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Resumo
O objetivo do artigo é chamar a atenção para o conflito emocional entre a reversibilidade e a
irreversibilidade do tempo e como a luta dessas emoções dentro de nós pode dificultar uma
escuta e um encontro clínico ou terapêutico. Para tanto, usarei a ideia de ‘hipótese definitória
da grade’, de Wilfred Bion, como elemento inicial para essa reflexão.
Palavras-chave: Wilfred Bion, Grade, Hipótese Definitória, Escuta Analítica, Distúrbio Ora-
cular.
real para dar sentido e sustentação à sua ma- denominou de filicídio, ou tentativa de, e as
neira de viver e sentir a vida. consequências de um parricídio.
Shakespeare, conforme Guedes e Walz Mas a questão intrigante é a seguinte:
(2013), revela o mesmo tipo de anúncio Por que o oráculo tem força de convenci-
e a mesma busca de confirmação na figu- mento?
ra do rei Ricardo III. Este foi um homem Quer dizer que, na prática, como Laio,
que viveu para tentar demonstrar e insistir, um pai, pôde acreditar que seu filho (um
por vários e intrincados caminhos, que lhe bebê) iria realmente matá-lo no futuro? Ou
era impossível amar ou ser amado. E por seja, como é possível acreditar no oráculo?
várias e definitivas razões, das quais estava Por que uma pessoa necessita ancorar-se
absolutamente convencido, tentava – e con- nele, suspender, não necessariamente um
seguia – convencer os outros. Era um ho- juízo de realidade, mas um juízo crítico ou a
mem cheio de razão. E os fundamentos do capacidade de pensar com o presente?
seu estar cheio de razão era ser feio, coxo, Por que o oráculo tem essa capacidade e
corcunda, etc. Quer dizer, cultivava os atri- força, inclusive de convencer que de fato ele é
butos que justificavam completamente seu real, imutável tanto em sua origem como nas
ressentimento e com os quais a maioria das consequências anunciadas, levando a pessoa
pessoas costuma concordar. a cumpri-lo justamente por fugir dele ou ne-
gando-o?
Édipo e o poder do oráculo Tentando seguir sugestões de Bion para
A mesma cena oracular (junção do passado aclarar essas questões, começaria exempli-
com o futuro) encontramos num dos mitos ficando a partir do próprio mito do Édipo.
cotidianos da literatura psicanalítica, o com- Usando uma linguagem religiosa, diria que
plexo de Édipo. Vale destacar que, quando a crença no oráculo se sustenta porque ele
escutamos a palavra “Édipo”, nos remetemos representa o sagrado, numa evidente oposi-
à questão sexual, interpretação consagrada ção ao que se pode chamar de profano, re-
na história, que seria o desejo dos filhos por presentado por Édipo. E uma leitura que se
seus genitores opostos e a rivalidade entre pode fazer nessa contraposição ou diferença
eles. está na questão da temporalidade. O oráculo
Mas cabe lembrar que, em sua origem, sempre propõe a ilusão da reversibilidade do
Édipo fora arrancado dos braços da mãe por tempo. Ou seja, a ilusão da ressurreição e a
Laio e entregue a um pastor para que fosse imortalidade do ocorrido. O passado pode
abandonado à morte. Laio fez isso para que ser desfeito e rearranjado (estado mental
não se cumprisse a profecia do Oráculo, a onipotente). Já Édipo traz o tempo profano,
qual dizia que seu filho iria matá-lo quan- que é irreversível e revela o tempo finito hu-
do crescesse. Não esqueçamos que Laio fora mano. Eles, Laio e Édipo, são experiências
procurar a palavra do oráculo, às escondidas, emocionais que se chocam cotidianamente
como uma consulta para saber acerca das ra- em nossa mente. Laio, no caso, acredita no
zões da sua infertilidade. oráculo pelo fascínio da oferta da imortali-
Podemos fazer inúmeras conjecturas psi- dade e pelo sentimento de urgência que sua
canalíticas acerca dessa cena. Por exemplo, suposta infertilidade (uma falha ou denún-
distinguir aí uma luta entre os sexos, em que cia de uma humanidade/temporalidade) lhe
predominaram a rivalidade e a inveja de Laio causava, o que significa ser o único da espé-
em relação à mulher, pela capacidade que ela cie, sem descendência que viesse a tomar o
tem de gerar uma vida. É possível realizar seu lugar. E a aceitação da oferta produz o
outras conjecturas, mas o resultado, com cer- que se pode chamar de uma ética dramáti-
teza, é aquilo que Arnaldo Rascovsky (1970) ca. Nessa ética, a história real, digamos as-
sim, não anda porque foi substituída por riável e ficamos fascinados pela teoria cau-
um drama cuja característica central está na sal. A esse formato de experiência emocio-
sustentação emocional do encontro sempre nal Bion denominou de vínculos – (menos):
contínuo entre passado, presente e futuro, - K, - L, - H.
com uma argumentação em cujo centro está No caso da narrativa inicial, para a pes-
a ideia de que pode ser mudado (o passado). soa afirmar que não consegue ter prazer no
Arnaldo Chuster (2002, p. 43) afirma: relacionamento, ela já deve ter tido alguma
relação. Para ter uma relação, ela já deve ter
[...] na área dramática, as consequências são se envolvido afetivamente com alguém. Mas
assassinato, incesto, suicídio, autoagressão, como estamos diante da lógica da ética dra-
cegueira, exílio, dispersão, ataque à lingua- mática, o vivido não pode ser experimenta-
gem, incapacidade de aprender com a experi- do, conforme Bion (1991), pois contrariar
ência, ausência de autoconhecimento, recusa o oráculo seria a maior de todas as insani-
ao princípio da Incerteza. dades. Dessa forma, o aprendizado com a
experiência emocional de si mesmo não se
Wilfred Bion e a questão do tempo constrói. A vida não anda apesar de a pes-
Bion tem uma proposição muito enigmáti- soa ter a sensação de que sim, anda. E mais,
ca ao falar sobre a atitude mental do analista fica amarrada pelo excesso de memória, que
em relação à experiência emocional do tem- propõe um futuro já definido e uma conse-
po. Ele destaca que o analista deve tentar, o quente necessidade de interpretação para
máximo possível, estar numa atitude de “[...] uma mudança do passado. Ou, no dizer de
sem memória, sem desejo e sem necessidade Bion (1991, p. 22): “[...] as ideias do passado
de compreensão” (Bion, 1970, p. 41). e sobre o futuro, embora sejam ideias fracas,
Se olharmos essa frase fora do contexto emocionalmente são fortes”.
do pensamento de Bion, diríamos, com a
maior naturalidade: esse homem (Bion) está Mesmo a nostalgia e a antecipação têm que
louco. Trata-se de uma completa ausência/ ser trazidas para o presente; é no presente que
distância/neutralidade de uma pessoa diante temos aqueles desejos, é no presente que te-
da outra que nem a mais drástica interpre- mos aquelas lembranças, é no presente que
tação acerca da neutralidade proporcionaria. vivemos. Assim, enquanto estamos pensando
Mas essa proposição nos oferece uma no passado e no futuro, estamos cegos e sur-
compreensão muito interessante. Se enten- dos para o que está se passando no momento
dermos a memória como o passado e o de- presente. Acho que Freud tinha algo dessa na-
sejo como o futuro, a junção contínua entre tureza em mente quando se referiu à ‘atenção
o passado e o futuro cria, conforme Bion, o flutuante’ (Bion, 1991, p. 132).
leito sensorial. No leito sensorial (a causali-
dade, a vida real, ou a sexualidade), surge a E surgem estas questões:
necessidade inadiável de produzir um filho. O que fazer diante do oráculo?
Algo que salve e dê um destino e um sentido O que fazer com o destino, ou o determi-
sensorial. Ou a necessidade de imortalidade nismo, ou o elemento invariável, força psí-
e eternidade. Ou, dizendo de outra forma, a quica tão acessível em nossas emoções?
junção entre a memória e desejo (passado e
futuro) é a proposição permanente do orá- A cesura
culo em nossa vida mental. Nesse procedi- A resposta, em contraposição à ética dramá-
mento de junção entre o passado e o futuro, tica, seria a ética trágica. Bion propôs uma
anulamos o presente ou restringimos nossa frase de Freud, usada em Inibições, sintomas
capacidade de observação do elemento va- e ansiedade, de onde retirou o termo “cesu-
ra”. Há muito mais continuidade entre a vida criança sai de casa ou o dentro e o fora, eu e
intrauterina e a primeira infância do que a o outro. A noção de cesura nos faz ver que a
impressionante ‘cesura’ do nascimento per- origem, o momento de início é indecidível.
mite acreditar (Freud, [1926] 1991, p. 162). Por exemplo, na física quântica, nós temos
O que seria a cesura e quais as implicações um princípio chamado de ‘princípio da in-
desse conceito em relação à ética dramática? certeza’ (Chuster; Walz, 2003), estabeleci-
Na coluna 1 da Grade, encontramos a do por Werner Eizenberger. Esse princípio
ideia da hipótese definitória ou do oráculo propõe que é impossível saber a posição e a
que, conforme Bion, seria uma das conse- velocidade do elétron ao mesmo tempo. Isso
quências de ação da relação entre Laio (re- ocorre no vínculo com o paciente também.
versibilidade) e Édipo (irreversibilidade) Muitas vezes é impossível saber a origem do
em nossa mente. E se olharmos bem, parece material clínico na consulta, se esta é dele ou
natural/normal que Laio tente ser sempre o minha, assim como inúmeras vezes não sa-
vitorioso ou que optemos consciente e in- bemos diferenciar o dentro e o fora, o que é
conscientemente por ele. Quer dizer, que a real e o que imaginamos.
relação de causalidade entre os fenômenos Se soubermos/aceitarmos que existe um
ou entre teoria e prática seja direta e linear espaço vazio e tolerarmos a cesura, talvez
na linha do tempo em nossas emoções. algo novo surja,1 inclusive em nossa percep-
A cesura é uma tentativa de oferecer uma ção. Para isso, necessitamos lançar mão da
interpretação da história emocional para capacidade negativa, que é a capacidade de
além do determinismo, inclusive o psíquico. tolerar os mistérios, as incertezas, as meias
E um dos exemplos que ele usa é o da geo- verdades, sem a tentativa ansiosa ou o dever/
metria euclidiana e seus cinco postulados. O obrigação de chegar ao fato para obter uma
mais famoso é o das duas paralelas que ja- compreensão.
mais podem se encontrar. Ninguém sonha- Há sempre um desconhecido, uma va-
va em contestá-lo. Mas chegou um dia em riável por vir, que é fonte de especulação e
que alguns matemáticos mostraram que era distúrbio. Há algo constante e algo que está
possível construir outras geometrias, as não mudando. Como na transferência. Há um
euclidianas, que se revelaram muito ricas e transferido e algo a ser descoberto e cons-
criaram o conceito de certos ‘espaços’ num truído na dupla que se inicia. Ou seja, caso
outro estilo, o que permitiu a teoria da relati- o modelo do Universo em Expansão esteja
vidade, de Einstein. Sem a colocação de uma correto ou possamos usá-lo, devemos enten-
cesura ou um hiato entre causa e efeito no der que a mente é uma expansão ou que ela
pensamento, jamais teria sido possível esta tem esse princípio. É nesse elemento variável
descoberta: tolerar a suspensão do passado que é possível a saída ou escape do oráculo
para que o presente possa emergir em sua enquanto destino a ser cumprido. Cito três
novidade. frases do Bion como exemplo de suas obser-
Usando uma metáfora de Bion (1974, p. vações:
46), até numa contestação ao iluminismo:
Há um ponto em que a mudança quantitativa
Ao invés de tentar trazer uma luz brilhante, se transforma em mudança qualitativa. Mas
inteligente, compreensível para incidir sobre isso pressupõe passagem de ‘tempo’, que é um
problemas obscuros, sugiro empregarmos
uma diminuição da luz. 1. Essa ideia pode nos ajudar a revisitar o clássico conceito
de transferência, e podemos dizer que transferência tam-
bém é um sentimento de surpresa, o novo que se cria na
A cesura sempre existe. Existe quando dupla, e não apenas ocorre com o transferido (Chuster,
nascemos, na diferenciação sexual, quando a 2003).
conceito, embora tendamos a nos esquecer to.2 Para isso, nosso melhor instrumento é a
disso e acreditar que há ‘algo’ como o tempo construção da capacidade negativa ou da to-
(Bion, 1974, p. 22). lerância do hiato entre o “eu” e o “outro”, jus-
tamente para que possamos ir ao encontro
Mas o ponto significativo não é o filho e o pai, e receber a realidade e descobrir algo novo,
ou o adulto humano e Deus, mas o relaciona- num novo circuito de interações.
mento entre os dois – o vínculo. É no vínculo Ao mesmo tempo, sair do circuito senso-
que algo permanece constante e algo estará rial do sem saída, para que o paciente não
mudando. A área utilizável para a psicanálise tenha em nós mais um alicerce para juntar
inspecionar é como um universo em expan- passado, presente e futuro numa mortifica-
são (Bion, 1974, p. 34). ção do viver e sem saída emocional.
Perspectivas
Uma escuta não oracular pressupõe a aceita-
ção emocional da irreversibilidade do tem-
po, quer dizer, que possamos reconhecer se
nossa “hipótese definitória” está sustentando 2. Conferir também: GUEDES, P. S.; WALZ, J. C. O senti-
ou não uma emoção ilusória de que contro- mento de culpa. 3.ed. Porto Alegre:Edição do Autor. 2012.
Nesse livro, procuramos mostrar que o sentimento incons-
lamos ou podemos controlar a vida, ou seja, ciente de culpa é a expressão maior de nosso estado mental
alicerçados na onipotência do pensamen- onipotente.