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XX Semana de Letras

Universidade Federal do Paraná

Volume II – Trabalhos Completos

7 a 11 de maio de 2018
COMISSÃO ORGANIZADORA

Amanda Belardo da Silva

Gabriela Ribeiro

Gabriella Christiny Alves Pinto

Glória Letícia Wenceslau Barão Marques

João Victor Schmicheck

Letícia Pilger da Silva

Luana Zacharias Karam

Matheus Henrique Germano

Maria Luíza Ziareski

Valentina Thibes Dalfovo

Valentina Varesio

Membro docente:

Anna Beatriz Paula (Co-coordenadora, DELEM)


ISSN 2237-7611
Revisão, edição e montagem:
Letícia Pilger da Silva e Valentina Thibes Dalfovo

Revisores de apoio:
Amanda Volkmann, Amyr Borhot Hamud, Ana Cláudia Fagundes da Cunha Casagrande Ramuski, Ana
Paula Dias Torres Ocampos, Gabriella Christiny Alves Pinto, Bárbara Franco Justi, João Victor
Schmicheck, Luana Karam, Matheus Germano, Maria Luíza Ziareski, Melissa Scapin Menegola, Sara
Duim e Valéria Luize Silva
SUMÁRIO

ESTUDOS LINGUÍSTICOS E EDUCAÇÃO

Relato de experiência: um combate ao discurso do racismo 7


Bárbara Franco Justi e Mariane Cristine de Castro Silva

Breve estudo sobre o fenômeno do rotacismo em falantes do município de Matinhos, Paraná 16


Amanda Gonzales da Silva e Camilla Sotto Nater

Rizoma, corpo sem órgãos e rostidade: aproximações com o livro didático 23


Emiliane Jaschefsky

Literatura marginal e ensino 33


Emiliane Jaschefsky

A semântica do termo “garoto de aluguel” na música do cantor Zé Ramalho 41


Keitiany Silva Brito

Um experimento piloto de produção de taps e laterais do PB com falantes nativos de kreyòl 49


João Victor Schmicheck

Língua(gem) nos documentos de ensino de língua portuguesa no Brasil: algumas 62


considerações
Sueder Souza

A construção de sentido nos quadrinhos: uma aplicação da teoria dos blocos semânticos 70
Thais Dias de Quadros

ESTUDOS LITERÁRIOS

Memorial do convento: o realismo e o mágico 78


Amarilis Virgínia Ferreira e Maria Antônia Alves Meyer

Cecília Meireles e Omar Kháyyám: um mesmo olhar persa 86


Erion Marcos do Prado

A lei da Torá como fundamento da identidade e sobrevivência de um povo 94


Fábio André Santos Muniz

Judaísmo, desterritorialização, assimilação, antijudaísmo e antissemitismo, a cegueira que 107


levou ao genocídio
Fábio André Santos Muniz
Classificando as poesias de Gonçalves de Magalhães 120
Gabriel Esteves

A construção do ativismo literário nas distopias do século XX: Nós, Admirável mundo novo 130
e 1984 (1921-1949)
Janis Caroline Boiko da Rosa

Paralelos entre Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, e “Honra- 141
me com teus nadas”, de Hilda Hilst
Isabel Linhares da Silva

Sob o signo da província: metapoética e imaginário local na literatura paranaense 150


contemporânea
Marco Aurélio de Souza

Ambo aevo cantuque pares: uma leitura metapoética da segunda écloga de Nemesiano 161
Melissa Scapin Menegola

Illuminated books: a intrínseca relação entre poesia e pintura nos poemas iluminados de 167
William Blake
Regina Márcia de Souza

Uma heroína em formação: verossimilhança em A abadia de Northanger, de Jane Austen 174


Sérgio Luiz Ferreira de Freitas

A modernidade de um Jeca: recepção crítica da obra lobatiana 185


Vanessa de Paula Hey

Carolina Maria de Jesus além de Quarto de despejo: diário de uma favelada 195
Vanessa Maria Poteriko da Silva

Mário de Andrade: entre a “heroica beleza de afirmar” e a torre de marfim 206


Maria Luísa Carneiro Fumaneri

A questão temporal e o anacronismo no novo romance histórico brasileiro – uma leitura dos 213
romances A república dos bugres (1999) e Conspiração barroca (2008), de Ruy Reis Tapioca
Cristiano Mello de Oliveira

As funções do prefácio da primeira edição do livro contos de Malba Tahan (1925) 224
Daniele Maria Castanho Birck

As origens da cuca de Monteiro Lobato: uma aproximação entre Egito, Portugal e Brasil 231
Dener Gabriel Ferrari e Renan Cesar Venazzi Foschiera

“O ovo e a galinha”: território privilegiado do “desvão clariceano” 240


Patrícia Ferreira Alexandre de Lima

Pós-modernidade e história em Memorial do convento de José Saramago: o conceito de 250


metaficção historiográfica
Roseanah França
Estou liberta ou perdida: os caminhos de Thomasin e de personagens femininas de Clarice 258
Lispector
Vanessa Pessoa Alves Rosa

Confissão ou ficção de si: o diário de José Carlos Oliveira 265


Francine Mariê Alves Higashi Bednarchuk
AS ORIGENS DA CUCA DE MONTEIRO LOBATO: UMA APROXIMAÇÃO

ENTRE EGITO, PORTUGAL E BRASIL

Dener Gabriel Ferrari


Renan Cesar Venazzi Foschiera

RESUMO: O presente estudo foi construído como uma possível resposta a um questionamento que até os dias de hoje repousa
no imaginário de grande parte do público infanto-juvenil brasileiro, a origem da Cuca. A Cuca é uma personagem enigmática
criada por Monteiro Lobato em 1921, no livro O Saci, e que permanece como uma das bruxas mais temidas pelas crianças
através de suas características peculiares, como rabo de jacaré e unhas de águia. Assim, buscando lançar uma possível hipótese
de sua origem, várias investigações foram realizadas, das quais se destacam os estudos de Bakos (2011), Camargo (2006),
Cascudo (2012) e Claro (2012) que apontaram para diferentes eventos, e criaturas mitológicas, desde a Coca portuguesa até a
deusa Taweret da mesopotâmia antiga. De tal forma, as hipóteses levantadas neste artigo, seriam de que primariamente a criatura
estaria relacionada à deusa Taweret, adorada por alguns povos do Oriente Médio, como os sumérios e os egípcios e uma segunda
de que a Cuca seria inspirada na Coca, figura mitológica portuguesa que se difundiu e chegou ao Brasil através das cantigas de
ninar e contos populares. Considerando essas duas hipóteses, este artigo buscou por meio de uma pesquisa qualitativa de cunho
bibliográfico, encontrar elementos que correspondessem em ambas às criaturas e que permitissem comprovar e/ou refutar as
hipóteses sugestionadas nos estudos acima. Como a pesquisa ainda se encontra em processo conclusão seria incorreto dar uma
resposta definitiva, porém, ao que tudo indica, Lobato se inspirou tanto na Coca, presente nas culturas portuguesa e brasileira,
quanto na deusa Taweret para construir a figura marcante de sua monstrenga.
Palavras-chave: Literatura Infanto-juvenil, Cuca, Representação.

1. INTRODUÇÃO

Em 2018, completam-se 70 anos da morte de Monteiro Lobato (1882-1948) e muito vem se


discutindo sobre a possibilidade da existência (ou não) de preconceito racial dentro de seus livros infantis.
Mesmo diante dessas polêmicas, vale lembrar que cabe a Lobato o lugar de fundação da Literatura Infantil
no Brasil e sua influência sobre muitas gerações de crianças, através de seus livros e/ou das constantes
adaptações para a teledramaturgia. Além disso, mesmo com todos os estudos já realizados acerca de sua
obra, escassos são os que debatem a personagem Cuca.
Assim sendo, o presente estudo aponta para duas possíveis origens da Cuca criada por Lobato. A
primeira aludindo para a inspiração de personagens folclóricos portugueses, e a segunda mostrando
possíveis relações entre a bruxa e algumas figuras mitológicas do Antigo Egito. Dessa maneira, em uma
primeira seção foi discorrido sobre como a Cuca lobatiana se relaciona com a Cuca/Coca do folclore
brasileiro e português. Nessa seção foi utilizado como embasamento os estudos de Amadeu Amaral (2014),
Evandro do Campo Camargo (2006) e Luís da Câmara Cascudo (2012).

231
Por fim, na segunda parte, discutiu-se sobre possíveis relações entre a Cuca de Lobato e a deusa
Taweret do Antigo Egito. Para tanto, parte-se das constatações de Margaret M. Bakos (2011) e avança-se
na discussão apresentando mais informações acerca da deusa egípcia através de George Hart (2005) e Pat
Remler (2010) e algumas possíveis relações através do arquétipo materno postulado por Carl G. Jung
(2000).

2. RELAÇÕES DA CUCA DE LOBATO COM A CUCA DO FOLCLORE IBÉRICO E BRASILEIRO

Impregnada no imaginário coletivo através da famosa quadra popular “Nana nenê/ Que a cuca vem
pegar/ Papai foi pra roça/ Mamãe foi trabalhar”, a Cuca se constituiu, ao longo dos últimos dois séculos,
como uma figura mitológica bastante popular no Brasil, responsável pelo rapto de crianças desobedientes.
Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), historiador e antropólogo brasileiro, descreve essa figura tão
peculiar do nosso folclore:

A Cuca ou a Coca é um ente velho, muito feio, desgrenhado, que aparece durante a noite para levar consigo os
meninos inquietos, insones ou faladores. Para muitos a Coca ou Cuca é apenas uma ameaça de perigo informe.
Amedronta pela deformidade. Não sabe como seja o fantasma. A maioria, porém, identifica-a como uma velha,
bem velha, enrugada, de cabelos brancos, magríssima, corcunda e sempre ávida pelas crianças que não querem
dormir cedo e fazem barulho. É um fantasma noturno. Figura em todo o Brasil nas canções de ninar. Não há
sobre ele episódios nem localizações. Está em toda a parte, mas nunca se disse quem carregou e como o faz.
Conduz a criança num saco. Leva nos braços. Some-se imediatamente depois de fazer a presa. Pertence ao
ciclo dos pavores infantis que a Noite traz (CASCUDO, 2012, p. 295).

A origem dessa figura lendária aponta para as tradições folclóricas portuguesas e espanholas,
chegando ao Brasil através da colonização portuguesa. Amadeu Amaral salienta que em diversas
procissões religiosas em Portugal “[...] havia um indivíduo vestido de túnica cinzenta e coberto com um
capuz, a quem chamavam ‘côca’” (2014, p. 108). Também é sabido que nas celebrações de Corpus Christi
na Espanha existia a Coca, um dragão de papelão que causava espanto nas crianças. Claro (2012), por sua
vez, lembra que em Portugal, em alguns festejos que lembram o Halloween, abóboras são esculpidas e
utilizadas como lanternas. Essas abóboras são popularmente denominadas de “cocas” que também na
linguagem popular significa “cabeça”.
Chegando ao Brasil, as tradições se transformaram através da mistura e da influência, em menor
proporção, das culturas indígena e africana. Cascudo (2012) aponta para a significação da palavra “cuca”
que no idioma angolano Nbunda significa avô ou avó, contribuindo para o imaginário popular com uma
ideia de velhice. Enquanto isso, “[n]o tupi, cuca significa o trago, o que se engole de uma vez, e assim

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também dizem de uma coruja. Ideia de voracidade. A coruja é o mistério noturno” (CASCUDO, 2012, p.
303). Assim, “cuca” corresponderia a uma criatura que tem por característica o rapto, a maldade,
contribuindo para caraterização de tal crença portuguesa de um ser malvado.
Percebe-se, assim, que embora as origens do mito venham da Península Ibérica, é possível
visualizar, também, embora em menor grau, algumas influências indígenas e africanas para a constituição
de um mito nacional presente nas cantigas infantis: uma mulher velha que rapta e devora crianças, caso elas
não durmam e/ou não obedeçam aos comandos dos pais. Assim, com um toque brasileiro, o dragão acabou
transformando-se em uma bruxa velha e má, porém com os mesmos propósitos de roubar criancinhas.
São com estas características que Monteiro Lobato constrói sua personagem Cuca, junto a outras
figuras folclóricas, em seu livro O Saci (1921). No livro, Pedrinho captura um saci e junto dele desvenda os
mistérios noturnos da mata, conhecendo várias das figuras presentes no folclore brasileiro. A Cuca habita
uma caverna nas profundezas do Capoeirão dos Tucanos, dorme apenas uma noite a cada sete anos e
transforma Narizinho em pedra. E através de uma coruja que o Saci acaba descobrindo o ocorrido,
contando logo em seguida a Pedrinho.
A Cuca é lembrada pelo menino como uma criatura presente nas cantigas de ninar, como adverte o
narrador: “Lembrava-se que ouvindo essa cantiga sentia uma ponta de medo e fechava os olhos e logo
dormia” (LOBATO, 2016, p.140). O narrador ainda acrescenta: “Depois que cresceu, nunca mais ouviu
falar na Cuca, a não ser minutos antes, quando o Saci lhe contou que a Cuca era a Rainha das Coisas Feias”
(LOBATO, 2016, p.140).
Lobato, através do narrador, sugere que a Cuca repousa na memória das crianças, que desde
pequenas são embaladas ouvindo sobre tal criatura na canção de ninar. Assim, é possível perceber que as
cantigas e contos, frutos das tradições populares passadas através das gerações foram valorizadas por
Lobato para a construção de suas narrativas que compõem a famosa série O Sítio do Picapau1 Amarelo.
Com relação à descrição física da personagem, nota-se algo minimamente interessante: há duas
caracterizações diferentes. A primeira descrição da Cuca na narrativa ocorre no momento em que Pedrinho
e o Saci vão disfarçados à caverna em que a bruxa vive para que não sejam percebidos por ela. Assim,
nesse momento a Cuca é descrita como um ser que “[...] tinha cara de jacaré e garras nos dedos como os
gaviões. Quanto à idade, devia andar para mais de três mil anos. Era velha como o tempo” (LOBATO,
2016, p. 157).

1
Embora no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) a palavra “pica-pau” é grafada com hífen, optou-se, neste
artigo, pela utilização da grafia “picapau”, sem hífen, tal qual a utiliza Monteiro Lobato em seus livros.

233
A outra descrição é dada por Narizinho, que acrescenta novas informações sobre a criatura: “Foi
assim. Eu estava com a Emília debaixo da jabuticabeira. De repente, uma velha, muito velha e coroca,
aproximou-se de mim com um sorriso muito feio na cara” (LOBATO, 2016, p. 184). Essa segunda
descrição, como a narrativa dá a entender, mostra uma transformação da poderosa bruxa que possui forma
de jacaré em uma velha, para que consiga realizar suas maldades, comportamento que por sinal é bastante
comum nas adaptações para a televisão2.
É facilmente percebido que a Cuca retratada por Lobato é bastante diferente daquela descrita por
Câmara Cascudo. Ao retratar a Cuca em O Saci, Lobato redescobre e ao mesmo tempo reinventa essa
figura do folclore nacional, dando-lhe uma imagem diferente daquela impregnada no imaginário popular
brasileiro até então, buscando as origens da lenda na Côca portuguesa e resgatando a imagem do dragão e
adaptando ao jacaré brasileiro

Se levarmos em consideração a definição de Cascudo, seremos obrigados a inferir que Lobato, aproveitando-se
de algumas características já existentes, criou a sua própria Cuca, preenchendo algumas lacunas, como o
aspecto informe da bruxa, substituído, na narrativa, por uma mistura de traços de um animal tido como feio e
ameaçador, o jacaré [...]. Para completar sua Cuca, Lobato, contemplando a tradição, a faz velha, e, por fim,
mune a bruxa com olhos muito parecidos com os de algumas descrições dos olhos do saci contidas em alguns
relatos do Inquérito. [...] Deste modo, percebemos que Monteiro Lobato acabou por influir consideravelmente
na imagem que hoje se tem desse personagem primordial no folclore brasileiro. (CAMARGO, 2006, p. 292)

A popularização da lenda da Cuca através da personagem criada por Monteiro Lobato, deve-se
principalmente à adaptação para a teledramaturgia da obra do autor, através da série televisiva O Sítio do
Picapau Amarelo. Já que nas adaptações, a monstrenga é a vilã constante, fazendo-se muito mais presente
do que na obra original.
Vale ressaltar que a partir do momento em que a obra de Monteiro Lobato se populariza, cria-se
uma confusão na mente das pessoas que não conseguem desvincular a criatura presente nas narrativas
populares da personagem criada por Lobato. No momento em que as pessoas pensam na Cuca já a
associam automaticamente à imagem criada por Monteiro Lobato, assim “[...] para as crianças de hoje, a
Cuca é um mito televisivo, ‘aquela do Sítio do Picapau Amarelo que passa na televisão’” (CAMARGO,
2006, p. 293).
Assim, pode-se perceber facilmente que a Cuca de Lobato se diferencia da Cuca presente no
folclore brasileiro. Porém, ao criar a sua personagem, o autor, muito provavelmente, bebe nas fontes
folclóricas portuguesas para a (re)criação de sua Cuca, que, junto ao restante da obra, se populariza e acaba

2
Foram realizadas três adaptações da obra infantil de Lobato, todas pela rede Globo de televisão. A primeira foi ao ar de 1977 a
1986 e a segunda de 2001 a 2007, sendo que ambas possuíam formatos semelhantes a telenovelas. A terceira foi produzida em
formato de animação e foi ao ar de 2012 a 2014.

234
gerando uma confusão na cabeça dos leitores/telespectadores que não conseguem separar a criação de
Lobato da figura folclórica.

3. APROXIMAÇÕES ENTRE A CUCA DE MONTEIRO LOBATO E A DEUSA EGÍPCIA TAWERET

Caracterizada como uma bruxa com idade avançada e que possui forma de jacaré e garras de
gavião, a personagem Cuca apresenta características um tanto quanto excêntricas quando se observa sua
estrutura física, remetendo o leitor/telespectador mais atento a criaturas como a esfinge ou mesmo aos
antigos deuses egípcios e mesopotâmicos. Isso porque a composição dessas criaturas e deuses estava, em
sua grande maioria, ligada ao antropomorfismo, assim evidenciando características humanas e as de
animais. Dessa forma, a Cuca é uma personagem híbrida, ou seja, possui ao mesmo tempo características
próprias de seres humanos (postura ereta e fala) e características próprias de animais (costas de jacaré e
garras).
A partir dessa constatação, não tardam indicações de autores e estudiosos de que essa figura não
pode ser tão recente, tendo em vista que suas características físicas antropomórficas (ou híbridas) não
remetem apenas à cultura ibérica, mas sendo possível estabelecer conexões com personagens de um
passado bem mais longínquo, como é observado, por exemplo, nas representações de deuses egípcios (Rá,
Anúbis, Isis e Seth) mesopotâmicos (Innana e Marduk) e babilônicos (Ea e Tiamat).
Sobre a relação existente entre a cultura ocidental e a mediterrânea, e a consequente utilização desse
modelo de representações do Oriente nas sociedades ocidentais, torna-se interessante considerar o estudo
de Bakos (2011), que apresenta uma possível relação existente entre a Cuca e a deusa Taweret3 por
exemplo. Restringindo para a descrição da deusa egípcia, Remler a apresenta como “[u]ma divindade do
lar, Taweret, a deusa hipopótamo grávida, era a patrona das mulheres grávidas. Ela ajudava no parto e
cuidava de crianças pequenas. Por causa de sua natureza calma e gentil, ela era uma deusa do lar favorita.”
(REMLER, 2010, p. 187, tradução nossa)4.
Remler (2010) ainda aponta que a grande popularidade da deusa se devia tanto à sua função de mãe
calma e gentil, como também de protetora, o que justificaria assim sua aparência monstruosa, com o
objetivo de afastar os maus espíritos das crianças e das mulheres grávidas. Dessa forma, a deusa Taweret

3
Tanto no Egito quanto na Grécia, há várias variantes do nome da deusa egípcia, tais como: Taweret, Taurt, Tueris e Toeris. No
decorrer do texto, será utilizado a nomenclatura Taweret, por considerarmos um termo mais próximo ao português.
4
“A household deity, Tauret the pregnant hippopotamus goddess was the patron of pregnant women. She assisted in childbirth
and watched over young children. Because of her calm nature and kindly disposition, she was a favorite household goddess.”
(REMLER, 2010, p. 187).

235
era objeto de adoração e cunhada em muitos amuletos, objetos e utensílios domésticos, como
predominantemente era visto em uma espécie de vaso, utilizado para a purificação do leite que
posteriormente seria utilizado na amamentação.
Tornando aos atributos físicos da personagem, a princípio, quando se contrasta as duas criaturas
parece existir uma contradição, uma vez que a deusa Taweret é apresentada como um ser com “[...] a
cabeça de um hipopótamo, as pernas e braços de um leão, a cauda de um crocodilo e seios humanos”
(HART, 2005, p. 155, tradução nossa)5. Entretanto, nada impede que, no caso da personagem Cuca, Lobato
tenha desenvolvido uma simplificação de seus atributos, que ganham aspectos físicos predominantes de
apenas um animal antropomorfizado, o crocodilo ou o jacaré, além das garras. Uma possível justificativa
para a simplificação, assim, residiria no fato de que a personagem deveria apresentar características
brasileiras e como em solo brasileiro não existiriam leões e muito menos hipopótamos, Lobato preferiu que
as características majoritárias fossem as de um jacaré6.

Imagem 01: Representação da deusa egípcia Taweret.

De tal modo, embora no plano das semelhanças a deusa Taweret e a Cuca possam primeiramente
apontar para uma contradição, considerando as suas representações, é possível estabelecer outras

5
“[...] the head of a hippopotamus, the legs and arms of a lion, the tail of a crocodile and human breasts.” (HART, 2005, p. 155).
6
Essa é a hipótese levantada por Margaret M. Bakos (2011). Questionamos essa hipótese, pois, até onde possuímos
conhecimento, Lobato não possuía interesses de estudo e pesquisa no Antigo Egito.

236
caraterísticas partilhadas pelas duas. Como a simbologia atribuída a cada uma delas, demostrando que há
uma essência comum que ambas compartilham, a do arquétipo materno.
De acordo com Jung (2000), o arquétipo materno possui dois aspectos principais. O primeiro é
caracterizado como “[...] o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de
crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o
impulso favoráveis” (JUNG, 2000, p. 92) e pode ser denominado como mãe bondosa. Já o segundo é
caracterizado pelo “[...] secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e
venenoso, o apavorante e fatal” (JUNG, 2000, p. 92) e é denominado como mãe terrível.
Nesse sentido, é possível perceber que a deusa Taweret permanece ligada ao aspecto bondoso do
arquétipo materno, a da mãe que protege seu filho que sozinho não possui capacidades suficientes para
viver sozinho. Por sua vez, a Cuca representa a mãe terrível, a mãe que mesmo com o crescimento dos
filhos, não os deixa alçar voo sozinho e por isso se torna um obstáculo ao filho, que deve enfrentá-la em
uma espécie de ritual para que possa adentrar na idade adulta. Fato que pode ser observado no livro O Saci,
no qual Pedrinho deve vencer a Cuca para salvar Narizinho e conseguir o reconhecimento próprio como
herói.
Considerando a ideia dos arquétipos, muitas outras conexões são possíveis de serem estabelecidas
entre as duas criaturas, como o fato de a Cuca ser uma bruxa e possuir forma parecida com a de um dragão,
que de acordo com Jung (2000) seria uma das formas possíveis de manifestação do aspecto terrível desse
arquétipo. O vaso utilizado em rituais de purificação, a gruta que serve de moradia para a Cuca, a floresta,
enfim, muitas são as possíveis comparações. Porém considerando o espaço e o objeto de investigação, o
presente estudo apenas lança alguns desses, por considerá-los de maior impacto na análise.
Portanto, nesta breve seção, apresenta-se uma possível comparação entre a deusa egípcia Taweret e
a bruxa brasileira Cuca de Monteiro Lobato. A partir de uma série de características, uma possível
simplificação da deusa não aparenta ser muito provável. No entanto, de uma maneira indireta, através do
arquétipo materno, é possível estabelecer relações entre as duas figuras, representando o lado bondoso e o
lado terrível do arquétipo, respectivamente.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base neste breve estudo da personagem, duas trajetórias de análise foram traçadas para discutir
a questão dos elementos culturais diversos que podem estar presentes na representação da Cuca de Lobato.
Uma primeira que considera o autor como um grande estudioso da cultura brasileira e, muito

237
provavelmente, um conhecedor das procissões religiosas na península Ibérica e consequentemente da
figura lendária do dragão, posto que parece tê-la adaptado à ideia do jacaré, animal existente no Brasil e
aspecto principal da Cuca.
E uma segunda, que leva mais em consideração as relações existentes entre animais mitológicos,
seres, deuses e seu aspecto antropomórfico, aspecto que também estaria vinculado à sua simbologia, que
por milhares de anos permaneceu praticamente inalterável nas mais diferentes culturas orientais. Assim, as
relações entre a Cuca e a deusa Taweret parecem ser pouco prováveis no plano visual, considerando que
Lobato teria simplificado as características da deusa para compor a Cuca. Porém, as relações entre a deusa
Taweret e a Cuca poderiam ser expressas com uma maior propriedade em um nível do simbólico, através
do arquétipo materno, representando o aspecto da mãe bondosa e da mãe terrível, respectivamente.
Seja ela resultado de manifestações culturais e conexões históricas entre Brasil e Portugal, sejam
elas conexões simbólicas existentes no subconsciente humano que remontariam a um passado mais
distante, ou fruto de intercâmbios ocorridos ao longo dos vários séculos de interação entre o oriente o
ocidente. O fato é que estabelecer com exatidão a sua origem demanda muito mais que leituras, teorias e
discussões, mas um próprio trabalho de pesquisa no material do seu autor, nesse caso Lobato, a fim de
determinar suas proposições e a base na qual se inspirou ao criar tal personagem.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Amadeu. O Dialeto Caipira. 1 ed. São Paulo: Poeteiro Editor Digital, 2014.

BAKOS, Margaret Marchiori. “Para além do mediterrâneo: explicações sobre a gênese da Cuca de
Monteiro Lobato”. In: Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 6, nº 2, p. 237-252, 2011.

CAMARGO, Evandro do Carmo. Um estudo comparativo entre O Sacy-Perêrê: resultado de um inquérito


(1918) e O Saci (1921), de Monteiro Lobato. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras de
Assis. Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, 2006. 493 f. Disponível em:
<http://200.145.6.238/handle/11449/94134>. Acesso em: mar. 2018.

CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. 1 ed. São Paulo: Global, 2012.

CLARO, Majori Fonseca. Da isbá na floresta gélida à caverna tropical: aproximações entre as
personagens Babá-Iagá e Cuca. 203f. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduação em
Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, 2012. Disponível em:
<https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/14706>. Acesso em: mar. 2018.

HART, George. The Routledge Dictionary of Egyptian God and Goddesses. 2 ed. New York: Routledge,
2005.

238
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

LOBATO, Monteiro. O Saci. 3 ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.

REMLER, Pat. Egyptian Mythology A to Z. 3 ed. New York: Chelsea House Publishers, 2010.

239

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