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1 Clarice Lispector é uma bruxa que encanta.

E o leitor
2 nunca mais deixará de ser seu
3 No centenário da autora de "A Hora da Estrela", as professoras da
4 USP Nádia Batella Gotlib e Yudith Rosembaum comentam a obra
5 da escritora
6
7
8 Clarice
9 veio de um mistério, partiu para outro.
10 Ficamos sem saber a essência do mistério.
11 Ou o mistério não era essencial.
12 Essencial era Clarice viajando nele.
13 08/12/2020
14 Texto: Leila Kiyomura
15 Diagramação: Cleber Siquette
16
17 Assim Carlos Drummond de Andrade definiu Clarice Lispector (1920-1977). E tantos outros escritores e
18 pesquisadores vêm tentando compreender o seu mistério. No seu centenário, completado nesta quinta-
19 feira, dia 10, a escritora continua indefinível. Quem começa a ler Clarice Lispector vai passar a vida com
20 seus livros nas mãos. “Será fisgado”, como define a professora Nádia Battella Gotlib, da Faculdade de
21 Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, pioneira nas pesquisas sobre a vida e obra da
22 escritora. “Comecei a ler Clarice quando era estudante de Letras na Universidade de Brasília (UnB), nos
23 anos 1960. Ganhei de presente o livro Laços de Família de um professor e esse livro me intrigou. Fui
24 fisgada.”
25 A leitora Nádia passou a pesquisar, estudar e escrever. Publicou Clarice, Uma Vida Que se Conta, da
26 Editora Ática, em 1995. E a sua sexta edição foi revisada e aumentada pela Editora da USP (Edusp) em
27 2009. Um ano antes, também pela Editora da USP, lançou Clarice Fotobiografia.
28 A professora Nádia vai com Clarice Lispector mundo afora através de artigos, seminários e, desde
29 março, sob a forma de lives e webnários, apresentados em instituições no Brasil e no exterior, da
30 Inglaterra à Ucrânia. “O centenário acontece, infelizmente, em meio à pandemia. E, de fato, num
31 momento de descaso pelo setor cultural. Por outro lado, existe o meio digital, que viabiliza a
32 comunicação. Já participei, até o momento, em eventos de dez países.”
33 Clarice ou Chaya Pinkhasovna Lispector, que nasceu em uma aldeia na atual Ucrânia, é uma das
34 escritoras brasileiras mais lidas no exterior. Tem cerca de 200 traduções em dez idiomas. Há dois anos A
35 Hora da Estrela foi traduzido em árabe pelo pesquisador egípcio Maged ElGebaly.
36 As razões de a obra de Clarice ganhar o mundo são muitas, entre elas a capacidade de despertar o leitor
37 para si e para o outro. “Ler Clarice é sempre bom, em tempo de confinamento ou não. No entanto, nos
38 dias de hoje, sua literatura assume ainda maior importância, na medida em que ela se exercita – e nos
39 leva junto, através da sua linguagem – a construir e aperfeiçoar o respeito pelo outro, incluindo aí as
40 minorias, os marginalizados, os ‘humilhados e ofendidos’, título aliás do romance de Dostoiévski
41 mencionado em A Hora da Estrela”, comenta a professora Nádia. “Denuncia tanto a violência policial,
42 como na crônica Mineirinho, quanto a fome, em As Crianças Chatas. E valoriza os seres vivos, homens,
43 plantas e bichos. Afinal, não seria essa espécie de comunhão com a natureza o que a personagem Ana,
44 no conto Amor, experimenta quando se encontra no Jardim Botânico do Rio de Janeiro? Esse repertório
45 assume importância vital no momento em que florestas estão sendo queimadas, animais estão sendo
46 mortos pela ação do fogo e milhões de brasileiros passam pelo tormento do desemprego.”
47 “O repertório de Clarice assume ‘vital’ importância no momento em que florestas estão sendo
48 queimadas, animais estão sendo mortos pela ação do fogo e milhões de brasileiros passam pelo
49 tormento do desemprego…”
50 Na pesquisa para escrever Clarice, Uma Vida Que se Conta, Nádia examinou textos de gêneros
51 narrativos diversos. “Ela escreveu crônicas, contos, romances, literatura infantil, páginas femininas,
52 cerca de 450. E também cartas, além de um livro de lendas brasileiras, uma conferência, uma peça de
53 teatro, um artigo sobre tradução e entrevistas, enquanto entrevistadora, para periódicos cariocas.”
54 Nesse universo, no entanto, há temas recorrentes. “Um deles é a própria Clarice, que menciona ‘a
55 procura da coisa’. De fato, personagens, sobretudo mulheres, em certos momentos são levadas pela
56 linguagem a um território outro, que não é o da lógica, mas o que ela chama de ‘atrás do pensamento’,
57 em que experiências singulares e complexas afloram, de encantamento e nojo, paradoxalmente
58 envolvidas num mesmo halo de vida e morte, como se aí se concentrasse o sentido da condição
59 humana, um paraíso infernal ou um inferno paradisíaco, o ‘âmago da coisa’, matéria viva pulsando.”
60 A professora destaca A Hora da Estrela. “O romance foi publicado antes de sua morte e contou com a
61 colaboração de Olga Borelli, que foi sua secretária nos últimos sete anos de vida de Clarice. Olga
62 assumiu essa função porque Clarice passou a ter dificuldades de escrever por causa da mão deformada
63 devido a um incêndio ocorrido em seu apartamento, em 1966. Essa coincidência entre o período da
64 escrita – antes de ficar doente – e a data de sua morte cria mesmo uma impressão de que se trata de
65 uma ‘obra de agonia'”, analisa. “Ao longo daquele ano ainda escreveu fragmentos que seriam
66 postumamente reunidos por Olga Borelli e publicados em 1978, com o título de Um Sopro de Vida.
67 “Quanto à relação de semelhança entre a personagem Macabéa e Clarice, poderia afirmar que há
68 coincidências: são duas nordestinas que passaram fome e enfrentaram dificuldades na vida. As duas
69 vieram do Nordeste para o Rio de Janeiro e trazem características que sugerem associações com os
70 judeus: uma, pelo nome, Macabéa, que remete aos macabeus; outra, pela sua própria ascendência
71 judaica e o exílio da família, que veio da Ucrânia para o Brasil para escapar dos pogroms e assim garantir
72 a sobrevivência.”
73 “A literatura de Clarice provoca, instiga, desmonta o que tende a se cristalizar. Ela pede um leitor aberto
74 às inovações da linguagem e às rupturas com a lógica.”

75 Ler Clarice na adolescência e se dedicar a decifrar sua vida e obra é igualmente a história da professora
76 Yudith Rosembaum, também da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Eu queria
77 investigar a escritora que me arrebatou aos 16 anos com o conto Amor, do qual nunca me distanciei. É
78 um texto matricial da visão de Clarice sobre o modo como somos enlaçados pelas redes de afetos e
79 papéis”, explica. “Desde então, são quase 30 anos de convívio com a autora e ainda há muito a
80 descobrir.”
81 A professora, que escreveu Metamorfoses do Mal: Uma Leitura de Clarice Lispector, publicado em 1999
82 e relançado pela Edusp em 2006, e Clarice Lispector, em 2002, pela Publifolha, já está se preparando
83 para lançar o terceiro livro.
84 O trabalho de Nádia e Yudith é referência para pesquisadores da obra clariciana do País e do exterior.
85 “Não tenho dúvida de que os textos de Clarice, como os de grandes autores como Machado de Assis,
86 Guimarães Rosa, entre outros, deslocam seus leitores de lugares conhecidos e habituais, problematizam
87 o que o sujeito sabe de si e do mundo. E despertam, sim, reflexões novas”, destaca Yudith. “A literatura
88 de Clarice provoca, instiga, desmonta o que tende a se cristalizar. Ela pede um leitor aberto às inovações
89 da linguagem e às rupturas com a lógica, com as crenças e os valores estabelecidos como ‘naturais’.”
90 Apesar de fisgar o leitor, a professora avisa: “Nem sempre é fácil ler Clarice pelo espanto que temos com
91 a sua liberdade de criação e de pensamento. Para seus leitores, sugiro que topem a atitude desarmada
92 que a autora propõe, como mostrou José Miguel Wisnik em seu ensaio Diagramas para uma Trilogia de
93 Clarice, na Revista Letras, da Universidade Federal do Paraná. Ou seja, uma entrega em que o contato
94 leitor-obra não dependa de inserir Clarice em grandes sistemas literários, mas de ouvir as palavras em
95 suas ressonâncias imprevisíveis e desconcertantes.”
96 Para quem deseja se iniciar como leitor, a professora sugere: “Os contos de Laços de Família, 1960,
97 podem ser uma boa entrada, já que mantêm, de certa forma, a estrutura mais conhecida do gênero
98 conto.”
99 Quanto à temática dos contos, Yudith orienta: “Eles condensam a realidade da mulher em meio às
100 contradições do matrimônio, da maternidade e da família, sob o patriarcado dos anos 40 e 50 no Brasil,
101 mas já apontam em sua latência a força desagregadora dos laços, o encontro com algo da ordem do
102 inominável, e que explodirá no livro seguinte, A Legião Estrangeira, de 1964, e sobretudo no romance A
103 Paixão Segundo G.H., do mesmo ano, segundo Wisnik no ensaio citado.”
104 “O processo de alienação social e pessoal de Macabéa ressoa o de muitos. Ela é um nós, um coletivo
105 nacional.”

106 Yudith também destaca os múltiplos e densos temas da obra de Clarice que, segundo ela, parecem girar
107 em torno de um mesmo núcleo recorrente. “É como um ímã que atrai para si tudo ao redor. Penso em
108 duas preocupações centrais: os dilemas da própria escrita certamente seriam uma face desse núcleo,
109 fazendo a obra se dobrar sobre si mesma em funda reflexão sobre o ato de escrever, que seria uma
110 ‘maldição’ e uma ‘salvação’, nas palavras da autora. A procura da ‘Coisa’ é outro polo de reiteração, que
111 atravessa a obra do início ao fim e talvez seja seu ponto mais complexo. Implica dar forma ao informe,
112 empreender uma busca de algo que não se deixa capturar pela linguagem, mas impele narradores e
113 personagens a decifrar o que pulsa na tal ‘Coisa’.
114 Filosofia, psicanálise, antropologia, sociologia e outros saberes podem ser chamados e lançar luz sobre o
115 que seria a Coisa clariciana, mas suponho que ainda assim ela se rebelará e se manterá intacta em sua
116 incognoscibilidade…”
117 A professora aponta outros temas atraídos pela dupla face do ímã resistentes às explicações. “São
118 poderosos motores dos enredos de Clarice: dialética entre civilização e barbárie, colocando em jogo a
119 domesticação do selvagem interno e externo ao eu; o feminino, importante lembrar que poucos autores
120 souberam se aproximar de forma tão sensível da mulher e seu enigma; a alteridade como
121 interdependente da constituição do eu; o desamparo inerente ao processo de subjetivação e o
122 consequente desejo de pertencimento; o sujeito cindido e conflituoso que se desconhece, como quer a
123 psicanálise; o encontro estranhado com o estrangeiro de si e do outro, seja ele bicho, gente ou objeto,
124 ressaltando que este aspecto da obra ganha espaço com personagens alheios à hegemonia dominante,
125 excluídos do convívio social e por isso geradores de incômodo e mal-estar: loucos, desarrazoados,
126 empregadas domésticas, mendigos, marginais à lei etc.; as formas de violência intrassubjetiva e também
127 das relações interpessoais.”
128 A lista de Yudith é resultado do apuro de sua observação em detalhes. Continua: “Há o foco nas
129 insignificâncias, nos detalhes miúdos da existência, na matéria orgânica insossa e neutra, para aí
130 surpreender uma força imprevista. Concluo a lista, por falta de espaço, com o tema dos rituais de
131 passagem e iniciação da infância à puberdade e desta à vida adulta, em que crianças e adolescentes
132 enfrentam as intensidades do crescimento. Certamente ainda lembrarei de outros temas”.
133 Quanto às personagens, a pesquisadora destaca G.H. e Macabéa. “Talvez sejam as mais marcantes,
134 embora cada leitor eleja a sua. Cito G.H. pela vertiginosa experiência de encontro com a sua outra de
135 classe social, Janair, e a partir dela com seu ‘outro’ de espécie, a barata e suas entranhas. Creio ser A
136 Paixão Segundo G.H. um dos livros mais radicais da literatura brasileira.”
137
138 Em A Hora da Estrela, Macabéa atrai o leitor pela sua delicadeza e fragilidade. “É uma mulher na outra
139 ponta social da pobreza, estampa a precariedade nacional e mostra, paradoxalmente, no verso da face
140 massificada e oprimida, uma personalidade sensível, aderida ao mundo, sem as cascas defensivas de
141 G.H”, compara Yudith. “O processo de alienação social e pessoal de Macabéa ressoa o de muitos. Ela é
142 um nós, um coletivo nacional. O seu inatingível ‘delicado essencial’, impenetrável pelo narrador Rodrigo
143 S.M., tem um alcance humano maior, que escapa ao drama do retirante. Ela parece ser alguém que
144 preserva um estado anterior à queda bíblica, desconhecendo os males do mundo.”
145 Segundo explica a professora, todos nós, com mais ou menos recursos vivemos esse mesmo exílio “na
146 própria terra” e também fantasiamos um lugar sem carências. “Mas, lembremos que Macabéa, no seu
147 vazio e na sua inocência, faz perguntas sobre o ser e a vida que o ‘namorado’ Olímpico, tão seguro e tão
148 ambicioso, não consegue responder. Quem saberia?”
149 O desejo de ser livre foi sempre lembrado por Clarice Lispector. Será que ela realmente viveu a
150 liberdade além dos livros? Yudith responde: “Difícil dizer… Ela ansiava algo sem nome e talvez nem a
151 liberdade a satisfizesse. Aliás, ser livre não dispensa a angústia. Ao contrário. Segundo os
152 existencialistas, por exemplo, e há muito dessa visão na obra de Clarice, a angústia é inerente à
153 liberdade humana. Para Clarice, como ela diz na crônica O artista perfeito, arte não é liberdade, é
154 libertação, assim como não é inocência e sim ‘tornar-se inocente’. Portanto, é um processo sem fim,
155 uma aprendizagem que nunca se fixa, sendo fluxo contínuo de recuos e avanços, incorporação das
156 experiências sem promessa de progressão. Ainda assim, acho que a personalidade intensa e inquieta de
157 Clarice deveria se sentir livre em alguns momentos e aprisionada em outros, alternando estados sem
158 repouso”. Uma especulação que só quem conviveu com ela pode atestar. “Quanto à obra, acredito na
159 escritora se debatendo para ser livre das molduras de gêneros, das regras da gramática, dos enquadres
160 da linguagem e das ideologias limitadoras. Sua obra atesta o êxito desse movimento, ainda que, imagino
161 eu, possa ter sido um tormento experimentar a liberdade. Se a autora expõe em sua obra o êxtase e o
162 inferno das personagens ao se verem livres das capas da ilusão, o mesmo poderia ocorrer com a pessoa
163 Clarice. Talvez a grande revelação da obra clariciana esteja na frase de sua primeira protagonista, Joana,
164 de Perto do Coração Selvagem, livro de estreia de 1943: ‘Tudo é um’. A percepção do amálgama de que
165 todos somos feitos e o fio que nos une com o mundo deve ser uma experiência extasiante, mas difícil de
166 sustentar na nossa ‘alma diária’, nos termos claricianos.”
167 https://jornal.usp.br/cultura/clarice-lispector-e-uma-bruxa-que-encanta-e-o-leitor-nunca-
168 mais-deixara-de-ser-seu/

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