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A Chegada: História da Sua Vida 1

Paulo de Moraes M. Ribeiro 2

Valeu a pena?
Sempre vale a pena, se a alma não é pequena.
F. Pessoa

Arrival (A Chegada) é um filme de ficção científica norte-americano de 2016 dirigido


por Denis Villeneuve, um diretor de cinema e roteirista franco-canadense conhecido por
dirigir vários filmes aclamados pela crítica, como Incendies (2010), Prisoners (2013), Enemy
(2014), Sicario (2015), Arrival (2016) e Blade Runner 2049 (2017). Seu roteiro foi escrito por
Eric Heisserer, e foi baseado no conto “Story of Your Life” (1999) de Ted Chiang, um discreto
escritor americano várias vezes premiado por obras de ficção científica. O filme foi aclamado
pela crítica especializada, que elogiou a atuação da protagonista, a direção de Villeneuve e a
originalidade do roteiro. Teve oito indicações ao Oscar de 2017, incluindo Melhor Filme,
Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado.
O enredo do filme segue a estrutura do conto do Chiang, versa sobre seres
extraterrestres que chegam à Terra em doze naves espaciais e pousam em diferentes pontos
do planeta. As autoridades mundiais montam estratégias de contato com os alienígenas. O
que querem eles? Comunicação? Invasão? Negócios? Turismo?

Em torno de cada nave os militares estabeleceram equipes para tentar o contato; a


Dra. Louise Banks (Amy Adams), uma renomada linguista que já ajudara o Estado
anteriormente, em conjunto com o experiente físico Ian Donnelly (Jeremy Renner), são
convocados para interagirem com as criaturas, traduzir seus sinais e desvendar se os
alienígenas representam uma ameaça ao mundo. Ambos são pressionados a descobrir o
propósito dos extraterrestres o mais rápido possível, assim como as outras onze equipes dos
países onde as naves pousaram. Porém, os interesses políticos, a corrida pela supremacia

1
Texto da apresentação no C&P da SBPRP dia 29 de Março de 2019, no Anfiteatro da U.E. da USP-RP, em parceria com a Dra.
Marisa Gianechini G. de Souza (UNESP, EVOHÉ).
2
Membro Efetivo da SBPSP e Membro Efetivo com Funções Didáticas da SBPRP.
1
entre as nações, as diferenças culturais e o medo do desconhecido entram em cena,
obstruindo o trabalho de natureza mais científica.
Paralelamente às cenas do trabalho com os alienígenas, o diretor nos apresenta flashes
da vida da Dra. Louise: seu enamoramento e casamento com o Dr. Donnelly, o nascimento
de sua filha Hannah, cenas da vida cotidiana de ambas, a separação do casal e a morte da
filha. Estas cenas nos confundem, pois não tem uma sequência temporal lógica (crono-
lógica). Não sabemos ao certo se ela está recordando o passado ou se é algo referente ao seu
presente, ou mesmo se ela estaria tendo uma ‘memória do futuro’ (lembrando Bion).
A leitura do conto “História da sua vida” de Ted Chiang nos auxilia na compreensão.
Algumas passagens foram discretamente alteradas pelo roteirista Eric Heisserer, de forma a
realçar a emocionalidade do filme; por exemplo, no conto, a Hannah morre num acidente de
alpinismo e não de câncer; a separação do casal implica em outra mulher e não na revelação
da futura morte da filha, o que lhe foi emocionalmente intolerável.
Voltando ao filme: no final das contas, os heptápodes não queriam nos invadir,
queriam nossa ajuda futura (daqui há 3.000 anos!) e nos trazer um presente, a sua estrutura
de linguagem, que teria o poder de mudar o nosso funcionamento mental. Quem
compreendesse a língua dos heptápodes fluentemente se tornaria capaz de saber seu
próprio futuro, incluindo as circunstâncias de sua própria morte, bem como as de seus entes
queridos.
Pretendo expandir este ponto, pois tem sido objeto de minhas reflexões e penso ser
um vértice rico para a clínica do psicanalista. Deixo de lado, por enquanto, o enfoque desse
filme como, essencialmente, uma estória sobre coragem3 e passo a enfocar o que Bion
chamou de “ato de Fé”.
Coragem, ou ousadia, está relacionado com o “ato de Fé”, que é um conceito cunhado
por Bion (1970), que tomou emprestado da religião católica a ideia de uma adesão

3
A palavra coragem vem do latim coraticum e significa “agir com o coração”. Assim, corajoso é aquele que age de acordo com o
coração, conforme o que sente verdadeiramente. Acreditamos que as emoções são a base para os pensamentos e as ações
individuais, cada sentimento determina o comportamento da pessoa, dependendo de como ela interpreta/sonha/pensa essa
emoção. O medo - primo-irmão da coragem - por exemplo, pode salvar uma pessoa de situações perigosas, mas em outras
circunstâncias também pode paralisar a pessoa e fazer com que ela perca oportunidades valiosas em sua vida.

Situações desafiadoras fazem parte da vida de todas as pessoas, diariamente passamos por situações que nos questionam sobre
nossas capacidades de enfrentamento. A tendência imediata em todos nós é a evasão das situações de perigo; agimos de acordo
com o Princípio do Prazer (Freud) e, perigo, gera medo, e medo é desprazer/dor. Para agir com coragem, é preciso superar nossos
pensamentos ‘negativistas’ e buscar nossos pensamentos realistas para dosar o medo objetivamente; assim, avaliamos as
situações com clareza e a coragem pode emergir com vigor e autoconfiança (amor próprio).

Não é necessário bloquear o medo para agir de forma corajosa, é preciso aprender a dar-lhe espaço mental e modulá-lo de
maneira adequada. É muito comum acharmos que precisamos ‘vencer’ o medo, mas não, não se ‘vence’ o medo, assim como não
se ‘vence’ inveja ou voracidade, precisamos é abrir espaço em nossa mente e sonhá-lo/pensá-lo; assim, criamos também espaço
para a coragem. Medo e Coragem são uma “conjunção constante”, sempre aparecem em par; não dá para ter medo sem ter a
coragem por perto, e vice-versa. Coragem sem medo é mera estupidez.

2
incondicional a alguma hipótese considerada como sendo uma verdade absoluta, que não
carece de evidências. Bion retirou dessa ideia qualquer elemento religioso, preservando
radicalmente as conexões semânticas com os verbos acreditar, confiar e apostar. “Ato de Fé”
é uma aposta realizada no aqui agora do presente sobre um futuro que, embora incerto,
temos a segurança que se fará presente se nos dispusermos ao trabalho emocional inerente.

A protagonista principal do filme, a Dra. Louise, precisou de muita coragem para se


colocar na experiência emocional direta com os heptápodes, que representam o
desconhecido absoluto. Quando ela resolve se despir dos paramentos protetores que faziam
uma separação, um anteparo entre ela e os alienígenas, e se expos verdadeiramente, estava
agindo como o psicanalista quando se despe de suas teorias, seus preconceitos, suas
“memórias, desejos e necessidades de compreensão” (Bion) para viver com o analisando o
que tiver para ser vivido, em busca de compreensão e expansão da mente (OK). As imagens
que foram surgindo na mente da pesquisadora - cenas com um bebê, uma criança brincando,
uma jovem doente, etc. - eram inicialmente desconexas, incompreensíveis e perturbadoras,
mas ao invés dela descartá-las como ‘lixo mental’, ela as coletou (“notação”) e foi
aguardando pacientemente até que uma revelação (“fato selecionado”) surgiu e ela pode
compreender que havia desenvolvido a capacidade de antever o seu futuro, graças ao
aprendizado da língua heptápode. Assim, se expondo de perto, muito perto, pode pesquisar
em si mesma as respostas para as questões que emergiam da experiência emocional.
Podemos apenas imaginar, empaticamente, a coragem que é necessária para uma
pessoa ter continência à dor de ter a consciência da morte da própria filha, bem como do fim
de seu casamento, e mesmo assim se lançar à essas experiências fundamentais. Casamento
e nascimento de um filho são algumas das principais “cesuras” (Bion) da vida, e viver o que
nos cabe nesta vida, verdadeira e intensamente, é o que podemos oferecer de melhor para
nós mesmos.4 A Dra. Louise ousou expor-se à essas emoções, às dores/lutos, mas também
aos prazeres de ser esposa e mãe. Para tal, teve “Fé” na exposição ao heptapodês, acreditou
que a experiência lhe traria evolução, compreensão e libertação; se lhe predominasse o
medo – o medo da loucura - certamente ela se evadiria destas auto-percepções e se apegaria
às ideias já conhecidas (K -K) para não ter que lidar com o medo do desconhecido (“O”).
A hipótese de Sapir-Whorf referida no filme é uma teoria linguística que ganhou força
na segunda metade do século XX e serviu de fundamentação teórica para a Dra. Louise
conseguir se orientar em seus pensamentos e sentimentos. Segundo essa teoria, a estrutura
e o vocabulário de uma língua são capazes de moldar os pensamentos e as percepções de
seus falantes, portanto, cognição e língua seriam inseparáveis, e o estudo de uma

4
Valeu a pena? Sempre vale a pena, se a alma não é pequena. F. Pessoa
3
determinada língua poderia levar à elucidação da concepção de mundo na qual ela é falada.5
Ted Chiang, em seu conto, levou o argumento de Sapir-Whorf às últimas consequências,
apresentando a ideia de que a fluência numa língua inusitada levaria a pessoa a pensar/sentir
o mundo de forma diferente.6
No filme, a Dra. Banks tenta decifrar a enigmática língua extraterrestre e descobre que
sua forma falada, que para os humanos é uma série de ruídos e grunhidos, é independente
de sua forma escrita, que consiste em símbolos circulares sem começo nem fim. Ela percebe
que não acompanharíamos a forma oral dos extraterrestres (até porque ela parecia ser
incompatível com nossos órgãos fonéticos) e passa a pesquisar sua escrita.

A escrita deles é circular; para se ler o que o símbolo transmite, não faz diferença
começar de um lado ou de outro, de cima ou de baixo, de frente ou de traz; em qualquer
lugar que se começar a ler, a compreensão ocorre.7 Sendo circular, o heptapodês nos remete
à não-linearidade do tempo e do espaço; difere da nossa linguagem, que precisa de um
espaço (por ex., uma linha numa folha) e ocorre ao longo de um tempo (da margem esquerda
para a margem direita, da linha de cima para alinha debaixo, etc.). Nossa escrita, e também
nossa fala, implicam numa interpretação cronológica causal dos eventos: um momento nasce
do precedente, uma palavra leva à próxima, elas se relacionam sob a dinâmica de causas e
efeitos, criando uma reação em cadeia que avança do passado para o futuro.
A teoria apresentada no filme implica que nossa linguagem nos conduz a pensar de
forma predominantemente linear e causal. Uma explicação causal se baseia na ideia de
linearidade mecanicista, que vê todo efeito como já estando completamente presente na
causa que o precedeu, que por sua vez é efeito de outra causa anterior e assim por diante. A
determinação é, portanto, colocada no passado, numa única linha ou cadeia causal de
eventos. Essa forma causal de pensar seria responsável pela nossa percepção do tempo na

5
Em Psicanálise, isso é válido para a compreensão das dimensões da parte psicótica da mente (PPP), pois a ‘língua’ do psicótico é
característica, e todos nós temos PPPs.
6
Os psicanalistas conhecem bem isso, pois as (raras) pessoas que se envolvem profundamente em suas psicanálises pessoais,
mudam radicalmente sua forma de enxergar a vida.
7
Em nossa cultura, o que se aproxima desta linguagem seriam os semagramas. A palavra semagrama vem do grego, onde sema
significa sinal e grama significa escrito ou desenhado. Em outras palavras, semagramas são signos ou símbolos usados para
informação. Um exemplo de semagrama visual é o uso das posições dos ponteiros de um relógio para codificar a informação.

4
forma de uma linha reta: PassadoPresenteFuturo, o que tem implicações
empobrecedoras na forma como apreendemos a Realidade. Por exemplo, quando os
humanos pensam sobre as leis da física, costumam trabalhar com elas em sua costumeira
formulação causal. Os atributos físicos que os humanos consideram naturalmente intuitivos,
como energia cinética ou aceleração, são propriedades de um objeto em determinado
momento do tempo e levavam a uma interpretação cronológica causal dos eventos. Do
ponto de vista da Física, isso funciona bem ao redor do nosso planeta, com nossa força da
gravidade, mas para a compreensão de fenômenos fora da estratosfera ou para a
compreensão de fatos subatômicos (neutrinos, por ex.), nos quais a gravidade é muito fraca,
a física newtoniana não é suficiente; para tais estudos, os cientistas precisaram desenvolver
a física quântica, que não obedece a relações causais, mas sim relações incertas e complexas.
Curiosamente, os heptápodes podiam entender bem nossa física quântica e nossa
matemática complexa, mas a lógica cartesiana não. O intuitivo natural para eles era diferente
do nosso, por isso sua relação com o tempo era tão complexa. Sabiam o futuro, mas não
porque ele estivesse adiante na linha do tempo, mas sim por ser parte de um contínuo
espaço-tempo que os levava a uma interpretação teleológica dos acontecimentos: podiam
ver os eventos ao longo de um período de tempo e conhecer os efeitos antes do início das
causas. Assim, reconheciam uma exigência que deveria ser satisfeita: minimizar ou maximizar
os fatos da vida, e não resolver!
A Dra. Louise, no final do filme, questiona ao Ian: “Se você soubesse sua vida inteira,
você a viveria do mesmo jeito ou a mudaria?”. Fatos não podem ser mudados, mas minimizar
ou maximizar uma experiência emocional pode ser de grande valor, por exemplo, se
soubéssemos de antemão que uma experiência nos seria de dor, poderíamos minimizá-la, se
ela for de crescimento ou de prazer, maximizá-la! Jamais negá-la, sempre aproveitá-la. 8
À luz dessas ideias, podemos conjeturar: e se pudéssemos romper com a causalidade
da linha do tempo? O que aconteceria com nossa mente?
No conto, Louise, na voz da primeira pessoa, nos explica: “À medida que fiquei mais
fluente, os desenhos semagráficos apareciam [na minha mente] completamente formados,
articulando ideias complexas, todas ao mesmo tempo. No entanto, meus processos de
pensamento não estavam se acelerando por causa disso, em vez de correr para a frente,
minha mente se equilibrava na simetria essencial implícita aos semagramas. Os semagramas
pareciam ser algo mais que linguagem; eram quase como mandalas. Eu me vi em um estado
meditativo, contemplando a forma como premissas e conclusões eram intercambiáveis. Não
havia direção inerente no modo como as proposições eram conectadas, nenhum “fluxo de

8
O tempo é relativo, todos nós conhecemos a experiência de uma sessão de análise que, embora concretamente dure 50 min,
pode parecer ter durado apenas 15... ou pode ter ‘valido’ por um ano... ou uma vida.

5
pensamento” seguindo por uma rota particular; todos os componentes em um ato de
raciocínio eram igualmente poderosos, todos com precedência idêntica.” (pág. 171). 9
No conto, Louise questiona se a existência do livre-arbítrio levaria a incapacidade de
ver o futuro. Sabemos da existência do livre-arbítrio, pois temos experiência direta com ele.
A vontade, que gera nossas escolhas, é parte intrínseca da nossa consciência. O que
aconteceria se nos libertássemos de nossa consciência? Poderíamos ver o futuro? O
passado? Ou o que?
A mente humana é uma ferramenta de enorme potência, de grande energia; como
indivíduos e como Humanidade, ainda usamos muito pouco das nossas capacidades mentais,
estamos apenas “engatinhando” (como referiu Bion). Imaginemos como será quando
estivermos “correndo”... Seríamos como os heptápodes?
Guardadas algumas singularidades humanas, esse filme/conto pode ser sonhado como
uma antevisão do futuro do funcionamento mental da humanidade. Os artistas tem a
capacidade de antever elementos do futuro ainda invisíveis aos olhos comuns. Isso
aconteceu, por exemplo, com o projeto do módulo lunar da NASA (inspirado nas revista em
quadrinhos da década de 1930), com a previsão dos pintores modernistas antes das duas
Grandes Guerras Mundiais (que denunciavam a decadência dos valores da sociedade de
então), com elementos do nosso presente antevistos por George Orwell em “1984” (como a
internet, big-brothers, autoritarismos, etc.) ou em “Admirável Mundo Novo” do Aldous
Huxley (uso de substâncias químicas em massa, divisão da sociedade em castas, reprodução
artificial, etc.), entre outros.


A nossa Consciência opera, funciona, na terceira e quarta dimensão da Física;
respectivamente, a do espaço tridimensional e a do tempo cronológico; através de
correlações têmporo-espaciais nos organizamos para pensar nossos pensamentos, nossos
sentimentos, tomar nossas decisões e efetuar nossas ações. Podemos conjeturar que uma
futura evolução como seres pensantes pode caminhar na direção de desenvolvermos uma
capacidade para abstração dos elementos limitadores da consciência e, assim, abrirmos

9
A escolha do nome de sua filha, a quem dedicou seu livro sobre a língua heptápode, revela a concepção de mundo e de tempo
adquirida por Louise: “Hannah” é um palíndromo e pode ser lido tanto de trás para frente como de frente para trás. Louise optou
pela experiência de conhecer seu futuro e isso parece que lhe evocou “um sentido de urgência, um sentido de obrigação de agir
do modo que sabia que agiria”. (Pág. 176)

6
caminho para conjeturas imaginativas que permitam apreensões da realidade nas demais
dimensões existentes.10
Deste modo, ao nos libertarmos da consciência que nos diz que estamos no dia tal,
ano tal, hora tal + país tal, cidade tal, e entre quatro paredes, teto e chão, poderíamos
vislumbrar dimensões paralelas a fim de iluminarmos alguns elementos da nossa atual
dimensão. Recentemente, numa reunião científica de uma colega (Wierman, 2018), esta
referiu que precisou refrear seu analisando, um menino bastante agitado, que estava
derramando água e tinta violentamente por toda a sala. A analista começou por lhe dizer que
gostaria que eles estivessem num lugar onde ele pudesse espalhar livremente toda aquela
água; rapidamente, o menino completou sua frase dizendo que este lugar era um “quintal”.
Neste momento, numa radical mudança de estado mental, ele se tranquilizou. Sugeri que,
mais do que a função de continência, talvez a mudança observada fosse devido ao fato de
que eles, naquele exato momento, teriam se tornado, de fato, o referido ‘quintal’. Isso se
relaciona ao conceito do “tornar-se O” de Bion (1970), mas nesta conjetura imaginativa eu
não me referia a um ‘quintal’ que representasse uma das dimensões da mente do analisando
- ou um objeto interno de sua fantasia - mas um ‘quintal’ real mesmo, um “O” daquela dupla,
naquela experiência emocional compartilhada. Nesta hipótese, além do espaço
(setting/quintal), o tempo também seria sincrônico, o presente-passado-futuro seriam
simultâneos, e ambos se encontrariam num ‘quintal’ em uma dimensão paralela da realidade
tridimensional. O vislumbre dessa dimensão pode iluminar pontos obscuros e,
eventualmente, sanar obstruções ou impasses.
Na clínica psicanalítica, por exemplo, vivemos impasses que podem tentar ser
sonhados de forma ‘extraterrestre’, em heptapodês. Impasses, ou “pontos cegos” do analista
seriam áreas nas quais o psicanalista, embora intensamente analisando, não encontra
elementos α e função α suficientes para “sonhar” (Bion, 1962, 1970) a experiência emocional
em curso, permitindo actings variados ocorrerem. Podemos imaginar esses impasses como
sendo ‘buracos negos’, semelhantes aos que existem no espaço sideral.

Desenhos artísticos de buracos negros (fonte: NASA).

De acordo com a Teoria da Relatividade Geral, inicialmente concebida por Einstein, um


buraco negro é uma região do espaço da qual nada, nem mesmo partículas que se movam

10
Teoria das Cordas: https://www.youtube.com/watch?v=XFGAs-woHR0 e Dimensões:
www.youtube.com/watch?v=3Hi1DhxSh34

7
na velocidade da luz, podem escapar. Ele é, portanto, do ponto de vista do astrônomo, negro
ou, do ponto de vista do analista, cego, no sentido daquilo que não pode ser observado.
Os buracos negros resultam de uma deformação da malha do espaço-tempo causada
pelo colapso gravitacional de uma estrela que implode, gerando uma matéria
astronomicamente maciça e, ao mesmo tempo, infinitamente compacta que se contrai tanto
que desaparece, dando lugar ao que a Física chama de “singularidade”, que seria o cerne de
um buraco negro, um ponto onde o tempo e o espaço deixariam de existir. Então, como seria
possível “ver” esse lugar?
Talvez, quem sabe, libertando-nos das noções de tempo e espaço...
Do ponto de vista da realidade psíquica, o ‘buraco negro’ é unidimensional (um ponto),
não tem espaço nem tempo, não tem representação possível, ou historicidade, ou sentido,
mas existe, é real e se manifesta concretamente na relação analítica.
Em Física, o adjetivo negro em buraco negro se deve ao fato de que se pensava que
este não refletia nenhuma parte da luz que porventura o atingisse, atuando como se fosse
um corpo negro perfeito, absolutamente invisível; porém, a teoria da radiação Hawking11 que
prevê que os buracos negros não são realmente negros, mas emitem um tipo de radiação
proveniente de flutuações quânticas.

Em psicanálise, como poderiam ser detectadas essas ‘radiações’ emitidas pelos pontos
sem história, sem representação e sem lugar, os buracos negros da dupla analítica?
Apesar de serem praticamente invisíveis, os astrônomos podem detectar um buraco
negro pelo efeito de sua massa sobre o movimento das estrelas circunvizinhas; sua densidade
gigantesca influencia o movimento delas e, eventualmente, se estiverem muito próximas
dele, podem inclusive ser tragadas pelo buraco negro.

Imagem construida no final de 2015 por pesquisadores do projeto LIGO (Laser Interferometer Gravitational-Wave
Observatory), que observaram "distorções no espaço e no tempo" causadas por um par de buracos negros com trinta massas
solares em processo de fusão/colisão.

De forma análoga, os buracos negros poderiam ser detectados na clínica psicanalítica


através das distorções nas relações estabelecidas entre os dois ‘corpos estelares’ presentes
na sala de análise (analista e analisando). Para a percepção destas ‘distorções’, equipamentos
sofisticados devem ser empregados: a ‘antena mental’ do analista, sua capacidade de
observação, deve estar focada na mente multidimensional de ambos da parceria e na mente

11
https://pt.wikipedia.org/wiki/Radiação_Hawking
8
multidimensional da própria parceria (uma expansão daquilo que Ogden chamou de
“terceiro analítico intersubjetivo” 12).
A mente do analista é como um sensor ultrassensível, ou um micro/telescópio, capaz
de observar eventos simultâneos que ocorrem em diferentes escalas:
 ‘Regulares’/‘terráqueas’, as chamadas “transferências”, tão bem descritas por
Freud, ou
 ‘Irregulares’/‘estratosféricas’ como ocorrem nas camadas de psicose, tão bem
descritas por Melanie Klein com o conceito de relações de “objetos parciais” e
“fantasias inconscientes”, e
 ‘Infra ou ultra sensoriais’/‘quânticas’, como ocorrem na apreensão da realidade
psíquica através da “intuição”, como descrita por Bion (especialmente na parte
final de sua obra).

Stephen Hawking (1942-2018), pouco antes de sua morte, declarou que não pensava
mais que o que era sugado para um buraco negro fosse completamente destruído, sugeriu
que o buraco negro poderia ser um caminho para um outro universo. Numa conjetura
imaginativa do que foi nomeada de multiverso13, os buracos negros, seriam portais, “cesuras”
(Bion, 1977), para universos paralelos ao nosso.

Representações estéticas de multiverso

Assim, diante de um possível ‘buraco negro’, poderíamos tentar observar a dupla a


partir de um vértice radicalmente diferente, livre das relações de causalidade e das limitações
da tri e tetra-dimensionalidade (espaço físico e tempo cronológico). No modelo do
multiverso, isso seria como entrar em ‘dobra espacial’14 e sermos alçados para um espaço-

12
Esquematicamente, Ogden (1986, 1994) chamou de “terceiro analítico intersubjetivo” a intersecção formada pelos conjuntos das
mentes do analista e do analisando, sugerindo ser nela que toda a análise transcorra. Proponho ser uma expansão deste conceito
observarmos essa entidade como um ser vivo singular, também com uma mente própria e multidimensional.
13
Multiverso é um termo usado para descrever o conjunto hipotético de universos possíveis, incluindo o universo em que vivemos.
Juntos, esses universos compreenderiam tudo o que existe: a totalidade do espaço, do tempo, da matéria, da energia e das leis e
constantes físicas que os descrevem. É geralmente usado em enredos de ficção científica, mas também é uma extrapolação possível
de algumas teorias científicas para descrever um grupo de universos que estão relacionados, os denominados universos paralelos.
14
Dobra Espacial (Warp Drive) é uma conjetura científica ficcional, oriunda da literatura de ficção científica, mais especificamente
da série de livros, cinema e televisão Star Trek. Trata-se, segundo os criadores da expressão, de um motor que dobraria o espaço,
aproximando dois pontos quaisquer distantes anos-luz entre si, de modo a reduzir a poucas horas ou dias uma viagem no espaço
que, de outra forma seria impossível. A teoria de viagem através de dobra espacial baseia-se na Teoria da Relatividade de Albert
Einstein, a qual afirma que as grandes massas de gravidade aglomeradas criariam fendas no espaço-tempo, que concentrariam não
só massa e energia, mas o próprio tempo junto. Essa teoria também sugere um universo multidimensional, com pelo menos 3
dimensões de espaço e 1 de tempo. Baseando-se nisso, a Teoria da Dobra Espacial sugere que aplicação de certa força poderia criar
uma "ponte" entre duas partes dessa fenda por uma "quarta dimensão" e, assim, "dobraria" o espaço. O modelo seria o seguinte:
Supondo-se dois pontos nas extremidades de uma folha de papel sulfite: para uma formiga, percorrer a diagonal seria o caminho
mais curto de se deslocar de um ponto ao outro, mas se essa folha for dobrada, e esses pontos colocados próximos um do outro, a
formiga poderia percorrê-los num breve salto, movimentando-se apenas alguns milímetros.
9
tempo paralelo, que seria muito mais intuído do que pensado, seria inédito, inusitado, e a
partir dele poderíamos observar o buraco negro presente e tentar compreende-lo.
Numa recente comunicação, uma colega (Sarti, 2019) lembrou-nos que tolerar a
dolorosa “condição de sermos sós e dependentes e, ao mesmo tempo estarmos no UNO com
o paciente” é necessária para desenvolvermos esse estado de “isolamento” que nos permite
essas observações inusitadas. Contou, a respeito, que atendendo uma paciente que se
sentava, e ouvindo algo que dizia sobre sua relação com o filho, escorreu-lhe uma lágrima.
Em suas palavras, algo lhe “escapou e era algo que eu não estava pensando, nem sentindo.
(Radiações do meu buraco negro?). Ela me olhou fixamente e não disse nada. A sessão
seguiu. Recorri a Bion, a Vinicius, a mim mesma: "Ufa, estou aliviada, hoje duas mulheres se
encontraram aqui". Algo se abriu- ampliou-entre nós!”

Utilizando esta conjetura imaginativa como ferramenta de observação, podemos


conceber a experiência emocional compartilhada como vivenciada em dimensões sincrônicas
e concomitantes. O analista - em estado receptivo, opacificando suas “memórias, desejos e
necessidades de compreensão imediata’ (Bion, 1970; Braga, 2012, 2016; Sapienza, 2004;
Ribeiro, 2016, 2019) – além de captar com sua ‘antena mental’ as dimensões mentais (e
protomentais) nas quais o analisando se encontra, poderia, de fato, experimentar junto ao
analisando outras dimensões para além da sala de análise e dos papéis que ambos estão
exercendo. Neste modelo, em um universo (o nosso atual) ambos então no exercício da
psicanálise, mas no universo paralelo, poderiam estar vivendo uma experiência emocional
de outra natureza. A ‘dobra espacial’ seria o movimento mental que nos permitiria
vislumbrar esses paralelismos, com vistas a aprender com a experiência.
Naturalmente, essas são apenas conjeturas imaginativas, mas, se empregadas
analiticamente com coragem e Fé, podem nos brindar com inusitadas apreensões da
realidade psíquica, abrindo novos caminhos para a expansão mental.

...................................................................................
ADENDO - “Story of Your Life” de Ted Chiang (1999):
Sobre o Livro das Eras
Eu gostava de imaginar a objeção como uma formulação de Borges: Considere uma pessoa
sentada diante do Livro das Eras, uma cronologia que registra todos os eventos, do passado e do
futuro. Embora o texto tenha sido fotorreduzido da edição em tamanho natural, o volume é enorme.
Com uma lente de aumento na mão, ela folheia as páginas finíssimas até localizar a história da sua
vida. Folheando o Livro das Eras, ela encontra a passagem que a descreve folheando o livro; e ela
passa para a coluna seguinte, em que está detalhada o que ela vai fazer mais tarde naquele dia:
agindo a partir da informação que leu no livro, ela vai apostar cem dólares no cavalo de corrida Devil
May Care e ganhar vinte vezes essa quantia.
A ideia de fazer isso tinha passado por sua cabeça, mas, só para ser do contra, ela decide
evitar completamente apostar em cavalos.

10
Ai está o problema. O Livro das Eras não pode estar errado, esta situação tem base na
premissa de que uma pessoa recebe o conhecimento do futuro verdadeiro, não de um futuro possível.
Se fosse um mito grego, as circunstâncias conspirariam para fazê-la cumprir seu destino apesar de
todos os seus esforços, mas profecias em mitos são notoriamente vagas; o livro das Eras é bem
especifico, e não há como a pessoa ser forçada a apostar em um cavalo de corrida da forma
especificada. O resultado é uma contradição: o Livro das Eras deve estar certo, por definição; ainda
assim, não importa o que o Livro diga que ela vá fazer: ela pode escolher outra coisa. Como esses
dois fatos podem se reconciliar?
Não podem, era a resposta mais comum. Uma obra como o Livro das Eras é uma
impossibilidade lógica, pela exata razão de que sua existência resultaria na contradição acima. Ou,
para ser generoso, alguns podem dizer que o Livro das Eras poderá existir, desde que não fosse
acessível aos leitores: um volume é abrigado em uma coleção especial, e ninguém tem privilegio de
vê-lo. (pág. 175).

11

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