Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Aurélio Souza*
Unitermos: Real; Gozo; humor; O humor e a psicanálise, ção que realiza outro tipo de
sujeito. que direção tomar? gozo, um gozo "não-todo", um
Para encaminhar uma res- gozo "fora-linguagem", um gozo
posta a esta questão, vou consi- do outrosexo, ou mesmo um
derar que para qualquer tema a gozo do Outro, mesmo que este
Resumo ser tratado na psicanálise, deve- grande Outro não exista. É uma
P a r a t r a ta r d o h u m o r, n a se sempre levar em conta as condição que o afeta através do
psicanálise, ele deve ser corpo que o sustenta.
duas pernas sobre as quais ela
considerado a partir da Psicanálise
em Intenção, isto é, como algo que se sustenta: uma que Para tomar partido em rela-
afeta o sujeito do inconsciente e corresponde à Psicanálise em ção a este tema que nos convo-
deve ser avaliado. Embora se tenha Intenção, uma condição que se ca - o HUMOR - pois na Psica-
a ilusão de que fazer humor obedece desenvolve como um laço social nálise em Extensão se deve
ao princípio do prazer, o que a
psicanálise revela é que através de
estabelecido entre o analista e o sempre acrescentar algo de si
suas diferentes manifestações o analisante, sob transferência. E a mesmo no que se fala, vou con-
sujeito faz uma convocação ao outro outra que corresponde à Psica- siderar que Freud, mesmo que
para se proteger de uma condição nálise em Extensão; isto é, o que não tenha fundamentado a es-
de gozo, isto é, de um sofrimento se diz daquilo que se pratica. sência desta questão do humor
que o afeta. Portanto, diferente do na análise, ele não deixou de
que muitas vezes se pode imaginar, Entre estas duas pernas
o humor não propicia uma "flor do
revelar sua utilidade. Algo subli-
está o sexo. Ou melhor, o gozo me e libertador para o eu, algo
prazer", não é um altruísmo, mas
que afeta o sujeito, não só do que vem de uma forma ilusória
um artifício através do qual pode
tornar tolerável o sofrimento do corpo que o sustenta, como tam- engrandecê-lo.
sujeito. Assim, o riso nem sempre bém em relação àquilo que lhe
faz bem, desde quando pode só acontece todas as vezes que Assim, o humor na psicaná-
encobrir um sofrimento que afeta o toma a palavra. lise tem convergido muitas ve-
corpo e/ou o pensamento que se zes para o cômico, o sublime e
manifesta como o pior que se volta A Psicanálise em Intenção, mesmo para o irônico. Ou ain-
contra o sujeito. portanto, é constituída como um da para outras manifestações
discurso orientado por uma "pe- que podem ser utilizadas para
quena etiqueta" que leva em con- libertar o Eu de algumas situa-
ta, de um lado, aquilo que é visa- ções difíceis que estejam afe-
do pelo sentido ou pela retórica tando suas diferentes realida-
e que realiza no sujeito um tipo des. O humor auxilia muitas
de gozo identificado como gozo vezes a se superar o horror, ou
fálico. Um gozo "fora-corpo". mesmo o medo à morte, bus-
Por outro lado, o que é fala- cando sempre afirmar o suces-
do através do sujeito obedece so do Princípio do Prazer.
a uma outra lógica que escapa Desta maneira, o que pode
*Psicanalista. Espaço Moebius, Salvador,
ao sentido, à retórica e mesmo causar medo se modificaria,
Bahia. ao senso comum. É uma condi- provocando riso. O fracasso
estrutura de linguagem não Diferente, no entanto, do mito constituir determinado por uma
corresponde àquela que serve freudiano, gostaria de convidá- perda em sua estrutura e como
à comunicação, mas aquela que los a considerar que esta opera- um ser mental que irá manter
se torna responsável pela cons- ção de incorporação inaugura uma extimidade lógica e
tituição do sujeito e que pode um tempo lógico em que é a pró- topológica em relação à própria
realizar em ato a realidade do pria estrutura de lalíngua que in- estrutura da linguagem aonde
inconsciente. corpora o sujeito. habita.
Colocado este comentário Este envelope sonoro, for- O que é essencial a se con-
sobre a linguagem, vou retomar mado por letras e significantes, siderar no discurso analítico é
a questão que se refere ao su- vai se utilizar da superfície real que esse sujeito não deve ser
jeito. De que sujeito se trata na do corpo que sustenta o sujeito confundido a uma pessoa, a um
psicanálise? Essa noção de como um leito para se inscrever. indivíduo, a um homem como
sujeito não corresponde a uma Esta inscrição produz marcas um ser vivo, com sua anatomia,
condição comum que faça par- de pertinência que vão fisiologia e bioquímica. Nem
te de qualquer outra área do homenizar o animal humano e mesmo corresponde ao sujeito
conhecimento. Ela vem testemu- realizar uma coalescência da lin- gramatical, a um interlocutor, ou
nhar um desenvolvimento do en- guagem com o sexo. Produzem a essa instância que é Eu [moi],
sino de Lacan, que o concebeu também marcas eróticas que com o qual mantém uma condi-
como o resultado de uma conta- vão estar relacionadas com o ção de alteridade radical. Ele fi-
minação de lalíngua sobre o vi- desejo do Outro, mesmo que cará sempre reduzido a uma hi-
vente, antes mesmo de ter nas- este grande Outro não exista. pótese, a um axioma, como um
cido, ou de ter sido concebido. sujeito dividido.
A intervenção de lalíngua
De que maneira lalíngua através da operação de incor- Assim, do que se trata quan-
pode causar o sujeito e produ- poração vai determinar uma do a psicanálise convoca a pre-
zir seus efeitos? Lacan desen- perda na estrutura do sujeito, sença desse sujeito dividido? E
volve uma hipótese sugerindo a algo que não pode ser nomea- qual sua relação com o Humor?
presença de um sujeito primitivo do, nem mesmo subjetivado, Uma primeira condição a se
que seria desde cedo afetado mas que vai causar um tipo de considerar é que os animais
por lalíngua. Aqui, não se trata esburacamento no real, uma fal- não riem. Mesmo que em cer-
de uma questão de desenvolvi- ta que vai abrir um buraco tas condições possam ser
mento, mas de um efeito lógico irreversível em algum lugar da "homesticados", a imitar uma
e, sobretudo, topológico, a partir própria ex-sistência do sujeito. fala, eles não têm humor. E mais
de uma noção identificada como Esta condição linguageira o do que isso, mesmo que se con-
de Incorporação. manterá sempre com uma im- sidere que alguns animais fa-
Uma operação que tem sido possibilidade de encontrar em lam, sua língua é diferente da
muitas vezes relacionada àquilo seu im-mundo de sinais, uma nossa. Sobretudo, pelo fato de
que acontece na fase oral do resposta "adequada" de sua in- que não guardam uma relação
desenvolvimento da libido. Es- serção na linguagem ou mesmo com a escrita. De escrever o
tes elementos linguageiros que de uma verdade sobre si mesmo. que se fala, ou melhor, de falar
o sujeito recebe como uma he- Desde o seminário sobre a o que se escreve, como no dis-
rança simbólica e que o envol- Ética que Lacan já afirmava que curso analítico.
vem, deveriam ser colocados o homem demanda... ser priva- Esta "fala" nos leva a consi-
para o interior do organismo. do de algo do real, para criar um derar a importância da escrita,
Uma operação que poderia se vacúolo que vai estar no centro ou da letra no HUMOR e, por
metaforizar num "banquete", da estrutura de linguagem e li- extensão, no próprio discurso
como no mito elaborado por gado a um tipo de simbolização analítico, um discurso essenci-
Freud, onde os filhos matam o primitiva3 equivalente à priva- almente sem palavras. Para dar
pai e, em seguida, o devoram. ção. Assim, o sujeito vai se um exemplo, entre muitos pos-
síveis, vou citar um dos relacio- cial, é um ato que só pode ser 3 Lacan., J., Sem. VII, L'Éthique de la
nados por Freud, citando a verificado numa análise. psychanalyse (1959/60), Seuil, Paris,
p. 179.
Josef Unger, presidente da Su- Talvez se possa considerar
prema Corte e professor de Ju- que o humor é uma atitude, é
risprudência em Viena, referin- uma astúcia que o sujeito, dian-
do-se a um companheiro de te de uma impossibilidade sim-
viagem: "- eu viajei com ele tetê- bólica de se defender de um
à-bête". efeito do real, estabelece um
O que faz rir é essa resso- corte, busca formular uma última
nância da letra. Nessa expres- resposta sobre as desgraças
são de "tetê-à-bête", a simples da vida, sobre os desígnios do
substituição de uma letra por destino ou de deus, das furadas
outra, da letra (t) pela letra (b), de fila, utilizando-se de algo que
realiza o apagamento e o apa- faça rir.
recimento, em ato, do que se Diante destas diferentes
pode considerar como sujeito condições, o sujeito convoca um
do inconsciente. Esse efeito, no "outro", ou mesmo o riso do ou-
social, não decorre da importân- tro. Ou ainda alguns outros a
cia do sujeito da frase, que se sancionarem, com o riso, a bus-
expressa através de "eu via- ca de um triunfo narcíseo atra-
jei...", onde o "eu" é equivalente vés do humor. Com isso, ele pro-
ao que os linguistas nomeiam cura evitar algum tipo de
de shifter, mas àquilo que sideração que o real possa lhe
retorna do recalcado e que pro- produzir.
duz seus efeitos.
Embora o humor esteja mui-
O que é essencial na psica- tas vezes relacionado ao riso,
nálise é que no discurso analíti- não existe uma implicação ne-
co será preciso se verificar o cessária entre eles. Assim, tan-
afeto. Só na Psicanálise em In- to pode existir humor sem riso,
tenção, essa ressonância da le- como seu inverso, isto é, pode
tra que afeta o sujeito do incons- ocorrer riso sem humor. Desde
ciente pode revelar o que se quando se pode considerar que
esconde num chiste. O que exis- o humor é um inimigo mortal do
te aí de hostilidade, de compe- sentimento.
tição, de ciúme, de erotismo, de
rivalidade, de cinismo... na rela- Com efeito, se os sentimen-
ção com o outro. Algo que só tos sempre enganam em rela-
pode ser verificado na prática ção aos efeitos do real, o humor
da análise com cada um. pode ser considerado como um
tipo de manifestação que procu-
Neste caso, não se trata do ra enganar menos, embora con-
óbvio que acontece muitas ve- tinue enganando. Na psicanáli-
zes nos chistes, no cômico ou se, portanto, será sempre
em outras manifestações de necessário verificá-lo. Mas nes-
humor, onde cada um que sor- te caso, só se pode fazê-lo atra-
riu pode interpretar a seu gosto vés de uma Análise em Inten-
o fato que causou seu riso. Vou ção.
insistir sobre isto, pois o efeito
que se realiza sobre o sujeito, o Ainda para dar seguimento a
sujeito do inconsciente, no so- estas considerações sobre o HU-
Cógito • Salvador • n. 10 • p. 08 - 14 • Outubro. 2009 11
Aurélio Souza
MOR, vou tomar duas condições ria, por extensão, o sujeito tam- tenta ri. É uma condição equiva-
que estão diretamente relaciona- bém a se manter em ereção lente a esta outra de que, quando
das a ele: o cômico e o chiste. fálica. Não se trata de uma rigi- se chora por uma perda, o sujei-
Em primeiro lugar, o cômi- dez que concerne ao sujeito, to não sabe o que perdeu. O su-
co. Uma condição que pode ser mas ao próprio corpo que o sus- jeito, o parlêtre, não sabe pelo
aludida através deste trabalho tenta. Lacan ainda veio relacio- que chora. Mais uma vez será ne-
realizado por um palhaço, ou al- nar o cômico com o saber da cessário verificar o afeto.
guns bacanas da televisão, ou não proporção sexual. Neste ato que se realiza num
ainda nesta cena emblemática Quanto ao chiste, se o in- chiste, o sujeito desloca o valor
em que alguém vai andando, tro- consciente é estruturado como do significante e do gozo fálico,
peça e cai. uma linguagem que opera com procurando realizar outro tipo de
Por que estas situações fa- uma "língua elástica", com gozo. Não se pode saber se isso
zem rir? Em primeiro lugar, são lalíngua, ele se torna o mais leva ao bem, ao mal ou ao pior.
condições que atualizam a pre- emblemático tipo de laço social Será preciso "avaliar o afeto" e
sença lógica de um objeto. De construído pelo sujeito, quando considerar que o chiste revela
um objeto metonímico que o su- comparado às outras forma- uma dimensão da verdade do
jeito, mesmo sem saber, se iden- ções do inconsciente. O chiste sujeito e de uma cota de gozo.
tifica de uma forma imaginária é uma manifestação que decor- Só no curso de uma Análise
com ele. Estas diferentes condi- re de uma operação significante em Intenção é que é possível ao
ções invocam a presença de um por excelência. analista se manter sensível ao
"outro", o semelhante, com o qual Neste caso, o sujeito não só sujeito que é invocado no discur-
o sujeito realiza um tipo de iden- convoca a presença do "outro", so. Uma condição que pode levá-
tificação em que tem agregado o semelhante, tomando-o como lo a se manifestar de diversas
um valor narcíseo importante. um objeto contra o qual faz o maneiras, na dependência do
Por isso mesmo, o sentimen- chiste, como também invoca a significante que o representa, or-
to cômico vai estar também re- presença do "próximo", daque- ganizando e direcionando as pos-
lacionado ao ódio, ao amor, ao le que Freud considerou como sibilidades e impossibilidades de
transitivismo, podendo evidenci- uma terceira pessoa, a "dritten gozo, nos diferentes laços soci-
ar uma ligação a um determina- Person" e que Lacan equivaleu, ais que se estabelecem.
do tipo de gozo que se pode em certo momento de seu ensi- Quero afirmar que, em qual-
identificar como gozo fálico. no, ao grande Outro. quer ato significante que se re-
O palhaço, ou ainda esse Assim, ao realizar um chiste, alize contra o outro, o semelhan-
outro que cai, eles se deslocam, o sujeito convoca o Outro a se te, só numa Análise em
eles despencam de uma posi- tornar cúmplice desta manifesta- Intenção se pode revelar essa
ção que, de início, poderiam ção de agressividade, de cinis- condição que vou nomear de cí-
guardar uma exuberância fálica. mo, de ironia, de obscenidade..., nica. Uma condição que diz res-
Lacan estabeleceu essa rela- para autenticá-lo e sancioná-lo. peito ao efeito que isso pode
ção do cômico com a significa- Ele é produzido pelo efeito de um produzir sobre o sujeito do in-
ção fálica através do que na an- significante que escapa do consciente.
tiga comédia, o phalus se recalque e responde com uma Desta maneira, mesmo que
representava encarnado numa manifestação desagradável de o grande Outro, essa ficção do
pessoa que poderia ser deslo- gozo, isto é, como "um efeito da ensino de Lacan, seja convoca-
cado e cair de sua posição. linguagem"4 que faz rir. do pelo sujeito para sancionar um
Uma condição que fazia rir. O sujeito, no entanto, quan- chiste, paradoxalmente, o sujeito
Estes outros semelhantes, do é afetado pelo corpo que ri de também procura se desembara-
ao perderem sua exuberância um chiste, o próprio sujeito não çar deste suposto Outro, desse
fálica, liberam o eu (moi) desta sabe do que ri. É através do riso Outro que não existe. Ele busca,
posição imaginária que obriga- dos outros que o corpo que o sus- mesmo sem saber, gozar do que
12 Cógito • Salvador • n. 10 • p. 08 - 14 • Outubro. 2009
Nem sempre o riso faz bem
4
disse. Que possa se satisfazer sexo, com o desejo e com o gozo. Lacan, J., Position de l'Inconscient,
daquilo que disse, ou do que diz. Condições, no entanto - vou insis- Écrits, Seuil, Paris, 1966, pp. 869/870.