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Gabriel Lombardi
O sintoma, nó e tempo da estrutura subjetiva
Em psicanálise, muitos progressos conceituais se desgastam e se
esterilizam mais ou menos rapidamente com o uso. Para revitalizá-
los é conveniente levar em consideração os escotomas e a surdez
parcial que induziram. Quero, em primeiro lugar, chamar a atenção
sobre os efeitos da concepção que cristaliza uma oposição entre o
sintoma clinicamente manifesto e a estrutura oculta. Por um lado,
dá à estrutura uma profundidade que somente é produto de uma
psicologização da psicanálise – consistente em supor uma espessura
sincrônica a algo do qual só temos certeza de que se desdobra na
diacronia da cura. O inconsciente é menos profundo do que inaces-
sível para o aprofundamento consciente, assinala Lacan,1 e é lasciate 1 Lacan, A psicanálise e seu
ogni speranza à entrada de A Psicanálise e seu ensino. Em uma análise ensino (1957/1998, p. 438).
não se trata tanto de aprofundar, mas de abrir os sentidos do sinto-
ma, os sentidos falsos, os que se apoiam nos ideais e na fantasia, os
que podem cair e deixar lugar à raiz do sintoma que alcança o real
e que conserva um sentido inclusive aí.
Por outro lado, esperando o fundamental no oculto, essa con-
cepção favorece o desconhecimento do sintoma naquilo que tem
de mais evidente e define seu tipo clínico. Uma vez cristalizada a
oposição entre sintoma manifesto e estrutura oculta, tudo se con-
funde. Diagnostica-se, por exemplo, uma histeria por meio das fan-
tasias ou dos temas (a outra mulher), e as definições básicas não são
consideradas: histeria quer dizer conversão, histeria quer dizer – na
leitura de Lacan – que se mente ao parceiro mediante a inscrição
do sintoma no corpo; em outras palavras, quando o sintoma se ins-
creve no corpo encontra-se apto ao laço social. Será necessária uma
análise, claro, para conseguir que a Dora de plantão revele sua par-
ticipação no sintoma por meio de sua cumplicidade com o Outro
e com a Outra, de sua concepção oral do polegar e da mulher – se
conhece chupando –, de sua apelação, via fricção, à orelha do ir-
mãozinho e logo do analista. Mas o que faz de Dora uma histérica
é o lugar onde seu sintoma se inscreve. O corpo, não o pensamento
nem a conduta como na neurose obsessiva, não o organismo como
no sintoma hoje chamado psicossomático, não o delírio fora de dis-
curso como na hipocondria.
O obsessivo e o corpo
A definição de gozo proposta por Lacan – o gozo é a relação do
ser falante com seu corpo3 – permite vislumbrar por que o histérico 3 Lacan, Seminário O saber
é o analisante por excelência. O sintoma histérico reúne duas con- do psicanalista (inédito, aula
dições inigualáveis: a primeira é que, desde o início, está inscrito do dia 2 de dezembro de
então no lugar do gozo – o corpo –, a segunda é que se trata de 1971). Lacan afirma também
um sintoma social capaz de enlaçar-se com o desejo do Outro. O que não há outra definição
sintoma histérico é, por isso, aberto à interpretação. possível do gozo que a
Muito diferente é o caso da neurose obsessiva, que é “um assun- anunciada: é a relação do ser
to particular do enfermo”. O sintoma e o lugar do gozo aparecem falante com seu corpo.
divorciados, incomunicáveis um a respeito do outro, e, quando um
e outro se aproximam nas associações, emerge uma angústia que
contrasta com a bela indiferença da histérica. O sintoma obsessivo
não enlaça os corpos, na verdade os isola. É excelente a caracteri-
zação dessa neurose que Freud faz em Inibição, sintoma e angústia,
na qual mostra até que ponto o corpo e o estilo associativo são duas
coisas indissociáveis.
Referências bibliográficas
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Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Resumo
Neste trabalho busco extrair algumas consequências da
oposição entre a conversão como sintoma com o qual
o histérico chega a se vincular socialmente, e o sinto-
ma do neurótico obsessivo que, nos dizeres de Freud, é
“um assunto particular do enfermo”. Enfatizo algumas
dificuldades específicas que o obsessivo encontra para o
cumprimento da regra fundamental, indagando sobre os
fundamentos estruturais de tais dificuldades e sua coe-
rência com o isolamento entre o sintoma e o corpo do
obsessivo. O sintoma obsessivo – em princípio uma sé-
rie de transtornos no pensamento ou na conduta – pode
encontrar em uma análise uma elucidação de sua raiz
somática e, com isso, uma chave para discernir sua inser-
ção na estrutura subjetiva. O tabu do contato, além do
elemento contato (com corpo próprio, com o corpo do
Outro), inclui o tabu que, por meio do sintoma, sustenta
a dominância de um real mítico, acaso nunca totalmente
eliminável da realidade do ser falante, mas especialmente
prevalente nessa neurose.
Palavras-chave
Neurose obsessiva, sintoma, corpo, histerização, pulsão.
Key words
Obsessive neurosis, symptom, body, hysteria, pulsing.
Recebido
20/11/2010
Aprovado
17/12/2010