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Desvendando

Clarice
UM GUIA LITERÁRIO POR:

ANA CLARA DA SILVA CUNHA VIEIRA SANTOS


MARIA CLARA MENDES SILVA
MARIA RAQUEL GUERREIRO SILVA
A escritora Clarice Lispector na adolescência - Acerto Paulo Gurgel Valente
"Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você
conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em
entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

- Clarice Lispector.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................... 07

BIOGRAFIA............................................................ 09

CONTEXTO HISTÓRICO..................................... 16

INFLUÊNCIAS E MEIO LITERÁRIO.................... 20

ESCRITA................................................................ 29

OBRAS................................................................... 34

AGRADECIMENTOS............................................ 58
INTRODUÇÃO

Desejamos boas-vindas a você, leitor


do guia literário de uma das escritoras
mais singulares e impactantes da
literatura brasileira: Clarice Lispector.
Nosso projeto surgiu da necessidade de
ilustrar que a educação não deve ser um
privilégio, mas sim um direito de todos.
Ao explorar a vasta carreira e vida de
Clarice Lispector, desejamos que os
alunos possam ter acesso à arte de uma
maneira desmistificada da autora. Assim,
é possível que consigamos dar o primeiro
passo até a democratização do
conhecimento, tornando-o disponível
gratuitamente aos interessados.
Durante a leitura do guia, você
encontrará uma detalhada biografia da
autora, assim como os principais
contextos históricos de influência e meio
literário que cercam as construções de
Clarice.
Clarice Lispector - Jornal do Brasil.
CAPÍTULO 1
Biografia
DESVENDANDO CLARICE

Clarice Lispector, uma das maiores


escritoras do modernismo e da literatura
brasileira do século XX, nasceu no dia 10 de
dezembro de 1920, na Ucrânia, na cidade de
Tchechelnik, anteriormente conhecida como
uma das repúblicas da União Soviética.
Filha de Pinkouss Lispector e Mania
Lispector e irmã de Leia e Tania, Clarice,
incialmente chamada Haia Lispector,
emigrou-se para o Brasil ainda criança com
a família.
O primeiro destino brasileiro dos
Lispector foi Maceió, capital do estado de
Alagoas, em 1922. Depois de alguns anos,
passaram a morar em Recife, capital do
estado de Pernambuco, onde Clarice
construiu parte de sua infância e iniciou
seus estudos. Quando aprendeu a ler, no
Grupo Escolar João Barbalho, a jovem já
iniciara sua vida como escritora, criando
textos literários para peças teatrais,
despertando seu amor pela arte da palavra.

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DESVENDANDO CLARICE

Após a morte da matriarca, aos 41 anos,


a família Lispector - agora constituída por
Clarice, suas duas irmãs e o pai -,
estabeleceu-se no Rio de Janeiro. Em 1936,
terminou o ginásio, e anos mais tarde deu
início no curso de Direito na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), intitulada
anteriormente Universidade do Brasil.
Embora a motivação inaugural da escritora
fosse atuar em penitenciárias, enxergou sua
verdadeira paixão: a literatura.
Submetia contos à imprensa e via-se
cada vez mais engajada no mundo da
escrita - mesmo que precisasse de lidar
com a censura devido ao Estado Novo.
Além disso, sob influência da língua
materna, iídiche, Clarice atuava
ativamente como tradutora, e dominava
muitos outros idiomas.
Concomitantemente trabalhava como
redatora e repórter na Agência Nacional
do Departamento de Imprensa e
Propaganda.

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DESVENDANDO CLARICE

Em 1942, Clarice envia uma carta ao


presidente Getúlio Vargas, a qual pedia-lhe
que fosse naturalizada como brasileira, pois
sua paixão havia escolhido o Brasil como
pátria. Em janeiro do ano seguinte, ela
recebe a assinatura de naturalização do
presidente e do ministro do Trabalho e da
Justiça da época, Alexandre Marcondes
Filho.
No mesmo ano, a escritora fez sua
verdadeira estreia na literatura com o livro
"Perto do Coração Selvagem", que recebeu
muitas críticas positivas e causou grande
impacto no cenário literário brasileiro.
Dessa maneira, a autora ganhou o prêmio
Graça Aranha de melhor romance do ano,
além de ser colocada ao lado de grandes
nomes internacionais, como James Joyce,
Kafka, Katherine Mansfield e Virginia
Woolf.

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DESVENDANDO CLARICE

Casou-se em 23 de janeiro de 1943, com


Maury Gurgel Valente, antigo colega de
faculdade. Logo, os dois mudaram-se para
Belém e viajaram para outras partes do
mundo em decorrência do trabalho como
diplomata do marido, assim, tiveram dois
filhos chamados Pedro e Paulo. Em 1959, o
casal se separou e Clarice volta a residir no
Rio de Janeiro com os filhos. Em 1960, 27 de
julho, publicou um de seus livros mais
famosos de contos “Laços de Família”, esse
que a estabilizou no cenário brasileiro de
literatura, garantindo-a o prêmio Jabuti.
A escritora focou, depois de seu sucesso,
na confecção de livros infantojuvenis, que
incluem títulos, como “O mistério do coelho
pensante” (1967); “A mulher que matou os
peixes” (1968); “Doze lendas brasileiras –
Como nasceram as estrelas” (1977), além
daqueles publicados postumamente.

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DESVENDANDO CLARICE

Para mais, publicou, em 1974, "A via crucis


do corpo", livro que Clarice descreveu com a
seguinte frase “Há hora para tudo. Há
também a hora do lixo”.
Clarice Lispector faleceu, aos 56 anos,
no dia 9 de dezembro de 1977, na véspera de
seu aniversário, devido a um câncer no
ovário descoberto tardiamente. Títulos como
“A hora da estrela” foram publicados após a
morte da autora. Clarice era reconhecida
por uma maneira única de expressar-se a
respeito dos mistérios da vida e do viver, da
existência, das alegrias e das dificuldades do
mundo. Um dos maiores nomes do Brasil.

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Família Lispector (pais, Clarice e as irmãs) - déc. 1920 em Recife-PE.
Foto Acervo da Clarice Lispector no Museu de Literatura Brasileira
(AMLB) da Fundação Casa Rui Barbosa.
CAPÍTULO 2
Contexto histórico
DESVENDANDO CLARICE

Na Europa, o início do século XX foi


marcado pelas tensões políticas entre as
grandes nações europeias. Essas tensões
tiveram várias causas, entre elas estão: o
imperialismo, o nacionalismo, a corrida
armamentista e a competição entre as
grandes nações por áreas de influência e
exploração dos países subdesenvolvidos.
Todos esses conflitos culminaram na
Primeira Guerra Mundial e logo após o
surgimento de ideologias extremistas como
o nazismo e fascismo resultaram na
Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, o cenário político envolvia o
fim da República Velha na década de 1920 -
marcada pela divisão do poder político
entre os estados de São Paulo e Minas
Gerais - e o início da Era Vargas - período
caracterizado pela centralização do poder e
pelas políticas trabalhistas.

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DESVENDANDO CLARICE

O período histórico que engloba a terceira


geração modernista envolve a Guerra Fria -
que divide o mundo em áreas de influência
capitalista e socialista. No Brasil o momento
em que se inicia a terceira geração é menos
conturbado do que as duas anteriores, já que
o país estava passando por um processo de
redemocratização após o fim do Estado
Novo.
Os avanços na área científica também
foram cruciais para a ascensão das
vanguardas modernistas. Entre os avanços
mais importantes estão a divulgação da
teoria da relatividade de Einstein e a
formação da base da psicanálise por Freud.
além disso, os avanços tecnológicos como o
rádio e a TV passaram a fazer parte da vida
da população e se iniciou um período de
inspiração dos artistas a criarem uma ‘nova
arte’ radical e crítica da tradição.

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No Brasil, o modernismo foi dividido em


três gerações. A primeira, teve início com a
Semana da Arte Moderna em 1922 teve como
principais características: liberdade de
criação, aproximação da fala com a escrita,
antiacademicismo e releitura do passado
histórico. A segunda geração - que durou da
década de 1930 a 1945 - teve como
características o conflito espiritual,
sociopolítico, regionalismo e a liberdade
formal. E por fim, a terceira geração (da
qual Clarice Lispector fazia parte) teve
início em 1945 e fim em 1978 e apresenta
características como: fluxo de consciência,
fragmentação, e o particular diálogo com o
universal.

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CAPÍTULO 3
Influências e meio literário
DESVENDANDO CLARICE

Em 1943, Clarice Lispector publica Perto


do Coração Selvagem, obra que foi de
encontro ao que então era produzido no
país no período literário em questão: o
Segundo Período do Modernismo Brasileiro,
baseado em uma produção literária
regionalista e engajada em questões
políticas, diferentemente das ideias que
eram construídas pela autora. Compreender
essa fase é fundamental para estabelecer
respostas que giram em torno das
influências da autora. Desde o princípio, ela
não quis manter laços que remetessem à
interferência de outros autores e projetou
composições singulares que livrasse sua
escrita de dependências externas. Contudo,
ao longo das décadas, diversos críticos e
pesquisadores buscaram por registros nas
obras clariceanas que apresentassem traços
advindos de outros escritores, e assim
nasceram teorias acerca das atuações de
James Joyce sob a produção da autora.

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DESVENDANDO CLARICE

Apesar de sempre ter negado tal


informação, Clarice utilizou uma frase do
escritor na publicação do romance Retratos
de Um Artista Quando Jovem: "Ele estava só.
Estava abandonado, feliz, perto do selvagem
coração da vida". (Joyce. Apud. Lispector.
P.C.S:epígrafe).
Durante a infância, Clarice lia obras
Lobatianas e, em especial, Reinações de
Narizinho, que viria mais tarde a
configurar algumas das escritas da autora,
como observado no trecho de Felicidade
Clandestina: “Era um livro grosso, Meu
Deus, era um livro para se ficar vivendo
com ele, comendo-o, dormindo-o. (...). Agora,
ali está ele, o livro, o mais extraordinário
das existências não humanas, e ali estava
ela, a menina, o mais admirável dos seres
vivos, promessa de felicidade. Fingia que
não o tinha só para depois levar o susto de o
ter. (...)

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DESVENDANDO CLARICE

Criava as mais falsas dificuldades para


aquela coisa clandestina que era a
felicidade. (...) Às vezes sentava-me na rede
balançando-me com o livro aberto no colo,
sem tocá-lo em êxtase puríssimo (...) não era
mais uma menina com um livro: era uma
mulher com seu amante.”(Lispector, Os
melhores contos de Clarice Lispector. 1998:
44, 45, 46)”.
Observar a influência literária guiada
por uma obra infantil que pressupõe a
passagem da menina para a mulher, como
cita a autora, despertam no leitor e na
crítica regente a função primordial da
interferência externa que age sob a
construção de um autor, do futuro alguém
que se interessa pelas produções literárias.
Sob essa análise, esses fatores foram
fundamentais para a formação da literatura
clariceana e, posteriormente, na fase adulta,

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DESVENDANDO CLARICE

Clarice formaria um grande acervo


literário e autobiográfico juntamente a
Fernando Sabino, seu amigo próximo a
quem a autora escreveu diversas cartas
pessoais que desvendaram parcialmente o
mistério da vida da autora. As trocas de
textos entre os dois autores originou o livro
Cartas Perto do Coração (2001), que
apresenta a coleção de cartas trocadas entre
os amigos, que configurou instrumento
importante para a construção da
singularidade do eu dentro da simplicidade
do cotidiano de ambos.
“Trocávamos ideias sobre tudo.
Submetíamos nossos trabalhos um ao outro.
Juntos reformulávamos nossos valores e
descobríamos o mundo. (...) Era mais do que
uma paixão pela literatura. (...) O que
transparece em nossas cartas é uma espécie
de pacto secreto entre nós dois, solidários
ante o enigma que o futuro reservava para o
nosso destino de escritores.” (SABINO, 2003,
p. 8).
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DESVENDANDO CLARICE

Por dentro das cartas, desvenda-se o


mundo psicológico dos autores: Clarice
demonstra-se paralisada criativamente pela
angústia interior, enquanto Fernando
apresenta sua motivação para produzir a
partir dos devaneios existenciais. Ambos, no
entanto, sentimentalizam o cotidiano, de
modo que emoções são representadas por
meio das condições do ambiente.
"Esta chuva que está caindo é uma
maravilha e tem também um pouco de sol:
chuva e sol, casamento da raposa com o
rouxinol. Estou cheia de problemas e a cada
dia um deles entra em estado de crise, sem
socorro. Interrompi mesmo o trabalho,
minha impressão é de que é para sempre. (...)
Tenho outros problemas também, Fernando,
e por carta não saberia falar" (LISPECTOR,
2003, p. 36-38).

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DESVENDANDO CLARICE

Clarice Lispector, por meio dos textos, é


desvendada sob as influências e conselhos de
Fernando Sabino sobre suas produções,
como a sugestão do título de A Maçã no
Escuro, que originalmente foi intitulado
como A Veia no Pulso. Além desses fatos, a
autora apresenta suas inquietações sobre a
demora da publicação do livro e as
perturbações causadas pela espera:
"Fernando, que editor você acha que
quereria publicar 'A veia no pulso?' (...) Se
você me disser o nome de dois ou três
possíveis, eu escreverei para eles
'oferecendo'. Mas queria que fosse um editor
que pudesse publicar sem demora, o mais
rápido possível. (...) Esperas me fazem mal,
me atrapalham, fazem de mim uma
impaciente. Não tem que ser bom editor, tem
que ser rápido." (LISPECTOR, 2003, p. 128-
129).

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DESVENDANDO CLARICE

Na literatura de Clarice, nota-se a


inconfundível presença do desenvolvimento
psicológico das personagens, traçados
semelhantemente à estrutura literária
moderna segundo Antonio Candido, em que
as figuras humanas são complexas e o
enredo é simples. Assim, inicia-se uma
constante pesquisa sobre as possíveis
influências da autora, que objetivamente
produziu sobre um viés existencialista e,
principalmente, íntimo. Desse modo, as
trocas de cartas com Fernando Sabino
construíram uma sólida base de estudos
literários que desvendam questões acerca
das observações externas e posições da
autora dentro das criações.

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Clarice Lispector, seu marido Maury Gurgel Valente, Apolonio de Carvalho,
Samuel Wainer e Daniel, cunhado de Apolonio. Paris, 1946.
(Foto: Acervo pessoal de Pinky Wainer).
CAPÍTULO 4
Escrita
DESVENDANDO CLARICE

Clarice Lispector é reconhecida como


uma das mais importantes autoras
brasileiras da segunda metade do século
XX, isso se deve ao seu estilo literário
intimista, que está entre a poesia e a prosa.
O que destacava a escritora era a
capacidade de demonstrar elementos do dia
a dia com uma profunda espiritualidade,
além de utilizar a primeira pessoa em suas
narrações. Ela se destacava também por
sua singularidade, uma escritora que não
se assemelhava a ninguém de sua época,
por isso, não era possível encaixá-la
perfeitamente em nenhum movimento
literário, mesmo que pertencesse à terceira
fase do modernismo brasileiro.
Clarice, em sua última entrevista para
a TV Cultura em 1977, diz que não havia
motivos para escrever quando ainda era
jovem, ela apenas escrevia. Também cita
que não era uma escritora profissional,
mas uma amadora que escrevia apenas
quando queria, pois não via a escrita como
uma obrigação nem para si nem para os
outros, assim, ela dizia que gostaria de
continuar sendo uma amadora.

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DESVENDANDO CLARICE

Apesar disso, para ela, não escrever era


como não estar viva.
Lispector costumava refletir em seus
livros e contos sobre o ato de escrever e
sobre isso ser o sentido de sua vida. É
possível perceber a subjetividade de
Clarice ao se expressar em seus textos, ela
amava a beleza e a singularidade da
língua portuguesa, isto é, sua conexão
com o Brasil e a cultura brasileira
motivavam-na a escrever, a autora
mergulhava na exploração da literatura
de maneira sem igual.
Sua escrita, sempre tão ligada à vida,
costumava confrontar o ser e o existir.
Seu estilo único e reinventado mostrou-se
avassalador e encantador para os leitores,
pois havia ali um novo olhar sob o mundo,
uma nova maneira de questionar os
mistérios da existência e uma nova
representatividade para a literatura
brasileira.

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DESVENDANDO CLARICE

Talvez, por isso, sua forma de escrever


seja uma incógnita para tantas pessoas, já
que uma escrita cheia de personalidade e
não clichês possa vir a construir uma
barreira entre o possível entendimento do
que está escrito pelo leitor e o que a
autora quis expressar.
Em suas obras, a contista sentia que lhe
faltavam palavras e significados, então
não era possível que ela se expressasse
como realmente gostaria. Assim, descrevia
as palavras como um desafio, algo difícil
de domar, então preferia escrever tudo o
que vinha em mente, mesmo que não
pudesse traduzir de maneira equivalente a
tudo o que sentia e pensava.

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Clarice em seu ambiente de trabalho, nos anos 1970 - Acervo Paulo
Gurgel Valente.
CAPÍTULO 5
Obras
DESVENDANDO CLARICE

Perto do Coração Selvagem

Em “Perto do Coração Selvagem”, romance


de estreia de Clarice Lispector,
acompanhamos a história de Joana, órfã de
mãe e pai, que passa a morar com os tios
logo após a morte do último. Seus tios, ao
conhecerem-na melhor decidem mandá-la
para um internato, local onde viverá até a
idade adulta. Durante a obra
acompanhamos a personagem por meio de
suas lembranças da infância até a vida
adulta, e por meio do fluxo de consciência -
tão característico de Clarice - conhecemos
os pensamentos e desejos mais íntimos da
personagem. Ao longo de toda a obra, a
autora mostra ao leitor o conflito entre vida
e morte, bem e mal, amor e ódio, a constante
busca da protagonista por coisas
aparentemente exteriores e sua descoberta
de que o que procura é o autoconhecimento.

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DESVENDANDO CLARICE
O ovo e a Galinha

“O ovo e a galinha” é um conto de Clarice


que ela mesma afirma não compreender. A
história começa com uma mulher em sua
cozinha vendo um ovo. E a partir disso a
narrativa nos leva a diversas questões
existenciais. A não linearidade e a
desconstrução da forma de usar os
elementos da narrativa desafia a tradição e
verifica autenticidade à obra. A literatura
de Clarice já nos mostrou que muitas vezes
alcança os limites do incompreensível e “O
ovo e a galinha” tem muita relação com esse
incompreensível, por meio da obra podemos
perceber como Clarice aborda o nosso desejo
constante de buscar uma compreensão na
vida humana e, de perder toda essa
compreensão repentinamente. Mas não
perdemos o desejo de repetir essa busca,
como se fosse a nossa verdadeira essência,
mesmo quebrada.

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DESVENDANDO CLARICE
A Paixão segundo G.H

Em “A Paixão segundo G.H”, assim como


em outras obras de Clarice, não
acompanhamos uma história que pode ser
sintetizada nitidamente com um começo,
meio e fim. A narrativa é recheada por
sequências de pensamentos e reflexões e
para compreendê-los é necessário uma
leitura mais atenta. A obra começa
quando a personagem G.H. decide fazer
uma limpeza no quarto da empregada, 6
meses após ter demitido a que trabalhava
para ela. No entanto, ao entrar no quarto,
G.H. percebe que a empregada havia
arrumado tudo antes de ir embora e que
não havia o que limpar ali. Ao se deparar
com o quarto vazio a personagem também
se depara com o seu próprio vazio
interior, o vazio da sua existência. Assim,
tomada pela angústia e pela aflição, G.H
procura algo para fazer no quarto e segue
em

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direção ao guarda-roupa, do armário sai


uma barata e G.H é tomada por uma
epifania, na qual enfrenta seus medos e
questiona sua existência. Ao ceder aos seus
instintos primitivos a personagem prova a
barata, esse ato simboliza a descoberta do
seu verdadeiro estar no mundo, e ao cuspir
esse conteúdo é como se ela cuspisse a si
mesma.

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A via-crucis do corpo

“A via-crucis do corpo” é um livro de


contos de Clarice que foi publicado pela
primeira vez em 1974. Traz uma série de
histórias que têm como relação o corpo,
seja no seu próprio significado, seja na
profunda análise psicológica, marca da
escritora. A obra traz o universo feminino,
mulheres são as protagonistas de todos os
contos, e são abordados seus desejo/
fantasias e fatos de suas vidas como o
amor, sexo, gravidez e outros. Clarice
aborda com maestria alguns dos
sentimentos mais profundos da alma em
um pequeno espaço literário (o conto).

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DESVENDANDO CLARICE
Laços de Família

Laços de Família, publicado em 1960, é


formado por um aglomerado de contos
que têm como forma de estudo as
relações pessoais e interpessoais
existentes nos núcleos familiares, as
questões psicológicas, os desafios e as
estruturas emocionais dos personagens.
A obra de Clarice desperta diversos
sentimentos a partir das noções
desempenhadas pela visão humana, pela
perspectiva dos protagonistas e, em
determinados contos, por elementos
exteriores à vida pessoal de cada um.
Lispector recorre ao que muitos muitos
autores denominam “conto de
atmosfera”, utilizando objetos cotidianos
para a construção da atmosfera
principal e apontando significações
profundas sob essas situações, criando
assim enredos simples, mas lineares,
com conteúdos de extrema sensibilidade
e passíveis de
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DESVENDANDO CLARICE

análises psicanalíticas.
No conto “Amor”, a protagonista se
encontra em uma crise consigo mesma após
fixar o olhar em um cego com uma bengala
na rua. A ocasião é simples, cotidiana, mas
a personagem transforma seus pensamentos
e os alinha somente à existência do homem.
Desconcertada, se reconhece na cegueira da
figura, observa como em um espelho que,
assim como ele, ela também havia parado de
ver a vida, de olhar suas próprias ambições,
sua família e seu casamento. Assim como o
cego, ela já não enxergava suas próprias
vontades, suas próprias ambições. A
narrativa traz determinado desconforto ao
leitor a partir da confusão criada pela
mistura de sentimentos e acontecimentos
que se sucedem após o encontro. Esse é um
traço comum nas obras clariceanas: a
leitura gera a necessidade de compreender
intrinsecamente os fatos e os alinhamentos
comportamentais
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DESVENDANDO CLARICE

dos personagens que, muitas vezes, se


demonstram confusos e organizam as
ações baseadas nas emoções.
A mesma interpretação crítica pode ser
feita no conto “Os laços de família”, em
que Laura, a filha, não consegue criar um
laço de intimidade e afinidade com a
própria mãe, Severina, que é apresentada
como uma mulher complicada, repleta de
frases que geram incômodo não somente
em Laura, mas também no marido e no
filho. A relação com a mãe se torna ainda
mais difícil após uma passagem da
senhora pela casa, que encontra no
comportamento agressivo a maneira de se
manter enxergada pela família e
presente, principalmente, do neto. Mais
uma vez, nota-se o enredo simples, linear,
e as personagens complexas,

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DESVENDANDO CLARICE

ressignificadas pelos sentimentos.


Os contos possuem ainda objetos retirados
da realidade da própria autora, como em
“Feliz Aniversário”, em que Clarice
representa sua avó na figura da
aniversariante. Da mesma forma, há um
espelho pessoal singularizado para cada
leitor, tornando a leitura próxima da
realidade, espelhando situações e emoções
cotidianas que refletem a estrutura da
instituição social familiar.

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DESVENDANDO CLARICE

A Legião Estrangeira

Assim como em outras obras, em “Legião


Estrangeira” Clarice utiliza imagens físicas e
sensoriais para criar a atmosfera
predominante do texto, construindo assim um
enredo que surge no ambiente externo e parte
para o interno, de modo que as emoções
interiores são despertadas a partir de eventos
simples e cotidianos, que causam no
personagem desconforto devido a questões
pessoais não solucionadas, trabalhadas por
meio de um tempo psicológico construído com
base na sentimentalização dos protagonistas.
Semelhante às outras obras, são utilizados
eventos e passagens da vida pessoal da
autora, como acontece no conto “A Legião
Estrangeira”, em que Clarice retoma a sua
infância por meio de um pinto adotado por
uma família. Os acontecimentos transcorrem
com descrições e eventos relacionados aos

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DESVENDANDO CLARICE

vizinhos: a família de Ofélia. A menina,


descrita como inteligente e intrometida, “de
cachos e babados”, com traços indianos iguais
aos de seus pais, desenvolve uma relação com
a narradora-personagem. Não é fácil decifrar
a base desse relacionamento, mas os
acontecimentos principais giram em torno de
um único fato: a morte do pinto. A vida do
pequeno animal é tirada pelas próprias mãos
de Ofélia, despertando no leitor a
incredulidade presente na cena do
assassinato.
Os sentimentos que surgem a partir da
leitura são, na maioria das vezes, marcados
pelas emoções reprimidas, expostas por meio
de situações em que o narrador-personagem
descreve o ambiente externo com enfoque no
interior do personagem: aquilo que, para o
protagonista, é motivo de vergonha, o que não
seria dito em voz alta, os devaneios e as
observações pessoais.

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DESVENDANDO CLARICE

O Mistério do Coelho Pensante

Publicado em 1967, “O Mistério do Coelho


Pensante” é parte integrante da obra de
Clarice Lispector caracterizada como
infantil, apesar de possuir indícios claros de
que não há um público específico. Criado a
pedido do filho Paulo, na época com 6 anos,
o enredo é considerado um d’Os Melhores do
Ano de 67.
O Mistério do Coelho Pensante é sobre um
narrador não onisciente que conta a
história de um coelho branco que sempre
fugia de sua gaiola misteriosamente.
Diferentemente do que era produzido na
época no Brasil, o texto não possui caráter
fabuloso ou fantasioso, apresenta um final
aberto e entrega ao leitor mediador e ao
ouvinte a autonomia necessária para
desenvolver a própria imaginação,
auxiliado por próprios trechos que
convocam o(s) leitor(es) a pensarem em um
desfecho para a história.

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DESVENDANDO CLARICE

Assim, Clarice inicia um até então


desconhecido método na literatura infantil
da época, inovando não somente nos
critérios de escrita como também no papel
de quem lê. Mesmo sendo aclamada por
alguns críticos, a obra merece maior
reconhecimento por parte de estudiosos e
pesquisadores que se inclinam a desvendar
as obras clariceanas, a fim de incentivar a
leitura não apenas das crianças, mas a de
todos os públicos.

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DESVENDANDO CLARICE

A Hora da Estrela

O livro “A Hora da Estrela”, lançado em


1977, é a obra mais famosa de Clarice
Lispector. Nele, é narrado por Rodrigo S. M.,
a história de Macabéa, uma mulher de
origem nordestina que migra para o Rio de
Janeiro em busca de uma vida melhor e mais
oportunidades. Apesar da procura, Macabéa
é uma mulher solitária, órfã de família,
amigos, inteligência e bens... É legível que
ela está apenas existindo.
A cidade em que a história é contada, Rio
de Janeiro, também é um personagem, que
mostra como a realidade nua e crua
funciona para aqueles que precisam
trabalhar para sobreviver, acentuando a
diferença entre vivências sociais.
A protagonista inicia um relacionamento
com Olímpico de Jesus, um homem também
nordestino que trabalha como metalúrgico.

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DESVENDANDO CLARICE

Olímpico, entretanto, não é um homem


confiável, muito pelo contrário, é
interesseiro e abandona Macabéa para ficar
com Glória, amiga de trabalho dela. Para o
homem, casar-se com Glória era ascender
na vida, de alguma forma, já que a moça era
filha de açougueiro.
Macabéa, após o término, para consolar-
se e receber amparo, procura uma
cartomante para prever seu futuro, que
aparentemente seguiria maravilhosamente
bem, com um estrangeiro que apareceria em
breve. Assim, cheia de esperança, ela deixa a
cartomante e morre atropelada por uma
Mercedes Benz. Muitas pessoas se reúnem
ao redor da moça, e então ela cumpre seu
destino.

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DESVENDANDO CLARICE

Uma aprendizagem ou o livro dos


prazeres

Loreley, sempre chamada de Lóri, é


uma professora do primário que se muda
para o Rio de Janeiro, sua vida é bem
solitária, apesar de sempre estar na
companhia de uma cartomante. Mesmo
que viesse de família rica, vivia com um
salário razoável e uma mesada de seu
pai.
Já Ulisses, professor de filosofia
também no Rio de Janeiro, conhece Lóri e
se aproxima por desejá-la, mas ela
buscava apenas aprender com ele, sua
primeira relação e primeira
experiência... Depois de algum tempo,
desenvolveram uma relação amigável.

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DESVENDANDO CLARICE

Enquanto isso, Lóri buscava sempre


enxergar se perderia ou ganharia indo
nesses encontros, mas estava aprendendo
sobre a vida de qualquer forma. Por conta
das indecisões, o professor de filosofia
decide não a encontrar por um tempo, para
que ela pudesse se entender sozinha. Assim,
Lóri conhece a si mesma, descobrindo
outros aspectos de vida.
Finalmente, Lóri atingiu um "estado de
graça" de felicidade e libertação intensa e,
dois dias depois, Ulisses a procurou. Ela
compartilhou suas descobertas e desejos,
para no fim, livrar-se das próprias
angústias. Então, eles se encontram
sinceramente e iniciam a vida juntos com
uma noite de amor para seguirem com um
relacionamento verdadeiro.

51
DESVENDANDO CLARICE

Água viva

Água viva, o sétimo romance de Clarice


Lispector, de 1973, conta a história de uma
mulher, a qual o nome não é apresentado,
que está escrevendo uma carta para outra
pessoa, aparentemente um amor que já
findou. Mesmo escrevendo, essa mulher não
é escritora, não tem a habilidade de
escrever, na verdade, é artista plástica e
pinta quadros. A história não é contada
pela personagem, mas por fluxos de
pensamentos, como se fosse um diário.
Sendo o assunto principal o sentido e
não sentido na existência, o livro é narrado
em primeira pessoa e é possível observar os
acontecimentos de maneira muito íntima.

52
DESVENDANDO CLARICE

A personagem, durante o livro, faz uma


série de reflexões sobre si mesma, mas
também sobre a vida. Através da
linguagem poética de Clarice, há,
demasiadamente, o uso de metáforas e
alegorias durante a história, como é de
costume da escritora.
Um livro repleto de sentimentos
repreendidos que fala sobre como as
pessoas são e como elas se relacionam
umas com as outras, mesmo que não
tenha um evento especificamente
emocionante acontecendo do lado de fora.
A escrita é feita a partir de brincadeiras
com as palavras e a linguagem,
enfatizando como ela é vital para – tentar
­- expressar sentimentos, emoções e
pensamentos sobre o mundo ao nosso
redor.

53
DESVENDANDO CLARICE

A Descoberta do Mundo

Durante o período de 1967 a 1973,


Clarice publicou “A descoberta do
mundo”, um compilado de 468 crônicas
que foram originalmente postadas no
Jornal do Brasil pela autora. O livro
segue uma ordem cronológica e, como
sugere o título, a cronista explora as
reflexões através dos olhos de alguém que
está descobrindo o mundo.
No livro, a autora se mostra
extremamente aberta sobre o ato de
escrever, seus pensamentos e sua vida.
Por conta da pressão de seu cargo e da
falta de tempo, ela escrevia sobre os mais
variados tópicos, nem sempre
considerando os escritos como crônicas.

54
DESVENDANDO CLARICE

Assim, Clarice compartilha com os


leitores suas mais preciosas memórias,
tanto da infância quanto de qualquer
momento da vida que fosse significativo
para ela. Além disso, há uma sinceridade
que cativa, além da escrita hipnotizante,
as crônicas não se encaixam em amarras
de gêneros literárias porque estão e vão
além.

55
Perfil de Clarice Lispector, nos anos 1940 - Paulo Gurgel Valente.
FIM.
AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de expressar nossos


sinceros agradecimentos a todos que
estiveram conosco durante este processo
literário. É com muito amor e dedicação
que concluímos este livro digital.
A participação de cada um que nos
incentivou, guiou e auxiliou durante esse
tempo foi fundamental para o
enriquecimento de nossa vida acadêmica e
aprendizagem.
Nesta jornada, podemos dizer que nos
aproximamos ainda mais da literatura de
Clarice, isso fez com que pudéssemos
aproveitar cada momento juntas para não
somente aprendermos, mas para
entendermos as motivações e perspectivas
da autora.
A escritora Clarice Lispector - Paulo Gurgel Valente
"Medo do desconhecido
Então isso era a felicidade. E por assim
dizer sem motivo. De início se sentiu
vazia. Depois os olhos ficaram úmidos: era
felicidade, mas como sou mortal, como o
amor pelo mundo me transcende. O amor
pela vida mortal a assassinava docemente,
aos poucos. E o que é que eu faço? Que
faço da felicidade? Que faço dessa paz
estranha e aguda, que já está começando a
me doer como uma angústia, como um
grande silêncio? A quem dou minha
felicidade, que já está começando a me
rasgar um pouco e me assusta? Não, não
quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah,
milhares de pessoas não têm coragem de
pelo menos prolongar-se um pouco mais
nessa coisa desconhecida que é sentir-se
feliz e preferem a mediocridade."

- Clarice Lispector, em “A descoberta do mundo”. Rio de


Janeiro: Rocco, 1999.

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