Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO: Doze lendas Brasileiras é a obra infantil de Clarice Lispector menos estudada e
analisada por críticos e pesquisadores. O seu contexto de produção: doze textos para compor
um calendário literário de 1977, encomendado por uma fábrica de brinquedos – pode ter um
papel proeminente nessa lacuna. O objetivo deste artigo é analisar a composição dos contos
do livro citado, verificando como mitos e lendas do folclore são atualizados e como dialogam
com a oralidade e a tradição. Dessa forma, analisamos cinco histórias que recontam e
apresentam personagens clássicos do folclore brasileiro. Mesmo sendo uma obra sob
encomenda, nos contos é possível perceber características da escrita magistral de Clarice
Lispector, além disso, há a possibilidade dessa obra ser uma porta de entrada da criança para
a riqueza do folclore e dos mitos brasileiros. Como aporte teórico utilizamos Câmara Cascudo
(1988; 1998; 2015), Gotilb (1995), Âreas (1997), Guimarães (2006), Souza (2014), entre
outros.
Palavras-chave: Clarice Lispector. Literatura Infantil. Mitos e Lendas Brasileiras. Dialogismo.
Oralidade.
ABSTRACT: Doze lendas Brasileiras (Twelve Brazilian legends) is a children's book by Clarice
Lispector critics and researchers have paid the least attention. Its context of production is made
up of twelve texts to produce a literary calendar for 1977, comissioned by a toy factory - this
can play a prominent role in this gap. The purpose of this article is to analyze the composition
of the short stories in Lispector’s book. It will examine how myths and legends of folklore are
updated and the way in which they dialogue with orality and tradition. We analyzed five stories
that retell and present classic characters fom Brazilian folklore. Even though it is a
commissioned work, characteristics of of Lispector’s masterful writing are noticeable in the
stories. Besides, this work can become a gateway for children to the richness of Brazilian
folklore and myths. We drew on theoretical approaches put forward by Câmara Cascudo
(1988; 1998; 2015), Gotilb (1995), Âreas (1997), Guimarães (2006), Souza (2014), among
others.
Keywords: Clarice Lispector. Children’s Literature. Brazilian myths and legends. Dialogism.
Orality.
1
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0882-2263.
2
ORCID https://orcid.org/0000-0003-0149-7832.
Introdução
Arêas destaca o quão significativo é o fato de a obra ter apenas sido publicada
em formato de livro após a morte de Clarice Lispector. Porém, ao mesmo tempo que
Clarice teve que entrar no esquema que aprisiona autores em obras sob encomenda,
ela não deixa de ser a escritora que é. Assim, na obra citada é possível reconhecer
propriedades interessantes, que além de permitirem que a obra seja recomendada
como leitura para crianças, podem fomentar reflexões aprofundadas sobre a relação
da literatura infantil, oralidade e o reconto.
A importância da literatura oral para a cultura de um povo é inestimável, além
de ser pela oralidade que as crianças têm os primeiros contatos com a ficcionalidade
e com o mundo da palavra (ABRAMOVICH, 1991). Sobre a importância de lendas e
fábulas, Clarice Lispector disse:
Uma lenda é verossímil? Sim, porque assim o povo quer que seja. De
pai para filho, de mãe para crianças, é transmitida uma fabulação de
maravilhas que estão atrás da História. Como ao redor de uma
fogueira em noite escura, conta-se em voz sussurrante um ao outro o
que, se não aconteceu, poderia muito bem ter acontecido nesse
imaginoso mundo de Deus. E assim oralmente se escreve uma
literatura plena e suculenta, em que o espírito secreto de todo um povo
vira criança e brinca de “faz de conta”. Brinca? Não, é muito a sério.
Pois o que é que pode mais do que um sonho? (LISPECTOR, 2014,
p. 5).
que luta pela vida real. Mas o Brasil é também floresta e interioridade
(LISPECTOR, 2014, p. 7).
disso, o nome Malazarte tem nítida influência da língua espanhola (vem de malas
artes, ou seja, artes más).
No conto “As aventuras de Malazarte”, Lispector é direta, já que Pedro
Malazarte é uma personagem tão representativa que dispensa apresentações e
descrições. O conto já inicia em plena ação, com o protagonista herdando uma porta
e não se sentindo mal por isso, pois com ela pretende conquistar o mundo. É utilizando
o objeto que ele captura um Urubu. Nesse momento, a voz narrativa indaga o leitor
com o absurdo de tal ato “Para que queria ele um urubu? Lá disso sabia ele”
(LISPECTOR, 2014, p. 27). E a narrativa prossegue com Pedro, ao sentir aromas de
comida, pedir um prato de comida a uma senhora, que o expulsa:
aponta que existem diferentes designações para o mesmo referente: Iara, Uiara, Mãe
d’água. Apesar do nome ter origem tupi (Iara significa senhora das águas em tupi), a
personagem folclórica foi trazida pelos colonizadores portugueses – herança das
mitológicas sereias gregas e das sereias do fabulário ibérico. Também retoma a
imagem Ipupiara, uma espécie de monstruoso homem-peixe, que devorava quem
estivesse perto do rio e levava pescadores para o fundo das águas:
Lispector, que foi editado por Fauzi Arap e Maria Bethânia. Em relação ao processo
de criação da música, Adriana Calcanhoto aponta:
Curupira é a lenda escolhida por Clarice Lispector para ser recontada no mês
de julho. Diferentemente dos contos anteriores, não há uma relação aparente entre o
personagem folclórico e o referido mês. O conto na verdade é uma grande descrição
de características físicas e morais do personagem: como é sua aparência e como ele
se comporta na floresta.
Câmara Cascudo (1988) aponta que o Curupira foi o primeiro ser do folclore
brasileiro, chamado pelo estudioso de “duende selvagem”, que foi catalogada e
descrito por diferentes europeus. A primeira célebre citação sobre a criatura foi feita
em carta de São Vicente, em 31 de maio de 1560, pelo padre jesuíta José de Anchieta.
Além disso, Câmara Cascudo aponta que a maioria dos cronistas coloniais inclui seu
nome entre os entes mais temidos pelos indígenas.
As descrições do seu corpo apresentam variações dependendo da região,
mas é sempre descrito como um ser selvagem e como guardador da flora e da fauna.
Genericamente, é representado como um homem pequeno, quase anão, que possui
uma rubra cabeleira e é bastante peludo. Apresenta pés invertidos com os
calcanhares para frente, esta talvez seja sua característica mais marcante. Câmara
Cascudo (1988) aponta que assim, como em Iara, observa-se na construção dessa
lenda uma união de referências culturais indígenas e europeias na criação e
caracterização desse ser. O mito foi evoluindo até ser considerado como o grande
protetor das matas e, principalmente, dos animais.
O reconto de Lispector tem como título “curupira, o danadinho”, já apontando
a inclinação descritiva da narrativa. O próprio título já indica o que se deve esperar do
Curupira, uma vez que o adjetivo danadinho é usado para caracterizá-lo. Desse modo,
aqui não há o desenvolvimento de um enredo, de uma sequência de ações e sim a
descrição das características físicas e psicológicas do Curupira e das suas ações de
proteção.
A descrição do personagem feito pela autora é interativa e vai construindo a
imagem ilustrativa do personagem: “feio que nem o Tinhoso e peludo que nem um
urso, mas pequeno”, “dentes verdes”, “seus pés são virados para trás”, “ser
misterioso”, “sábio”. Depois da descrição ela explica o adjetivo danadinho: “Mas o
danadinho raramente auxilia pessoas, esse pequeno moleque.” (LISPECTOR, 2014,
p. 45).
Depois de tecer a imagem ela aborda um pouco do temperamento e
comportamento de Curupira, como podemos ver a seguir:
Também sabe se vingar dos índios que, com flechas, ferem um bicho
indefeso. Então o Curupira o atrai para caminhos sem fim e eis o
caçador enganado, tonto e perdido. É verdade que pede antes a um
caçador que não mate animais dos que vivem em grupo, porque o
grupo ficará com saudade deles. Mas, ai de nós se o índio não cede!
Não tem o perdão do Curupira. [...] Os caçadores temem esta espécie
de gnomo monstro e suas vinganças (LISPECTOR, 2014, p. 46).
verbos em primeira pessoa que encadeiam ações de contar história. Tais como “vou
vos contar”, “começo por descrevê-lo”, “podem estar certos”; essas construções
colocam o leitor dentro da história como fosse um diálogo direto.
Dentro do reconto de Clarice ela faz essas colocações para criar com o leitor
certa intimidade, isso faz parte das características da escrita da autora. Por mais que
seja um conto mais descritivo a autora se preocupar em prender a atenção de seu
público, interagindo de modo direto: “Já se viram dentes verdes? Pois o Curupira tem.”
(LISPECTOR, 2014, p. 45), essa forma de escrita é propícia para o imaginário infantil,
pois cria a figura do personagem por ela descrita, fazendo com que o leitor crie
cenários de aparições sobre o Curupira.
Ao final ela deixa ainda um alerta: “Tem qualquer parentesco com o Saci-
Pererê. Mas enquanto este gosta de se divertir com os outros, com o Curupira não se
brinca.” (LISPECTOR, 2014, p. 47). Mais uma vez ela usa do artifício da interação
com o leitor para chamar a sua atenção para o fato, criando para o leitor uma visão
mais severa do Curupira, o que evoca que para não brincar com o tal personagem é
preciso seguir determinadas condutas, sendo a principal em relação aos cuidados
com a mata e os animais. Mais uma vez o seu conto cria uma ponte entre autora e
leitor, e apesar de ser mais descritivas, as características e marcas de oralidade
demonstram a profundidade e expansão que essa lenda tem, abrindo portas para as
outras versões dessa mesma história.
O mês de agosto traz consigo ondas de frio e isso lembra o estado com as
temperaturas mais baixas do Brasil, Rio Grande do Sul. Com esse mote que a voz
narrativa introduz a história do negrinho do pastoreio, considerada por folcloristas
como a maior lenda do estado Sulista (CÂMARA CASCUDO, 1988). Lenda, que
inclusive, foi imortalizada pelo escritor pré-modernista Simões Lopes Neto (1865-
1916).
Diferente de seres como Curupira e Saci-Pererê, motivados por impulsos
selvagens e motrizes de narrativas variadas, há uma unicidade em torno da lenda do
Negrinho do Pastoreio. Por isso, Câmara Cascudo (2015) considera como sendo uma
lenda cristã, com uma acentuada finalidade moralizante:
A personagem passa por inúmeras provações até ter uma morte de mártir.
Após a tragédia, passa a ser o símbolo da recompensa das almas mansas e da fé e
assim pode ajudar a quem pedir sua ajuda. Assim, Câmara Cascudo (2015) descreve
o costume gaúcho de acender uma vela para o negrinho do pastoreio para encontrar
um objeto ou algo importante que tenha sido perdido.
Em “O negrinho do pastoreio” temos a versão de Clarice Lispector para a
lenda, muito semelhante a versão clássica imortalizada por Simões Lopes Netto,
apenas com a presença de uma narração direta, como nos outros contos descritos.
Nas primeiras frases já são apresentados o espaço, o tempo, a ambientação, e os
personagens do conto. O final do reconto é interessante, pois a voz narrativa
questiona o próprio sentido de uma “moral da história”:
por mais que ela não deixa esclarecida a resposta de sua indagação, e nem mesmo
perceptível às ações que seguem em suas instruções, a autora apela para as
construções de sentidos que o leitor pode ter, utilizando a comunicação e sua
linguagem, quando coloca “dar um jeito de ser bom e ficar com a consciência
calminha” (LISPECTOR, 2014, p. 35), é uma forma de apelar para a compressão de
mundo do leitor e também, de certo modo, para a construção moral que ele possui.
Ter a consciência ‘calminha’ evoca no leitor o sentido de certo e errado, sem
deixar explícito qual sentido esse ele seria, mas dá indicações sobre o conto e o que
a sua construção narrativa pode representar, uma vez que O Negrinho apresenta a
imagem de mártir, tendo sofrido injustamente. Sendo assim, apesar da autora evocar
o sentido de moral e de certo e errado no leitor, o espaço para a construção do sentido
fica ilimitado para que o leitor complete conforme as suas interpretações.
Assim, por um lado, o Saci Pererê sempre foi representado como um trickster
brasileiro, criando peças e artimanhas; por outro, passou a ser um sinônimo de
preservação de tradições folclóricas e de defesa da natureza. Dessa forma, nesse
aparente paradoxo, o mito foi se atualizando e passou a representar a própria
essência de brasilidade. Lispector dialoga diretamente com a imagem de trickster
brasileiro do Saci, descrevendo as diabruras e pegadinhas operadas por ele: como
ataca galinhas, atrapalha donas de casa, como faz o leite azedar, entre outras.
O final do conto de Lispector pode ser visto como uma ameaça ao
personagem: “Aviso ao Saci: por favor não se vingue de mim botando pólvora no meu
fumo porque eu me vingarei pondo fogo na mataria toda!” (LISPECTOR, 2014, p. 59).
Considerações finais
confessional e a interação com o leitor infantil nesse texto, lembram muitas outras
narrativas infantis de Clarice Lispector como A mulher que matou os peixes e A vida
íntima de Laura.
Em suma, por mais que do ponto de vista estético no primeiro olhar não
pareça ser de grande interesse, é importante ressaltar que as narrativas do calendário
podem ser um ponto de partida para apresentação de outras versões de lendas e
mitos, permitindo que o leitor em construção crie um repertório crítico de
representações culturais de seu país.
Além disso, é notório como a construção e reconstrução da autora nos contos,
transforma os mitos recontados e dialoga de forma ímpar com o leitor, trazendo em
todos eles sentidos amplos que deixam espaços para que o público implícito complete
esses sentidos com as suas próprias interpretações, criando um dialogismo
interessante que merece também um olhar carinhoso para com essa obra de Clarice.
Referências
GOTLIB, N. B. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
LAJOLO, M., ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: história & histórias. São
Paulo: Ática, 1988.