura e o coro dissonante e tenebroso
duraram até o final da Segunda Guerra Mundial, com a rendição dos alemães aos
comunistas. Berlim estava destruída, suas construções, suas pessoas e suas almas. Diferente
da Guerra anterior, ocorrida em trincheiras distantes, o conflito causado pelo pensamento
dissonante do fascismo trouxe o horror para dentro das grandes cidades europeias. Um
horror causado pelo desejo de retorno a um passado esquecido, e que não era promissor
como parecia, como se insinuava.
O fascismo sempre foi derrotado. Na Inglaterra, desde 1936, ele permanece calado.
Uma passeata com 2 mil fascistas, com proteção policial, após as recentes declarações de
Winston Churchill elogiando Mussolini e Hitler, prometia ser um marco para a ascensão
daquele pensamento na Ilha. Porém, 100 mil sindicalistas esperaram num ponto do percurso
e promoveram um dos confrontos mais sangrentos da história de Londres. Desde então, o
fascismo calou-se na Grã-Bretanha. Mas é preciso lembrar as palavras de Bertold Brecht,
de que o fascismo é uma cadela que está sempre no cio.
Mesmo derrotado, ele sempre está à espreita. Aproveita-se das crises econômicas, das
instabilidades políticas, dos lapsos da memória, da legitimidade dos discursos rasos e
obtusos. Em 2003, numa conversa com adolescentes do ensino médio em Oranienburg,
cidade próxima a Berlim que abriga um dos primeiros campos de extermínio antes da
Guerra, alguns se mostraram preocupados com o desconhecimento da maioria dos seus
colegas sobre a história daquele lugar. Percebi que os que tocavam no assunto
incomodavam, eram inconvenientes. A postura mais geral entre os jovens era, naquele
momento, a de não querer saber. “Temos coisas mais importantes a nos preocupar do que
com o passado”, disse um deles, a quem foi perguntado que coisas seriam essas. A resposta:
“... temos assuntos atuais, como a invasão dos imigrantes turcos e a permissividade do
governo, que atrapalha o desenvolvimento da economia...” Mesmo derrotado, o fascismo se
ocupa dos novos corpos, dos jovens corações e mentes que amanhã estarão conduzindo a
política, a economia, o mercado.
REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor W., et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril


Cultural, 1983.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – magia e técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense, 1994
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. S. Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
EISNER, Lotte. A tela demoníaca.
GRIFFITHS, Paul. A música moderna: uma história concisa de Debussy
a Boulez.
JARMAN, Douglas. Alban Berg Wozzeck. Cambridge Opera Handbooks,
University of Cambridge, New York, 1989.
RICHARD, Lionel (org). Berlim, 1919-1933: a encarnação extrema da
modernidade.
SILVESTRE, Afonso. Improviso em branco e preto: percepções da
política e sociedade norte americana através do jazz (1860-1960).
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. S. Paulo: Companhia das Letras,
2000.
STRAVINSKY, Igor. Poética musical em seis lições. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1996.

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