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CLARICE LISPECTOR E O FOLCLORE PARA CRIANÇAS: UMA LEITURA DE


DOZE LENDAS BRASILEIRAS: COMO NASCERAM AS ESTRELAS

CLARICE LISPECTOR AND FOLKLORE FOR CHILDREN: A READING OF DOZE


LENDAS BRASILEIRAS: COMO NASCERAM AS ESTRELAS

Pedro Afonso Barth1


Doutor em Letras
Universidade Federal de Uberlândia
(pedroabarth@hotmail.com)

Yohanna Hemilly Katleen Kühl2


Mestre em Letras
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(yohanna.impressoes@gmail.com)

RESUMO: Doze lendas Brasileiras é a obra infantil de Clarice Lispector menos estudada e
analisada por críticos e pesquisadores. O seu contexto de produção: doze textos para compor
um calendário literário de 1977, encomendado por uma fábrica de brinquedos – pode ter um
papel proeminente nessa lacuna. O objetivo deste artigo é analisar a composição dos contos
do livro citado, verificando como mitos e lendas do folclore são atualizados e como dialogam
com a oralidade e a tradição. Dessa forma, analisamos cinco histórias que recontam e
apresentam personagens clássicos do folclore brasileiro. Mesmo sendo uma obra sob
encomenda, nos contos é possível perceber características da escrita magistral de Clarice
Lispector, além disso, há a possibilidade dessa obra ser uma porta de entrada da criança para
a riqueza do folclore e dos mitos brasileiros. Como aporte teórico utilizamos Câmara Cascudo
(1988; 1998; 2015), Gotilb (1995), Âreas (1997), Guimarães (2006), Souza (2014), entre
outros.
Palavras-chave: Clarice Lispector. Literatura Infantil. Mitos e Lendas Brasileiras. Dialogismo.
Oralidade.

ABSTRACT: Doze lendas Brasileiras (Twelve Brazilian legends) is a children's book by Clarice
Lispector critics and researchers have paid the least attention. Its context of production is made
up of twelve texts to produce a literary calendar for 1977, comissioned by a toy factory - this
can play a prominent role in this gap. The purpose of this article is to analyze the composition
of the short stories in Lispector’s book. It will examine how myths and legends of folklore are
updated and the way in which they dialogue with orality and tradition. We analyzed five stories
that retell and present classic characters fom Brazilian folklore. Even though it is a
commissioned work, characteristics of of Lispector’s masterful writing are noticeable in the
stories. Besides, this work can become a gateway for children to the richness of Brazilian
folklore and myths. We drew on theoretical approaches put forward by Câmara Cascudo
(1988; 1998; 2015), Gotilb (1995), Âreas (1997), Guimarães (2006), Souza (2014), among
others.
Keywords: Clarice Lispector. Children’s Literature. Brazilian myths and legends. Dialogism.
Orality.

1
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0882-2263.
2
ORCID https://orcid.org/0000-0003-0149-7832.

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Introdução

O ano de 2020 foi o centenário de Clarice Lispector, uma oportunidade para


repensar e atualizar a importância da autora para a literatura e outras artes. Uma das
facetas artísticas da escritora foi a sua produção para crianças, valorizada pela
originalidade e inventividade de suas narrativas. Lajolo e Zilberman (1988), na clássica
obra Literatura infantil brasileira: história & histórias, argumentam que Lispector
inova na forma em que se dirige ao leitor infantil, possibilitando sua emancipação e
trazendo para a literatura infantil o que as autoras chamam de dilemas do narrador
moderno, especialmente sobre o abandono da onisciência.
Dessa forma, a produção de Clarice Lispector para crianças é apreciada,
analisada, pesquisada e tem grande importância para os estudos de literatura infantil
e juvenil no Brasil. Entretanto, uma de suas obras para crianças, Doze Lendas
Brasileiras: Como Nasceram as estrelas, é menos estudada e trabalhada por
críticos e pesquisadores em artigos científicos, dissertações e menções em teses.
Uma hipótese para explicar isso é o fato de a obra citada ser dissonante em relação
as demais obras criadas para crianças de Clarice Lispector - O Mistério do Coelho
Pensante (1967), A mulher Que Matou os Peixes (1968), A Vida Íntima de Laura
(1974) e Quase de Verdade (1978). As obras citadas apresentam tramas originais
criadas pela autora, enquanto Doze Lendas Brasileiras, publicada em 1987, pode
ser considerada uma coletânea de contos, que na verdade é uma adaptação de lendas
e narrativas herdadas da tradição oral.
Outra razão que explica a menor presença da obra em estudos críticos é o
seu contexto de produção. Ela remonta a um momento da vida de Clarice Lispector
em que a autora precisava aceitar trabalhos de escrita sob encomenda. Assim, o livro
publicado em 1987, na verdade foi produzido para circular como um calendário. A
fábrica de brinquedos Estrela encomendou da autora doze textos, um para cada mês
do ano, para a composição de um calendário. Todos os pequenos contos apresentam
uma extensão curta, ocupando de uma a duas páginas, o que parece ter sido uma
exigência devido ao espaço físico ocupado por um calendário. Assim, temos uma
produção literária produzida para seguir padrões e determinações externas –
diferentemente da liberdade criativa ideal para a escrita de textos literários.

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O presente trabalho analisará a obra infantil Doze Lendas Brasileiras: Como


Nasceram as estrelas de Clarice Lispector. O objetivo é explorar alguns dos contos,
apontar suas relações com a oralidade e a tradição e as formas que cada pequeno
texto dialoga com as características gerais da escrita e da obra da autora. Nossa
hipótese é que apesar da origem controversa, a criatividade criadora da autora
manifesta-se até mesmo em uma obra sob encomenda. Analisaremos cinco contos:
“A perigosa Yara”, “Curupira, o danadinho”, “O negrinho do pastoreio”, “Do que eu
tenho medo” e “As Aventuras de Malazarte”. O ponto de convergência entre os contos
escolhidos é que todos eles orbitam em torno de uma personagem icónico do folclore
brasileiro, respectivamente: Yara, Curupira, Negrinho do Pastoreio, Saci Pererê e
Pedro Malazarte.

O folclore para crianças sob o prisma de Clarice Lispector

Uma das propriedades mais importantes da construção narrativa de uma obra


infantil de qualidade é quando a assimetria de um texto escrito por um adulto e
endereçado para uma criança é superada. Ou seja, quando há elementos que
permitem que uma criança compreenda e se reconheça na história contada. Dessa
forma, estão presentes elementos de adequação que permitem, não só o
entendimento da história, como também que o leitor construa e amplie os sentidos da
narrativa, por meio da sua imaginação e subjetividade. Para conseguir esse efeito, é
fundamental que o narrador de uma história infantil apresente afinidades com o mundo
da criança (CADERMATORI, 1994). Tal interação e sinergia vão permitir que o leitor
consiga entender abstrações, ou mais do que isso, que ele entre no pacto proposto
pelo mundo ficcional que está lendo.
Nesse sentido, a literatura infantil de Clarice Lispector é estudada e
reconhecida como merecedora de qualificações positivas pela alta habilidade literária
que apresenta. Tanto é assim, que Marisa Lajolo e Regina Zilberman afirmam que:
“Talvez o escritor infantil que primeiro e com mais empenho tenha trazido para a
narrativa infantil os dilemas do narrador moderno seja Clarice Lispector” (LAJOLO,
ZILBERMAN, 1988, p. 154). Um dos marcos para esse reconhecimento é o abandono
da onisciência, já que os narradores das histórias infantis de Clarice lançam dúvidas,
questionamentos, não tem uma certeza sobre os fatos. As hesitações do narrador

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permitem um enriquecimento de sentidos na narrativa e são um recurso narrativo que


segundo as autoras “pode atenuar a assimetria que preside a emissão adulta e a
recepção infantil de um livro para crianças”.
Destacamos também o que é dito por Rosenbaum (2002, p. 79), que afirma:
“a mesma ambiguidade que caracteriza a literatura adulta de Clarice reaparece aqui
para brincar com as crianças leitoras”. Assim, outra propriedade muito marcada é que
a narração das histórias clariceanas não se curva a maniqueísmos e esquemas
óbvios, criando entrechos que possibilitam interpretações dúbias e ambíguas.
Também podemos destacar a fluidez narrativa, um fluxo espontâneo que apresenta
resquícios e semelhanças com um texto oral, em que a fala é improvisada e
entrecortada. Assim, muitas informações são perdidas e encontradas ao longo do
texto, fazendo com que o leitor tenha que coletar as informações e muitas vezes
preencher os vazios (SOUZA, 2014). Em alguns momentos é o próprio narrador que
convoca o leitor a participar, com sua imaginação e experiência, seus conhecimentos
de mundo, da construção do texto literário (BARBOSA, 2003).
Entretanto, estudos da literatura infantil de Clarice Lispector não costumam
abarcar a obra Doze Lendas Brasileiras: Como Nasceram as estrelas, que
costuma ser tratada como um caso excepcional, devido às suas condições de
produção. Nádia Gotlib, em relação à obra, afirma que “[...] as histórias não
apresentam grande interesse estético, embora haja um bom repertório de motivos..."
(GOTLIB, 1995, p. 445). Além disso, há o controverso contexto de produção, já que a
obra foi escrita sob encomenda, com muitas restrições que poderiam ter tolhido a
criatividade da autora. Arêas (1997), ao apontar a relação de Clarice Lispector com o
capitalismo de ficção e sua relação com o esquema que aprisiona escritores ao
mercado, afirma que:

Passando a Clarice Lispector percebo que ela está ao mesmo tempo


fora e dentro do esquema. Para ser precisa, mas também paradoxal:
absolutamente fora e, quando dentro, de maneira algo insólita. Por
exemplo, as histórias para um calendário patrocinado pela fábrica de
brinquedos Estrela nos anos 70, época em que estava precisadíssima
de dinheiro, republicadas em 87 sob o título Como Nascem as
Estrelas[...]. O livro – de edição póstuma, o que não deixa de ser
significativo – é composto de doze histórias, uma para cada mês do
ano, colhidas nos ciclos do folclore aborígine e africano, ou na tradição
peninsular, como a história de Malasartes, passando por soluções

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encontradas por Monteiro Lobato (mais visíveis no episódio do Saci) e


pelos próprios textos da escritora (ARÊAS, 1997, p. 146).

Arêas destaca o quão significativo é o fato de a obra ter apenas sido publicada
em formato de livro após a morte de Clarice Lispector. Porém, ao mesmo tempo que
Clarice teve que entrar no esquema que aprisiona autores em obras sob encomenda,
ela não deixa de ser a escritora que é. Assim, na obra citada é possível reconhecer
propriedades interessantes, que além de permitirem que a obra seja recomendada
como leitura para crianças, podem fomentar reflexões aprofundadas sobre a relação
da literatura infantil, oralidade e o reconto.
A importância da literatura oral para a cultura de um povo é inestimável, além
de ser pela oralidade que as crianças têm os primeiros contatos com a ficcionalidade
e com o mundo da palavra (ABRAMOVICH, 1991). Sobre a importância de lendas e
fábulas, Clarice Lispector disse:

Uma lenda é verossímil? Sim, porque assim o povo quer que seja. De
pai para filho, de mãe para crianças, é transmitida uma fabulação de
maravilhas que estão atrás da História. Como ao redor de uma
fogueira em noite escura, conta-se em voz sussurrante um ao outro o
que, se não aconteceu, poderia muito bem ter acontecido nesse
imaginoso mundo de Deus. E assim oralmente se escreve uma
literatura plena e suculenta, em que o espírito secreto de todo um povo
vira criança e brinca de “faz de conta”. Brinca? Não, é muito a sério.
Pois o que é que pode mais do que um sonho? (LISPECTOR, 2014,
p. 5).

A citação anterior é um texto escrito por Lispector para apresentar o


calendário. Em edições recentes do livro, o texto foi incluído como introdução na obra.
No trecho destacamos o momento que a autora define a literatura criado pelo
imaginário popular como plena e suculenta. Os adjetivos apontam que para a autora
a oralidade permitiu a criação de histórias que apresentam uma plenitude e
envergadura, que mais do que uma diversão, auxilia na criação de subjetividades, pois
ao criar mundo possíveis, permite que quem está ouvindo a história projete outra
realidade possível. Ainda conclui:

O grande sonho acordado de um povo é um símbolo de seu vigor


íntimo. As lendas são uma potência. Elas procuram nos transmitir
alguma coisa importante que se passa na zona penumbrosa e criativa
popular. E o que não existe passa a existir por força mesmo de seu
encantatório enredo. Nos grandes centros culturais brasileiros, as
lendas infelizmente se perdem, menosprezadas por uma civilização

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que luta pela vida real. Mas o Brasil é também floresta e interioridade
(LISPECTOR, 2014, p. 7).

Clarice reafirma a potência fundamental presente nas lendas e na literatura


oral de um povo: há um pouco de sua identidade cultural. Porém, a autora aponta que
com a urbanização muito da riqueza da oralidade estava se perdendo. E parece que
justamente é o risco de perdermos os fatores de nossa brasilidade que impelem a
autora a resgatar lendas e mitos, e contá-las à sua maneira. Por mais que a vida
cosmopolita possa transmitir orgulho, crianças brasileiras não podem não conhecer o
Brasil que se faz grandioso pela sua natureza inigualável e pelas ricas histórias de
sua gente.
Assim, a produtividade em analisar a coletânea de contos está em justamente
reconhecer como Clarice Lispector emprega os recursos expressivos, reconhecidos
na sua obra infantil, em narrativas que passaram por um processo de seleção e
reconto. De modo que, analisaremos cinco dos doze contos presentes no livro. Como
recorte para este trabalho, exploraremos todos os contos que apresentam o
protagonismo de uma personagem expressiva do folclore brasileiro. Em cada uma das
análises seguiremos o seguinte percurso analítico: apresentamos brevemente o
personagem folclórico recontado, traçamos a síntese do conto de Clarice Lispector, e
finalmente assinalamos quais características de escrita da autora são reconhecíveis
em cada conto.

As aventuras de Malazarte: reflexos da malandragem brasileira

O conto do mês de abril provavelmente foi escolhido pela autora devido à


fama do primeiro dia do mês. O dia da mentira, e também de travessuras, algo que
combina muito bem com uma personagem típica do folclore e da tradição oral do
Brasil: o pícaro e esperto Pedro Malazarte. Pedro Malazarte ou Malasartes, que é uma
figura importante no folclore nacional. Contos da tradição oral que possuem o
espertalhão como personagem principal foram recolhidos por autores como
Guimarães (2006) e Câmara Cascudo (1988). Entretanto, a origem da personagem é
muito antiga, remonta ao período medieval na península ibérica. Tanto que segundo
Guimarães (2006), um dos possíveis registros mais antigos de Pedro Malazarte esteja
na cantiga 1.132 do Cancioneiro do Vaticano, de Pedro Mendes da Fonseca. Além

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disso, o nome Malazarte tem nítida influência da língua espanhola (vem de malas
artes, ou seja, artes más).
No conto “As aventuras de Malazarte”, Lispector é direta, já que Pedro
Malazarte é uma personagem tão representativa que dispensa apresentações e
descrições. O conto já inicia em plena ação, com o protagonista herdando uma porta
e não se sentindo mal por isso, pois com ela pretende conquistar o mundo. É utilizando
o objeto que ele captura um Urubu. Nesse momento, a voz narrativa indaga o leitor
com o absurdo de tal ato “Para que queria ele um urubu? Lá disso sabia ele”
(LISPECTOR, 2014, p. 27). E a narrativa prossegue com Pedro, ao sentir aromas de
comida, pedir um prato de comida a uma senhora, que o expulsa:

E quando sentiu no ar os eflúvios de um jantar magnífico, bateu a porta


da casa de uma Senhora, gulosa e sabida, que estava preparando
para si mesma um banquete, escondido do marido que foram viajar.
Malazarte foi irritadamente expulso pela sabidona e sua criada. Então,
com auxílio da porta encostada na parede, subiu ao teto e de lá viu
embaixo comida boa para valer. Tinha leitão assado, peru, e tudo mais
que delicia um homem. Foi quando o marido chegou,
inesperadamente. A mulher matreira lamentou-se: se eu soubesse
que você vinha eu preparava coisa boa de se comer [...] (LISPECTOR,
2014, p. 28).

Antes de continuarmos com a síntese do conto, convém observar como a


escrita da autora condensa importantes informações em um espaço diminuto de texto.
No trecho transcrito, há vários adjetivos espalhados que permitem que o leitor crie
uma imagem nada agradável da esposa: ela é gulosa, sabida, sabidona, matreira.
Advérbios bem colocados também resumem circunstâncias importantes para a ação
narrativa como irritadamente, inesperadamente. Assim, em um parágrafo o leitor tem
diante de si inúmeras informações que criam o panorama de ação de Pedro
Malazartes: não é necessário mencionar diretamente que a mulher tenta enganar o
marido, as intenções maliciosas da personagem ficam claras pela caracterização
expressa.
Na sequência do conto, Pedro pede ao homem agora um lugar a mesa e ele
cede. Nesse momento, o esperto passa a usar o seu Urubu para chamar a atenção
do dono da casa e finge que o animal é adivinho e assim consegue adivinhar que a
esposa preparou alimentos especiais. Assim, a mulher é obrigada a entregar os
quitutes secretos ao marido e ao convidado. O conto termina da seguinte forma:

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Como era primeiro de abril, dia de se enganar os outros, Malazarte


vendeu falsamente o precioso urubu ao dono da casa para lhe servir
de espião. Bem alimentado, Malazarte prosseguiu o caminho com a
porta debaixo do braço. Moral: mais vale uma porta desvalida
incerteza de Malazarte, que uma casa inteira para quem não tem arte
(LISPECTOR, 2014, p. 29).

No trecho, é perceptível uma arbitrariedade em relação ao dia da mentira e o


ato de enganar os outros, operado pelo esperto e malicioso Malazarte. Esse jogo de
palavras deixa o sentido entre aberto para o que o leitor tire suas conclusões sobre
ser esperto ou malicioso, que é, justamente, uma das características de Clarice, trazer
o leitor para desvendar a sua obra e fazer com que ele crie os seus próprios sentidos
e significados, pois uma vez que justifica o ato de Malazarte ao dizer que “Como era
1º de abril, dia de se enganar os outros [...] (LISPECTOR, 2014, p.29), a autora deixa
para o leitor completar a mensagem a respeito sobre o ato de Malazarte.
Câmara Cascudo (1998) na obra Contos tradicionais do Brasil adaptou
muitas histórias com a personagem. Neste trabalho, o autor adotou a figura de Pedro
Malazarte como alguém tenazmente esperto, capaz de enganar cinicamente para
conseguir transpor obstáculos. Nessa obra, há a transposição de uma história com o
enredo semelhante ao conto de Clarice Lispector. É possível perceber que a autora
reconta a história observando as características transpostas por Cascudo. Entretanto,
é perceptível que a escritora quis relacionar o seu reconto ao o mês de abril,
especificamente ao dia da mentira. Assim, a mentira e o engano da personagem
encontram uma justificativa plausível: Pedro mente por ser primeiro de abril. Essa
solução, aparentemente simplista é coerente com o desenvolvimento narrativo: Pedro
Malazarte podia aprontar para a mulher e a criada pois foram cruéis com ele, mas o
marido (nessa versão do conto) nada fez. Então, não haveria motivos claros para ele
ser enganado.
No folclore de maneira geral – e nos recontos de autores como Guimarães
(2006) e Cascudo (1998), Malazarte é aquele que não segue as regras da
coletividade, que utiliza a astúcia para conseguir transpor os desafios da sua situação
social: ele um matuto pobre precisa utilizar da esperteza para não ser explorado.
Assim, o personagem personifica o “jeitinho brasileiro”, a esperteza diante das
adversidades, esperteza essa que frequentemente ultrapassa alguns limites éticos,
como a trapaça, a mentira, o engano.

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No contexto da oralidade a personagem encontra justificativa para seus atos:


está em desvantagem no mundo – financeira, social – e precisa sobreviver. Por sua
vez, no conto “Aventuras de Malazarte”, não há espaço para situar o leitor infantil –
que pode ou não conhecer o contexto geral sobre a personagem – por isso, que o
mês de abril é uma solução tranquila para justificar os enganos de Malazarte, mesmo
parecendo arbitrária. Sendo assim, essa arbitrariedade explicaria-se pelo próprio mês
– mês de abril e o dia da mentira.
Ao mesmo tempo em que o reconto de Lispector apresenta uma solução
simplificadora para os atos de Pedro, ele dialoga, porém, intertextualmente com outras
representações de Malazarte, e assim a história se abre para outros textos, outras
versões de lendas e outras representações do personagem na literatura, no cinema e
nas artes em geral. A autora trabalha essa intertextualidade logo de início, ao colocar
o uso do advérbio também ao iniciar o seu conto: “Ah, mês de abril que delícia de
existir! Também para Pedro Malazarte.” (LISPECTOR, 2014, p. 27 – grifo dos
autores), o advérbio deixa a intertextualidade sobre o dia da mentira e as
malandragens e travessuras de Pedro Malazarte implícito, porém com o seu
significado amplo, uma vez que os leitores podem, ou não, conhecer as demais
versões e histórias de Malazarte.
Clarice é sem dúvida muito direta e divertida em sua escrita nas obras infantis,
e que tem como características narrativas abertas para que o leitor nesse espaço
aberto crie uma interpretação própria, pois a narrativa clariceana marca-se pela
diversão de narrar os acontecimentos, fazendo apontamento que instiguem o leito a
pensar e refletir enquanto mergulha no conto da autora.

A perigosa Yara: o encanto das águas

O mês de maio é considerado o mês das noivas e inspirada na temática,


Clarice Lispector faz a interessante opção de recontar a lenda da sereia brasileira Yara
no conto selecionado para esse mês. No conto, a sereia procura um noivo e várias
vezes é empregada a palavra “casamento” para caracterizar a busca de Yara. Assim,
“a perigosa Yara” é a versão de Clarice Lispector para a lenda de Iara, a mãe das
águas.
Uma lenda com uma origem bastante curiosa: provavelmente trata-se da
união de aspectos culturais indígenas, africanos e europeus. Câmara Cascudo (1988)

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aponta que existem diferentes designações para o mesmo referente: Iara, Uiara, Mãe
d’água. Apesar do nome ter origem tupi (Iara significa senhora das águas em tupi), a
personagem folclórica foi trazida pelos colonizadores portugueses – herança das
mitológicas sereias gregas e das sereias do fabulário ibérico. Também retoma a
imagem Ipupiara, uma espécie de monstruoso homem-peixe, que devorava quem
estivesse perto do rio e levava pescadores para o fundo das águas:

Existia no Brasil o Ipupiara, informe e mau. Mães-d’Água, Iaras, botos


dom-juan são somas de estórias da Europa e África convergidas para
objetos que despertaram a curiosidade pela anormalidade dos
costumes. O Ipupiara passou a Mãe-d’Água. [...] A Iara é europeia. O
índio não a conheceu outrora. Hoje é natural que a diga velhíssima,
uma vez que, há três séculos, a lenda escorre pela sua memória
(CASCUDO, 2012, p.85).

Aqui, a lenda se aclimatou e a sereia amazônica passou a ter tez morena,


cabelos negros ou verdes, traços indígenas e viver nas águas dos rios, no interior da
mata. Ao aspecto monstruoso e cruel de devorar e levar pessoas para o fundo do rio,
somou-se o aspecto sedutor e cativante de sua aparência, além do seu canto
inebriante que atrai os incautos. Com essa união de atributos, Iara passa a ter uma
presença muito marcante na cultura brasileira, sendo muito citadas por autores
românticos do século XIX, considerada a grande musa da poesia brasileira por Olavo
Bilac durante o parnasianismo e sendo retomada em obras infantis como na obra de
Monteiro Lobato (CASEMIRO, 2012). Algumas dessas representações atenuam o
aspecto perigoso da sereia e ela quase é um ser encantada e dócil. Não é o que
vemos na obra de Lispector.
No reconto de Lispector, a atmosfera de encanto de Iara tem grande destaque.
Sua beleza e aura de atração sobre os homens tem grande destaque. Essa beleza e
atração, sintetizados no seu poderoso e magnético canto, são sinônimos de
preocupação e perigo. O próprio título do conto é significativo nesse sentido: o adjetivo
“perigosa” já orienta o leitor sobre a natureza de Yara. Podemos observar no trecho a
seguir:

Sim, mas houve um dia um Tapuia sonhador e arrojado.


Pensativamente estava pescando esqueceu-se de que o dia estava
acabando e que as águas já amansavam. Foi quando pensou: acho
que estou tendo uma ilusão. Porque a morena Yara, de olhos pretos e
faiscantes, erguera-se das águas. O Tapuia teve o medo que todo

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mundo tem das sereias arriscadas - largou a canoa e correu a abrigar


se na taba. Mas de que adianta fugir, se o feitiço da Flor das Águas já
o enovelara todo? (LISPECTOR, 2014, p. 34).

A caracterização de Yara no reconto de Lispector rompe com outras


representações mais brandas do mito. Depois de apresentar Yara e toda sua
magnitude e sedução, o reconto apresenta um Tapuia sonhador que apesar de tentar
fugir do canto de sedução da sereia, não consegue. Dias depois de ouvir o canto, volta
até o rio e se entrega nos braços e lábios da “fingida sereia”. Assim, acontece o
“casamento” entre Yara e o Tapuia: ela o arrasta para o fundo do rio. A voz narrativa
utiliza eufemismos para a morte da personagem. O principal é justamente o emprego
dos termos noivo e casamento. Aqui também não há a preocupação em extensas
descrições: uma linguagem direta conduz à ação. Adjetivos estrategicamente
colocados bastam para a criação do plano de fundo para contar a história e ajudam a
caracterizar a ingenuidade do tapuia e a natureza ardilosa e sedutora da sereia
brasileira. Assim, Yara, apesar de bela e sedutora, é tão ou mais perigosa que o antigo
Ipupiara.
Um marco interessante está no fecho do conto: depois de levar o seu noivo
no fundo do rio, Yara volta a aparecer nas águas, linda e sedutora, pronta para atrair
novas vítimas, “porque um só noivo, ao que parece, não lhe bastava” (LISPECTOR,
2014, p. 35). Assim, é marcado que a busca da sereia é incessante e insaciável. Ao
invés de um desfecho moralizante ou até mesmo pícaro ou humorístico, há um alerta
no final do conto, que no primeiro momento parece deslocado: “Esta história não
admite brincadeiras. Que se cuidem certos homens” (LISPECTOR, 2014, p. 35). É um
fecho que tem potencial para causa estranheza de leitores apenas ambientados com
narrativas que apresentam algum tipo de moralidade ou juízo de valor: Yara não é
julgada, não tem o comportamento condenado pela voz narrativa, sua descrição
apenas aponta sua natureza perigosa. O alerta vai para os “certos homens” que se
deixam enganar pela atmosfera de encanto da sereia.
O potencial inspirador do mito de Yara e do reconto de Lispector pode ser
comprovado ouvindo a canção de Maria Bethânia Uma Iara/Uma perigosa Iara,
presente no álbum Meus quintais de 2014. A canção foi feita a oito mãos, a partir da
junção de uma composição inédita de Adriana Calcanhotto, do texto de Clarice

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Lispector, que foi editado por Fauzi Arap e Maria Bethânia. Em relação ao processo
de criação da música, Adriana Calcanhoto aponta:

Com ligações completamente inusitadas a princípio entre as músicas,


nasce uma canção nova, feita de misturas de outras músicas e
pedaços de versos. Bethânia costura os textos, sendo ela própria a
linha; só ela pode fazer a ligação entre as partes, para dizer o que quer
dizer, como qualquer autor. [...] Clarice aparece como autora, porque
na verdade também é. Não ajudou a costurar nada, mas produziu o
tecido do que Bethânia queria dizer (CALCANHOTTO, 2014).

A canção expande os limites do reconto de Clarice Lispector, permitindo uma


ampliação ainda maior dos seus sentidos. Por exemplo, Forin Junior e Pascolati
(2017), apontam que a canção e o texto de Lispector permitem a afirmação do mito
das sereias em um aspecto primordial, ou seja, a contemplação da força da mulher,
da sabedoria e de sua independência. Yara representa a energia feminina que não
pode ser barrada pelas amarras do patriarcado, pelas amarras das convenções, passa
a ser assim símbolo de uma liberdade.
Dessa forma, vemos no texto infantil sementes e possibilidades de ampliar a
leitura e suas referências, permitindo inclusive cotejamentos com discursos
fundamentais na sociedade contemporânea, ao finalizar deixando o aviso para “os
certos homens”, criando uma imagem de que são eles que devem se cuidar, não as
Yaras, sejam elas adultas ou crianças. Abrindo as interpretações e os conceitos até
então construídos da personagem Yara.

Curupira, o danadinho: a história esquisita de um ser esquisito

Curupira é a lenda escolhida por Clarice Lispector para ser recontada no mês
de julho. Diferentemente dos contos anteriores, não há uma relação aparente entre o
personagem folclórico e o referido mês. O conto na verdade é uma grande descrição
de características físicas e morais do personagem: como é sua aparência e como ele
se comporta na floresta.
Câmara Cascudo (1988) aponta que o Curupira foi o primeiro ser do folclore
brasileiro, chamado pelo estudioso de “duende selvagem”, que foi catalogada e
descrito por diferentes europeus. A primeira célebre citação sobre a criatura foi feita
em carta de São Vicente, em 31 de maio de 1560, pelo padre jesuíta José de Anchieta.

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Além disso, Câmara Cascudo aponta que a maioria dos cronistas coloniais inclui seu
nome entre os entes mais temidos pelos indígenas.
As descrições do seu corpo apresentam variações dependendo da região,
mas é sempre descrito como um ser selvagem e como guardador da flora e da fauna.
Genericamente, é representado como um homem pequeno, quase anão, que possui
uma rubra cabeleira e é bastante peludo. Apresenta pés invertidos com os
calcanhares para frente, esta talvez seja sua característica mais marcante. Câmara
Cascudo (1988) aponta que assim, como em Iara, observa-se na construção dessa
lenda uma união de referências culturais indígenas e europeias na criação e
caracterização desse ser. O mito foi evoluindo até ser considerado como o grande
protetor das matas e, principalmente, dos animais.
O reconto de Lispector tem como título “curupira, o danadinho”, já apontando
a inclinação descritiva da narrativa. O próprio título já indica o que se deve esperar do
Curupira, uma vez que o adjetivo danadinho é usado para caracterizá-lo. Desse modo,
aqui não há o desenvolvimento de um enredo, de uma sequência de ações e sim a
descrição das características físicas e psicológicas do Curupira e das suas ações de
proteção.
A descrição do personagem feito pela autora é interativa e vai construindo a
imagem ilustrativa do personagem: “feio que nem o Tinhoso e peludo que nem um
urso, mas pequeno”, “dentes verdes”, “seus pés são virados para trás”, “ser
misterioso”, “sábio”. Depois da descrição ela explica o adjetivo danadinho: “Mas o
danadinho raramente auxilia pessoas, esse pequeno moleque.” (LISPECTOR, 2014,
p. 45).
Depois de tecer a imagem ela aborda um pouco do temperamento e
comportamento de Curupira, como podemos ver a seguir:

Também sabe se vingar dos índios que, com flechas, ferem um bicho
indefeso. Então o Curupira o atrai para caminhos sem fim e eis o
caçador enganado, tonto e perdido. É verdade que pede antes a um
caçador que não mate animais dos que vivem em grupo, porque o
grupo ficará com saudade deles. Mas, ai de nós se o índio não cede!
Não tem o perdão do Curupira. [...] Os caçadores temem esta espécie
de gnomo monstro e suas vinganças (LISPECTOR, 2014, p. 46).

Destacamos na citação a expressão “ai de nós” que inclui o leitor dentro na


narrativa. No conto, há muitas marcas de oralidade e principalmente a presença de

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verbos em primeira pessoa que encadeiam ações de contar história. Tais como “vou
vos contar”, “começo por descrevê-lo”, “podem estar certos”; essas construções
colocam o leitor dentro da história como fosse um diálogo direto.
Dentro do reconto de Clarice ela faz essas colocações para criar com o leitor
certa intimidade, isso faz parte das características da escrita da autora. Por mais que
seja um conto mais descritivo a autora se preocupar em prender a atenção de seu
público, interagindo de modo direto: “Já se viram dentes verdes? Pois o Curupira tem.”
(LISPECTOR, 2014, p. 45), essa forma de escrita é propícia para o imaginário infantil,
pois cria a figura do personagem por ela descrita, fazendo com que o leitor crie
cenários de aparições sobre o Curupira.
Ao final ela deixa ainda um alerta: “Tem qualquer parentesco com o Saci-
Pererê. Mas enquanto este gosta de se divertir com os outros, com o Curupira não se
brinca.” (LISPECTOR, 2014, p. 47). Mais uma vez ela usa do artifício da interação
com o leitor para chamar a sua atenção para o fato, criando para o leitor uma visão
mais severa do Curupira, o que evoca que para não brincar com o tal personagem é
preciso seguir determinadas condutas, sendo a principal em relação aos cuidados
com a mata e os animais. Mais uma vez o seu conto cria uma ponte entre autora e
leitor, e apesar de ser mais descritivas, as características e marcas de oralidade
demonstram a profundidade e expansão que essa lenda tem, abrindo portas para as
outras versões dessa mesma história.

O Negrinho do pastoreio: o frio traz histórias

O mês de agosto traz consigo ondas de frio e isso lembra o estado com as
temperaturas mais baixas do Brasil, Rio Grande do Sul. Com esse mote que a voz
narrativa introduz a história do negrinho do pastoreio, considerada por folcloristas
como a maior lenda do estado Sulista (CÂMARA CASCUDO, 1988). Lenda, que
inclusive, foi imortalizada pelo escritor pré-modernista Simões Lopes Neto (1865-
1916).
Diferente de seres como Curupira e Saci-Pererê, motivados por impulsos
selvagens e motrizes de narrativas variadas, há uma unicidade em torno da lenda do
Negrinho do Pastoreio. Por isso, Câmara Cascudo (2015) considera como sendo uma
lenda cristã, com uma acentuada finalidade moralizante:

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O Negrinho do Pastoreio é lenda cristã, divulgada com finalidades


morais. O Negrinho é sem pecado, uma vítima. É um acessório à
bondade de Nossa Senhora, madrinha dos que não a têm. Perdendo
duas vezes a tropilha que acha miraculosamente, O Negrinho, por
associação natural, é padroeiro dessa atividade nos “pagos” gaúchos.
A morte cruel sempre determina um movimento de piedade que haloa
de mistério a entidade martirizada. Entre as populações do campo
raramente o assassinado de emboscada deixa de ter sua cruz
chantada no lugar da morte e constituindo posterior centro de orações
e promessas (CÂMARA CASCUDO, 2015, p. 318).

A personagem passa por inúmeras provações até ter uma morte de mártir.
Após a tragédia, passa a ser o símbolo da recompensa das almas mansas e da fé e
assim pode ajudar a quem pedir sua ajuda. Assim, Câmara Cascudo (2015) descreve
o costume gaúcho de acender uma vela para o negrinho do pastoreio para encontrar
um objeto ou algo importante que tenha sido perdido.
Em “O negrinho do pastoreio” temos a versão de Clarice Lispector para a
lenda, muito semelhante a versão clássica imortalizada por Simões Lopes Netto,
apenas com a presença de uma narração direta, como nos outros contos descritos.
Nas primeiras frases já são apresentados o espaço, o tempo, a ambientação, e os
personagens do conto. O final do reconto é interessante, pois a voz narrativa
questiona o próprio sentido de uma “moral da história”:

Qualquer gaúcho conhece esta história e muitos acham que o


Negrinho ajuda a encontrar o que se perdeu, seja objeto, seja amor,
seja felicidade sumida. Será que a moral desta história é que o bem
sempre vence? Bom, nós todos sabemos que nem sempre. Mas o
melhor é a gente ir-se arranjando como pode e dar um jeito de ser bom
e ficar com a consciência calminha (LISPECTOR, 2014, p. 35).

O narrador planta uma pergunta na mente do leitor implícito, porém não


apresenta uma resposta definitiva ou uma certeza pétrea. Ele semeia a dúvida, lança
o questionamento e faz com o leitor tenha que resolver essa indagação. Além disso,
Clarice dá instruções que incluem o leitor “é melhor a gente ir-se arranjando como
pode [...]” (LISPECTOR, 2014. p. 35), ou seja, ela traz o leitor para dentro da história
ao usar o termo a gente, pois quer o leitor saiba, ou não, a resposta da indagação
anterior, é preciso ‘ir se arranjando”, o que também não é especificado como, porém,
esse recurso de significados abertos e respostas irresolutas são a marcas da autora.
Clarice apenas deixa pistas nas descrições dos personagens e até mesmo das ações
recontadas, e isso se repete por todas as obras infantis da autora. É perceptível que

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por mais que ela não deixa esclarecida a resposta de sua indagação, e nem mesmo
perceptível às ações que seguem em suas instruções, a autora apela para as
construções de sentidos que o leitor pode ter, utilizando a comunicação e sua
linguagem, quando coloca “dar um jeito de ser bom e ficar com a consciência
calminha” (LISPECTOR, 2014, p. 35), é uma forma de apelar para a compressão de
mundo do leitor e também, de certo modo, para a construção moral que ele possui.
Ter a consciência ‘calminha’ evoca no leitor o sentido de certo e errado, sem
deixar explícito qual sentido esse ele seria, mas dá indicações sobre o conto e o que
a sua construção narrativa pode representar, uma vez que O Negrinho apresenta a
imagem de mártir, tendo sofrido injustamente. Sendo assim, apesar da autora evocar
o sentido de moral e de certo e errado no leitor, o espaço para a construção do sentido
fica ilimitado para que o leitor complete conforme as suas interpretações.

Do que eu tenho medo: ameaçando o Saci-Pererê

O mês de setembro uma interpretação pessoal e inusitada da lenda do Saci-


Pererê. Para esse mês, Lispector mobiliza um dos mais conhecidos personagens do
folclore brasileiro, porém cria um reconto muito distinto dos outros: ao invés de uma
narrativa explicando a lenda, como no caso de Iara, ou um texto descritivo como foi
com o Curupira, aqui temos um relato em primeira pessoa sobre medos. Tanto que o
título é “do que eu tenho medo”. A confissão acontece logo no início:

Bem, o jeito mesmo é começar fazendo uma confissão: a de que sou


um pouquinho covarde, tenho meus medos. E você vai rir de mim
quando souber de que é que receio tanto. E... bem, é... (Vou tomar
uma bruta coragem e dizer de uma vez.) Tenho tanto medo é do...
Saci-Pererê! Mas que alívio em já ter confessado. E que vergonha. Só
não juro que o Saci existe porque não se deve ficar jurando à-toa, por
aí. Você é provavelmente de cidade e não me acredita (LISPECTOR,
2014, p. 57).

Os recursos expressivos como uso de reticências, de parênteses, a


pontuação como um todo potencializam a revelação de que o medo maior da
narradora é o temido Saci-pererê. Ainda nesse parágrafo, a voz narrativa interage com
o leitor implícito, apontando que ele pode estar fazendo pouco caso do medo de Saci
por ser de cidade e assim não acreditar na lenda.

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O Saci é um dos personagens folclóricos mais conhecidos. Segundo Câmara


Cascudo (1998), nos documentos dos cronistas do período colonial não é possível
encontrar menções e descrições sobre ele. Ele passa a ser mencionado apenas após
o início do Primeiro Reinado. Assim, “o Saci aparece em fins do século XVIII e tem
sua vida desenvolvida durante o XIX. Podemos, até prova em contrário, situar sua
aparição há uns duzentos anos, vindo do Sul, pelo Paraguai-Paraná, [...]” (CÂMARA
CASCUDO, 2015, p. 52). Assim, é um mito de existência relativamente moderna.
Monteiro Lobato é considerado responsável pela consolidação de sua popularidade,
tanto por ter eleito o Saci como personagem impactante nas narrativas infantis do Sítio
do Pica-Pau Amarelo, como por ter feito uma ampla pesquisa de opinião perguntando
para populares opiniões, causos e histórias com o Saci Pererê. Os resultados foram
publicados no jornal O Estado de São Paulo, entre os dias 27 de janeiro e 06 de março
de 1917, e tiveram sua repercussão ampliada no ano seguinte com a publicação do
livro O Saci-Pererê: resultado de um inquérito (1918). Ainda, segundo Câmara
Cascudo (2015, p. 51-52):

Quando se fala no Saci, sabe-se do “inquérito” que Monteiro Lobato


dirigiu e que resultados extensos denunciou para a existência
fantástica do duende negrinho. [...] Mito de existência relativamente
moderna, o Saci-pererê substituiu na popularidade literária ao
Curupira, registrado pelo Venerável Anchieta. É hoje o demônio
inseparável das estórias, das anedotas, dos causos, das conversas
matutas, caipiras e fazendeiras, vago, assombrador, inesperado,
malicioso, humorista, atarantador, diluído na lembrança emocional dos
que já não mais têm a idade espiritual para temer-lhe o espantoso
encontro...

Assim, por um lado, o Saci Pererê sempre foi representado como um trickster
brasileiro, criando peças e artimanhas; por outro, passou a ser um sinônimo de
preservação de tradições folclóricas e de defesa da natureza. Dessa forma, nesse
aparente paradoxo, o mito foi se atualizando e passou a representar a própria
essência de brasilidade. Lispector dialoga diretamente com a imagem de trickster
brasileiro do Saci, descrevendo as diabruras e pegadinhas operadas por ele: como
ataca galinhas, atrapalha donas de casa, como faz o leite azedar, entre outras.
O final do conto de Lispector pode ser visto como uma ameaça ao
personagem: “Aviso ao Saci: por favor não se vingue de mim botando pólvora no meu
fumo porque eu me vingarei pondo fogo na mataria toda!” (LISPECTOR, 2014, p. 59).

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A ameaça, atualmente politicamente incorreta, pode ser lida de forma alegórica: é a


maneira que a narradora-personagem lida com seu medo. Assim, temos nesse conto
o que Lajolo e Zilberman (1988), apontam como principal inovação da escrita para
crianças em Clarice Lispector: o abandono da onisciência.
A voz narrativa não sabe tudo sobre o Saci, não é onisciente, não traz uma
narrativa fechada e também não apresenta nenhum tipo de controle sobre as ações
dele. Apenas verbaliza sobre o seu medo e, por isso, concretiza a ameaça final. Dessa
forma, esse é um reconto que não se curva a maniqueísmos e esquemas óbvios,
criando entrechos que possibilitam interpretações dúbias e ambíguas, como por
exemplo, o leitor pode se indagar se o Saci é realmente ameaçador ou indagar se a
voz narrativa realmente está sendo racional com seus medos.
Um ponto interessante, que mostra a construção ambígua de todo o relato
sobre o Saci é que ele inspira o comportamento da voz narrativa. Há um momento em
que é dito: “Porque eu também sou um pouquinho Saci-Pererê: foi com ele mesmo
que aprendi as minhas manhas” (LISPECTOR, 2014, p. 59). Assim, ao mesmo tempo
que é temido por suas malcriações, ele também inspira e é exemplo. Na aparente
contradição, há um diálogo com o próprio espírito de brasilidade, da constituição do
que é sempre caracterizado como “jeitinho brasileiro”. Assim, no relato do medo de
Saci, podemos pensar em aprofundamentos como discutir a própria essência do
nosso país.
A forma como a autora aponta que foi com o Saci que aprendeu as suas
“manhas”, deixa espaço para que seja feito até mesmo um comparativo sobre “o
jeitinho brasileiro” apresentado no conto de Malazarte, em que há os contrapontos de
cada reconto, os que divergem e os que convergem.
Isso mostra mais uma vez que a ambiguidade da autora dá liberdade ao leitor
em suas interpretações. A construção narrativa dialoga de forma direta com o leitor, o
que faz com que a escrita de Clarice seja divertida e incentive o seu público a dialogar
com ela de volta, dando espaço para a imaginação inventiva de seu público para criar
e recriar os seus contos e lendas, conforme as suas análises e construções de mundo.

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Considerações finais

Em Doze lendas brasileiras: como nasceram as estrelas Clarice Lispector


se apropria e reconta lendas do folclore brasileiro. Emprega um estilo bastante
objetivo, direto e sucinto, em poucas frases a ambientação da história ou da descrição
da personagem são estabelecidas. Porém, a presença de marcas da oralidade, a
condução de uma contação de história, aproximam as narrativas do universo infantil,
principalmente ao usar verbos que evocam o leitor a refletir ou até mesmo responder
a autora.
Ao comentar a obra, Nádia Gotlib (1995) aponta que as histórias presentes
não apresentam grande interesse estético, ou seja, na visão da estudiosa não tem
uma elaboração literária. A partir das análises, podemos apontar que os motivos para
considerar que a obra possa não apresentar grande interesse estético são
compreensíveis, pois os contos, além de ter pequena extensão, apresentam alguns
desfechos precipitados, e pouco aprofundamento de temas, de forma que são em sua
maioria versões de histórias já existentes. São, em suma, recontos de histórias da
tradição popular com algum nível de simplificação. Mesmo, porém, com algumas
limitações ou mesmo inadequações para o olhar de hoje, a obra lança luzes
interessantes e importantes sobre a necessidade de apresentar o folclore brasileiro
para as crianças brasileiras.
Nas lendas analisadas, a maneira que o entrecho folclórico recontado
apresenta muitas diferenças. Em duas delas, há o reconto de histórias da tradição
oral, que já haviam sido recontadas anteriormente (Pedro Malazarte e Negrinho do
Pastoreio, narrativas imortalizadas por Câmara Cascudo e João Simões Lopes Neto),
e omissões e adaptações são perceptíveis – provavelmente feitas com a intenção de
adequar as histórias ao formato do calendário. Em outras duas, os elementos
descritivos são mais presentes que os narrativos (Yara e Curupira) – a apresentação
das características dos personagens ganha protagonismo, e assim, após a leitura o
leitor tem uma imagem bem demarcada da sereia sedutora e do defensor das matas.
Nesse sentido, a história do mês de setembro ganha realce por ser diferente:
não há nem o reconto de uma história da tradição oral e nem a apresentação do
personagem. Temos um relato em primeira pessoa que aproxima o narrador da figura
folclórica, trazendo impressões pessoais e interagindo com o leitor implícito. O tom

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confessional e a interação com o leitor infantil nesse texto, lembram muitas outras
narrativas infantis de Clarice Lispector como A mulher que matou os peixes e A vida
íntima de Laura.
Em suma, por mais que do ponto de vista estético no primeiro olhar não
pareça ser de grande interesse, é importante ressaltar que as narrativas do calendário
podem ser um ponto de partida para apresentação de outras versões de lendas e
mitos, permitindo que o leitor em construção crie um repertório crítico de
representações culturais de seu país.
Além disso, é notório como a construção e reconstrução da autora nos contos,
transforma os mitos recontados e dialoga de forma ímpar com o leitor, trazendo em
todos eles sentidos amplos que deixam espaços para que o público implícito complete
esses sentidos com as suas próprias interpretações, criando um dialogismo
interessante que merece também um olhar carinhoso para com essa obra de Clarice.

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Recebido em 31 de março de 2022


Aprovado em 25 de maio de 2022

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