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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

IZAQUE MIGUEL

A CORAGEM SE DESPEDAÇA: UMA GENEALOGIA DO

DESPREZO

NITERÓI

2017
IZAQUE MIGUEL

A CORAGEM SE DESPEDAÇA: UMA GENEALOGIA DO DESPREZO

Tese apresentada ao PPG em Psicologia da


Universidade Federal Fluminense como parte dos
requisitos para a obtenção do título de doutor em
psicologia, sob orientação da Professora doutora
Maria Lívia do Nascimento.

NITERÓI
2017
Ficha catalográfica
Agradecimentos

A generosidade é tão boa quanto rara: maria da guia, mestre pedro lima, cecília coimbra,
fernando, glau, luiza oliveira, federico, maria lívia, ana cláudia, vanessa andrade, heliana
conde, renato, keila, renato nogueira, alessandro, luana, fábio costta, kezya, david, coletivo de
capoeira escola de vadiação, tambores de ogamilu, coletivo ocupa-alemão, letícia, maria clara,
ale, áurea, daniele, eliane, joão, passetti, maura.
Ele cortou com uma faca o que nos mantinha unidos, e nós nos despedaçamos.
Chinua Achebe

Línguas selvagens não podem ser domadas, elas podem apenas ser decepadas.
Glória Anzaldúa

A habilidade do colonizado só pode ser, em última instância, a sua coragem.


Franz Fanon
SUMÁRIO

Lenços …………………………………………………………………….. p. 7
Gestos ………………………………………………………………………p. 14
Andreia …………………………………………………………………….p. 24
Bestas………………………………………………………………………p. 42
Congo………………………………………………………………….…...p. 55
Branca ……………………………………………………………………..p. 75
Azul ………………………………………………………………………..p. 79
Indez………………………………………………………………………..p. 92
Coragem……………………………………………………………………p.106
Referências………………………………………………………………...p.108
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Lenços

O que posso?
É preciso começar.
Começar o quê?
A única coisa no mundo que vale a pena começar.
O Fim do mundo, na verdade!
(Césaire, 1942, s/p)

É preciso começar. Os acabados precisam começar. Para aqueles que o fim do mundo
chegou faz tempo e chega todo dia, é preciso começar. Os condenados desde o útero, porque
forjados em úteros já condenados, precisam começar.
Começar o quê? Começar o quê? Começar o fim. Começar o sim. O sim para o fim.
Um sim para a destruição. Filhos da negação, filhos do não. Já não nascem mais filhos da
guerra. A guerra é sim. Filhos de murmurações covardes, o indivíduo, o Homem, o Homem
Branco.
É preciso começar.
Os indivíduos são fetos vomitados por úteros invertidos. Eles têm veredictos de
morte tatuados em seus rostos. Filhos das ideias. E filho de ideia é bicho morto. Da ideia de
paz, da ideia de país, da ideia de vida, da ideia de homem, da ideia de doença, da ideia de
pensamento, da ideia de cor, da ideia de cidade, da ideia de morte, da ideia de criança, da
ideia de felicidade, da ideia de corpo, da ideia de coragem, da ideia de conduta, da ideia de
deus, da ideia de amor, da ideia de cidadão, da ideia de verdade, da ideia de saúde, da ideia de
virtude…
Vestidos de mármore sufocam toda vontade própria.
Há crianças que nascem, ao que parece, com má-formação. Bebês que não
correspondem às ideias. Desviados do rosto de Cristo, interceptados sem descanso pelos
entrepostos de poder.
É preciso começar.
Esses desviados não poderiam ter nascido, dizem os pais das ideias. Nasceram. E
quem somos nós?
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Quem somos nós? Admirável questão!


Detestáveis. Fundadores. Traiçoeiros. Feiticeiros. Feiticeiros, sobretudo. Pois
nós queremos todos os demônios.
Aqueles de ontem, os de hoje
Aqueles dos grilhões, aqueles do arado
Aqueles da interdição, da proibição, da fuga
E não temos intenção de esquecer aqueles dos navios negreiros... (Césaire,
1942, s/p)

Para o mundo que está ereto, há os detestáveis. Aliás, as colunas desse mundo, os
fundamentos, o pasto que o engorda são as crianças. Ai do joio! Ou se é combustível para o
que está aí ou se é abraçado por uma vala. Em ambos os casos, putrefação.
É preciso começar.
Quem somos nós? Na mitologia dos mercadores de ideias, o horror é o demônio. O cão,
a criança. Os sacerdotes, quase anjos, não param de repetir: há um lago de fogo e enxofre no
qual o demônio e seus seguidores serão lançados e lá queimarão eternamente. É o sonho
deles. Esta profecia é realizada todos os dias. Todos os dias o lago recebe oferendas imundas.
A mitologia deles, posta em ação todos os dias, é o fim da possibilidade de mundos outros.
A glória das suas florestas
e dos seus campos férteis
se extinguirá totalmente
como definha um enfermo.
E as árvores que sobrarem
nas suas florestas serão tão poucas
que até uma criança poderá contá-las.

(Isaías, 10: 18-19).


É preciso começar.
É preciso começar o fim dos sacerdotes angelicais, pastores da morte.
É preciso começar.
O demônio da fuga, contudo, é. Fuga para a vida, para viver, para o viver. E
Ainda vemos lenços nas cadeiras de mulheres, argolas em suas orelhas.
Sorrisos em suas bocas, crianças em seus seios, e basta:
CHEGA DESTE ESCÂNDALO!
Eis então os cavalheiros do apocalipse.
Eis então sem pompa os empreendedores de funerais
Sem julgamento os homens do juízo final. (Cesaire, 1942, s/p, destaque no
original)

Os homens do juízo final.


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Foram traídos os sacerdotes dos lagos de enxofre, os padres. Há mulheres ainda. Há


mulheres abrigadas em capulanas. Há mulheres que ainda possuem orelhas e se põem a
adorná-las. Há mulheres de pele negra que se vestem de branco. Elas riem. Elas engordam
seus filhos nos seios e isto não se tolera. Os desterrados traíram. As condenadas traíram, elas
deram de mamar a seus pequenos demônios. O veredito não foi este.
É preciso começar.
Os corcéis são velozes, nos seus lombos novos sacerdotes. Cavalos corredores. Eles
vem em favor da vida. Mas da vida como ideia. Não mais o céu do outro lado da vida, mas a
salvação, a segurança e a saúde aqui, ofertam esses homens. Veladores da norma. Antes o
demônio habitava o recôndito do corpo, agora os sacerdotes estatais caçam as pestes. Eram os
pecadores, agora são os criminosos, os loucos, os anormais, os preguiçosos, os devassos que
devem ser interceptados. Os empreendedores de funerais. Os funcionários da norma têm boa
memória e bons olhos.
Extenuado, sussurrou um homem: “A polícia já me parou 96 vezes.” Ele é meu amigo.
É preciso começar.
Eles cobram o preço do escândalo. Exigem os devidos sacrifícios por todas as
profanações. Com mais fúria exigem tributos em sofrimento e sangue daquelas e daqueles que
não cabem nas normas e ainda insistem em permanecer no mundo dos vivos. Desviados. A
norma exige sangue como adubo para que ela floresça. Quanto menos uns, mais eles. 96
vezes.
É inútil apiedar-te de nossa indecência com teus sorrisos de quistos
purulentos.
Policias e agentes
Denunciem a grande traição louca, o grande desafio macabro, a impulsão
satânica e a insolente deriva nostálgica das luas velhas, de vias livres, de
vômitos negros...
Porque nós te odiamos, tu e tua razão, nós nos queixamos da demência
precoce, da loucura flamejante, do canibalismo tenaz. (Césaire, 1942, s/p)

É preciso começar. Porque nós odiamos você e sua razão.


Contra a subjetividade branca, vômitos negros.
Quisto é tumor. Os mestres do juízo espalham suas epidemias e vendem a ideia de cura.
Nada de piedade. Não é por isso que se rememora as 96 duras. É inútil. Ela alimenta a ferida.
Não. Não mais simpatia de pus. Os que hoje têm piedade e simpatia, amanhã denunciam os
traidores para os agentes e as polícias. Os guardiões da ordem odeiam as vias livres.
É preciso começar.
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Começar o fim dessas doenças que têm estampas de saúde.


Segue o cortejo macabro da maestria branca: sacerdotes cristãos, sacerdotes estatais e os
mais recentes, sacerdotes do capital.
Primeiro Bispo: Que época. Que bela carnificina cometestes, filhos meus.
Segundo Bispo: Espantosa época amados irmãos. Vemos o bacalhau da Terra
Nova lançar-se ele próprio na direção do anzol.
Terceiro Bispo: Digo que é uma época espantosa. Ou então assombrosa como
vós quiserdes.
Quarto Bispo: Uma época fálica e fértil em milagres. (Césaire, 1975, p. 20)
É preciso começar.
Eis a última volta do parafuso anunciada pelos Bispos: o bacalhau se atira sobre o anzol.
O capitalismo não somente sequestra o tempo de vida dos operários como outrora. O si, a vida
mesma, no neoliberalismo à moda norte-americana, tornada empresa, si-empresa, si-capital,
empresário de si, empreendedor de si, cidadão-empresa . Eis aí estética neoliberal. Coragem
para quê? Mundo assombroso. A colonização não para.
É preciso começar entre corcéis, polícias, Bispos, brancos, camelos, ideias, sacerdotes,
dores, funcionários, mortificações, empresários, chacinas e silêncios.

É preciso começar.
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E correm e gargalham e ofertam pedras portuguesas aos canas e tomam cachaça e


gritam.

E fogem.

Ouçam.

E retiram suas blusas pretas e com elas cobrem suas cabeças negras e correm e
picham nas paredes dos prédios históricos no Centro do Rio de Janeiro. Observem como são
magros, muito jovens, poucos. Parecem se divertir ao fugir da polícia nas manifestações em
junho de 2013.

Ouçam as tatuagens, as calças e coturnos negros, a garrafa de cachaça na mão de


uma menina. Um retira uma marreta da mochila e colhe pedras portuguesas do calçamento
diante da Biblioteca Nacional. E as pedras, escutem, são ofertadas aos companheiros. Um
deles se põe de frente para grupo, com as mãos transbordando pedras e erguidas acima da
cabeça, declama: “Saúdo-vos, negras pestes! Estas pedras são o corpo da cidade que nos
despreza, pegai e tacai! Façamos isto em memória de nossos ancestrais odiados. Estas pedras
serão a partir de agora o símbolo de nossa ira. Serão também o símbolo da nossa rebelião
contra a vida de merda que nos ofertam. Façamos isto em memória dos nossos que foram
mortos nesta cidade e vivem conosco!”

“Amém!”, responde o grupo.

E se põem como batedores da multidão, peitos nus. A polícia ataca, os manifestantes


correm no sentido oposto ao da polícia, a molecada corre em direção à tropa. E fogem.

Sob o gás, reencontro-os mais duas vezes.

Os coquetéis de fogo se extinguiram.

O pequeno grupo de jovens negros de Niterói nunca mais encontrei.

De seus gestos furtei um termo, um tema e uma inquietação: coragem.


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A água que vivifica é a mesma que afoga.
Ele era o mais famoso entre os seus e entre outras gentes. Apelidaram-no de “Chama
estrondosa”. Sua força e coragem cinzelavam o vento, e este carreava seu nome até as bordas
do desconhecido. Ele não era um herói, não era feliz nem infeliz. Ele era. Uma força
imprevisível, um guerreiro.
Rumores estranhos sopravam mais e mais nas aldeias vizinhas. As vozes sem bocas
diziam que homens da cor dos leprosos se espetaram na vizinhança do grande rio, o Níger. Os
gafanhotos chegaram.
Os anciãos consultaram o Oráculo e este declarou que aquele homem
estranho causaria a ruína do clã e espalharia a destruição entre eles. […] Ele
disse também que mais homens brancos estavam a caminho. Eram gafanhotos,
falou o Oráculo, e aquele primeiro homem era o batedor dos demais, enviado
por seus companheiros para explorar o terreno. (Achebe, 2009, p.93)

Algum tempo depois Okonkwo, o guerreiro ibo, fora encontrado morto pendurado no
tronco de uma árvore. Lá está a imagem de um homem negro com o pescoço quebrado,
suspenso, o corpo esticado verticalmente, do mesmo modo como tempos depois serão
encontrados tantos e tantos afro-americanos.
Okonkwo queria guerrear, e os “estranhos” queriam salvá-lo. De sua aldeia o valente
queria extirpá-los, mas os gafanhotos o chamavam de irmão. O africano fica confuso.
Os homens sem valor, os efulefu, curvam suas espinhas primeiro e adoram o deus dos
homens de olhos azuis. Os anciãos da tribo debocham, interrogam-se sobre esse
empreendimento dos missionários ingleses para o qual só vão os desnutridos de valores, os
mais fracos entre os ibos. Ruídos sem língua confirmavam o Oráculo, os clãs que não
dobravam os joelhos perante os senhores tinham suas aldeias inteiras destroçadas. “Ganhavam
vulto os comentários de que o homem branco trouxera não apenas uma religião mas também
um governo” (Achebe, 2009, p. 120).
Um governo?
Okonkwo convoca seu povo para a luta; os sacerdotes europeus constroem uma igreja.
Okonkwo se arma para a guerra; os missionários erigem uma escola e ensinam aos jovens
muito mais do que a ler e a escrever. Os servos de Jesus matam uma serpente sagrada;
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Okonkwo com um facão mata um kotma - homem africano que recebeu farda, armas,
migalhas de poder e ordens do colonizador. O homem branco faz um tribunal na cidade mais
próxima, os anciões não podem dirimir mais os entreveiros de sua gente; Okonkwo morre.
Desfalece pela falta de guerra, de inimigos. O signo da coragem entre os ibos no sudoeste
nigeriano se despedaça.
Uma forma nova de governo?
Chinua Achebe narra com precisão cirúrgica no livro O mundo se despedaça os venenos
que colonizam a vida e a coragem aportando entre os ibos. Venenos oferecidos como
remédios: polícia (kotmas), igreja, escola e tribunal, sem contar o dinheiro.
Uma forma nova de governo. Governo branco.
A coragem se despedaça é o título, é a tese. E quando a coragem se despedaça, quando
ela é desarticulada abre-se a possibilidade para outros despedaçamentos. À desarticulação da
coragem de viver, holocaustos se seguem. Chamemos ao despedaçamento, que segue o
escombro da coragem, de racismos. Este é um efeito do declínio da coragem de viver. Lá onde
o medo impera, racismos eclodem. Perguntem isto ao pensador senegalês Cheikh Anta Diop.
A vida apartada da coragem passa a pertencer a senhores, a ser produzida por senhores,
a ser cuidada por senhores ou sacerdotes, a ser organizada por senhores, a ter virtudes
promovidas pelos senhores, a ter a saúde definida pelos senhores.
Sacerdotes, funcionários da ordem, diretores de existência trabalham na separação entre
coragem e vida e depois trabalham outras divisões, outros cortes, outros fatiamentos da vida
governada no interior do rebanho ou população.
E o senhor que lhes deu o fôlego e o paraíso tem o direito de os suprimir. O senhor no
interior do que é seu escolherá seus preferidos, e no interior do que é seu amaldiçoará os
odiados.
Um novo governo?
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Gestos

1
Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o
grito não faz mais parte de minha vida.
(...)
E então? Então, calmamente, respondo que há imbecis demais neste
mundo. E já que o digo, vou tentar prová-lo. (Fanon, 2008, p. 25)

são muito pobres.


eu os vi.
bastante pobres.
eu observei seus gestos.
ouvi suas palavras.
são pobres.
vi suas faces enrugadas.
vi suas pesadas olheiras.
vi suas mãos sem calos.
são pobres, pobres mesmo.
as costas dobradas, percebi.
pobres.
anotei suas palavras.
acompanhei seus pensamentos.
são pobres.
vi muitos pobres.
arrogantes pobres.
dei-lhes atenção.
cumprimentei-os.
pobres.
conversávamos.
havia exceções, mas seus pés já estavam esfolados.
paupérrimos.
em casa, as jovens pranteavam: mãe, por qual motivo me amarrou no meio de gente tão pobre.
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por que, mãe?


sim, pobres.
pobres delirantes porque imaginam carregar tesouros.
eu os vi.
risos amarelados eles têm.
como se odeiam, os pobres.
também eu, minha filha - respondia a mãe da insone -, fui enganada pelos senhores dos
pobres.
e vi que punham inúmeros jovens sob as unhas dos pobres.
e os pobres sangravam os finos fios de ouro que adornavam os tornozelos dos jovens.
e muitos jovens, isso também vi, se apresentavam nas regiões dos pobres já empobrecidos.
e os pobres salivavam com a pobreza precoce de uns jovens.
e por anos e dias e horas e estações.
os pobres quase divinizam sua pobreza. exploram-na.
dão loas à pobreza. quase santa.
e nas suas câmaras não param de receber jovens.
e ninguém consegue explicar por que tão pobres.
e havia errantes. mas os pobres não os suportam.
e muitas estações estive entre os pobres.
e tive medo.
e os mestres, estes mestres pobres, não param de bradar sua pobreza.
e abafam assim as cantigas dos que não são pobres.
e um dia me vi diante de vinte jovens.
tive medo.
e os pobres são pobres de experiência.
não. não é a experiência benjaminiana que lhes escapa.
é a experiência quilombola, xamanística, jongueira, exusíaca.
adoradores dos desprezos.
homens de papel. dentro deles muitas lascas de árvores mortas, prensadas e secas.
e esses pobres ensinam sua pobreza.
não ouvem, não veem, não tiveram desesperos, nem calafrios, nem glórias, nem riscos de
morte, nem de vida.
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nunca esses pobres aprenderam com sábios, nem com velhas entendidas. assim não seriam tão
pobres.
e estive no meio de vinte jovens.
tremi.
e os mestres pobres não abandonam sua mestria.
nunca.
e semeiam pobreza.
e sob o olhar dos jovens não saía palavra da minha boca.
chorei.
tenho medo de ser pobre de experiências e lhes ofertar esta pobreza.
confusos, os jovens me deixaram entre as lágrimas e as paredes brancas.

[…] Mas então as verdades nos queimavam. Hoje elas podem ser ditas sem
excitação. Essas verdades não precisam ser jogadas na cara dos homens. Elas
não pretendem entusiasmar. Nós desconfiamos do entusiasmo. Cada vez que o
entusiasmo aflorou em algum lugar, anunciou o fogo, a fome, a miséria… E
também o desprezo pelo homem.

O entusiasmo é, por excelência, a arma dos impotentes. Daqueles que


esquentam o ferro para malhá-lo imediatamente. Nós pretendemos aquecer a
carcaça do homem e deixá-lo livre. Talvez assim cheguemos a este resultado:
o Homem mantendo o fogo por autocombustão. (Fanon, 2008, p. 27)
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2
Inclina teus ouvidos, ouve minhas palavras,
aplica teu coração em compreendê-las.
Bom é colocá-las em teu coração
e ruim pra quem delas se descuida.
Que permaneçam no cofre de teu ventre
e possam ser aferrolhadas em teu coração.
Amenemope

Crítica gestual.
É sabido que nos últimos anos de trabalho o filósofo Michel Foucault se debruçou
sobre textos antigos - do século IV a.C ao II de nossa era. Entre muitas escolas, correntes,
exercícios, princípios e problemas analisados por ele, encontram-se os filósofos cínicos.
Estes, diferentemente dos outros pensadores, não desenvolveram um corpo teórico
sofisticado, eles não constituíram uma “tradicionalidade de doutrina”. O estilo de filosofia
cínica era essencialmente gestual, a ética que eles defendiam deveria estar assentada na
“tradicionalidade de existência”. Ou seja, o logos se manifesta e dá testemunho da verdade da
sua filosofia no modo de vida, na maneira de viver e se conduzir. O discurso verdadeiro é a
vida verdadeira. Este é um aspecto que Foucault encontrará esparramado entre os antigos em
todas as escolas filosóficas. É a noção de harmonia entre vida e pensamento, vida e discurso
verdadeiro: o viver e o filosofar deveriam compor uma música ritmada e afinada. Aliás, só era
possível para um sujeito ter acesso à verdade modificando sua própria existência, alterando o
ser mesmo do sujeito que desejava filosofar. Ter nos lábios discursos bonitos e na cabeça
guardar febrilmente milhares de livros, mas viver de modo intemperante (dominado pelas
paixões) era motivo para uma má reputação. Os cínicos radicalizaram o princípio da vida
como um testemunho filosófico e fizeram da existência mesma um exercício ético de
liberdade.
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A vida, um teatro da verdade: lá está a imagem de Diógenes – o cínico mais famoso


– andando descalço na areia quente e sob sol escaldante, e sem cobertor no inverno - são seus
exercícios de resistência física; lá está Diógenes pedindo esmola a uma estátua -
acostumando-se a ser rejeitado e incólume à indiferença; lá está Diógenes com uma túnica e
se abrigando em um barril, jogou fora sua cuia ao avistar uma criança beber água usando a
mão como uma concha - a independência em relação aos bens materiais deve ser total; lá está
Diógenes perguntando para um indivíduo desde quando este havia voltado do céu, pois falava
tanto e tão apaixonadamente sobre os corpos celestes – a vontade de saber também deve ser
objeto de regimes. No livro O uso dos prazeres, Foucault (2014) nomeará esta atitude
filosófica cínica de “crítica gestual”.
O texto que disponibilizo para a atual defesa gostaria que fosse recebido como “uma
crítica gestual”. Não se verá aqui gritos nem entusiasmo. São silêncios e ruídos.
Meu objetivo é estudar a coragem de viver. Cheguei aí entrando por outra porta.
Iniciei meu trabalho de pesquisa na pós-graduação investigando a tecnologia do exame
disciplinar nos processos de jovens considerados infratores, isto na Vara da Infância e
Juventude do Rio de Janeiro (Miguel, 2012). No doutorado remanejei meu projeto de
trabalho. Decidi estudar a noção de coragem, tema tão desprezado. Mirei o discurso filosófico
e as análises de Michel Foucault. Mergulhei também nos textos dos antigos: Sêneca,
Aristóteles, Platão, os fragmentos de Heráclito, as belas Meditações de Marco Aurélio etc.
Os pensadores alemães Max Stirner e F. Nietzsche incluí nas minhas tateações. Da
coragem passei a me deter na noção mais específica de coragem de viver, “Os Antigos tinham
coragem de viver”, escreveu Max Stirner. E me atentei para esta noção na “história do
Homem Branco” (expressão usada por Deleuze e Guattari no vol. III de Mil platôs) ou na
história da subjetividade branca.
A tese, que farejei mais nitidamente bem depois da montanha de leitura, é: o
assenhoramento da vida pelo poder político na história do ocidente levou e leva ao despedaçar
da coragem de viver.
Chamo “colonização” o vampirizar das forças da vida operado pelos poderes. Assim
Foucault também o faz no curso O pode psiquiátrico (2006) – tal noção aparece ali como “a
colonização pedagógica da juventude” –. E é quase um sem número os autores e autoras, de
países que foram alvo da dominação colonial europeia e hoje ainda militam contra o
eurocentrismo, a pensar neste e contra este termo: colonização.
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O desmoronamento da coragem de viver na história do Homem Branco no ocidente a


partir de certas práticas de governo.
Resguardados os respectivos vocabulários, métodos, problemas, tempos e interesses,
é possível observar movimentos parecidos em Stirner, Nietzsche e Foucault. Destaco apenas
alguns de tantos possíveis: para analisar o presente que os acossava, dirigiram seus olhos para
os antigos filósofos greco-romanos – não buscavam lá as origens distantes daquilo que os
atordoava, mas rupturas, dissociações, bifurcações, “Nós não somos gregos mais”, falava
Foucault; “Que figura mesquinha fazemos nós, homens modernos, diante dos gregos e dos
romanos”, escrevia Nietzsche; “Que busca então a Antiguidade? O verdadeiro gozo de viver,
o gozo da vida!”, afirmava Stirner.
Este trio também se atentou para a personagem da criança, os autores de O anti-
édipo podem entrar aqui também. Criança, imagem da vida e ao mesmo tempo objeto da
sanha dos agenciamentos de poder: está lá, por exemplo, Stirner elogiando a coragem e a
teimosia das crianças na primeira parte de O único e sua propriedade; Foucault lá está
descrevendo a expansão do poder psiquiátrico no século XIX através da criança idiota; lá está
o duo de Mil Platôs invadindo as sessões de psicanálise infantil e denunciando o
decalcamento das crianças promovido pelos lastimáveis técnicos do desejo, os psicanalistas; e
Zaratustra lá está, após descer de sua montanha, a afirmar que a coragem maior é a da criança,
porque ela diz sim, porque ele é um sim da vida, acontecimento afirmador.
E o terceiro gesto que encontro neste trio de filósofos são agudas críticas as
modernas práticas educativas europeias. Os Antigos tinham uma arte de viver, eles
procuravam governar a si mesmos para governar bem a cidade. Cuidado de si1 era o termo
que abrigava diversos exercícios, princípios, preceitos que auxiliavam o sujeito a ter uma vida
temperante. Repetindo uma atitude que muitas vezes fora feita por Nietzsche, Foucault indica
que ao olhar para os gregos do século de Péricles e dos dois últimos séculos pagãos é muito
difícil compreendê-los. E por quê? Porque eles entendiam o “eu” como algo que deveria ser
construído e não descoberto. O sujeito ético tinha que ser forjado através de uma relação de si
para consigo. Viver era como pilotar uma embarcação, exigia uma arte. Conduzir-se na
existência não era obedecer a leis nem a rigorosos preceitos religiosos que codificavam o
modo correto de se comportar. Viver era se governar.

1 Por hora não diferencio o modelo de cuidado platônico, séc. IV a.C., restrito ao status do indivíduo e ligado
a uma fase pedagógica da vida dos jovens nobres, do modelo helenístico dos últimos dois séculos pagãos.
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Este modo de relação consigo foi se perdendo na história europeia. As práticas de


governo vão ressurgir sob novas bases e com outros objetivos no famigerado século XVI (o
século da emergência da razão de Estado e das invasões coloniais ultramarinas). As artes de
existência perderão importância devido ao cristianismo e perderão autonomia pois serão
integradas em práticas de tipo educativa, médica e psicológica (Foucault, 2014, p. 17). “Agora
só encontramos esses modelos de conduta investidos, embalados no interior, é claro, da
grande, grossa, maciça prática pedagógica.” (Foucault, 2016, p 27) Haverá assim um
deslocamento enorme em relação a este tema, pois na Antiguidade a arte de viver estava
centrada na noção do “como ser.” Como ser independente, como não ser escravo dos desejos,
como ser autônomo, como ser mais forte do que a si mesmo, como ser temperante, como ser
virtuoso, como ser verdadeiro, como ser tranquilo, como ser corajoso etc. Do fim da Idade
Média em diante o foco mudou completamente, passou a ser central o “como fazer”, a
aprendizagem de aptidões profissionais, não mais um saber-ser, mas o saber-fazer. O que
acontece então com a vida, com a ética do eu, com a estilística da existência quando ela se vê
subordinada às novas práticas educativas?
Daí as análises empreendidas pelo trio de filósofos no campo da educação. Veja lá,
por exemplo, Michel Foucault no curso A sociedade punitiva e nas conferências A verdade e
as formas jurídicas descrevendo os espaços escolares como instituições de sequestro e
produtores de corpos dóceis; lá está Stirner em O falso princípio da nossa educação
argumentando que “em pedagogia, como em outros campos, a liberdade não pode expressar-
se, nossa faculdade de oposição não pode exprimir-se; exigem apenas a submissão.” (Stirner,
2001, p. 77); e Nietzsche no desconcertante Shopenhauer educador analisa a relação funesta
entre a filosofia, a educação e o Estado. Ele se pergunta à moda cínica:
[…] em que a história da filosofia interessa nossos jovens? Queremos
desencorajá-los a ter opinião pessoal, ao lhes mostrar um amontoado confuso de todas
as opiniões? Queremos ensinar-lhes a se juntar a um concerto de louvores em honra
das belas coisas que realizamos? Queremos que aprendam a odiar ou desprezar a
filosofia? Seríamos tentados a acreditar nisso quando sabemos a que martírio os
estudantes devem se submeter no momento de seus exames de filosofia, para fazer
entrar em seus pobres cérebros as ideias mais loucas e mais extravagantes, juntamente
com as mais elevadas e mais abstrusas que o espírito humano produziu. Nunca
ensinamos nas universidades o único método crítico e a única prova que podemos
aplicar a uma filosofia, a que consiste em perguntar se podemos viver segundo os
princípios dela; nas universidades só ensinamos a crítica das palavras pelas palavras.
(Nietzsche, 2008, p.101)
21

Três movimentos dos três filósofos em torno dos antigos, da criança e da educação.
Outros temas poderiam ser trilhados no meio deles, tais como o tema do corpo e a noção de
combate/agonística/guerra.
Planejava fazer o seguinte caminho na tese: Primeira parte: os Antigos, “Sim”. 1 A
coragem de viver na Antiguidade, ela se expressa através do cuidado de si e seu ponto alto é a
coragem dos cínicos (parresía cínica). 2 Primeiro desprezo: o saber espiritual. Segunda parte:
os Antigos, “Não”. 1 A emergência, no ano zero, da máquina abstrata de rostidade descrita por
Deleuze e Guattari. Segundo desprezo: o corpo expressivo. Terceira parte: Poder pastoral.
Terceiro desprezo: de si e do mundo (desconfiança, renúncia, humildade, humilhação,
decifração de si e obediência). Quarta parte: Pastoral estatal (emergência da razão de Estado
no século XVI e a preocupação com a saúde das forças estatais). Quarto deprezo: da vontade.
Escrevo este texto vinculado a uma entidade de ensino superior. E ela está enredada
nessa longa história de falecimento das artes de viver no ocidente.
Existem diversas técnicas de dominação, há aquelas que exigem silenciamentos, e há
outras que extorquem enunciações. Elas não se excluem. Cada vez mais somos incitados a nos
posicionarmos, a dar opiniões, a aparecer, a se pronunciar, a responder sondagens, enfiam a
falar e a falar, verdadeiros tagarelas e patéticos.
Na aula do dia 3 de março de 1982 do curso A hermenêutica do sujeito, Foucault
abordou o processo de subjetivação do discurso verdadeiro. Isto é, como deveria proceder
alguém que quisesse fazer seu o discurso da tradição filosófica reconhecido como verdadeiro?
Como se tornar sujeito de enunciação de discursos verdadeiros? Como transformar um saber,
um preceito em uma regra de conduta, um modo de se conduzir eticamente?
A primeira etapa desse processo estava assentada nas técnicas em torno da escuta, da
leitura, da escrita e da fala. Na primeira hora desta aula o pensador francês se deterá na
“ascese da escuta”, pois ouvir é o primeiro passo em direção ao êthos.
A audição, todavia, comporta uma ambiguidade. Analisando um texto de Plutarco,
Foucault escreve que ouvir é o mais passivo dos sentidos, já que através dos ouvidos a alma
encontra-se exposta aos sons do mundo exterior e é muito difícil para o sujeito evitar escutar o
que o cerca. Passividade é a tradução de pathetikós. A audição é o mais pathétikós dos
sentidos, também, porque expõe a alma aos feitiços da lisonja e às artimanhas da retórica. Ela
possui uma natureza ambígua porque é, ao mesmo tempo, a fonte principal do logikós. Em
uma cultura profundamente oral, o meio principal para apreender o lógos, o discurso
22

verdadeiro, é ouvindo. A visão, o tato, o olfato e o paladar estão mais ligados aos prazeres, já
a audição tem a possibilidade de levar a aprendizagem de virtudes porque dá acesso à
linguagem racional verbalmente articulada.
Como fazer, então, para não ser dominado pelo caráter patético da escuta? Como não
se tornar um indivíduo patético exposto a toda sorte de discursos? Purificando a escuta para
conservar o papel logikós desse sentido. Foucault descreve três meios de purificação: a regra
do silêncio, as regras da atitude física durante a escuta e as regras que dirigem a atenção.
Interessa-me neste momento focalizar somente o silêncio.
Trata-se aí de uma regra milenar, ancestral nas práticas de si. Os Pitagóricos, por
exemplo, impunham a regra de cinco anos de silêncio aos que adentravam na sua
comunidade. O noviço usava do silêncio como um espaço para guardar o máximo de
ensinamentos a que estava exposto, nada de intervir, nem objetar, nem dar opinião, apenas
escutar. Já para Plutarco, o primeiro vício a ser combatido quando se quer aprender a filosofar
é a tagarelice. “Foram os deuses, afirmava ele, que ensinaram o silêncio aos homens e foram
os homens que nos ensinaram a falar” (Foucault, 2010, p.304). Uma educação
verdadeiramente nobre dada às crianças seria aquela que antes de tudo as ensinasse a guardar
o silêncio.
Mais especificamente atrelada a purificação do logikós, a regra do silêncio deve
sempre atuar quando o indivíduo escuta uma lição, ouve um sábio ou um poema. Fazer atuar
nestes momentos uma “coroa de silêncio” e não converter o que se ouviu imediatamente em
discurso. Plutarco chega a postular uma espécie de anomalia fisiológica no tagarela, pois neste
o ouvido não estaria ligado a alma, mas se comunicaria diretamente com a língua. Neste caso
são derramadas, escoadas precipitadamente as coisas ouvidas, impedindo assim a maturação
necessária para que o discurso verdadeiro trouxesse algum efeito benéfico para a alma. “O
tagarela é sempre um recipiente vazio”. (Foucault, 2010, p.305)
Tenho a impressão de que os poderes nos contaminam com esta doença descrita por
Plutarco, a tagarelice. A produção desembestada não dá espaço e tempo para a ruminação,
exercício tão apreciado por Nietzsche para a atividade do pensar. Atolados, atolamos as outras
pessoas com excessos de discursos que produzimos afobadamente. Qual seria o valor do
pensar, do escrever e do pesquisar no interior de dessa economia discursiva? Dietas não
seriam prudentes nessas atividades?
23

Com os riscos que há nessa atitude, disponibilizo para a defesa de minha tese apenas
uma parte do lógos a que tive acesso e uma parte dos textos que até então escrevi. Quando os
poderes elevam tagarelas e patéticos ao posto de pensadores (da ordem?), o silêncio talvez
seja uma crítica gestual oportuna.
24

Andreia

A coragem é sempre coragem de. Coragem de amar; coragem de guerrear; coragem


de morrer; coragem de fugir; coragem de viver. Primeiro componente da virtude, a coragem é
altamente valorizada em sociabilidades guerreiras.
Coragem, em grego, tem o nome de mulher, Andreia. Em português deriva do
francês courage e tem o mesmo radical da palavra coração, coeur/cor. A coragem, portanto,
pode ser pensada como a força – virtus – que vem do coração, ou ação que está ligada ao
coração, ao peito. “Ai! Sempre foram muito poucos os que tem um coração de longa coragem
e de longa audácia [...]”, queixara-se o Zaratustra de Nietzsche (2014, p.230) e adiante ele
exclama: “Coragem, velho coração!”(p. 294). Em uma das primeiras definições da noção de
coragem da verdade, Foucault escreve que a “parresía é a abertura do coração, é a
necessidade, entre os pares, de nada esconder um ao outro do que pensam e se falar
francamente.” (2010, p. 124)
As variações em torno da palavra coragem mostram a dinâmica da força do coração
em relação com outras forças: desencorajar e encorajar, ganhar coragem e perder a coragem,
tomar coragem, “Sabemos que concedemos muito cedo nosso coração ao Estado, ao lucro, à
vida social ou à ciência, a fim de não mais possuí-lo […].” (Nietzsche, 2008, p. 62) Mut é
coragem em alemão e seu antônimo, bastante expressivo, é demut, humilhação.
A coragem, andreia, na história da subjetividade branca, pode ser comparada com os
lugares subalternos historicamente determinados para as mulheres: humilhada, portadora de
uma fraqueza natural, derivada do homem. Narra o mito cristão: “E da costela que o Senhor
Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão” (Gênesis, 2:21) 2. Adão
recebe o prestigioso poder de nomear o mundo, tal gesto terá uma longa história (Shoat; Stam,
2006; Ramose, 2011). Eva, filha da costela, é forjada no Éden para servir de muleta. “E disse
o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele”
(Gênesis 2:18). Deus e Adão são causas de Eva. Desobedientes — interessante notar o teor do

2 Todas as citações da bíblia são da versão digital Almeida corrigida e revisada localizada em
bibliaonline.com.br.
25

primeiro pecado narrado pela cultura cristã ¬, o casal foi expulso do paraíso. Na distribuição
das penas, o Deus e juiz determinou que sobre a primeira mulher da história recaísse maior
número de punições, parirá com dores multiplicadas “e o teu desejo será para o teu marido, e
ele te dominará” (Gênesis 3: 16). Arquitetado nas fronteiras do paraíso o inferno para as
mulheres.
Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a
cabeça da mulher; e Deus a cabeça de Cristo.
Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua
própria cabeça.
Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a
sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada.
Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para
a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu.
O homem, pois, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de
Deus, mas a mulher é a glória do homem.
Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem.
Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher
por causa do homem.
Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa dos
anjos. (1 Coríntios 11:3-10)

Suplício da coragem, suplício das mulheres.


Pensada a coragem a partir de uma geografia do corpo humano, é possível dizer que
o coração, cor, foi subjugado pela cabeça, ou melhor, pelo rosto. O rosto de Adão. Se antes a
sede da força estava no coração, agora estará na cabeça. Aí uma mudança nos horizontes de
valor: o poder - a cabeça – terá mais valor que o viver, a vida – o coração. “A
desterritorialização do corpo implica uma reterritorialização no rosto; a descodificação do
corpo implica uma sobrecodificação pelo rosto” (Deleuze; Guattari, 1996, p.38). A geografia
do corpo humano na Europa parece ter sido dominada por um vetor que vem do céu. O corpo
é perspectivado a partir do alto. Hierarquização do corpo: “[…] o marido é a cabeça da
mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja […]” (Efésios 5:23), e o Homem Branco a
cabeça do mundo. O coração será a sede de sentimentos românticos, coisa de mulher, e a
cabeça, o intelecto, o ponto mais próximo do céu será a gaiola dos valores superiores. Em
1925, Antonin Artaud escreveu de modo contundente em uma Carta aos Reitores das
universidades europeias:
Na estreita cisterna que os Senhores chamam de "pensamento", os
raios espirituais apodrecem como palha. Chega de jogos da linguagem, de
artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso
encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão,
mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto. Além daquilo
26

que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem


contra as nuvens existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem
todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito. (Artaud, 1979, p.83,
negrito nosso e aspas no original).

A desqualificação do coração indica uma supervalorização das ideias, do pensamento


e do rosto. “A vertical não é uma das dimensões do espaço, é a dimensão do poder” (Foucault,
2013, p.83).
Ver-se-á, também, o predomínio do olho, o olho do poder. O casal no Éden comeu do
fruto proibido para que seus olhos fossem abertos e passassem a ter o mesmo entendimento e
poder que Jeová. O reinado dos sentidos que remetem ao rosto e à cabeça. Na escola: congela-
se o corpo, diríamos o coração, e tudo parece ter que passar numa interação pela cabeça, da
cabeça do professor à cabeça dos alunos, do rosto do professor ao rosto dos alunos. Olha-se
para o quadro, ouvem-se as palavras de ordem e os sinais sonoros que esquartejam o tempo,
lê-se um o livro, lê-se os avisos nos quadros, observam-se os gestos do professor, ouve-se sua
voz, presta-se atenção se sua face expressa ódio, mansidão, alegria, “Hoje o professor não está
com uma cara boa”. É toda uma tecnologia de esmaecimento do corpo, esquecimento do
coração, sede da vontade, e investimento na cabeça, no rosto.
Os chineses têm um provérbio que as mães ensinavam aos seus filhos: siao-
sin, "torna pequeno teu coração"! É esta a verdadeira inclinação fundamental
nas civilizações avançadas: não duvido que um grego da antiguidade
reconhecesse mesmo em nós europeus modernos antes de mais nada a
diminuição de nós mesmos — só por isso não seríamos do "seu gosto".
(Nietszche, 2001 p. 267, aspas no original)

Não quer dizer que os poderes desconsideram o corpo. Não. Nem por um minuto.
Ele, o corpo, é produzido rostificado, hierarquizado, segmentado. Agride-se atacando o rosto,
quem viveu em favela sabe que um dos gestos de tortura mais infamantes e amado pelos
policiais é dar tapas no rosto das pessoas. A dor não é fruto da intensidade do golpe, mas da
demarcação da assimetria de poder: eu posso bater no seu rosto porque posso. “[…] a
qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mateus, 5:39).
O saber, o juízo, a razão, o conhecimento, o entendimento, o pensamento, a
inteligência se aninham na cabeça. O coração é a fonte do erro, sede do engano, ferida aberta
para ataques imundos. “[…] Sucedeu que, no tempo da velhice de Salomão, suas mulheres lhe
perverteram o coração para seguir outros deuses; e o seu coração não era perfeito para com o
Senhor seu Deus [...]” (1 Reis 11:4). A mulher é o coração, os povos de cor são o coração, as
crianças são o coração. Todos que não têm “cabeça” serão espetados nessa região dos
27

atrasados, o coração. “O rosto não é um universal, nem mesmo o do homem branco; é o


próprio Homem Branco, com suas grandes bochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto é o
Cristo. O rosto é o europeu típico [...]” (Deleuze; Guattari, 1996, p.38). Mil Platôs indica que
o rosto não se encontra em qualquer cultura. Há muitas sociedades, ditas primitivas, bárbaras
e selvagens, que não caem de amores pelo poder. Pois é este o esquema, lá onde os poderes se
inflamam febrilmente, os rostos abundam.
Por encavalar autoritarismos, a subjetividade branca precisa de rostos para lhe
representar. Distanciamento do bíos e obsessão pela psiqué. Diz a expressão: Fulano perdeu a
cabeça! Diríamos, os Homens Brancos perderam o coração e disseram não para as andreias. A
coragem é a mulher, a coragem é a virtude que vem do coração, e seu contrário é a vontade
humilhada, demut.
Como o fogo, a coragem pode entrar em relações que aumentam suas labaredas:
encorajar, encorajamento. Quanto mais o fogo goza, consumo das forças que lhe permitem
arder, mais ele cresce. Assim parece ser a relação da coragem com a força da vida, bíos.
Quanto mais a coragem cresce, mais ela goza da vida, quanto mais a coragem trabalha a vida,
mais esta arde, brilha, estala e pode ser gozada. Estamira, a negra dita doida, exclamava desde
o lixão de Gramacho: “A única solução é o fogo!”. O fogo, todavia, com o oxigênio
estrangulado, despedaça-se e deixa de arder. Vida apartada da coragem, vida apartada do fogo.
Vida submetida a imagens. Vida separada de si. Lá onde a vida parece se conservar sob as
asas da segurança, percebe-se o ar gelado, os ruídos atrozes dos agenciamentos de poder e os
gemidos da pacificação.
28

Império Colonial Português, 1948. Planfleto comemorativo dos “descobrimentos” (disponível no site
https://br.pinterest.com/pin/550916966908609379/)

A ordem colonial do discurso: 1. Todas as pessoas de cor estão ajoelhadas. A vertical


no ocidente é uma dimensão do poder, não simplesmente do espaço.
2. A perspectiva. Ela não é o olhar daqueles que desembarcaram. Ela é de dentro da
terra de Guiné, é um ponto atrás dos selvagens. É como se a terra colonizada estivesse
esperando Nuno Tristão. Assim, pouco importa a terra e os autóctones, o rosto que importa é o
dos homens das caravelas.
3. Os homens brancos carregam estandartes, símbolos fálicos, eretos. Um guineense
tem uma espécie de bacia, cuia, signo feminino, nenhuma lança, nenhum arco, nem flecha.
29

Não à toa as invasões coloniais são chamadas de “conquistas”, é um “encontro” traduzido em


termos de gênero: um sujeito ativo, que penetra num novo território, mas que é seu, e um
sujeito passivo, receptor impotente.
4. Lado a lado, ombro a ombro, o poder religioso e o poder político. Caminham
tranquilos como se estivessem passeando na orla do mar apreciando o cair do sol. Nuno
Tristão caminha com as mãos para trás, pacato. A simples presença dos homens brancos, sem
nenhum tipo de interação, diplomacia, ameaça, nada, faz as colunas negras se curvarem.
5. A julgar pela forma como os europeus caminham, eles pisarão nos africanos. Aliás,
estes nem são vistos. Nuno, o soldado atrás deste e o sacerdote tem o olhar que não vê,
famoso olho de peixe morto, distante. Olham a nova terra? O negro mais à esquerda: este os
vê. Está fascinado, curioso, chega a se erguer mais do que os outros, ficará em pé? Ele mira
ávido o rosto de Nuno. O africano mostra um enorme interesse, os europeus desprezo. Não há
“Outro”. Narcisos desembarcaram.
6. Nós, os portugueses, somos muitos, incontáveis. Eles, talvez sejam muitos, mas já
estão condenados a serem poucos. Nada. Desde 1446.
Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as
primeiras desvianças, os primeiros desvios padrão são raciais: o homem
amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles
também serão inscritos no muro, distribuídos pelo buraco. Devem ser
cristianizados, isto é, rostificados. O racismo europeu como pretensão do
homem branco nunca procedeu por exclusão nem atribuição de alguém
designado como Outro: seria antes nas sociedades primitivas que se
apreenderia o estrangeiro como um "outro". O racismo procede por
determinação das variações de desvianças, em função do rosto Homem branco
que pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os
traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e em
determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que
jamais suporta a alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco...,
etc). Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas
de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o
serem. A cisão não passa mais entre um dentro e um fora, mas no interior das
cadeias significantes simultâneas e das escolhas subjetivas sucessivas. O
racismo jamais detecta as partículas do outro, ele propaga as ondas do mesmo
até à extinção daquilo que não se deixa identificar (ou que só se deixa
identificar a partir de tal ou qual desvio). (Deleuze; Guattari, 1996, p.36)
30

3
Em 1803 começou a ser escrito o atestado de óbito do tigre da Tasmânia. O último
morreu em 7 de setembro de 1936 na ilha de Hobart. Embora o governo britânico, que
colonizava a ilha, pagasse uma libra esterlina por animal morto e dez shillings por filhote
executado, o tigre resistiu aos colonizadores quase um século a mais do que os aborígenes
daquele lugar, todos massacrados até 1830. Há hoje exemplares do animal empalhado e um
vídeo de 62 segundos de uma fêmea se debatendo em sua jaula. (Ferrer, 2015)
31

Exposição colonial de Lyon, 1894. Cartaz de divulgação de exposição etnográfica. (Disponível


em https://br.pinterest.com/pin).

Não é de fácil definição e entendimento essa coisa chamada coragem de viver - este é o
tema que me interessa. Não é fácil. Não pela complexidade dos termos, nem pela vasta
bibliografia, pois não existe. Tenho a impressão de que ela, a coragem, fora esquecida nos
confins do tempo, afogada no fundo do oceano, soterrada nos bolsões de sangue, esmagada
sob montanhas de mercadorias. Eis aí a dificuldade que o tema impõe: a raridade desta
atitude. Criou-se o hábito segundo o qual a vida só pode ser vivida se governada por outras
instâncias que não ela mesma. A existência parece inevitavelmente precisar de senhores sobre
si para que ela se torne viável, digna de ser vivida. A coragem de viver é dizer um sim para a
vida apartada das tábuas generalizadoras de valores. Em resumo, pode-se indicar que para dar
estilo, forma, contornos singulares à vida, para constituir uma vida bela, autônoma, única,
uma vida que pode prestar contas de si é necessário coragem.
32

O texto se desenrola através de fragmentos, as lendas negras. Elas interrogam os


diferentes modos de governo dos vivos erigidos pela subjetividade branca ocidental e a sua
relação com a coragem de viver.
Miro o discurso filosófico europeu como quem observa um sismógrafo, ou como quem
ler um caderno de anotações de uma embarcação que fez uma longa viagem. Sinistro destino
da Europa, macabro destino do mundo após as invasões coloniais. Os nomes estão aí:
Foucault, Nietzsche, Guattari, Stirner, Deleuze.
O resto dos autores e autoras, não europeus, não brancos, artistas, filósofos e poetas são
o resto. É o discurso dos dominados, dos subalternos e seus saberes sepultados, são os gestos
dos Condenados da Terra (Fanon). São ruídos e silêncios. O que estes monstros emitem não
passa de ruído nem zumbido perto do coro esmagador composto pelas vozes do Norte do
mundo. E da balança desequilibrada entre estes dois conjuntos retiro os fragmentos.
Fragmentos dos despedaçados.
A genealogia, afirma Foucault (1999)3, é o acoplamento entre os saberes eruditos e os
saberes dominados. “Chamemos, se quiserem, de ‘genealogia’ o acoplamento que permite a
constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais” (p.
13).
É uma genealogia do desprezo o que se tem aqui.
Em uma segunda-feira, 31-01-1995, a Folha de São Paulo noticiava:
O corpo de Beatriz, assassinada com cinco tiros no sábado, em
Botafogo (zona sul), foi enterrado ontem às 13h, no cemitério São João
Batista. Cerca de 300 pessoas, entre amigos e militantes do movimento negro,
acompanharam o enterro.
Segundo a polícia, Maria Beatriz foi assassinada pelo preso albergado Jorge
Amorim Viana, conhecido por "Danone", que está foragido. Ele teria matado a
professora por esta ter aconselhado sua namorada a abandoná-lo, porque
"Danone" costumava bater na companheira.
"Toda a comunidade negra está indignada", afirma Ivanir dos Santos. "O
problema é que ele não aceitou a ingerência de uma pessoa negra no
relacionamento."
Segundo estatísticas do Ceap (Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas), que a pedido da família vai acompanhar as investigações da
polícia, este é o quinto assassinato de militantes do movimento negro no Rio
em menos de um ano.
Uma reunião de militantes estava programada para ontem, às 19h, para tentar
um encontro com o ministro da Justiça, Nelson Jobim, para relatar os casos.
"O secretário de Segurança do Rio, Euclimar da Silva, tem um encontro com o
ministro hoje e vamos tentar encaminhar um relatório do caso da Beatriz para

3 Cf. mais precisamente a aula do dia 7 de janeiro deste curso, lá estão os termos: saberes locais, sujeitados,
saberes das pessoas, saberes sob tutela, desqualificados, sepultados, saberes das lutas.
33

ser discutido", disse Ivanir dos Santos.


Maria Beatriz Nascimento era uma das maiores especialistas brasileiras em
história dos quilombos. Ativista dos movimentos negro e feminista, ela fazia
mestrado em comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Segundo seu orientador, o professor Muniz Sodré, ela pretendia relacionar a
história das mulheres negras aos quilombos.
Beatriz fez o roteiro do filme "Ori", dirigido pela historiadora Raquel Gerber,
da USP. Divorciada, ela tinha uma filha, Betânia, 25, que trabalha em Nova
York, no balé do Harlem. (Folha online)4

Beatriz foi morta duas vezes. Danone a executou na porta de um bar na zona sul do
Rio. Os historiadores mataram-na academicamente (Ratts, 2006). No primeiro caso, cinco
disparos; no segundo, o silêncio em torno de seu pensamento.
Beatriz saiu de Sergipe com a família para estudar no Rio. Ela também era poetisa. Na
faculdade de história se opôs ao eterno estudo do negro escravizado e pesquisou organizações
sociopolíticas ligadas historicamente ao povo afrodescendente. Lá onde, por exemplo, os
intelectuais viam um campo de concentração, a favela; Beatriz encontrava uma política
quilombola. Ela criou um novo conceito de quilombo.
Mas na distribuição diferencial dos sujeitos no interior da ordem colonial do discurso
verdadeiro, esta historiadora não é uma erudita, é um monstro. “Por mais que o discurso seja
aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua
ligação com o desejo e o poder.” ( Foucault, 1996, p.10)
A produção do discurso em toda sociedade é “controlada, selecionada, organizada e
redistribuída”, dizia Foucault no início de sua aula inaugural no Collège de France em 2 de
dezembro de 1970. Descreveu nesta ocasião três conjuntos de procedimentos de ordenação
dos discursos: o primeiro conjunto, através de princípios de exclusão, (a palavra proibida, a
segregação da loucura e a vontade de verdade) visa dominar os poderes do discurso. O
segundo conjunto, por meio de princípios de identidade, (comentário, autor e disciplina)
conjura o acaso no interior dos discursos. E o terceiro grupo (rituais da palavra, as sociedades
do discurso, grupos doutrinários e as apropriações sociais) determina as condições de
funcionamento do discurso e impõem regras para os sujeitos que os pronunciam com o
objetivo de não permitir que todas as pessoas tenham acesso a ele.
Fragmentos de enunciações, ruídos, gemidos. Discurso, não.
Os fragmentos aqui delineiam um movimento, eis a tese: à medida que os poderes
colonizam a vida ou os vivos, a coragem de viver é esmagada. E o rebaixamento da coragem

4 “Professora pode ter sido morta por racismo”. Em


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/1/31/cotidiano/37.html
34

de viver se dá acoplado a desprezos. Sem coragem de viver não é possível cuidar da própria
vida. E vida cuidada por outros, é vida desprezada.
Colonizam-se a vida e a coragem capturando-as em meios de interioridade: interior da
alma cristã, interior do rebanho, interior da população administrada pelo Estado, interior das
instituições disciplinares, interior dos indivíduos, interior do mercado neoliberal.
Do bíos à biopolítica, do cuidado de si ao empreendedorismo de si, dos mestres da
soberania de si aos mestres de normalização, da razão de si à razão de Estado, da coragem
como virtude primeira na arte de viver à abolição de toda vontade própria, dos exercícios
espirituais ao adestramento em instituições de sequestro, da parresía à retórica e à bajulação,
passando pela confissão; da estilização de si à constituição do indivíduo através de
recompensas e punições, méritos e deméritos: longo cortejo macabro dos desprezos. Ai das
crianças!
Sem definir causalidades, mas costurando intuições, parece que os Homens Brancos
foram dominados pelo medo. Medo da vida, medo da Terra, medo de si. Medo da morte.
Apegaram-se com desespero febril à busca da verdade, renunciaram a si e ao mundo,
inventaram igrejas políticas para a salvação mundana da população. Parece que dominados
ainda pelo medo da morte transformaram e transformam tudo em mercadoria, inclusive a
vida. Estilhaçamento da coragem na história da subjetividade branca. Ai das mulheres negras!
Depois de colonizar a si mesma, de esposar a impotência, a subjetividade branca
colonizou e coloniza boa parte do mundo, dos mundos. Ela não relaxa sua mandíbula até que
as outras subjetividades, não brancas, tenham um rosto. Um rosto mortificado. Rosto pálido, o
rosto de Cristo. E não é a morte e a mortificação as virtudes promovidas pelo aparelho de
Estado, pelo cristianismo e pelo capitalismo? Bestas forjadas pelo Homem Branco.
Descrevo intuições. Talvez os pontos oferecidos aqui nada mais são do que enunciações
de cicatrizes. Ou ainda, narro alguns poucos pensamentos como quem desliza a mão em
pontos recém-costurados sobre a pele ferida do abdômen. A chaga ainda aberta pensa o
seguinte: dominada pelo medo da vida e da morte, a subjetividade branca se exilou da
coragem de viver.
Daí decorrem acontecimentos sinistros: o Homem Branco inventará instituições que
sequestram a vida, qualquer vida, pois presume ele que tudo lhe pertence. Ele é o Senhor. E
em nome da vida disseminará fraturas (racismos) no meio do que é seu. Apartada da coragem,
a vida se esteriliza. A subjetividade branca se apaixonará violentamente por mercadorias e
35

através da violência de direito as empilhará. Daí ela, a subjetividade branca, não saberá mais o
que é a generosidade, pois a generosidade é própria aos valentes. Por esse motivo não saberá
também o que é amizade, já que sem largueza de alma não há amigos e entre os amantes dos
soberanos não há amigos. Por passar a sonhar sempre com o poder, predominará no Homem
Branco o caráter hostil e aniquilador nas suas práticas políticas em relação a tudo que se
desvia de seu rosto ariano. Os pontos doem.
Enunciado simples e terrível: para viver uma vida que vale ser vivida, para determinar o
valor da própria vida, para pôr a mão na própria existência é necessário coragem. É aí, contra
as tutelas promovidas pela subjetividade branca, contra seu rosto colonizador, contra suas
políticas despóticas, as quais não param de prestar homenagens à impotência... É aí que fugas
são tentadas, fugas para dizer sim à vida outra. E só se pode fugir dizendo sim a vidas outras.
Fugir do poder pastoral e da pastoral estatal.
As guaritas que coroam os muros brancos estão abarrotadas de insuspeitos vigias,
armados de pequenos poderes e prontos para abater tudo que foge. Urge ter coragem de viver
se se quer uma vida vivida desviada dos cadáveres postos como modelo.
A generosidade. “O homem é sim. Não cessaremos de repeti-lo. Sim à vida. Sim ao
amor. Sim à generosidade”. (Fanon, 2008, p. 179)
36

5
Devir branco do Homem Branco e devir branco do mundo. Estes perspectivados a
partir da coragem de viver.
O Homem Branco se julga apartado dos animais e da natureza. Ele é a imagem mais
acabada, mais perfeita do Homem. Ele é o Homem. Ele se orgulha de conhecer a Deus, e
servi-lo. Ele é devotado a Deus, e este será fiel salvando-o deste mundo infiel.
O Homem Branco se orgulha de organizar-se politicamente. E a esta organização ele
chama Estado. Ele entrega todas as dimensões da sua vida ao Estado, e este lhe salvará dos
perigos deste mundo infiel.
Infiro: o Homem Branco, provavelmente por medo, criou um Deus que lhe daria uma
verdadeira vida de paz eterna em uma cidade celestial. O Homem Branco por medo criou o
Estado para que este lhe dê saúde, paz, bem-estar e segurança enquanto o Homem estiver
condenado a viver na Terra.
Concluo que o Homem Branco é provavelmente a personagem mais covarde que a
Terra já conheceu.
E este par Deus Estado serve-lhe como esquadro a partir do qual os “bárbaros” os
“primitivos”, os “selvagens”, os animais, os “incivilizados” são avaliados.
37

6
Os holandeses chegaram às ilhas Maurício em 1662. O pássaro dodô vinte e quatro
anos depois não era encontrado mais lá. Destruíram os bosques nativos, introduziram animais
estranhos àquele ecossistema e caçaram: exterminado o pássaro. Sobraram gravuras da época,
um ovo e um esqueleto desenterrado em 2007 (Ferrer, 2015).
38

7
A novidade de tudo o que eu digo de novo está na força da repetição.
Cada qual com seu vocabulário, instrumentos e agonias próprios já trilhou os
caminhos que aqui pisarei. Muitas e muitos me antecederam.
Aqueles que nos dominam dançam covardemente suas facas sobre os fios de
memória traçados pelos que já atravessaram os labirintos do desespero e do desprezo.
Desesperados não sabemos esperar nada para além da mordida fatal.
Aqueles que nos dominam trocam suas peles e nos dão a impressão aterradora de que
todo dia nasce um inimigo novo sob o sol. Desesperados não sabemos esperar, lançamos
nossas poucas moedas de sangue no poço da esperança: para amanhã o novo gesto de
insubmissão que arruinará o muro novo.
Aqueles que nos dominam manejam com maestria antigos instrumentos de
capitulação: em cada esquina de cidade, dos corpos e da gramática erigem um guardião da
memória dos assassinos e de suas “conquistas”. Desesperados não sabemos esperar,
empunhamos pacificamente as ferramentas cegas que nos cegam, elas dão a sensação
esperançosa de que nos desviará da anemia política.
Quando perceberemos que aquilo que afirmam ter valor, que as cartas políticas
postas na mesa, que os ídolos aparentemente antagonistas, que a imagem do pensamento e os
pensadores que têm o direito de pensar… nada mais são do que instrumentos usados para nos
esfolar, e louvor à memória dos espoliadores (Diop, 2012; 2015)? Até quando a colheita de
abismos?
O inimigo não é novo e não somos tão pobres politicamente como nos ensinam os
nossos senhores. Faz parte da estratégia de dominação tatuar o horror na ordem da natureza: o
forte é forte porque é forte e domina o fraco; e o fraco é fraco porque é fraco e é subjugado
porque é fraco.
Há uns desesperados que esperam pelo futuro. Prefiro, eu também desesperado,
tentar fugir, parar e ficar à espreita do passado.
Daquele passado que não está pacificado em museus, nem amansado e nem morto
entre as enunciações daqueles que nos governam. À espreita daquele passado que vive como
rios subterrâneos e rios voadores. Não os vejo sempre, mas sei das suas existências porque
39

ainda chove, porque nascem plantas, porque estou vivo e porque vejo crianças pretas recém-
nascidas mamando nos seios de mulheres negras.
Os fragmentos que vêm banham-se de diferentes modos nas águas do filme de curta
metragem Alma no olho (1973) de Zózimo Bulbul; em Beatriz Nascimento, a costureira do
texto que compõem o documentário Orí, dirigido por Raquel Gerber (1989)5 e no disco
Africadeus (1973) de Naná Vasconcelos.
Os fragmentos que vêm também conspiram (respiram juntos) e se inspiram nas
atitudes e estilos políticos de personagens absolutamente sem valor, se olhados da perspectiva
da política dominante.
O berimbau que faz música é o mesmo que bate como borduna.
Descontada a minha falta de criatividade, é uma espécie de homenagem torta a estes
rios de bálsamo e lama que nos curam. Homenagem tímida a todas e todos que não se cansam
de beijar as negras memórias da insubordinação, corajosamente.

5 Estão todos gratuitamente na internet e recomendo misturá-los à leitura deste texto.


40

[..] De qualquer modo, você foi reconhecido, a máquina abstrata inscreveu


você no conjunto de seu quadriculado. Compreende-se que, em seu novo
papel de detector de desvianças, a máquina de rostidade não se contenta com
casos individuais, mas procede de modo tão geral quanto em seu primeiro
papel de ordenação de normalidades. Se o rosto é o Cristo, quer dizer o
Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças, os primeiros desvios
padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou
terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo
buraco. Devem ser cristianizados, isto é, rostificados. O racismo europeu
como pretensão do homem branco nunca procedeu por exclusão nem
atribuição de alguém designado como Outro: seria antes nas sociedades
primitivas que se apreenderia o estrangeiro como um "outro". O racismo
procede por determinação das variações de desvianças, em função do rosto
Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas e
retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em
determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para
apagá-los no muro que jamais suporta a alteridade (é um judeu, é um árabe, é
um negro, é um louco..., etc). Do ponto de vista do racismo, não existe
exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser
como nós, e cujo crime é não o serem. A cisão não passa mais entre um dentro
e um fora, mas no interior das cadeias significantes simultâneas e das escolhas
subjetivas sucessivas. O racismo jamais detecta as partículas do outro, ele
propaga as ondas do mesmo até à extinção daquilo que não se deixa identificar
(ou que só se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio). (Deleuze;
Guattari, 1996, p. 38)
41

Folheto comemorativo dos “descobrimentos”, 1948. (disponível em https://br.pinterest.com)


42

Bestas

Bestas, bestas louras.


Por volta de 1570 o português Pero de Magalhães Gandavo escreveu no seu Tratado
da Terra do Brasil:
A língua deste gentio toda pela costa é, uma: carece de três letras –
scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque
assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e
desordenadamente.
[…] Não há como digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em
cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por
vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo
lugar; não serve doutra cousa se não de ir com eles à guerra, e conselhá-los
como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda
sobre eles cousa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro
mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras.
Isto tem por estado e por honra. Não adoram cousa alguma nem têm para si
que há na outra vida glória para os bons, e pena para os maus, tudo cuidam
que se acaba nesta e que as almas fenecem com os corpos, e assim vivem
bestialmente sem ter conta, nem peso, nem medida. (Gandavo, 2008, p. 66 –
negrito meu)

Infelizmente não sabemos o que as “bestas” da costa brasileira usavam como critério
de avaliação dos cristãos.
Algum tempo depois Nietzsche fará algumas considerações sobre a história do
homem europeu e identificará perigos nos lábios que não param de fazer apelo a uma certa
noção de justiça.
[…] Eles rondam entre nós como censuras vivas, como advertências dirigidas
a nós – como se saúde, boa constituição, força, orgulho, sentimento de força
fossem em si coisas viciosas, as quais um dia se devesse pagar, e pagar
amargamente: oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar,
como anseiam ser carrascos! Entre eles encontram-se em abundância os
vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como
baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a
cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de
ânimo tranquilo. (Nietzsche, 2009, p.104)
43

Se tivermos em mente a dizimação sistemática dos índigenas brasileiros e da


América do Sul desde os primeiros contatos com os descobridores, se tivermos em mente a
destruição dos “selvagens” norte-americanos, se tivermos em mente a destruição dos
aborígenes australianos, se tivermos em mente o desaparecimento de incontáveis civilizações
no continente africano desde a chegada das caravelas... Podemos levantar a hipótese de que
pagaram com suas vidas a impotência que marca a subjetividade branca.
Se tivermos em mente que, hoje mesmo, índios estão perdendo suas terras e sendo
exterminados (Alarcon, 2014) no Brasil, se tivermos em mente a caça aos quilombos ainda
hoje através do Estado e de empreendimentos capitalistas (Vieira, 2015), se tivermos em
mente que os povos originários, ainda hoje, são destruídos nas Américas, se tivermos em
mente espoliação sistemática realizada em África pelas antigas potências coloniais (Mbembe,
2014) através de suas multinacionais, se tivermos em mente a sanha assassina que ainda hoje
exige sangue, dor e sofrimentos dos afro-americanos nos Estados Unidos… Podemos levantar
a hipótese de que a subjetividade branca seiscentista tem seus herdeiros e estes não abrem
mão de usar suas memórias conservadas com o sangue e seiva dos subalternos.
Apartada historicamente da coragem de viver, a subjetividade branca parece se
vingar de tudo que tem cheiro de saúde. Todas as poluições de rios, nascentes e oceanos, todas
as queimadas e minerações que acabam com inúmeras espécies animais e vegetais,
arrasamentos de florestas (Danowski; Castro, 2014), todo menino negro esmagado na prisão
para adolescentes e assassinado nas favelas cariocas (Andrade, 2013)– ou seja, destruição
também das florestas negras6 - indicam que ainda hoje os fracos exigem a imolação dos fortes.
Não é o ódio que explica a conduta dos carrascos niilistas. W. Reich (2001) ensinou-
nos, em um trabalho clássico sobre o fascismo, que o ódio pode ser uma expressão dos
saudáveis. Muito diferente é a violência mecanizada do homem que vive sob a máscara das
“boas maneiras” ou civilizado e tem um caráter “perverso-sádico.” Belamente este analista
maldito e infernizado, tanto pelos fascistas quanto pelo Partido Comunista, argumenta que o
homem perverso ou o “zé-ninguém” é aquele que foi levado, durante milênios e por uma
civilização autoritária, a desprezar o “cerne biológico”, que é a força plástica e informe da
vida. “A ideologia da raça [da qual deriva o fascismo] é uma grande expressão biopática
pura da estrutura do caráter do homem orgasticamente impotente.” (Reich, 2001, [1933] p.

6 Para uma análise comparativa das políticas de pacificação colonial dos índios “brasileiros” no século XVI e a
pacificação nas favelas cariocas através das UPPs, conferir o capítulo Pacificação e tutela militar na gestão de
populações e territórios (Oliveira, 2016).
44

XIX – itálico no original). O hitlerismo, afirmava o autor de Psicologia de massas do


fascismo, é um modo de vida. Modo de vida concretado ao sabor do misticismo e do desejo de
autoridade (Fé, Lei e Rei?). “Sob a forma de fascismo, a civilização autoritária e mecanicista
colhe no zé-ninguém reprimido7 nada mais do que aquilo que ele semeou nas massas de seres
humanos subjugados, por meio do misticismo, militarismo e automatismo durante séculos”.
(Reich, 2001, p. XIX)
O desprezo é, provavelmente, o demônio que assola a subjetividade branca ou
eurocristã.
Trata-se aqui de pensar a coragem de viver. E pensar que lá onde ela declina, o
desprezo aflora. Lá onde a coragem é quebrada, o ressentimento invade. Lá onde a coragem é
desqualificada, a má-consciência empesteia. Lá onde a coragem de viver sangra, os sacerdotes
são soberanos.
Genealogia do desprezo.
Desprezo de si. Desprezo da Terra.
Quando se despreza, não se pode travar uma relação guerreira, de combate com o
outro, não se pode jogar. Desprezadores de si e desprezadores do mundo, logo logo
desprezarão tudo que encontrar pela frente.
Para que a Terra se movesse, Arquimedes achava que era necessário um
ponto de vista fora dela. Os homens continuaram em busca desse ponto de
vista, e cada um o assumiu como podia. Esse ponto de vista estrangeiro é o
mundo do espírito, das ideias, dos pensamentos, dos conceitos, das
essências…; é o céu. O céu é o “ponto de vista” a partir do qual a Terra se
move, a vida terrena é observada e… desprezada. Como a humanidade lutou
dolorosa e incansavelmente para assegurar o céu, para assumir de forma
estável e eterna o ponto de vista celestial! (Stirner, 2009, p. 81 – Itálicos no
original)

[…] o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro,
uma relação que não é uma relação militar e guerreira de enfrentamento, mas
uma relação do tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a
desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos
degenerados haverá em relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo
mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais
poderei proliferar.”
[…] O racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja,
com o genocídio colonizador.
A guerra. Como é possível não só travar a guerra contra os adversários,
mas também expor os próprios cidadãos à guerra, fazer que sejam mortos aos
milhões (como aconteceu justamente desde o século XIX, desde a segunda
7 Não desconsidero as críticas que Foucault (1988) faz à ideia de repressão, a famosa “hipótese Reich”
desembainhada pelo francês. Se minha ignorância permitisse, diria que Reich viu muito mais do que aquilo
que Foucault estrategicamente quis perceber em Reich.
45

metade do século XIX), senão, precisamente, ativando o tema do racismo?


(Foucault, 1999 pp. 306, 307)

Predomínio na subjetividade branca ocidental daquilo que Nietzsche denominou de o


grande perigo: o nojo. Os estudiosos do pensamento deste filósofo alemão apontam que talvez
ele tenha antevisto - através da noção de “besta loura” - os campos de concentração nazistas
montados no século XX na Europa. Talvez o autor de A Gaia Ciência tenha olhado para trás,
como Salomé, e percebido a carnificina promovida pelos europeus em todos os lugares onde
desembarcaram de suas naus a partir do XVI, naquilo que Fanon (1968) chama de “aventura
espiritual da Europa”.
Poucos sabem – e não o sabem à toa - que foi na Namíbia (sudoeste africano) entre
1903 e 1908 – ou seja no século XX - que o Kaiser Guilherme II construiu o primeiro campo
de concentração alemão para desaparecer - por meio da fome, sede, água envenenada, tiros,
torturas etc - com o povo herrero e o povo nama, estes definidos por Berlim como
descartáveis porque insubmissos (Moore, 2010). Não se sabe o número de mortos. E as
ossadas até hoje são veladas pela areia e o vento do deserto de Kalahari. Em 1955 o escritor
martinicano Aimé Césaire analisou corajosamente o intolerável:
As pessoas espantam-se, indignam-se. Dizem: “Como é curioso!
Ora! É o nazismo, isso passa!” E aguardam, e esperam; e calam em si próprias
a verdade – que é uma barbárie suprema, a que coroa, a que resume a
cotidianidade das barbáries; que é o nazismo, sim, mas que antes de serem as
suas vítimas, foram os cúmplices; que o toleraram, esse mesmo nazismo, antes
de o sofrer, absolveram-no, fecharam-lhe os olhos, legitimaram-no, porque até
aí só se tinha aplicado a povos não europeus; que o cultivaram, são
responsáveis por ele, e que ele brota, rompe, goteja, antes de submergir nas
suas águas avermelhadas de todas as fissuras da civilização ocidental e cristã.
Sim, valeria a pena estudar clinicamente, no pormenor, os itinerários
de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista,
muito cristão do século XX que traz em si um Hitler que se ignora, que Hitler
vive nele, que Hitler é o seu demônio, que se o vitupera é por falta de lógica,
que, no fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o
homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem
branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos
colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os “coolies” da Índia e os
negros da África estavam subordinados. (Césaire, 1978, p.18 – itálicos no
original)

O máximo do desprezo é o nojo. E o que se segue a ele é uma espécie de amor


ordinário, a compaixão. Então os grandes desprezadores são aqueles que mais tagarelam sobre
o amor, “amar o próximo como a ti mesmo”. E não param de “falar do homem enquanto o
46

massacra por toda a parte onde o encontra, em todas as esquinas de suas próprias ruas, em
todas as esquinas do mundo” (Fanon, 1968, p. 271).

[…] O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não
é o grande temor, mas o grande nojo ao homem; e também a grande
compaixão pelo homem. Supondo que esses dois um dia se casassem,
inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a “última vontade” do
homem, sua vontade do nada, o niilismo. E de fato: muita coisa aponta para
isso. Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e
ouvidos, sente, em quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a
um ar de hospício – falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, toda
espécie de “Europa” sobre a terra. (Nietzsche, 2009, p.103 – itálicos no
original)

O tal casamento aconteceu faz muito tempo. E a “festa” foi no quintal8 e nos corpos
dos outros. Em 1977 em uma tensa entrevista com M. Osorio intitulada precisamente O
poder, uma besta magnífica, Foucault aborda o destino do Ocidente.
[…] quando digo Ocidente, você sabe, é uma palavra vaga, desagradável de
empregar e quase indispensável. Quero dizer que muitas coisas, muitas
práticas sociais, práticas políticas, econômicas nasceram e se desenvolveram,
com enorme força, em uma espécie de região geográfica que se situa entre o
Vístula e Gibraltar, entre as costas do norte da Escócia e a ponta da Itália. […]
Resta, não menos, que nosso destino de homem moderno desenvolveu-se
nessa região e durante uma certa época que se situa entre o começo da Idade
Média e os séculos XVIII ou XIX. A partir do XIX, é preciso dizer que os
esquemas de pensamento, as formas políticas, os mecanismos econômicos
fundamentais que eram aqueles do Ocidente tornaram-se universais, pela
violência da colonização, enfim, a maior parte do tempo, tornaram-se, de fato,
universais. É isso que entendo como Ocidente, essa espécie de pequena porção
do mundo cujo destino estranho e violento foi de impor suas maneiras de ver,
pensar dizer e fazer ao mundo inteiro. […] (Foucault, 2013, p. 157)

“Estranho” e “violento” destino. Michel Foucault quase me exime de definir


subjetividade branca ao destacar que uma minúscula parte do mundo não parou de “impor
suas maneiras” ao restante do planeta.
Quando se despreza não há outro, há apenas aquilo que deve ser corrigido ou
dizimado. Corrigido ou dizimado porque é desviante em relação a norma; dizimado ou

8 O filósofo camaronês Achille Mbembe aponta que “Há meio século, a maior parte da humanidade vivia sob o
julgo colonial, uma forma particularmente primitiva da supremacia racial. A sua libertação constitui um
momento-chave na história da nossa modernidade. O facto de esse acontecimento não ter deixado a sua marca no
espírito filosófico do nosso tempo, não é em si um enigma. Nem todos os crimes produzem necessariamente
coisas sagradas. De entre vários crimes da história, apenas remanesceu desonra e profanação, a esplêndida
esterilidade de uma existência atrofiada, em suma, a impossibilidade de existir em comunidade e de voltar a
percorrer os caminhos da humanidade. (Mbembe, 2014,[2013] p.13)
47

corrigido porque não cabe na régua da norma. Dizimado porque é um perigo para a saúde do
esquadro.
A besta cobrou e cobra a dívida que ela mesma inventou. Preço pago amargamente
pelos filhos da Terra, os indígenas e os índios, desde o encontro macabro com os Homens
Brancos. Sim, a vingança do rebanho e de seus sacerdotes.
No Brasil há mais de 250 línguas índias faladas. O idioma yanomami traduz
“branco” por nape; no araweté “branco” é awin e em caiapó é kuben. Nestes três casos, como
em tantos outros, “branco” se traduz por “inimigo” na língua dos “selvagens” (Castro, 2016).
E “branco”, do ponto de vista dos “bárbaros”, são as pessoas e as instituições que não são
índias. Índio foi o nome que os europeus deram aos povos que viviam na América por conta
de um engano. Os invasores acreditaram ter chegado à Índia.
Talvez não haja contraponto mais preciso em relação à subjetividade branca do que a
noção de indígena. Este vocábulo significa: gerado dentro da terra que lhe é própria,
originário da terra em que vive. Desta feita há indígenas na Ásia, na Oceania, na África, no
Brasil. Porém não basta ter nascido no território do Brasil para ser indígena, por exemplo. Ser
“brasileiro” é muito diferente de ser “indígena”.
Ser brasileiro é pensar e agir e se considerar (e talvez ser
considerado) como “cidadão”, isto é, como uma pessoa definida, registrada,
vigiada, controlada, assistida – em suma, pesada, contada e medida por um
Estado-nação territorial, o “Brasil”. Ser brasileiro é ser (ou dever-ser) cidadão,
em outras palavras, súdito de um Estado soberano, isto é, transcendente. Essa
condição de súdito (um dos eufemismos de súdito é “sujeito de direitos”) não
tem absolutamente nada a ver com a relação indígena vital, originária, com a
terra, com o lugar em que se vive e de onde se tira seu sustento, onde se faz a
vida junto com seus parentes e amigos. Ser indígena é ter como referência
primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para
fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma
comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser
parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um
povo. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma população controlada (ao
mesmo tempo “defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para
baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão
olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado
transcendente; ele recebe seus direitos do alto. (Castro, 2016, pp.10-11 –
itálico no original)

O indígena, diferentemente do Homem Branco, não é proprietário da terra, ele


pertence a terra. O corpo do índio é o corpo da Terra, não existe intervalo entre ambos.
48

Já a subjetividade branca é dividida, separa, desterritorializada. Ela se apropria das


coisas e das pessoas, ela pousa nelas e as coloniza. Não é relação de imanência, mas
transcendência.
Daí o “contato” é sempre desastroso entre os não-brancos e a subjetividade branca.
Pois esta fará sempre o movimento de colonização, de submetimento daqueles por separação,
divisão. Apartará os índios e os indígenas da relação vital, orgânica, social e política com a
terra. E em segundo lugar cortará a relação das pessoas com seus próprios corpos.
Bom seria se tais procedimentos estivessem se encerrado com o fim das colonizações
ultramarinas. Mas as instituições e os modos de proceder eurocêntricos se atualizam e se
sofisticam a cada dia.
Basta se atentar para o tráfico atlântico de escravizados africanos ontem. Mulheres,
homens e crianças arrancados de seus povos e de suas terras. E no Brasil ou nos EUA, por
exemplo, objetos de despossessão corporal radical pois eram propriedades de outros. E hoje é
aterrador observar estas mesmas facas do desprezo lotando as prisões com mulheres, homens
e adolescentes negros (o corpo agora pertence ao Estado), a prática da tortura e do extermínio
à luz do dia nas favelas do Rio de Janeiro e em outras periferias das cidades brasileiras. Tais
exemplos mostram a tara da subjetividade branca em dividir o povo negro do seu próprio
corpo e da sua pele.
Uma das formas de punir escravizadas ou escravizados insubordinados era,
precisamente, expulsá-los da “terra”. Assim os senhores visavam estilhaçar as relações
amorosas, comerciais, familiares, de amizade etc que a mercadoria humana conseguira tecer.
Exílio sobre exílio. Despossessão sobre despossessão. Em 16-10-1840 anunciava o jornal
Correio Mercantil:
Vende-se para fora da terra, uma escrava de 17 annos, muito fiel,
sadia e activa, sabe tudo tractar dos arranjos de uma pequena família, por vir
da sua terra pequena; vende se somente por ser atrevida para sua senhora:
quem a pretender procure nesta typographia, que se dirá quem vende. (apud
Reis, 1998, p.37)

Infelizmente o domínio colonial ainda é tão penetrante que mal conseguimos nomear
todos os efeitos das políticas de exílio produzidas pelo Homem Branco.
O nojo e a compaixão que acompanham tais empreitadas podem ser entendidas como
uma espécie de prática de vingança. Penso que a subjetividade branca é dominada por um
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profundo ressentimento. Por ela mesma ser apartada, só pode subsistir dividindo quem ainda
não o é.
[…]Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente
desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança,
inesgotável, insaciável em irrupções atrozes contra os felizes, e também em
mascaramentos de vingança: quando alcançariam realmente o seu último, mais
sutil, mais sublime triunfo de vingança? Indubitavelmente, quando lograssem
introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de
modo que estes um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e
dissessem talvez uns aos outros: “é uma vergonha ser feliz!” […] (Nietzsche,
2009, p.105)

Se um dos indicadores da liberdade de viver, ensinou-nos os filósofos cínicos, é não


sentir vergonha de si, é possível prescrutar o adoecimento enorme dos povos colonizados que
ainda hoje lutam para mimetizar os europeus, desde o alisamento dos crespos cabelos das
crianças, passando pela vontade de erigir instituições políticas à moda do norte do mundo. Os
antropólogos, médicos e ministros da saúde não sabem explicar por qual motivo “seus” índios
se suicidam seis vezes mais do que os não-índios. Talvez seja a vergonha, a vergonha por não
ser a norma que assola a Terra, um Homem Branco. Ou, mais precisamente, a vergonha por
ter que viver desgarrado do corpo da Terra e do corpo próprio, como se dá com a
subjetividade branca.
Gandavo, o português, continua a descrever os signos que compõem a barbaridade
dos gentios da terra do Brasil (pois já havia os “gentios de Guiné”, africanos escravizados
transplantados para os engenhos de açúcar). Mal sabe ele que aquilo que diagnostica como
desordem, talvez seja o modo de impedir a emergência do Rei, da Lei e de Deus (os
mercadores do desprezo) entre os índios.
Estes índios são mui belicosos e têm sempre grandes guerras uns contra
os outros; nunca se acha neles paz nem é possível haver entre eles amizade;
porque umas nações pelejam contra outras e matam-se muitos deles, e assim
vai crescendo o ódio cada vez mais e ficam inimigos verdadeiros
perpetuamente. As armas com que pelejam são arcos e frechas; a cousa que
apontarem não na erram, são mui certos com esta arma e mui temidos na
guerra, andam sempre nela exercitados. E são mui inclinados a pelejar, e mui
valentes e esforçados contra seus adversários, e assim parece cousa estranha
ver dous, três mil homens nus duma parte e doutra com grandes assobios e
grita frechando(sic) uns aos outros; e enquanto dura esta peleja nunca estão
com os corpos quedos meneando-se duma parte pera outra com muita
ligeireza pera que não possam apontar nem fazer tiro em pessoa certa;
algumas velhas costumam apanhar-lhes as frechas pelo chão e servi-los
50

enquanto pelejam. Gente é esta mui atrevida e que teme muito pouco a morte,
e quando vão à guerra sempre lhes parece que têm certa a vitória e que
nenhum de sua companhia há de morrer. E quando partem dizem, vamos
matar: sem mais considerações, e não cuidam que também podem ser
vencidos. Não dão vida a nenhum cativo, todos matam e comem, enfim que
suas guerras são mui perigosas, e devem-se ter em muita conta porque uma
das cousas que desbaratou muitos portugueses foi a pouca estima em que
tinham a guerra dos índios, e o pouco caso que faziam deles, e assim
morreram muitos miseravelmente por não se aperceberem como convinha;
destes houve muitas mortes desastradas: e isto acontece cada passo nestas
partes. (Gandavo, 2008, p. 67)

Para o Homem Branco a conta, o peso e a medida das coisas são dadas por Deus,
pela Lei e pelo Rei; para o gentio a máquina de valores é a guerra selvagem.
Gandavo aponta para as mortes desastradas que os europeus sofriam porque não
levavam em consideração a guerra dos índios. Talvez aí a profecia dos morticínios que
ocorreriam e ocorrem regidos pelas mãos ordeiras da subjetividade branca e seu R, L e D.
Finalmente que são estes índios muito desumanos e cruéis, não se
movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem
concerto de homens, são muito desonestos e dados à sensualidade e entregam-
se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos, ainda que, todavia
sempre têm resguardo os machos e as fêmeas em seu ajuntamento, e mostram
ter nisto alguma vergonha. Todos comem carne humana e têm-na pela melhor
iguaria de quantas pode haver: não de seus amigos com quem ele tem paz se
não dos contrários. Têm esta qualidade estes índios que de qualquer cousa que
comam por pequena que seja hão de convidar com ela quantos estiverem
presentes, só esta proximidade se acha entre eles. (Gandavo, 2008, p. 69)

A coragem de viver talvez seja a autonomia para definir os amigos e os inimigos;


desprezar em hipótese alguma.
Uns comem, outros colonizam. Uns comem com os amigos e devoram sempre os
contrários capturados na guerra. A “proximidade” entre esse povo sem “razão humana” está
no gesto de comer junto. Seria uma espécie de santa ceia tropical? Não. Selvagens não gostam
de metáforas, muito menos de vinganças imaginárias. Estes procedimentos são cristãos.
Hans Staden, aventureiro alemão em busca de fortuna e cativo dos tupinambás em
1556, ouviu destes brutos que o ameaçavam matar e comer assado: “É legítimo portuguez
(sic), agora se lamenta e tem medo da morte.” (Staden, 1930, p. 75) O diagnóstico da
subjetividade branca fora realizado faz mais de 400 anos.
51

Extraímos os frutos das árvores


Expropriam as árvores dos frutos

Extraímos os animais da mata


Expropriam a mata dos animais

Extraímos os peixes dos rios


Expropriam os rios dos peixes

Extraímos a brisa do vento


Expropriam o vento da brisa

Extraímos o fogo do calor


Expropriam o calor do fogo

Extraímos a vida da terra


Expropriam a terra da vida

Politeístas!
Pluralistas!
Circulares!

Monoteístas!
Monistas!
Lineares!

(Nego Bispo, 2015, p. 18)


52

No dia 28 de março de 1984 uma autoridade francesa, bem próxima de sua morte,
disse que os cristãos faziam a seguinte acusação e depreciação: “É isto que caracteriza a
parresía: não temor a Deus, não desconfiança em relação a si, não desconfiança em relação ao
mundo.” (Foucault, 2011, p. 295)
Depreende-se daí que parresía é um antídoto contra o desprezo. E lá onde a parresía
é evacuada, a desconfiança ou desprezo e o temor se entumecem.
Michel Foucault, professor do Collège de France, explicou em centenas de páginas
que parresía é o vínculo indissociável entre a coragem e a verdade. Parresía é a coragem da
verdade a despeito de tudo e de todos. Ela era expressa, na Antiguidade greco-romana, em
diferentes contextos e de diferentes modos. Havia parresía política, parresía ética, parresía
cínica etc.
A verdade para ser expressa aí exigia um sim. Sim para vários riscos, o exílio
político, o rompimento de uma relação de amizade e o extremo de perder a vida.
E a verdade dita era estritamente vinculada ao indivíduo que a proferia. Não era a
verdade derivada de uma tradição, nem de um domínio técnico, nem de uma revelação dos
deuses. Penso e tenho coragem para dizê-lo em meu nome. E faço-o diante do soberano (uma
relação assimétrica) e entre pares. A coragem e a coragem da verdade, portanto, dificilmente
pode ser exercitada pelos poderes, por aqueles que estão em posição de superioridade.
E esta parresía era um modo de cuidar da existência. Cuidar da vida exigia
inevitavelmente coragem. Cultuava-se a existência nesse jogo. Esperava-se que o interlocutor
do parresiasta também tivesse coragem, ou seja, largueza de alma para acolher verdades
ferinas. E no meio desse jogo a vida era estilizada.
Na história da subjetividade branca, não foi a parresía que se perpetuou, parece
óbvio. O temor e a desconfiança triunfaram, vieram os sacerdotes cristãos e os ministros de
Estado.
Se a parresía foi pisoteada, pode-se supor que o jogo mitigou. O jogo, imanência. O
cuidado será colonizado em uma longa procissão de desprezos, o sim corajoso será
substituído pelo não. A renúncia será a virtude aplaudida.
Na subjetividade branca a coragem de viver se despedaça.
53

4
na minha cidade, as dores cansam o vocabulário.
na minha cidade, torturadores e assassinos são homenageados sob o sol do meio-dia.
na minha cidade, o esgoto é espelho.
na minha cidade, do crepúsculo à imensidão do mar, faltam ouvidos para os gritos
gastos.
na minha cidade, as feridas são lambidas por urubus com língua de soda cáustica e
lavadas por sorrisos sem rosto.
na minha cidade, há casas com telhas de amianto e chão de pus.
na minha cidade, os profetas gaguejam.
na minha cidade, as crianças possuem calos de chumbo e ossos de areia.
na minha cidade, roubam-se os dentes dos pobres.
na minha cidade, há mais igrejas do que ruas.
na minha cidade, as mulheres sangram pelo nariz.
na minha cidade, a música é um lençol violeta sobre a calçada molhada.
na minha cidade, os pássaros são vestidos com fardamento militar.
na minha cidade, a lua escreve poesias nas paredes das geladeiras do necrotério.
na minha cidade, ensinam aos homens a marchar sobre seios.
na minha cidade, as portas têm medo do vento.
na minha cidade, ...
na minha cidade, as pessoas se cumprimentam com dois beijos e um desprezo.
na minha cidade, as narrativas dos desapossados são enrabadas em um quarto branco
com orelhas cansadas.
na minha cidade, há cemitérios sem nome e túmulos com epitáfios em bronze.
na minha cidade, a sombra escolhe uma cor de pele para refrescar.
na minha cidade, os trabalhadores têm os pés inchados e sono sem cor.
na minha cidade, todo perto é amanhã e todo longe é agora.
na minha cidade, o medo tranca as ruas e Exu borboleteia nas encruzilhadas.
na minha cidade, os revolucionários têm empregadas domésticas negras.
na minha cidade, algumas crianças são afogadas no útero.
na minha cidade, a tristeza pinga das torneiras de casas sem reboco.
54

na minha cidade,
55

Congo

1
Foi o meu batismo. O relógio caminhava para as cinco horas da tarde. Batizado nas
águas da condenação. Fiquei desde aquele sábado com uma cicatriz no gesto, um hábito: não
suporto que minhas mãos fiquem contidas por nada nem por ninguém, ao dormir não me deito
sobre elas; também não cruzo os braços, jamais; dou apertos de mãos ligeiros ao
cumprimentar. Não me sento nem deito em lugares que travam os movimentos dos meus
braços. Percebo-me como um trabalhador congolês castigado pelo exército do rei Leopoldo II
da Bélgica. “Árvore que chora” foi o nome que os índios do Congo deram em tempos
imemoriais a uma espécie vegetal que ao ser ferida libera resina. Em julho de 1887 Nietzsche,
em Sils-Maria - Suíça, finalizava suas três famosas dissertações intituladas: Zur Genealogie
der Moral (Genealogia da moral). Em 1887 um irlandês, John Dunlop, inventou a roda com
câmera de ar, esta rapidamente fora incorporada às bicicletas. O novo produto exigia
borracha. E a borracha precisava da goma retirada da árvore que chora. A tal goma
galvanizada estava associada a imagem do progresso, ela revestia cabos telefônicos e
telegráficos, objetos domésticos. Por duas décadas o Congo “forneceu” a seiva do progresso.
E este país por estas épocas era propriedade particular de Leopoldo II. Ele impunha a cada
congolês uma meta no colhimento das lágrimas da árvore de goma. Aqueles e aquelas que não
cumpriam o estabelecido tinham a mão decepada. Os soldados fotografavam (outro signo do
progresso) os mutilados. Eu os vi. Tinham a minha cor. Desde o meu batismo me senti como
um congolês despedaçado, partido. Ninguém sabe o número exato, mas calculam que cinco
milhões destes africanos tenham sido mortos pelos comandados do rei nesse período.
Ninguém sabe quantos sucumbiram. Não perdi as mãos, mas elas não são as mesmas. Até
então eu acreditava que quem fazia o mal, receberia o mal; e quem fizesse o bem receberia o
bem. Já tinha visto atrocidades e em grande quantidades, e tinha certeza de que os
desgraçados tinham feito por merecer suas dores. Era como eu podia, com esta lógica infantil,
dar sentido aos desesperos que davam plantão nas nossas esquinas. Estávamos no bar do
Celso em São Gonçalo. Não bebíamos cerveja, o que nos arrastava para lá com uma força
irresistível eram os jogos. Senti que fui cortado do mundo naquela tarde. Minha memória
maior é uma espécie de disritmia, um pulso enlouquecido, ou melhor, é a pulsação caótica.
56

Sufocado pelo próprio coração, é a lembrança mais forte que restou. O desespero é perceber
meu ritmo posto em outras mãos. Fui separado do meu próprio coração. Assim me recordo. É
como se ele não suportasse mais a caixa torácica, ameaçado por algo terrível, contorcia-se e
me afogava. O cheiro de óleo de motor misturado ao cheiro do meu suor. Não me lembro
quase da textura das vozes, nem do significado das palavras, somente o eco do meu coração
desgovernado. Ele gritava em silêncio. Parecia crescer e crescer e emparedava meus pulmões;
pescoço e cabeça latejavam, minhas entranhas pareciam um fole pisoteado por uma junta de
bois assustados. O coração queria fugir antes de mim. Algemado, punha a palma de uma mão
no dorso da outra, procurava, naquilo que até então era meu corpo, um pedaço de mim
reconhecível. Eu deveria ter uns quinze anos. Tateava o desespero na traseira da minha mão
direita como um cego toca a face de um desconhecido pela primeira vez. Não me achava e
sentia que ia desmaiar. O coração crescia, implodia-me e os cacos pareciam cortar as paredes
do estômago que doía. Curvado, vomitei sobre minhas pernas. Esse batismo foi um exílio, um
exílio duplo. Desterrado do meu próprio corpo e desterrado do mundo. Vi que a vida não me
devia algumas delícias, era eu quem devia ao mundo. E o preço que ele me cobrava era a
minha vida... morta. É como se eu fosse um erro que se paga extinguindo-o. Foi um rasgo,
uma espécie de fronteira de arame cortante e intransponível posta entre mim e a terra, entre
mim e o restante das pessoas. Embora não pensasse nisso, sentia até então que pertencia, que
era filho, e bom filho, do mundo. Eu era bom, nem se quer tinha vivido o bastante para poder
fazer um mal; imaginava, no máximo, fazer umas besteiras. Entendia-me como bom e o
mundo me devia generosidades. Eu mesmo era o mal, foi o que vi naquela tarde. O mal não
estava em mim, era eu. O batismo foi essa travessia, essa passagem. Foi isso, um ritual de
passagem. Uma experiência. Conduzido do bem ao mal em uma única tarde. Saí
transformado, modificado, ou mais precisamente, mortificado. Cheguei mesmo a pensar que o
que aconteceu foi uma punição por causa dos meus maus pensamentos ou porque eu enganava
e desobedecia à minha mãe ou porque às vezes me invadia a raiva e sentia vontade de dar uns
murros no meu pai quando ele me irritava. Aí as faltas mais graves que garimpava naquela
época. Espremido na caçapa do camburão, era assim que era chamado o carro de polícia,
indagava-me qual teria sido meu veredicto e qual a seria a acusação. É possível reverter,
anular, neutralizar um batismo? É possível atravessar o rio no sentido contrário, desbatizar-se?
Nunca soube de tal rito e de ninguém que o tenha feito. Naquela tarde morreu alguma coisa
em mim. Lá naquele lugar, todo mundo sabe onde é, decidiram não tirar minha vida.
57

Guardaram-na em seus bolsos. Eu lhes pertencia? Nunca os vi e se comportavam como Deus


e o Diabo legislando sobre o destino de Jó. Pouco importava a conduta de Jó, ele estava
condenado aos acordos e caprichos de Lúcifer e de Jeová. Vi-me condenado como Jó,
submetido ao ritmo de outros. Eu era Jó, o leproso. Não me mataram, decidiram isso lá
naquele lugar de despejo dos corpos. Mas morri. Morreu uma faculdade em mim que me unia
ao ritmo de minha vida. Entre meu ritmo e esse elemento que o conduzia, o qual naquela tarde
morreu, introduziu-se alguma coisa que fede. Vive comigo as mortes, desde então. As mortes
daquela tarde de fevereiro. Aquele que eles colocaram algemado dentro daquele buraco que
era o carro e levaram para assassinar, aquele que se achava digno de um mundo digno…
morreu. Aquele corpo vive comigo e fede, empesteia-me, adoece-me. Ele não ficou lá, ele não
se decompôs lá e por isso aquela gente não se desvia de mim, não se esquece de mim, caçam-
me. Aquele corpo nasceu no porta-malas da viatura e morreu ao sair de lá. Não eliminaram
todo o mal que havia em mim. Morreu algo em mim naquele batismo. Algo nasceu naquele
batismo, morreu naquele batismo e está comigo. Todo mundo sabe que naquele lugar muitas
pessoas foram eliminadas. E eu pisei lá, respirei lá. Nasci lá e lá morri correndo. Corri
desesperadamente quando me mandaram correr. Correr não é fugir, é obedecer. Eles sabiam
que já tinham matado alguma coisa em mim. O mais terrível é não poder fugir, não ter
coragem de fugir. Durante muito tempo sonhei com essa tarde. Eu fugia e eles me acertavam
pelas costas, eu caía e ia morrendo à medida que meu sangue molhava o matagal, desfalecia
tranquilamente porque ao fugir, roubava deles o que tentavam roubar de mim. No sonho eu
não corria para me livrar da morte, corria para não perder a minha vida. A vida estava no
gesto de fugir e não no ato de continuar respirando. Já não sonho mais com isso. “Corre e não
olhe para trás!”, ordenaram-me. Sem olhar para trás? Eu era Sodoma e Gomorra sentenciadas
ao desaparecimento. Ninguém sabe o nome de nenhum morador ou moradora dessas cidades
afogadas pelo enxofre. Nenhuma criança ficou viva. Sodoma e Gomorra algemadas dentro de
uma viatura. Sabe-se o nome de Ló que lá estava e lá não tinha nascido. Ló não fugiu, Ló
correu, pois os dois homens desconhecidos que foram destruir a cidade o mandaram correr.
Correr e não olhar para trás. Ló não queria sair da cidade e se esconder num buraco qualquer.
Ele exita, os dois anjos o pegam pela mão e o arrastam para fora dos muros da cidade. Ló se
abriga no vilarejo vizinho, Zoar. A desgraça ordenada dos céus arde as cidades e todos os seus
moradores; Ló, dominado pelo medo, esconde-se em uma caverna, aloja-se bem no fundo
dela. Não olhar para trás? A esposa de Ló, não se sabe se por curiosidade, por medo ou porque
58

gostava da cidade... olhou para trás e foi repentinamente transformada numa estátua de sal.
Morreu minha Sodoma e Gomorra lá naquela campina de desova. Quantos acabaram
destruídos? Ninguém sabe. Não olhar para trás é não mirar a vida antes dessas mortes? A
ordem de não olhar para trás tinha o intuito de me fazer esquecer o tempo no qual eu jogava e
só queria jogar e a vida jogava comigo? Para eu não lembrar das minhas cidades antes da
condenação? Seria isto? O rosto dos que me sequestraram, eu já tinha fitado, e mesmo assim
ordenaram, “corra e não olhe para trás!”. Ló correu, eu corri, e carregamos conosco as nossas
cidades mortas. E me sentenciaram a não olhar para trás, para não contemplar as gomorras
ainda vivas? Ninguém sabe das dores de Ló. Talvez ele muito tenha se atormentado por ter
corrido e não possuir a coragem da sua esposa, olhar para trás. Ela ficou lá, deve está lá até
hoje, talvez ao lado da cidade que amava; e Ló protegido em um buraco. Eles me mandaram
correr e viver como Ló, vivo e morto, preso a um hoje sem espessura. A única memória que
resta não é da cidade viva, já que não se pode olhar para trás e muito menos para adiante, mas
a memória da dívida. Esta gostaria muito de esquecer. Os anjos não param de me pegar pela
mão e dar a direção dos meus passos. Dívida por me deixarem sair com as mortes que
lançaram sobre mim, e por me oferecerem buracos nos montes. Gostaria também que os anjos
me esquecessem. Ló, Jó os congoleses e eu sabemos que aqueles que nos possuem e nos
protegem podem decidir que somos impuros e injustos, talvez já tenham decidido, e enviarão
seus anjos sem nome até as cavernas deles. Eu sei, desde esse batismo de morte, que sou o
mal. É um saber terrível. Independentemente do que eu faça, já estou condenado. Desde essa
tarde me oferecem como única comida a renúncia total, como único gesto o desprezo por mim
e contra o mundo, contra o jogo; ensinam-me a amar a imagem branca daqueles anjos que
extinguiram Gomorra e Sodoma, amar o senhor dos homens que me caçam. Desde a tarde do
batismo me dão instruções em buracos e de lá, se for bom aprendiz, poderei sair para caçar e
ensinar virtudes arianas para aqueles e aquelas que não estão mortificados ainda. Tornar-me-ei
um estrangulador de ritmos próprios e o meu único prazer, é isso que os anjos esperam, será
perceber o coração de cada um definhando como o meu; e a humilhação será nosso
cumprimento matinal. Foi o meu batismo.
59

A mulher sem nome. Ela era uma peça e não era uma peça. Ela tinha proprietário e
não tinha proprietário. Ela era mãe e não era mãe. Certamente os seus filhos a chamavam pelo
nome. Qual seria? Ela tinha um nome e não tinha nome.
Vivia como alforriada a mais de 25 anos e nesse período teve cinco filhos. Parece
que sonhou jamais voltar a ser propriedade de alguém. Parece que sonhou não submeter suas
crias à escravidão.
O jornalista se referiu a ela como “preta”, “mulher”, “mãe”, “forra”, “ela”. Os
historiadores a chamam de “escrava”, “preta”, “forra”, “peça”, “mulher”, “ela”.
Pelas investigações e escritos do delegado de polícia, “ela” trabalhava e vivia sob a
proteção de um fazendeiro. Mas este morreu. O antigo proprietário parece que não se
esqueceu dela. Acionou a polícia para reaver sua propriedade desgarrada. E a preta valia
muito, pois retornaria com cinco filhos. Por volta de 1860 o tráfico interprovincial de
escravizados estava em alta. Seriam bons negócios vender os filhos da escravizada que se
achava dona de seus passos.
Ela e os cinco filhos são capturados e espetados na cadeia. Um juiz determina,
tempos depois, que sejam soltos. Ela se muda para outro engenho. O senhor a persegue.
Irrefreavelmente o cativeiro se aproxima como o nascer do sol.
Em 27-06-1862 o jornal Diário da Bahia narra o desfecho ocorrido em Santo Amaro:
Recebemos do Libador de St° Amaro de 21 do corrente.
Lê-se nesta folha:
Que barbaridade! em um desses últimos dias apareceram em um tanque do
engenho Preguiça, propriedade do sr. Comendador Paranhos seis cadáveres,
cinco dos quais se achavam amarrados. Referem-nos que eram mãe e filhos, e
contam-nos o fato pela maneira seguinte: essa preta homiziara-se no engenho
Brejo, quando propriedade do capitão José Francisco de Pinho, aí passando
sempre por forra, tivera esses filhos. Agora, porém, chegando ao seu
conhecimento, que o senhor fora sabedor de acharse (sic) ela ali, e que de
certo a viria buscar, não querendo mais sujeitar-se ao cativeiro, manietara os
filhos e os lançara a afogar no tanque, e depois se atirara também.
Acrescentam que a preta tivera cúmplice no seu horrível atentado, visto como
os filhos já tinham idade e forças para resistir a esse ato contra suas
existências. A polícia tendo notícia de semelhante acontecimento, para lá
seguiu a proceder a corpo de delito, cujo resultado ainda ignoramos! (Apud
Reis, 1998, p. 78).

Os engenhos têm nome: Brejo e Preguiça.


60

Os proprietários de engenho têm nome e nome antecedido por pronomes: Sr.


Comendador Paranhos, e capitão José Francisco de Pinho.
O delegado tem nome e sobrenome: Luiz Rocha Neves.
A historiadora que pesquisou os arquivos empoeirados tem nome: Isabel Ferreira
Cristina dos Reis.
Por conta do avançado estado de composição – esta foi a justificativa oficial – foram
enterrados todos na beirada da lagoa onde foram encontrados mortos.
Não se sabe o nome dela nem de seus filhos.
61

3
Concluo: As políticas da subjetividade branca são contrárias à vida.

Até os mais antigos mitos africanos nos falam desses homens louros.
São eles os fundadores de Estado. Nietzsche chega a estabelecer outros
cortes: da cidade grega, do cristianismo, do humanismo democrático e
burguês, da sociedade industrial, do capitalismo e do socialismo. Mas é
possível que, a títulos diversos, todos eles supunham este primeiro grande
corte, embora também pretendam repeti-lo, excedê-lo. Espiritual ou temporal,
tirânico ou democrático, capitalista ou socialista, é possível que tenha havido
somente um único Estado, o cão-Estado que “fala por uivos e solta fumaça
pelas ventas”. […] A terra devém um asilo de alienados. (Deleuze; Guattari,
2010 [1972], pp.254,255 – Itálicos no original, negritos meus)

“Estado! Estado!” é agora o grito geral, e o que se procura é a “forma


correta do Estado”, a melhor constituição, ou seja, o Estado em sua forma
mais perfeita. A ideia do Estado tomou conta de todos os corações e despertou
o entusiasmo; servir este deus mundano era agora a nova forma do serviço
divino e do culto. Tinha começado uma nova época, verdadeiramente política.
[…].
É preciso renunciar a si e viver apenas para o Estado. Há de se agir de
forma “desinteressada”, não buscar a vantagem própria, mas a do Estado. Este
se tornou, assim, a verdadeira pessoa, perante a qual se esvai a personalidade
singular: eu não tenho vida, porque ele vive em mim. (Stirner, 2009 [1844],
pp. 130-131 – itálicos no original)

Estado? Que é isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque eu vos vou falar
da morte dos povos.
[…]
Destruidores foram os que puseram armadilhas para o grande número, e
a isso chamam o Estado; suspendem sobre sua cabeça uma espada e cem
apetites.
Onde ainda há povo, não se compreende o Estado, e é detestado com o
mau olhar, como uma transgressão dos costumes e das leis.
[…]
Na verdade, o Estado é um sintoma da vontade de morrer. Na verdade, é
um convite aos pregadores da morte.
[…]
Sim; inventou para o grande número uma forma de morte que se
glorifica de ser vida; na verdade, foi o melhor serviço prestado aos pregadores
da morte.
Estado, sei, é onde todos bebem veneno, bons e maus; Estado, onde
todos se perdem a si mesmos, bons e maus; Estado, onde o lento suicídio de
todos chama-se ‘a vida’. (Nietzsche, 2014, pp.64-65)

[…] desde o século XVI, uma nova forma política de poder se


desenvolveu de modo contínuo. Essa nova estrutura política, como todos
sabem, é o Estado. Porém, na maior parte do tempo, o Estado é considerado
um tipo de poder político que ignora os indivíduos, ocupando-se apenas com
62

os interesses da totalidade ou, eu diria, de uma classe ou um grupo dentre os


cidadãos.
E isso é verdade. Mas eu gostaria de enfatizar o fato de que o poder do
Estado (e esta é uma das razões de sua força) é uma forma de poder tanto
individualizante quanto totalizadora. Acho que nunca, na história das
sociedades humanas – mesmo na antiga sociedade chinesa -, houve, no
interior das mesmas estruturas políticas, uma combinação tão astuciosa de
duas técnicas, de individualização e dos procedimentos de totalização.
(Foucault, 2010 [1982], p. 279)

[…] foi a espoliação organizada quando, em proveito do tráfico


atlântico (século XV ao XIX), homens e mulheres originários de África foram
transformados em homens-objeto, homens-mercadoria e homens-moeda.
Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a outros, que
se puseram hostilmente a seu cargo, deixando assim de ter nome ou língua
própria. Apesar de sua vida e o seu trabalho serem a partir de então a vida e o
trabalho dos outros, com quem estavam condenados a viver, mas com quem
era interdito ter relações co-humanas, eles não deixaram de ser sujeitos
activos. (Mbembe, 2014, p. 12)

A Europa assumiu a direção do mundo com ardor, cinismo e violência.


E vemos como a sombra de seus monumentos se estende e se multiplica.
[…] Essa Europa que nunca parou de falar do homem, de proclamar que
só se preocupava com o homem, sabemos hoje com que sofrimentos a
humanidade pagou cada uma das vitórias de seu espírito.
As realizações europeias, a técnica europeia, o estilo europeu devem
cessar de nos tentar e de nos desequilibrar.
Quando procuro o homem na técnica e no estilo europeus, vejo uma
sucessão de negações do homem, uma avalancha de morticínios.
[…] não paguemos tributo à Europa criando Estados, instituições e
sociedades que nela se inspirem. (Fanon, 1968, [1961], p. 272)

Destaco da psicologia e da política da besta loura: o Estado tem a pretensão de se


confundir com a política e com a vida, em outras palavras, “Eu sou a videira, vós as varas;
quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.” (João
15:5) Repito: Sem mim nada podeis fazer.
Triste a história da imagem do cão. Se na antiguidade grega era atrelada aos
corajosos filósofos cínicos que viviam exercitando-se escandalosamente para obterem o
máximo de independência; a partir de um determinado momento o cão passou a ser a imagem
política do terror e da dominação dissimulada porque em nome da vida – o Estado.
1 A política branca opera por idolatria. Adoradores do Estado.
2 O Estado reduz a noção de política a ele, é egoísta por excelência (sobrecodificador
de todas as relações de poder). A política é o Estado.
3 Decorre daí a colonização pelo poder do Estado da autodeterminação de povos e
indivíduos. Ele exige e promove nas pessoas a renúncia de si – desmoronar da singularidade.
63

4 O Estado é fruto de assassinatos: ele se ergue sobre o cadáver dos povos ou


dissolução de territorialidades primitivas (talvez a abolição do Estado seja necessária para que
o povo viva. Talvez).
5 Ele é a expressão das bestas louras fadigadas e cansadas de viver, filho da vontade
de nada ou vontade de morrer, “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu
vos aliviarei.” (Mateus 11:33) Quem escreveu foi uma autoridade alemã: o Estado é um
sintoma da vontade de morrer.
6 O poder do Estado modela a vida (estatização da existência) e produz o indivíduo
que lhe interessa: dócil, obediente e mortificado, “E, achado na forma de homem, humilhou-
se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz”. (Filipenses 2:8)
7 A política da subjetividade branca é um tanto mentirosa. O Estado coloniza a vida
em nome da vida, ora ninguém governa em nome da morte. Mas, paradoxalmente, ela é um
convite à morte, ao suicídio.
Ele traz unguento e bálsamo, sem dúvida; mas necessita primeiro
ferir, para ser médico; e quando acalma a dor que a ferida produz, envenena
no mesmo ato a ferida – pois disso entende ele mais que tudo, esse feiticeiro e
domador de animais de rapina, em volta do qual tudo o que é são torna-se
necessariamente doente, e tudo doente necessariamente manso. (Nietzsche,
2009, p. 107 – itálico no original)

8 Os europeus, colonizados pelo poder do Estado e inventores deste Estado de


polícia, passaram a ser governados por este a partir do XVI.
9 Os colonizados em África a partir do XVI pertenciam às potências coloniais e aos
que pagassem o valor cobrado.
10 A subjetividade branca se cristaliza e tem sua imagem mais acabada no aparelho
de Estado, pois ambos não reconhecem singularidades, porque totalitários e reducionistas; é o
império do Um em detrimento dos únicos. É o reino da transcendência sobre a imanência.
11 A população europeia e seus descendentes espalhados pelo mundo historicamente
tendem a espelhar a forma Estado (por obediência, por prazer, por medo, para continuar
desfrutando dos privilégios das espoliações imperiais?), daí a categoria Homem Branco ou
estilo europeu. Édipo, por exemplo, é uma forma Estado e uma tecnologia de colonização de
“selvagens” continuada por outros meios. Sobre o reducionismo edipiano-estatal manejado
pelo Homem Branco, escreve a dupla de O anti-Édipo:
Jaulin, em La Paix blanche, analisa a situação dos índios a que os
capuchinhos “persuadiram” a trocar sua casa coletiva por pequenas “casas”
64

pessoais. Na casa coletiva, o recanto familiar e a intimidade pessoal estavam


fundadas numa relação com o vizinho definido como aliado, de modo que as
relações interfamiliares eram coextensivas ao campo social. Ao contrário
disso, produz-se na nova situação “uma fermentação abusiva dos elementos do
casal sobre si próprios” e sobre as crianças, de tal modo que a família restrita
se fecha num microcosmo expressivo em que cada um reflete sua própria
linhagem, ao mesmo tempo que o devir social e produtivo lhe escapa cada vez
mais. É que Édipo não é somente um processo ideológico, mas o resultado de
uma destruição do meio ambiente, do habitat etc. (Deleuze; Guattari, 2010, p.
225 – itálico no original)

12 O poder estatal ou a subjetividade branca é despedaçadora da coragem de viver


porque se assenhora da vida de todos e de cada um.
13 Como o estilo europeu em política é historicamente totalitário, ele não consegue
ter relações de exterioridade (de combate) com os outros. Ele é a norma e só reconhece
desvios, dificilmente outras perspectivas. “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e
sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.” (Gêneses 1:
26) Os ameríndios das terras baixas, por exemplo, tem historicamente relações de
exterioridade não só com outros humanos, mas com múltiplas agências (Castro, 2015)
14 A subjetividade branca costuma exterminar aquilo e aqueles que não mimetizem
seu rosto. Logo, há muitas mortes já que é impossível, por exemplo, um povo negro tornar-se
branco (em termos cromáticos). “Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será
condenado.” (Marcos 16:16)
15 Os transformados em moeda, mercadoria e objeto se insurgiram e se insurgem de
diversos modos contra as depredações.
65

4
Concluo: amor branco é amor de rebanho. Este amor é desprezo e horror a Terra e
aos filhos desta.
Bem o sabes; o covarde demônio que dentro de ti se compraz em juntar
as mãos e em cruzar os braços, e que desejaria ter uma vida mais fácil, esse
covarde demônio disse-te: “Há um Deus!” (Nietzsche, 2014, p. 231)

Dentre todas as sociedades da história, as nossas — refiro-me àquelas


que passaram a existir no fim da Antiguidade na metade ocidental do
continente europeu — talvez tenham sido as mais agressivas e conquistadoras;
foram capazes da violência mais assombrosa, tanto contra elas próprias como
contra outras. Inventaram um sem-número de diferentes formas políticas. […]
É preciso ter em mente que somente elas desenvolveram uma estranha
tecnologia do poder tratando a imensa maioria dos homens como um rebanho
com uns poucos pastores. […]
O problema pastoral diz respeito às vidas dos indivíduos. […]
Podemos dizer que o pastorado cristão introduziu um jogo que nem os
gregos nem os hebreus haviam imaginado. Um estranho jogo cujos elementos
são a vida, a morte, a verdade, a obediência, os indivíduos, a consciência de si.
Um jogo que não parece ter qualquer relação com o jogo da cidade que
sobrevive através do sacrifício dos cidadãos. Nossas sociedades mostraram-se
verdadeiramente demoníacas quando conseguiram combinar esses dois jogos
— o da cidade-cidadão e o do pastor-rebanho —naquilo que convencionamos
chamar Estados modernos. (Foucault, 1990 [1979], pp.84,87 – negrito meu)

[…] O retrocesso da febre amarela e os progressos da evangelização


fazem parte do mesmo balanço. Mas os comunicados triunfantes das missões
informam, na realidade, sobre a importância dos fermentos da alienação
introduzidos no seio do povo colonizado. Falo da religião cristã e ninguém
tem o direito de se espantar. A Igreja nas colônias é uma Igreja de Brancos,
uma igreja de estrangeiros. Não chama o homem colonizado para a via de
Deus mas para a via do Branco, a via do patrão, a via do opressor. E como
sabemos, neste negócio são muitos os chamados e poucos os escolhidos.
(Fanon, 1968 [1961], p.32)

O objetivo do cristianismo foi o de nos libertar de nossa natureza


natural (da determinação pela natureza), dos desejos e de seus impulsos; com
isso, pretendia-se que o homem não se deixasse determinar por seus desejos.
Isso não significa que ele não possa ter desejos, mas sim que os desejos não
deva tê-lo, que eles não devem se tornar fixos, indomáveis e indissolúveis.
(Stirner, 2009 [1844], p.83 – itálico no original)

Outra coisa é a guerra. Sou por natureza guerreiro. Agredir é parte de


meus instintos. Poder ser inimigo, ser inimigo – isso pressupõe talvez uma
natureza forte, é em todo caso condição de toda natureza forte. Ela necessita
de resistências, portanto busca resistência: o pathos agressivo está ligado tão
necessariamente à força quanto os sentimentos de vingança e rancor à
fraqueza. […] Igualdade frente ao inimigo – primeiro pressuposto para um
duelo honesto. Quando se despreza não se pode fazer a guerra; quando se
66

comanda, quando se vê algo abaixo de si, não há que fazer a guerra.


(Nietzsche, 1995 [1888], p. 32 – itálicos no original, negrito meu)

Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas porque
não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo
vos odeia. (João 15:19)

O culto anual da deusa da terra caiu num domingo, e os espíritos


mascarados estavam à solta. Por isso, as mulheres cristãs que tinham ido à
igreja não puderam voltar para casa. Alguns homens de suas famílias
resolveram ir pedir aos egwugwus que se retirassem durante um certo tempo, a
fim de que as mulheres pudessem passar. Eles concordaram, e já começavam a
se afastar, quando Enoch alardeou em altas vozes que os espíritos não
ousariam tocar num cristão. No mesmo instante, todos eles voltaram para trás
e um deles aplicou uma boa bastonada em Enoch – os egwugwus carregam
sempre um bastão. Enoch avançou para cima do sujeito e arrancou-lhe a
máscara. Imediatamente os outros egwugwus rodearam o companheiro
profanado, para protegê-lo dos olhares sacrílegos das mulheres e crianças, e o
levaram embora. Enoch matara um espírito ancestral, e Umuófia mergulhou
na escuridão.
Naquela noite, a Mãe dos Espíritos vagou pelo clã, andando em todas as
direções, a prantear o filho morto. Foi uma noite terrível. Nem mesmo o mais
velho dos homens de Umuófia jamais ouvira som tão estranho e apavorante, e
nunca mais ouviria. Parecia que a alma do clã chorava um grande mal prestes
a acontecer: a sua própria morte. (Achebe, 2009 [1958], p. 193 – itálico meu)

Os missionários têm um livro a partir do qual espalham as palavras de


Teosi9. Costumavam dizer, olhando para ele, que Sesusi [Jesus] iria clarear
nosso peito e lavar nosso pensamento. Não paravam de declarar que Teosi não
gosta de quem faz descer os espíritos, de quem usa folhas de tabaco, de quem
rouba das roças dos outros ou de quem copula com mulheres casadas.
Também repetiam sempre que Teosi tem aversão pelos que se enfrentam com
bordunas, conduzem expedições de feitiçaria ou mostram bravura na guerra.
Porém, para nós, tudo isso não passa de um monte de palavras tortas.
Omama10 sempre demonstrou amizade por nós, não importa o que façamos.
Ele nunca pretendeu lavar o peito de ninguém! Sua imagem não fica nos
dizendo sem parar: “Vocês são maus! Se recusarem minhas palavras, farei
com que sejam queimados vivos ou carregados pelas águas! Farei tremer a
terra da floresta sob seus pés!”. Ela apenas nos diz: “Vocês são como eram
seus antigos! Continuem seguindo os rastros deles! Um dia, vocês morrerão;
por isso, enquanto estão vivos, não devem temer nada!”. Assim é. Ignoramos
aquilo que a gente de Teosi, para nos assustar, chama a todo instante de
pecado. Não somos ruins; só não somos brancos! Somos como nossos
antepassados sempre foram antes de nós.

9 O antropólogo Bruce Albert explica que “Teosi vem do português ‘Deus’. Essa ‘gente de Teosi’ são os
missionários evangélicos fundamentalistas da organização americana New Tribes Mission (NTM), que
fizeram sua primeira visita ao alto rio Toototobi em 1958, quando Davi Kopenawa devia ter dois ou três
anos. A NTM foi fundada nos Estados Unidos, em 1942, por Paul W. Fleming e tem sede em Stanford,
Flórida; é conhecida no Brasil como Missão Novas Tribos (MNTB).” (Kopenawa; Bruce, 2015, p. 610)
10 Demiurgo da mitologia yanomami.
67

Para nós, todas essas palavras de branco a respeito de Teosi são sem
valor.
[…] Assim é. Continuaremos fazendo dançar as imagens dos ancestrais
animais para curar os nossos enquanto estivermos vivos, pois somos
habitantes da floresta. (Kopenawa; Bruce, 2015, pp. 278-279)

Destaco: O amor do rebanho é um amor covarde, ele quer uma vida


pacificada. É um não, uma atitude de negação diante do mundo.
1 O cristianismo marcou o fim da Antiguidade (grega e romana),
provavelmente delimitou também a morte da coragem de viver. A Europa devém
rebanho.
2 O poder pastoral não se preocupa com a cidade nem com a Terra, mas com
a vida e a salvação do rebanho. Isto faz toda a diferença. A subjetividade branca é
separada do corpo da Terra, desterritorializada. Um estranho procedimento de
valorizar a vida em detrimento do mundo. “Não ameis o mundo, nem o que no mundo
há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele.” (1 João 2:15) “Sabemos
que somos de Deus, e que todo o mundo está no maligno.” (1 João 5:19) Não seria
absurdo nomear os efeitos do poder pastoral de “alienígenas”, em oposição aos
indígenas. Os sacerdotes cristãos promovem um desprezo pelo mundo e uma espécie
de paranoia, pois partem do princípio seguinte princípio: é o mundo que odeia o
rebanho. Aí a arquitetura do ressentimento: a culpa, mundo, é sua.
3 Somente os europeus desenvolveram formas de governo baseadas na noção
de rebanho. Quem o diz é o filósofo Michel Foucault.
4 O rebanho (estado de obediência permanente) atrelado ao poder político
(Estado) resulta em mortandades (ecológicas, étnicas, civilizacionais, minerais)
calculadas jamais vistas na história humana. A isto pode-se chamar racismos. “E o que
a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si mesmo se humilhar será exaltado.”
(Mateus, 23:12) “Os ímpios serão lançados no inferno, e todas as nações que se
esquecem de Deus.” (Salmos, 9:17) Desprezo pelo mundo, desprezo de si e um estilo
de obediência cega produziu e produz sujeitos assustadores porque podem cometer as
maiores atrocidades tranquilamente, mecanicamente.
Note o acontecimento narrado pelo escritor Achebe: Enoch, o cristão, arranca
a máscara de um espírito ancestral. Gesto característico dos agenciamentos de poder,
constituir rostos. O espírito ancestral é uma força, força imanente a terra. O cristão
68

ignora isto, seu mundo é o mundo do espírito, do fantasma, do interior da alma. A


subjetividade branca faz brotar rosto lá onde opera as divisões do poder.
5 Nas colônias europeias o cristianismo serve como ferramenta de dominação
Branca.
6. A pastoral cristã por promover uma dupla renúncia (à natureza, a Terra e ao desejo
– à vontade própria, ao si) é uma política de demolição da coragem de viver.
69

No dia 10-10-2012 alguns filhos da Terra condenados divulgaram a seguinte carta:

Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-


MS para o Governo e Justiça do Brasil
Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-
Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta
apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante da ordem de
despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o
processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012.
Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada,
violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de
Navirai-MS.

Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal
gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos
direitos de sobreviver à margem do rio Hovye próximo de nosso território
tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão
da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio
histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é,
a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas
vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já
perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso
território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos
denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do
Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências
contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos
morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva
de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos
aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes,
sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e
tortura de pistoleiros das fazendas.

Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem


nenhuma assistência, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje.
Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso
território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no
centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs,
avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados.
Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e
enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por
isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de
despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para
enterrar nós todos aqui.
70

Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e


extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco
para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais.
Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte
coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui.
Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem
mortos.
Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui
em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e
morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da
margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como
um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos
coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão
unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS 11.

11 Para uma análise desta carta e de alguns de seus desdobramentos, conferir Librandi-Rocha, M. A Carta
Guarani Kaiowá e o direito a uma literatura com terra e das gentes. estudos de literatura brasileira
contemporânea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014
71

, assim, observamos uma sociedade dominada por uma tara: o estado de obediência e seus
afluentes, mortificação de si, humildade, humilhação, renúncia de qualquer vontade própria.
Os indivíduos dessa sociedade tem uma outra obsessão: julgar. Julgar para punir,
punir, punir. Tarados mesmo por julgamentos. Aí a vida das pessoas gira ou melhor fica
atolada nesse esquema. Como é que se ensina e aprende? Punição e obediência. Como é a
religiosidade dessa gente? A divindade tem que punir e exigir obediência. E como se cuida
dos doentes? Obediência e punição. E o que define o "bom" cidadão dessa comunidade? É
aquele que obedece e está apto à punição. E como esse povo ama? São criativos, exigem
obediência e promovem punição. E a relação econômica desse pessoal? O mesmo, obediência
e punição. E a relação com as crianças, as forças da natureza, as forças do corpo? Punir punir
e obedecer obedecer. E a morte, o que é a morte pra eles? Punição. Isto a tal ponto que na
mitologia religiosa deles a punição vai caçar o indivíduo depois de morto e lhe dará uma
morte eterna. E o que é a vida para esses autóctones? A literatura etnográfica afirma que é
punição por alguma coisa que os pais deles fizeram. Eles acreditam que já nascem devendo, a
queda, logo aptos a punição, ao sofrimento. O sistema religioso dominante entre esses
selvagens afirma que a vida apartada de dor, da morte, do sofrimento, a vida em gozo virá
somente depois da morte. Mas somente pra quem obedeceu em vida.
Tem mais para ter menos.
Os mais velhos entre eles escreveram (eles se orgulham da sua história documentada,
escrita) que num determinado momento de sua história (eles também se orgulham de possuir
História) surgiu um novo personagem que logo logo teve adoradores (há entre eles quem diga
que essa entidade sempre existiu, embora o culto seja recente). Está nos textos deles que isso
deu confusão, guerras, uma espécie de ciúme. Diziam uns que quem se curvava a esse novo
personagem estava renegando a divindade mais antiga. A este novo ídolo eles chamam
Estado. Detratores acusam os sacerdotes desta divindade de supérfluos. Homens supérfluos. E
esse ídolo? Ele tem gosto por duas oferendas: punição e obediência. Aí parece que a
estranheza passou, porque esses ritos a tal sociedade sabia de cor e salteado. O panteão deles
tem arranjos curiosos, tem aqueles que depositam toda a sua fé no ídolo mais novo, a salvação
virá dele. Outros já aceitam adorar a ambos, mas de forma hierarquizada (aqui é outra coisa
que é costurada com fios de cobre na alma desse povo, a hierarquia). A salvação será efetuada
72

pelos dois, um salva a vida mundana o outro garantirá as delicias celestiais. Especialistas se
dividem. Eles são monoteístas, é a tese de uns. São politeístas, hipótese de outros. Estes
chegam a descrever outras divindades: ciência, capitalismo, homem branco, razão.
Essa comunidade tem uma característica a mais. Trata-se de uma acentuada
incapacidade de se relacionar com aquilo que destoa deles. Os mitos deles não abrem espaço
para o mistério, para o diferenciado, o estranho, o incompreensível. Não. Percebe-se então
que eles julgam os valores deles como universais. Os ídolos deles são projetados sobre aquilo
e aqueles que não são eles. Ou melhor, não existe não-eles. Tudo é eles. O que destoa é no
máximo eles mesmos mas degradados. Duplos mal acabados.
Esse povo tem um comportamento um tanto insólito. Quando eles se deparam no
meio deles ou longe deles com algo que não cabe nos seus esquemas, na sua tábua de valores,
o que eles fazem? Tentam salvar. É a compaixão. Usam suas máquinas de punição e
recompensa para reduzir tudo a imagem deles. E se não funcionar? Eles desenvolveram ao
longo de milênios uma tecnologia muito eficaz. Eles matam. É a formação histórica, milenar,
não há explicação plausível, deles que os deixa impotentes diante do mistério. Eles temem,
eles matam.
Aqui então se vê mais uma tara desse grupo étnico, eles amam com ardor a morte. A
divindade mais popular entre eles é um personagem com a cor deles, o rosto deles e o cabelo
deles afixado, morto, dependurado no madeiro. Ele se deixou matar docilmente.
É difícil explicar isto. Alguns tentaram. Tentemos. Se a vida é aquilo que produz
diferença, se o vivo produz diferença, se a vida é um vetor de diferenciação, esse povo se vê
ou se viu em completo desespero diante do mundo. E um mundo que não cabia no deles. Eles
por medo da vida parecem ter concretado o mundo com a sua imagem e semelhança. E
saíram. Saíram dominados por duas atitudes: reduzir tudo a esta imagem e o que não for
possível, eles exterminam. Ou seja, é sempre a vontade de matar. Nós, os mortos, dizem eles
nas noites de festas, nós os mortos, mataremos.
Essa sociedade com essas duas garras (punir obedecer) e seus ídolos submeteram o
mundo. Mataram o mundo. Fizeram do mundo o grande cemitério, semelhante a eles. Esse
povo medroso e pobre se tornou rico. Continuou medroso. Deixou atrás de si inúmeros
sacerdotes dos seus ídolos - para não deixar nascer vida nova sob o sol - e imensos vales de
escombros e cadáveres. Os que não são sacerdotes e não são herdeiros desses adoradores da
73

morte tentam com o peito nu beijar a vida. Mas são implacavelmente mortos ou reduzidos a
imagem daquela gente.
Os fracos venceram.
74

7
Bahia. Seu corpo é meu.
Jornal Correio Mercantil, 14-04-1841:
Quem quiser comprar um bonito jumento, e uma preta nagô, moça e parideira,
ja foi do trabalho de enchada, e sem vício nenhum, procure no aljube, c - 29,
que achará com quem tractar.
Jornal Correio Mercantil, 25-05-1841:

Vende-se uma negra de nação gége, que terá de idade 18 annos, com uma filha
de três, tem o préstimo de lavar, e vender/ e vende-se um moleque nagô, que
terá de idade 15 annos mais ou menos; quem pretender procure na rua
d'Ajuda, sobrado da quina de ama rei lo; e tambem se dirá quem vende 4
sendeiros de sella, gordos, e 13 rezes crioulas, entre vaccas, vitellas, e
bizerros.
Jornal Correio Mercantil, 23-04-1841:
Joaquim da Silva Rocha, ainda tem uma porção de dúzias de taboas de pinho
da Suecia, de differentes grossuras e até 30 palmos de comprido, e vende pelo
menor preço que he possivel... O mesmo vende um moleque africano quem
precisar de algum destes objetos procure o annunciante por baixo do Henrique
Marcineiro, ou na loja do mesmo. (apud Reis, 1998, pp. 58, 61)
75

Branca
1

A subjetividade branca?
Observe as próximas três páginas.
A autoridade filosófica Gilles Deleuze afirmou - ao analisar a obra do filósofo holandês
B. de Espinosa - em um livro que tem por título Filosofia prática: “A explicação é sempre
uma auto-explicação, um desenvolvimento, um desenrolar, um dinamismo: a coisa se
explica.” (Deleuze, 2002, p.81 – itálico no original).
76
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79

Azul

O triunfo de Aquiles, de Franz Von Matsch, 1892 (afresco pintado no Palácio Achilleion, Grécia) 12.

a) A Guerra de Troia chega a seu décimo ano de batalhas. Homero narra, no poema épico
Ilíada, acontecimentos que marcam a fase final da peleja por Helena. A pintura de Matsch enquadra
um dos momentos mais importantes desta guerra: o destino do guerreiro troiano Heitor. Lá estava,
momentos atrás, Heitor nos portões da cidade gritando o nome do grego Aquiles; lá estava o pai do
troiano rasgando as próprias roupas e gritando de cima da muralha, aos prantos, para que seu filho, que
já tinha matado inúmeros outros guerreiros gregos, abrigasse-se dentro da cidade, pois o velho rei
estava cansado devido a tantas perdas; lá estava a mãe de Heitor, velha e rainha, em uma cena
comovente, colocando o seio para fora e do alto da muralha pedindo para que seu filho, que um dia
mamou naquela teta, entrasse na cidade. Irredutível, Heitor não pode negar a sua vocação guerreira.
Os deuses põem na balança os dois combatentes, embora querido por Zeus, o destino do troiano fora
traçado no Olimpo: a alma de Heitor irá para o Hades hoje. Após quatro voltas lutando em torno das
muralhas, Heitor desfalece. Metade deus e metade humano, Aquiles o vencedor:

Logo, para ultrajá-lo, aos pés lhe fura


Do calcanhar ao tornozelo as fibras,
Bovinos loro mete, ao carro o prende,
Cabeça a rastos: com o espólio monta,
Sacode o açoute, os corredores voam. (Homero, Ilíada, Canto XXII, s/p.)13

12 Imagem retirada de https://en.wikipedia.org/wiki/File:Triumph_of_Achilles_in_Corfu_Achilleion.jpg


13 http://www.consciencia.org/iliada-de-homero-canto-xxii
80

Aquiles tinha se retirado da guerra, mas a ela voltara furioso após a morte de
Pátroclo (seu primo e grande amigo) pela espada de Heitor.
Aí está, no afresco de Matsch, a fúria da vingança; aí está o espólio do morto, o
capacete na mão de Aquiles; aí está a longa lança que achou brecha na armadura; aí está os
corcéis tocados em alta velocidade; aí está Heitor sem armadura e amarrado com pele de boi à
biga; aí está o júbilo de Aquiles que arrasta o morto diante das portas da cidade; e lá, lá ao
fundo, a cidade quebrantada chora:

Da cena atroz à vista, a mãe coitada


Se carpe e rasga, o véu nítido expele,
E ulula e geme; triste o pai lamenta;
Pela cidade o miserando povo
Soluça em pranto, qual se Troia em peso
Do excelso cume em chamas desabasse.
O velho mal continham de sair-se
Pelas Dardânias portas; e ele a todos,
Rolando-se na lama, suplicava,
A chamar um por um: “Ir só deixai-me,
De mim não se vos dê, perante a frota
Ao cruel matador prostrado, amigos,
Implorar, comover: talvez respeite
Em mim o equevo de Peleu, que o teve
E o nutriu para exício dos Troianos.
Mormente a mim me cumulou de angústias:
Quantos filhos em flor me tem roubado!
Porém, dos que pranteio, um só de todos
Me dói mais e me arrasta ao centro escuro
Heitor… Oh! Se em meus braços expirasse!
Em lágrimas eu mesmo, em ais e em luto,
Com a mãe que mo gerou desafogara.”
Gemente o chora o povo; entre as mulheres
Hécuba rompe em lúgubres suspiros:
“Morreste, filho, e eu vivo! Dia e noite
Eras o meu orgulho e amparo d’Ílio,
Eras um deus aos Teucros e às Troianas
Já foste nossa glória, e és um cadáver!”(Homero, Ilíada, Canto XXII, s/p.)
81

b) Alexandre da Macedônia (nascido em 356 a.C. e morto em 323 a.C.,) 14, o mesmo
que é a personagem de uma diatribe gestual cínica. Conta-se que Diógenes, o mais conhecido
desta corrente, estava na praia. Alexandre e sua corte vai ao encontro do famoso filósofo, este
tinha como teto o céu e como casa um barril. O macedônio gostava de longas discussões com
os sábios. Diógenes parece não dar a menor importância para a presença de o Grande.
Alexandre diz admirá-lo e afirma que o cínico pode lhe pedir o que quiser, e eis a solicitação:
“Desejo que saia da frente do meu sol”. O conquistador teria dito aos seus generais, os quais
zombavam da atitude do filósofo: “Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes”. A
crítica cínica é direta, Diógenes não vê nenhuma grandeza no homem de poder. O destino da
filosofia no ocidente não acompanhará esta atitude, nascerão pensadores de Estado.
Analisando, em 1977, o livro Les Maîtres penseurs (Os mestres pensadores) de André
Glucksmann, Foucault escreverá sobre a filosofia política e sua relação com os “jogos do
Estado”:
Os massacres napoleônicos têm, há um século e meio, uma pesada
descendência. Mas apareceu outro tipo de holocausto: Hitler, Stalin (o
intermediário entre uns e outros e o modelo do segundo encontrando-se, sem
dúvida, nos genocídios coloniais). Ora, toda uma esquerda quis explicar o
goulag15, senão como as guerras, pela teoria da história, ao menos pela história

14 Alexandre teve como mestre intelectual Aristóteles. Plutarco, biógrafo dos antigos homens ilustres, ensaia
decifrar a origem da coragem do jovem que aos 16 anos saiu para vencer os rivais nas cidades gregas e nos
países “bárbaros”. Ele faz uso de uma difundida “teoria” segundo a qual o temperamento e suas virtudes ou
fraquezas eram produtos da temperatura corporal do indivíduo: “Li, nas Memórias de Aristoxeno, que sua
pele [de Alexandre] era perfumada, exalando-se-lhe da boca e de todo o corpo um odor agradável, que lhe
perfumava a roupa. Talvez isso se devesse ao calor de seu temperamento, que era ardentíssimo; pois o bom
odor é – como diz Teofrasto – o produto da cocção dos humores, mediante o calor natural. Aliás, os países
secos e mais quentes da Terra são os que produzem em maior abundância os aromas melhores, uma vez que
o Sol atrai, com substância corruptível, toda umidade que flutua na superfície dos corpos. Provinham,
decerto, desse calor natural a coragem de Alexandre e o seu gosto pelo vinho.” (Plutarco, 2004, p.16). Sobre
o calor dos corpos, escreve Sennett: “A fisiologia grega justificava direitos desiguais e espaços urbanos
distintos para corpos que contivessem graus de calor diferentes, o que se acentuava na fronteira entre os
sexos, pois as mulheres eram tidas como versões mais frias dos homens.” (Sennett, 2003, p.31). A coragem
portanto era da ordem da natureza, o sujeito nascia ou não com a virtude da coragem. Platão pensava que a
educação deveria servir para selecionar e aperfeiçoar as crianças que já demonstravam o temperamento com
mais bravura. Chega a imaginar que seria útil uma droga que ingerida pelos jovens produzisse alucinações
aterradoras, assim seria possível definir os destemidos para, futuramente, exercer as atividades mais
importantes no governo da cidade (Foucault, 2014, p.89,90). Para Aristóteles, pelo menos na Ética a
Nicômaco, a coragem – que é a mediania, o equilíbrio, entre o temerário e o covarde – parece depender mais
da educação e do hábito. Aliás, aí onde Plutarco vê a origem da coragem, Aristóteles, que viveu antes deste,
identificava um erro de nomeação. O indivíduo de temperamento sanguíneo (o de corpo mais quente) não
teria, para o filósofo peripatético, a verdadeira coragem, simplesmente porque o sanguíneo pensa ser mais
forte do que os adversários e imune aos males. Ora, diz Aristóteles, se observarmos o comportamento dos
“sanguíneos transitórios” (os homens embriagados) veremos que estes podem se passar por corajosos, mas,
na verdade, ignoram o perigo real e se superestimam; são, mais precisamente, intemperantes. Desprezar o
medo não é sinônimo de coragem (2007)).
15 Stalin tomou o Estado na Rússia em 1917, no final de 1919 já existiam 21 lager registrados, ou seja, foram
iniciados bem antes do que os campos nazistas e se estenderam por muitas décadas depois destes. Para uma
82

da teoria. Massacres, sim, sim, mas “foi um erro terrível”. Releiam então
Marx ou Lenin, comparem com Stalin e vocês verão com clareza onde foi que
este se enganou. Tantos mortos, é evidente, só poderiam vir de um erro de
leitura. Poder-se-ia prevê-lo: o stalinismo-erro foi um dos principais agentes
desse retorno ao marxismo-verdade, ao marxismo-texto ao qual assistimos
durante os anos de 1960. Contra Stalin, não escutem as vítimas, pois estas só
teriam seus suplícios para contar. Releiam os teóricos. Eles lhe dirão a verdade
do verdadeiro.
[E em uma passagem anterior a esta, ele afirma]:
A prova decisiva para os filósofos da Antiguidade era sua capacidade
de produzir sábios que, na Idade Média, racionalizassem o dogma; na Idade
Clássica, fundassem a ciência. Na época moderna, é sua aptidão a justificar os
massacres. Os primeiros ajudam o homem a suportar sua própria morte; os
últimos, a aceitar a dos outros. (Foucault, 2012, pp.68-69)

Desviei-me muito. Alexandre, como escrevia, cerca mais uma cidade em algum lugar
perto do que seria nomeado tempos depois como Oriente Médio. Ele vencera um dos maiores
exércitos que a Antiguidade conheceu, o da Pérsia do rei Dario (o pai deste era o rei Xerxes, o
qual subjugou as cidades gregas). Alexandre, o Grande, empreende um longo cortejo
conquistador. Cerca então uma pequena cidade fortificada. Como de costume, dá os termos da
rendição. A cidade, porém, decide guerrear e impõe uma resistência inesperada e infernal aos
exércitos gregos. Após dias e dias de sitiamento, a cidade cai. Os cronistas reais não se
preocuparam em registrar o nome da cidade, mas do homem que orquestrou a luta, sim: Batis.
Ele é morto, finalmente. Alexandre o amarra pelos pés em um carro e os cavalos arrastam o
falecido através dos acampamentos gregos.
Heitor16 e Batis, Aquiles e Alexandre: homens de guerra. O gesto de arrastar é
marcado, como se vê, por um triunfo: vitória no combate. Os arrastadores, caso perdessem,
também poderiam ser arrastados. Seriam despojo de guerra, troféu. A guerra é um “sim”, das
partes envolvidas, para a possibilidade de morrer. E nestes casos, o risco compartilhado de ser
puxado como troféu conquistado.
c) 2 de março de 1757, Paris. Michel Foucault tornou famoso o nome Damiens ao
citar, no início de Vigiar e Punir, um grande relato contendo os detalhes dos procedimentos
punitivos contra este condenado: “e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro
cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas
lançadas ao vento.” (Foucault, 1987, p.9)

descrição detalhada da “política do terror” c.f. Anne Applebaum (2009).


16 Príamo, pai de Heitor, resgatou o corpo do filho no arraial dos gregos. A guerra fora suspensa por dez dias
para as cerimônias fúnebres, narra a Ilíada.
83

Mais um homem arrastado por cavalos, é uma pena de suplício. Damiens é


condenado judicialmente pelo poder de soberania. E no regime de soberania infringir uma lei
é atacar o poder real, é provocar diretamente o corpo e a glória do soberano. Corpo contra
corpo. O poder se abate pesadamente como um raio e através de um espetáculo de dor atualiza
a assimetria entre as duas personagens. Espetáculo das mil mortes, ritual codificado.
O suplício é uma técnica, e não uma raiva descontrolada. Para ser caracterizado
como suplício, uma pena deveria produzir uma quantidade de sofrimento que poderia ser
comparado, graduado, medido e hierarquizado para corresponder ao ato infracional. “Há um
código jurídico da dor.” (Foucault, 1987, p.31)
O suplício faz parte de um ritual que obedece a duas exigências: em relação à vítima
deve ser marcante, deixar no corpo sinais visíveis, identificáveis; e do lado da justiça deve ser
ostentoso, um triunfo espetacular, ele é a manifestação bem visível do poder que pune. Menos
o corpo do condenado, e mais o corpo do rei; menos a força do criminoso, e mais a força do
príncipe; menos o gesto violento do infrator, e mil vezes mais violento - porque infinitamente
mais poderoso - os movimentos do soberano, a tal ponto que se pune e se submete o corpo já
sem vida, as próprias cinzas são “açoitadas”.
O suplício era assim um ritual político por excelência, ele não se interessava em fazer
justiça, mas sobrepujar com exagero uma força que o desafiou, uma força que de algum
modo, por menor que seja o criminoso e ínfimo seu delito, maculou a glória do príncipe. “O
direito de punir será então como um aspecto do direito que tem o soberano de guerrear seus
inimigos: castigar provem desse direito de espada” (Foucault, 1987, p.42) Todo crime é
político, todo criminoso é um personagem político. Damiens é punido como inimigo político,
porque ofendeu o poder real e divino, o castigo será uma vingança pessoal e pública.
Atacando a lei, o infrator lesa a pessoa do príncipe, mesmo que, a princípio, a conduta ilícita
não mirasse diretamente o poder constituído.
A função jurídico-política do suplício, então, é deslanchar um cerimonial para
reconstituir a soberania lesada por um instante, é um ritual de vingança. “A justiça do rei
mostra-se como uma justiça armada. O gládio que pune o culpado é também o que destrói os
inimigos” (Foucault, 1987, p. 43). O soberano aglutina, nesse ritual de lei armada, um duplo
papel: chefe de justiça e chefe de guerra. A execução pública era, então, ao mesmo tempo luta
e vitória. Trava-se mesmo de um combate, desigual, é verdade, mas um combate. E o
84

condenado entrava numa espécie de luta com o carrasco, até o último instante, momentos
antes da execução da pena capital, o destino do julgado não estava decidido.
A personagem principal da execução pública era o povo. O espetáculo era feito para
este, o brilho do rei e o terror de sua força deveriam se abater sobre o povo. Mas acontecia de
o povo se por, não ao lado do carrasco, mas do condenado. Essa fricção entre a justiça do
soberano e o corpo do povo será condenada no final do século XVIII pelos reformadores do
sistema punitivo europeu. Eles identificavam perigos aí, espaços para revoltas. No instante
mesmo da execução, no cadafalso, o rito se carnavaliza e os papéis são invertidos: nesse
momento o condenado pode muito, pois já não tem nada mais a temer, blasfema contra o céu,
insulta os poderosos, xinga o rei. E o povo por vezes se vê nessas personagens com a foice
colada ao pescoço, dores e descontentamentos compartilhados: espancam o carrasco e
libertam o até então condenado. Batalha absurdamente desequilibrada, mas batalha ainda. “A
infâmia se transforma no contrário; a coragem deles, seus gritos e lamentos só podem
preocupar a lei”. E continua o filósofo francês: “Para o povo que aí está e olha, sempre existe,
mesmo na mais extremada vingança do soberano, pretexto para uma revanche.” (Foucault,
1987, p. 51)
Nesta liturgia dos suplícios, no palco do teatro da dor, possibilidade ainda da
emergência da coragem. Os folhetins, as novelas e os almanaques – toda uma literatura
popular que narrava os últimos atos destes criminosos – por vezes fabricavam santos (pois
resistiram de modo incomum dores indescritíveis) e faziam entrar na história heróis negros
(porque forças indomáveis diante de poderes atrozes). Havia ali ainda a possibilidade de
combates.
Heitor, Batis e Damiens. As muralhas de Troia, o calor do Oriente Médio, as ruas de
Paris. Arrastados, mas em batalhas. Arrastados, mas em confrontos. Arrastados, mas
desafiando outras forças, ora simétricas, ora infinitamente desiguais. Arrastados, mas não
apartados da possibilidade de alguma glória, mesmo sob o bafo da morte. Arrastados, mas não
totalmente esquartejados da força da coragem.
Chegará o dia no qual a coragem não achará mais momentos oportunos. Chegará o
dia no qual o poder quererá se movimentar nas sombras para por sob a luz outras personagens,
chegará o dia no qual o governo não incitará mais nenhum combate, chegará o dia no qual o
adestramento substituirá as cerimônias e os jogos, chegará o dia no qual haverá condenados e
condenadas desde antes de nascer, chegará o dia no qual o poder não se preocupará com a sua
85

própria força, nem com a sua glória, mas se encarregará da vida de todos e de cada um, não
mais vingança, nem força desmedida, mas cuidado, cuidado através da polícia. Este dia
chegou. Faz tempo.
Na relação de soberania, o soberano recolhe produtos, colheitas,
objetos fabricados, armas, força de trabalho, coragem; […].
No exército, tal como existia sob essa forma que chamarei de poder
de soberania, existia algo que poderíamos chamar de exercícios: eram coisas
como as justas, os jogos. Isto é, regularmente, os guerreiros, pelo menos os
que eram guerreiros por estatuto, isto é, nobres, os cavaleiros, praticavam a
justa, etc. Em certo sentido, pode-se interpretar isso como uma espécie de
exercício, como um condicionamento do corpo; mas era essencialmente, creio,
uma espécie de repetição de bravura, […]. (Foucault, 2006, p.53, 60 – itálicos
meus)

Assim é aberto o capítulo “Os Corpos Dóceis”, ele integra o Vigiar e Punir:
Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal
do soldado. O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que
leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu
orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade
que deve aprender aos poucos o ofício das armas – essencialmente lutando –
as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam,
em boa parte, de uma retórica corporal da honra […].
Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se
fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que
se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação
calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto,
torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo
dos hábitos; […].
[e mais adiante]:
Desde o fim do XVII, o problema técnico da infantaria foi de
libertar-se do modelo físico da massa. Armada de lanças e mosquetões –
lentos, imprecisos, que não permitiam ajustar um alvo e mirar – uma tropa era
usada ou como um projétil, ou como um muro ou uma fortaleza; “a temível
infantaria do exército da Espanha”; a repartição dos soldados nessa massa era
feita principalmente segundo sua antiguidade e valentia; no centro,
encarregados de fazer peso e volume, de dar densidade ao corpo, os mais
novatos; na frente, nos ângulos ou pelos lados, os soldados mais corajosos ou
reputados os mais hábeis. […]
[Já no XVIII] O corpo singular tornou-se um elemento, que se pode
colocar, mover, articular com outros. Sua coragem ou força não são mais as
variáveis principais que o definem; mas o lugar que ele ocupa, o intervalo que
cobre, a regularidade, a boa ordem segundo as quais opera deslocamentos. O
homem de tropa é antes de tudo um fragmento de espaço móvel, antes de ser
uma coragem ou uma honra. (Foucault, 1987, pp.117,137,138-139 – itálicos
são meus)

Da coragem à boa ordem.


86

d) 1887, Nietzsche escreve em três dissertações as procedências dos preconceitos


morais. Ele se dá os seguintes problemas: “Sob que condições o homem inventou para si os
juízos de valor ‘bom’ e ‘mau’? E que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o
crescimento do homem? São indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou,
ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza,
seu futuro?” (Nietzsche, 2009, p.9)
São conhecidas as oposições que atravessam as obras deste filósofo, principalmente a
ligada ao modo de valoração. Ele usa a noção de tábua de valores de origem aristocrática (esta
é afirmativa da vida, imanente, guerreira, nobre e entrou em declínio na Europa
principalmente com a emergência do cristianismo) e a tábua de valores de origem escrava ou
plebeia (destes nasce propriamente os valores morais, é a famosa rebelião escrava não moral,
e é marcada por um gesto de renúncia, um não para a vida. A modernidade seria marcada pela
vitória dos valores destes doentes de vontade). O texto, como de costume neste autor, é muito
complexo e joga com várias oposições.
Nestas três dissertações por duas vezes ele atrela a origem de valorações diferentes a
determinada cor. Destaco duas passagens. Na primeira ele fará um levantamento filológico
em grego e em latim das palavras “bom” e “mau”.
[…] nas palavras e raízes que designam o “bom”, transparece ainda
com frequência a nuance cardeal pela qual os nobres se sentiam homens de
categoria superior. É verdade que, talvez na maioria dos casos, eles designam
a si mesmos conforme simplesmente a sua superioridade no poder (como “os
poderosos”, “os senhores”, “os comandantes”), ou segundo o signo mais
visível desta superioridade, por exemplo, “os ricos”, “os possuidores” (este o
sentido de arya, e de termos correspondentes em iraniano e eslavo. Mas
também segundo um traço típico de caráter: e é este caso aqui que nos
interessa. Eles se denominam, por exemplo, “os verazes”; primeiramente a
nobreza grega, cujo porta-voz é o poeta Teógnis de Megara. A palavra
cunhada para este fim, bom, nobre, significa, segundo sua raiz, alguém que é,
que tem realidade, que é real, verdadeiro; depois, numa mudança subjetiva,
significa o verdadeiro enquanto veraz: nesta fase da transformação conceitual
ela se torna lema e distintivo da nobreza, e assume inteiramente o sentido de
“nobre”, para diferenciação perante o homem comum mentiroso, tal como
Teógnis o vê e descreve – até que finalmente, com o declínio da nobreza, a
palavra resta para designar a aristocracia espiritual, tornando-se como que
doce e madura. Na palavra mau, feio, assim como em tímido, covarde (o
plebeu, em contraposição ao bom), enfatiza-se a covardia: isto sugere talvez
em que direção se deve buscar a origem etimológica mau, feio, passível de
interpretações diversas. O latim malus (ao qual relaciono negro) poderia
caracterizar o homem comum como homem de pele escura, sobretudo como
de cabelos negros (“hic niger est”)17, como habitante pré-ariano do território

17 Em nota o tradutor Paulo César escreve: “Hic niger est significa literalmente ‘esse é negro.’” (p.143).
87

da Itália, que através da cor se distinguia claramente da raça loura, ariana, dos
conquistadores tornados senhores; ao menos o gaélico me oferece um caso
correspondente – fin (por exemplo, no nome Fin-Gal)18, o termo distintivo da
nobreza, por fim do homem bom, nobre, puro, originalmente o homem louro,
em contraposição aos nativos de pele escura e cabelos negros. Os celtas, diga-
se de passagem, eram sem dúvida uma raça loura; […]. (Nietzsche, 2009, pp.
19, 20 – itálicos no original)

Na segunda dissertação, intitulada “Culpa, má-conciência e coisa afins”, ele fará uma
relação entre memória e dor, e a progressiva vergonha, diante do prazer na crueldade (infligir
dor), que o homem europeu desenvolveu ao longo dos séculos, uma sublimação dos instintos
agressivos, a moleza tomou conta da vida. Escreve ele:
Talvez então – direi para consolo dos fracotes – a dor não doesse
como hoje; ao menos é o que poderia concluir um médico que tratou negros
(tomados aqui como representantes do homem pré-histórico -) vítimas de
graves infecções internas, que levariam ao desespero os mais robustos
europeus – o que não acontece com os negros. (Nietzsche, 2009, p. 52 –
itálico no original)

Vê-se com facilidade a força da tese do filósofo alemão, marcação do corpo e


memória, nos trabalhos de Deleuze e Guattari (O anti-édipo principalmente) e em Michel
Foucault, basta ler a diferença que este faz entre o poder de soberania (produtor de sofrimento
público e o ritual de marcação dos corpos) e o poder disciplinar (vergonha de punir, um pudor
em castigar tocando o corpo, e outro estatuto de corpo).
Muito papel já foi gasto na história da filosofia com o intuito de situar (a favor ou
contra) o pensamento de Nietzsche em relação aos terrores nazistas. Não tenho competência
nem é meu objetivo retomar esta discussão. O que importa é observar duas coisas: o mau e a
insensibilidade a dor associado ao negro. Se estes filósofos estiverem corretos, o Homem se
tornou sensível a dor, não se alegrando mais com os horrores trágicos que tanto alegravam,
segundo Nietzsche, os poetas antigos, como Homero. O problema é pensar o que acontece
com quem é atrelado ao mau e à pré-história do Homem. Desprezar o pathos agressivo, a vida
enquanto força capaz de se chocar com outras forças, não faz com que os “instintos
agressivos” deixem de existir. Nos homens de “hipercultura”, estes instintos podem se aninhar
no plano imaginativo e psíquico, isto tudo conforme Nietzsche. O que seria o Cristo
ensanguentado, crucificado, agonizante e suspenso nos altares das igrejas, nas paredes das
escolas, casas e tribunais, senão a crueldade travestida? (Nietzsche chamará de “as nostalgias

18 Em nota o tradutor: “Fin-Gal: herói mítico irlandês do século III a. C. (p. 143).
88

da cruz”), o que seriam as vivissecções de animais interrogados com o bisturi para a extração
de respostas científicas?
Pauline terá seu segundo bebê. Ela é uma personagem do romance O olho mais azul
escrito pela grande autora norte-americana Toni Morrison. Pauline, uma mulher negra, faz a
seguinte reflexão:
(…) Me puseram num quarto grande, com um bando de mulher. As
dor tava vindo, mas não muito forte. Um médico baixinho e velho veio me
examinar. Ele tinha um montão de instrumento. Pôs uma luva, passou um
creme na mão e enfiou a mão entre as minhas perna. Depois que ele foi
embora, vieram outros médico. Um velho e outros moço. O velho tava
ensinando os moço sobre bebês. Mostrando como fazer. Quando chegou a
minha vez, ele disse que com essas mulher vocês não tem problema algum.
Elas dão à luz logo e sem dor. Exatamente como as égua. Os moço deu um
sorrisinho. Olharam a minha barriga e entre as minha perna. Não me
disseram uma palavra. Só um olhou para mim, pro meu rosto. Eu encarei ele,
ele baixou a vista e ficou vermelho. Acho que ele entendeu que eu talvez não
era uma égua parindo. Mas os outros não entendeu, foram em frente. Eu vi
eles conversando com as mulher branca: ‘Como você está se sentindo? Vai
ter gêmeos?’. Conversa à toa, claro, mas conversa boa. Conversa boa e
atenciosa. (…) O que é que eles pensava? Que só porque eu sabia como ter
um bebê sem fazer espalhafato o meu traseiro não tava repuxando e doendo
como o delas? E também aquele médico não sabia o que estava falando. Ele
nunca deve ter visto uma égua parir. Quem disse que ela não senti dor? Só
porque não grita? Só porque ela não sabe gritar, eles pensa que a dor não
está lá? Se eles olhasse no olho dela e visse os globo arregalado, visse o
olhar aflito, eles ia saber. Bom, o bebê veio. Grande e saudável. Ela era
diferente do que eu tinha imaginado. (…) Um bebê esperto. Eu gostava de
olhar pra ela. Eles faz um barulhinho guloso. O olho meigo e úmido.
Cruzamento de cachorrinho e homem morrendo. Mas eu sabia que ela era
feia. A cabeça coberta de um cabelo bonito, mas, meu Deus, como ela era
feia”. (Morrison, 2003, pág.126 - itálico no original)

16 de março de 2014. Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro. É um domingo pela


manhã. Neste mesmo dia, 11:33 da manhã, o jornal Extra online noticia:
Uma moradora da comunidade Congonha, ao lado do Cajueiro, em Madureira,
Zona Norte do Rio, foi morta na manhã de domingo, após ser alvejada por
[um tiro] durante uma operação policial do 9ª BPM (Rocha Miranda). De
acordo com moradores, a auxiliar de limpeza Cláudia Ferreira da Silva, de 38
anos, saia para comprar pão quando foi atingida. Ela foi levada ao Hospital
Carlos Chagas, mas não resistiu.

Revoltados com a morte, moradores da comunidade fizeram protesto e


fecharam a Av. Edgar Romero.
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Cláudia era conhecia como Cacau na comunidade, tinha quatro filhos e criava
outros quatro sobrinhos.

- Encontrava a Cacau todos os dias às 4h45min, no ponto de ônibus. Ela era


uma pessoa muito trabalhadora e querida por todos. Isso não pode ficar assim
- diz Ana Lúcia Souza Lima, vendedora de 33 anos, que era amiga de
Cláudia19.

Uma foto de pessoas fechando uma rua acompanha a informação absolutamente


banalizada de tão frequente. No dia seguinte, 17-03, as seis da manhã, três jornalistas
mulheres (Carolina Heringer, Ligia Modena e Roberta Hoertel) escrevem outra reportagem
sobre o mesmo acontecimento, agora, porém, não há uma foto mas um vídeo.
Eram cerca de 9h desse domingo, quando uma viatura do 9º BPM (Rocha
Miranda) descia a Estrada Intendente Magalhães, no sentido Marechal
Hermes, na Zona Norte do Rio, com o porta-malas aberto. Depois de rolar lá
de dentro e ficar pendurado no para-choque do veículo apenas por um pedaço
de roupa, o corpo de uma mulher foi arrastado por cerca de 250 metros,
batendo contra o asfalto conforme o veículo fazia ultrapassagens. Apesar de
alertados por pedestres e motoristas, os PMs não pararam. Um cinegrafista
amador que passava pelo local registrou a cena num vídeo.
Em depoimento à Polícia Civil, os PMs disseram que a mulher foi
socorrida por eles ainda com vida, e levada para o Hospital Carlos Chagas, em
Marechal Hermes, mas não resistiu. Já a secretaria Estadual de Saúde
informou que a paciente já chegou à unidade morta. Ela levou um iro no
pescoço e outro nas costas.

- Foi revoltante ver aquele corpo pendurado. Eles iam ultrapassando outros
carros, e o corpo ia batendo. As pessoas na rua gritavam, tentando avisar os
policiais, mas eles não ouviam. Só pararam por causa do sinal e, aí,
conseguiram ouvir o que as pessoas diziam. Dois policiais, então, desceram da
viatura e puseram o corpo de volta no carro - disse o cinegrafista.

A cena começou a ser registrada próximo ao número 796 da Estrada


Intendente de Magalhães, na altura da Rua Boiacá, e foi filmada
aproximadamente até o 878, onde fica uma agência da Caixa Econômica

19 https://extra.globo.com/casos-de-policia/moradores-da-comunidade-de-congonha-fazem-protesto-apos-
morte-de-mulher-durante-operacao-policial-11892904.html
90

Federal. A irmã de Claudia, Jussara Silva Ferreira, de 39 anos, ficou chocada


quando viu a imagem do corpo da irmã sendo arrastado. Revoltada, ela quer
que os policiais sejam punidos:

- Acham que quem mora na comunidade é bandido. Tratam a gente como se


fôssemos uma carne descartável. Isso não vai ficar impune. Esses PMs
precisam responder pelo que fizeram.

Antes mesmo de saberem o que havia acontecido com Claudia, familiares


tinham desconfiado de que algo pudesse ter ocorrido, já que viram o corpo
dela em carne viva ao chegarem no hospital.

- Achamos estranho quando vimos o corpo daquele jeito. Desconfiamos de


que tinha acontecido no trajeto até o hospital - relatou Diego Gomes, de 30
anos, primo de Claudia.

Thaís Silva, de 18, filha da vítima e a primeira a encontrá-la morta, já tinha


reclamado até mesmo da forma com que os policiais do 9º BPM a socorreram:

- Eles arrastaram minha mãe como se fosse um saco e a jogaram para dentro
do camburão como um animal - revoltou-se a jovem.

Mãe de quatro filhos, Claudia, conhecida no Morro da Congonha como Cacau,


era auxiliar de serviços gerais do Hospital Naval Marcílio Dias, no Lins.
Nascida e criada em Madureira, ela ainda cuidava de quatro sobrinhos. A
vítima faria 20 anos de casada com o vigia Alexandre Fernandes da Silva, de
41 anos, em setembro deste ano.

Em nota, a assessoria de imprensa da PM afirmou que os policiais do 9º BPM


trocaram tiros com criminosos durante uma operação no Morro da Congonha,
e um suspeito chegou a ser baleado. Ainda segundo a assessoria, os policiais
encontraram a vítima baleada na Rua Joana Resende, ponto mais alto da
comunidade. Ela foi levada para o Hospital Carlos Chagas, mas não resistiu. A
29ª DP (Madureira), que investiga o caso, esteve no local para perícia. Dois
fuzis usados pelos policiais foram recolhidos para serem periciados.
91

Revoltados, moradores do Morro da Congonha fizeram protestos pela manhã e


também à noite. Eles chegaram a fechar a Avenida Edgar Romero. 20

Agora é uma mulher arrastada. Uma mulher negra. Está lá a imagem, Claudia de
blusa vermelha e um short jeans, colada no asfalto e presa ao carro.

Heitor, Batis, Damiens e Claudia. Claudia despedaçada. Não há absolutamente nada


parecido entre os três primeiros e a mulher negra do morro da Congonha. Não há combate,
não há guerra, não há batalha, não há honra, não há vingança, não há glória, não há revanche,
não há gestos públicos, não há inimigos. Claudia fora arrastada enquanto era levada para o
hospital. Era uma operação de cuidado, era a favor da vida dela. Era uma medida de proteção,
salvamento. Não a declaração pública e ritual de hostilidades, não a distribuição dos gestos
violentos. Não. Os homens foram até o morro para protegê-la e a transpassaram com tiros de
fuzil para protegê-la e dilaceram seu corpo no asfalto para protegê-la. Tudo deveria ser feito
nas sombras. Os únicos que deveriam aparecer após a operação era o rosto dos presos e dos
mortos em confronto. Ninguém quer por seu nome nesse ato, os policiais escodem seus rostos,
o comandante deles se esquiva da entrevista. Todos sabem que não há lugar aí para nenhuma
glória. Se tudo saísse como o esperado, ela deveria ser executada por anônimos e morrer
anonimamente. A coragem se despedaça, a bio-política cresce. Claudia é despedaçada. O mau,
a pré-história, o perigo. Não é guerra, é cura.

20 https://extra.globo.com/casos-de-policia/viatura-da-pm-arrasta-mulher-por-rua-da-zona-norte-do-rio-veja-
video-11896179.html
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Indez

Indez contra o desprezo, o julgamento. Indez contra a subjetividade branca que


vampiriza a coragem de viver. Indez contra o mar morto da moral. Proponho agora uma
conversação entre o solo teatral Indez: a tentativa do ovo e a noção de Sistema Físico da
Crueldade construído por Artaud-Deleuze.
Uma conversação pressupõe ouvir. Ela exige uma abertura, uma brecha, silêncios,
buracos nas fronteiras. Tenta-se fazer núpcias entre Deleuze-Artaud e o solo Indez. As núpcias
diferem de um casal, “já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-feminino,
homem-animal, etc. Uma conversa poderia ser isso” (Deleuze & Parnet, 2004, p.12). Arte ou
filosofia? Pouco importam as distinções disciplinares. Trata-se de propor uma leitura de
possíveis entrelaçamentos, alianças, tessituras, ressonâncias e ecos entre esses dois trabalhos.
Linhas ou fios fazem um traçado. Destacam-se alguns fios na tessitura deste ovo escrito. Fio
Indez, fio Deleuze-Artaud contra a subjetividade branca.
Indez é um solo criado e encenado pela atriz Sabrina Valente. Ele entrou em cena em
novembro de 2015 no Espaço Preto (sala localizada na Escola de Belas Artes da UFMG).
Pode-se dizer que é um espetáculo de fronteira, na medida em que não é possível localizá-lo
em um determinado segmento artístico: percebe-se movimentos característicos do Butô
(dança de origem japonesa criada depois da Segunda Guerra); elementos próprios da arte da
performance; do teatro; o uso de danças e cantos de povos indígenas brasileiros; música
indiana. Foi possível acompanhar, no decorrer do ano de 2015, a atriz na criação deste solo.
Daí resultou a tentativa desta análise.
Indez ou endez, segundo o dicionário Houaiss, é um ovo usado como chamariz para
as galinhas virem fazer postura. Ele funciona como um sinal. É um ovo que serve para que a
galinha ponha outros ovos. Endez também serve para se referir a pessoa de extrema
suscetibilidade ou delicadeza, significa criança manhosa e, por fim, aquilo que prejudica,
aborrece.
93

O ovo é um aglomerado de forças não-formadas, uma potência informe, um caldo de


energia. Mas ele pode entrar em relações com outras forças, pacificadoras, colonizadoras, e
apodrecer, não crescer, não vingar, não se efetuar. Ser desprezado. Entendo a imagem do ovo
como as forças que compõem a vida humana, aquilo que outrora era chamado de bíos, e
aquilo que Reich denominava de impulso vital. Tentativa de produção de uma obra, pode-se
compreender tentativa de feitura de si. Tornar-se o que é.
Pode-se ler o solo Indez como um bebê que luta contra o julgamento. Ele rebela-se
contra o juízo, contra a vontade insana de julgar dos sacerdotes. Indez é a força da vida contra
as práticas de mortificação da existência cunhadas pela subjetividade branca.
Em homenagem a A. Artaud, o filósofo francês G. Deleuze escreveu um texto
intitulado Para dar um fim ao juízo. Por isso o uso do hífen ligando os dois nomes. G.
Deleuze descreve ali a doutrina do juízo e, contra esta, discorre sobre os princípios do Sistema
físico da crueldade. Deleuze se refere inúmeras vezes aos trabalhos de Artaud, mas não se
restringe às proposições do criador do Teatro da Crueldade. Para descrever o sistema da
crueldade, o filósofo faz uso também das construções de outros pensadores, tais como
Nietzsche, F. Kafka, D. H. Lawrence e Espinoza.
Por que abordar a doutrina do juízo? Porque ela se opõe à criação, à invenção de
novos modos de existência, à proliferação da vida diferenciada. Indez é uma tentativa de
criação. Logo, ela se debate com os muros erigidos pelos sacerdotes. Em uma carta escrita em
1888 - e retomada por Artaud em 1947 -, o pintor Van Gogh escreve com destreza sobre o
sofrimento no processo de criação e indica como superá-lo.
O que é desenhar? Como é que se chega a isso? É a ação de
abrir uma passagem através de um muro de ferro invisível, que parece
se encontrar entre o que se sente e o que se pode. Como se deve
atravessar este muro, pois de nada serve golpeá-lo fortemente; deve-se
minar este muro e atravessá-lo com o auxílio de uma lima, lentamente
e com paciência, a meu ver. (V. Gogh apud Artaud, 2008, p. 274)

Indez é essa lima. O muro é como uma boca da qual saem dois cantos, duas vozes no
momento da criação: a voz organizada e com mau hálito do sacerdote, e o canto desarticulado
de um bebê. Criar é ouvir o bebê, acolhê-lo, captá-lo, retirá-lo do seio do muro. “É como o
lamento de um abismo sendo aberto: a terra ferida grita, mas vozes se levantam, profundas
como o fundo do abismo e que são o fundo do abismo gritando” (Artaud, 1985, p. 79). Por
94

outro lado, da psicologia do sacerdote, que sempre quer tudo julgar, deve-se tentar fugir.
“Morte, morte, esse é o único julgamento, e o que faz do julgamento um sistema. Veredito”
(Deleuze; Guattari, 1996, p. 45).
A doutrina do julgamento se desenrola desde a tragédia grega e deságua na filosofia
moderna. O primeiro a se rebelar contra tal doutrina foi Espinoza. Artaud, que padeceu
terrivelmente do juízo implacável dos psiquiatras, foi um dos que deu continuidade a essa
revolta. Em uma Carta aos médicos dos manicômios ele escreve,
[…] nos rebelamos contra o direito concedido a homens – limitados ou não –
de sacramentar com encarceramento perpétuo suas investigações no domínio
do espírito.
E que encarceramento! Sabe-se – não se sabe o suficiente – que os
hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos
fornecem uma mão-de-obra gratuita e cômoda, onde os suplícios são a regra, e
isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da
ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra. (Artaud,
1985, p. 30)

As mulheres e os homens só julgam ou são julgados quando suas existências estão


submetidas a uma dívida infinita. A doutrina do juízo é composta pelo infinito da dívida, ela é
impagável, e a existência é lançada numa imortalidade. Nem a morte livra as pessoas da
dívida.
O juízo esquadrinha a existência em lotes. Sejam estes realizados supostamente por
deuses ou efetivamente pelos homens. O juízo supõe uma relação latifundiária com a vida. O
essencial é que para seu funcionamento haja formas superiores, transcendentes, que sirvam
como medida para o julgamento. O homem como medida para a mulher, o adulto para a
criança, o são para o louco, o branco para o preto, o rico para o pobre, a vida do homem para
os animais, etc.
Mas não para aí. O cristianismo levou às últimas consequências a prática do juízo.
No “trágico moderno” (expressão de Deleuze, 1997), deve-se lotear a si mesmo e se punir. O
poder pastoral fez de cada pessoa uma ovelha. Daí a expressão “psicologia do sacerdote”, pois
o sacerdote não abre mão das formas e seus valores superiores e o juízo se tornou uma
faculdade implantada no corpo. Cada um tem o seu sacerdote. Viver, portanto, é se julgar e
julgar os outros. A existência julgada só pode repetir o mesmo, identificar-se, espelhar o muro
que a constrange. Criar talvez seja afastar-se desse canto de morte e esposar as forças da vida.
O sistema da crueldade contra o juízo. Indez contra a subjetividade branca.
95

Serão expostas cinco características do sistema físico da crueldade e seus


cruzamentos com a encenação Indez.
A crueldade contra o suplício infinito. Se a dívida da existência é eterna, o suplício é
infinito. O inferno tem que ser destruído. Em outras palavras, os valores transcendentes
usados para desqualificar a vida são atacados. As algemas que atam a alma imortal aos juízos
pode ser rachada. Como? Através da crueldade. E crueldade, ensina Artaud, “significa extirpar
pelo sangue e através do sangue a deus” (Artaud, 1985, p. 160). Contra o inferno, contra deus,
contra o céu, Artaud invoca o osso e o sangue. Esses elementos explicitam a finitude do
corpo, escancaram a relação temporária que esse tem com as forças do mundo, com os
objetos. Crueldade tem o mesmo radical de cru (Rossett, 1989). Designa o indigesto, o não
cozido, não ornamentado, aquilo que pode provocar vômito e repulsa.
A criação Indez, é possível interpretar em conversações com Artaud-Deleuze, tenta
limar o muro invisível e expor seu encontro com a água, com a banheira de ferro, com as
forças da terra, com a música, com o tempo, com os alimentos em decomposição, com a
história da mulher, com a memória de povos indígenas, com as lágrimas da atriz, etc. “O
sistema da crueldade enuncia as relações finitas do corpo existente com forças que o afetam,
ao passo que a doutrina da dívida infinita determina as relações da alma imortal com os
juízos” (Deleuze, 1997, p.145). Indez não tolera viver sem corpo. Ela diz sim à natureza
dolorosa e trágica do viver, essa é a crueldade irremediável do real. Como Kali, Indez não
abre mão do sangue, do colar de crânios e do fogo para combater o Invisível.
Eu renego o batismo e a missa.
Não existe ato humano
no plano erótico interno
que seja mais pernicioso que a descida
do pretenso jesus-cristo
nos altares.

Ninguém me acredita
e posso ver o público dando de ombros
mas esse tal cristo é aquele que
diante do percevejo deus
aceitou viver sem corpo
quando uma multidão
descendo da cruz
à qual deus pensou tê-los pregado há muito tempo,
se rebelava e armada com ferros,
sangue,
96

fogo e ossos
avança desafiando o Invisível
para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS.
(Artaud, 1985, pp. 153, 154 – destaque no original)

É possível perceber em cena esse sim à crueldade do real quando a atriz sai trêmula
de dentro de uma banheira de ferro, como um potro recém-nascido, e desaba de cara no chão
coberto de comida em decomposição. É como se ela mergulhasse no meio dos restos de uma
grande oferenda numa encruzilhada. E ali as forças de Indez se debatem com outras em
decomposição. Não o belo texto recitado com voz empostada, mas o corpo nu contorcido,
arrastando-se entre frutas frescas e comida podre, um corpo trêmulo entre pedras grossas e
peças de metal tomadas pela ferrugem.
A cena de abertura é uma passagem lenta do corpo da atriz saindo de dentro da
banheira cheia de água para o chão, a terra. Os seios tocando a argila, debatendo-se nos
alimentos produzidos pela terra. Sensualidade e nojo. Move-se como um filhote com suas
células novas em meio a outras perecendo. Um sim à vida é um sim à crueza da finitude.
A embriaguez contra o sonho. Os juízes gostam da atmosfera do sonho. As
personagens dos textos de Kafka sempre estão mergulhadas em uma penumbra onírica. A vida
cotidiana se dá como em um sonho, uma história avança à revelia daquele que sonha. Isso
acontece com as personagens do Processo. Todos, herdeiros de Apolo. Ao sonhar nada novo
acontece, ele é apenas a continuação, o rebatimento exangue, do estado de vigília no qual
predomina o juízo. No escrito O teatro de serafim, Artaud faz uma afirmação aparentemente
paradoxal: “Quando vivo não me sinto viver. Mas quando represento, então sinto que existo”
(1983, p. 82). No teatro ele cria, no teatro ele inventa, no teatro ele existe. À vida apartada do
que ela pode, separada, loteada, cabe apenas seguir modelos, representar formas, responder
aos códigos morais preestabelecidos. A existência que sonha, obedece. “O sonho ergue os
muros, nutre-se da morte e suscita as sombras, sombras de todas as coisas e do mundo,
sombras de nós mesmos. É o sonho que encerra a vida nessas formas em nome das quais a
julgamos” (Deleuze, 1997, p. 147).
Para o xamã yanomami Davi Kopenawa,
Os brancos nos chamam de ignorantes só porque somos gente
diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e
obscuro. Não conseguem se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a
morte. […] Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito,
mas só sonham consigo mesmos. (Kopenawa & Albert, 2015, p.190).
97

Diagnóstico cortante sobre a vida onírica ocidental. Os brancos dormem muito e


quando sonham, sonham de modo fraco, curto, com pouca distância. Encontram nada mais do
que a si mesmo, presos em um jogo de espelhos. Os yanomamis, segundo Kopenawa,
procuram através de seus sonhos ultrapassar as fronteiras humanas e se relacionar com outras
agências dispersas pelo cosmos. O Homem Branco por sua vez não sonha com o outro, mas
com o ouro. Como o homem ocidental tem muito medo da morte, ele se agarra à mercadoria e
seus tribunais que vão para além da vida.
O antídoto contra o juízo é a embriaguez. O sono sem sonho. O êxtase dionisíaco.
São remédios os cantos da floresta mexicana descritos por Lawrence (Deleuze, 1997); os ritos
do peiote em Artaud, sem dúvida as expedições guerreiras dos selvagens descritas por
Gandavo e Staden. Na embriaguez dionisíaca a faculdade de comparar formas pode ser
enfraquecida e o juízo suspenso. “O teatro é uma grande vigília na qual sou eu quem conduz a
fatalidade” (Artaud, 1983, p. 83). Quem já tentou criar algo, seja uma peça, um texto ou uma
música sabe muito bem que pequenas ou grandes doses de embriaguez são necessárias a cada
passo. Se assim não for, nada acontece. A obra fica esquartejada em elementos, ou lotes,
presos por fios congelados. Isso é sinal de que os cães da consciência sufocaram os gritos do
bebê. Os dentes daqueles são acusações afiadas: não estudou o bastante, não está bonito,
preguiçosa, covarde, descompromissado, incapaz etc. Aí, não há música, não há texto, não há
cena.
Embriagar-se não é necessariamente tomar um porre nem está constantemente
entorpecido. Talvez se embriagar seja traçar uma grande vigília através de experimentos
cotidianos, minuciosos. Desterritorializar os conformismos, os automatismos, os hábitos
encalacrados no pensamento e nos poros da pele, na linguagem e nas fibras musculares, nos
olhos e nos ouvidos. A artista ou o artista embriaga-se na sua preparação: nos ensaios, nas
leituras, nos exercícios, assistindo outros espetáculos, nas conversações com outras artistas
etc. E oferta através do seu trabalho um pouco de antídoto contra o sonho. Talvez o êxtase que
a arte proporciona possa trazer à memória de cada um que é possível pôr as mãos nas suas
próprias fatalidades. Indez por meio da dança, do silêncio, da música e do inesperado propõe
um sono sem sonho. Uma insônia. Toda a encenação tem uma atmosfera ritualística. O espaço
é preenchido por música clássica indiana e longos períodos de silêncio. Num determinado
98

momento o som fica mais rápido e mais alto e se tem a impressão que a atriz entra numa
espécie de transe.
Um teatro que em primeira instância, se apresente como uma
extraordinária força de derivação. Um teatro que produza transes
como as danças dos Derviches e dos Issauas, que se dirija ao
organismo por meios precisos, pelos mesmos meios das músicas
curativas de certos povos, as quais admiramos em discos, mas somos
incapazes de refazer.
Proponho qualquer coisa para sair do marasmo, em vez de
continuar reclamando desse marasmo e do tédio, da inércia e da
estupidez de tudo. (Artaud, 1983, 75).

A vitalidade contra a organização. A artista Lygia Clark escreveu em uma carta em


1963: “Urge ter coragem de renunciar as artificiosas compensações, urge ser despida,
descascada até a nossa raiz, urge olhar para dentro, com medo, com pavor.” (Carneiro, 2004,
p. 89)Apostar na vitalidade não organizada, acentua Lygia, exige coragem. Por que? Porque
os lotes ou os órgãos dão segurança. Eles não exigem nada: basta obedecer, mas exigem tudo:
a vida. E romper os lotes, fazer ouvido de mercador diante dos cantos dos sacerdotes, e suas
compensações, dá medo. Pavor mesmo. A coragem aquece os corpos daquelas e daqueles que
esposam o desconhecido e tentam parir com dores e risos a própria existência. Coragem de
viver. Em uníssono, Artaud e Lygia apontam a urgência do vitalismo. A urgência de uma
necessidade explosiva. Que necessidade é esta? Com uma poesia afiada, o pensador do Teatro
da Crueldade desfia a malha que enreda a vida.

[…] o espaço do possível


foi me apresentado
um dia
como um grande peido
que eu tivesse soltado;
mas nem o espaço
nem a possibilidade
eu sabia exatamente o que fossem,

nem sentia necessidade de pensar nisso,


eram palavras
inventadas para definir coisas
que existiam
ou não existiam
diante da
premente urgência
99

de uma necessidade:
suprimir a ideia,
a ideia e seu mito
e no seu lugar instaurar
a manifestação tonante
dessa necessidade explosiva:

dilatar o corpo da minha noite interior,


do nada interior
do meu eu

que é noite,
nada,
irreflexão,

mas que é explosiva afirmação


de que há
alguma coisa
para dar lugar:

meu corpo.
(Artaud, 1983, p. 157)

A organização não abre mão das ideias. Estas subjugam o corpo, o mundo. São as
formas superiores, inicialmente exteriores ao corpo, que loteiam a vida. Cada existente é
radicalmente uma singularidade. Os sacerdotes não toleram isso. A ideia é uma generalização,
esta mania do Homem Branco (Castro, 2016), uma laminação das singularidades. Uma
mulher, singular, tem que responder A mulher, ideia. Uma criança será submetida e julgada
pela generalidade A criança. Um índio será esquadrinhado a partir da ideia O índio. E assim
ao infinito. “O juízo implica uma verdadeira organização dos corpos, através da qual ele age:
os órgãos são juízes e julgados, e o juízo de deus é precisamente o poder de organizar ao
infinito.” (Deleuze, 1997, p. 149)
Na performance e no teatro performativo, através do trabalho de alguns artistas, a
urgência necessária apontada por Artaud pode ser percebida. Encaram-se o pavor e o medo. O
corpo grita. Os artistas tentam explodir suas funções. No artigo Corpo visual e corpo
performático, Anita Koneski (2009) escreve a respeito do corpo em escombros.
O corpo da fala do espaço da arte na contemporaneidade
[...] vai envolver-se nos gestos próprios de seu tempo, nos contatos
passageiros, na exacerbação das sensações corporais, na fixação dos
odores, sejam eles quais forem, num misto de prazer e repúdio dos
100

líquidos corporais. A abjeção entra aqui como leitura mais apropriada


para o corpo na arte da contemporaneidade. O corpo abjeto, seu
último estágio reflexivo na contemporaneidade, assume seus
contornos de corpo 'Outro'. Não se esquiva e expõe-se
performaticamente com seus dejetos, pruridos, sangue e, enfim, em
seus degradantes aspectos, para uma sociedade que sempre lutou para
preservá-lo do caótico e da desordem, no intuito de manter a ordem.
(pp. 254, 255).

A vitalidade do corpo se rebela contra as tecnologias de poder que o docilizam. Tal


empreitada exige coragem e “um gosto pelo risco” (Féral, 2008, p.207). A encenação
contemporânea com frequência lança mão da exposição nua e crua do corpo da atriz-
performer colocando em risco ou em perigo a integridade física dos próprios atuadores. “É
inegável a matriz artaudiana e de experimentos como os do Living Theater nessa busca de um
teatro 'vivo' e não-representado” (Araújo, 2008 p. 254). Mas não há somente o risco físico
para aquela e aquele que tem vontade de criar. A obra como acontecimento pode não se
efetivar. Um aborto. O procedimento da doutrina do juízo, julgar, pode roubar todo o oxigênio
exigido pelo trabalho. Há um terceiro risco, as forças mobilizadas na gestação podem arrastar
a artista em uma linha de fuga veloz, aí ela pode se tornar linha de loucura, linha suicidária,
um canto de morte. Pode-se tornar um farrapo em um hospital. Atravessar muros, romper
cascas, ruir subjetivações exige prudência. Arte e vida nessa altura não se distinguem.
Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um osso,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne. (Artaud, 1983, p.
151)

E o que grita esse corpo em risco, em escombros? Que o corpo sem órgãos é um
corpo afetivo, intensivo, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes. Uma poderosa
vitalidade não-orgânica o atravessa. E o que é vitalidade não-orgânica? “É a relação do corpo
com forças ou poderes imperceptíveis que dele se apossam ou dos quais ele se apossa, como a
lua se apossa do corpo de uma mulher” (Deleuze, 1997, p.149).
Indez talvez indique a necessidade de dar passagem aos gritos do corpo, a fala
corporal, não para que a artista busque seu eu, seus sentimentos ou alguma verdade interior.
101

Mas um corpo selvagem, expressivo, não rostificado, não dominado por agenciamentos de
poder. Não se trata de expor os infortúnios que acometem sua vida, muito menos para
transformar em espetáculo suas neuroses e reificar uma individualidade assujeitada. O
trabalho é outro. Urge se deslocar da subjetividade branca. Se o corpo é contorcido é para que
ele se desindividualize, entre em relações intensivas com outras forças. É um corpo
minoritário, coletivo. Para criar, o eu, esse sacerdote-mor, deve ter suas forças minadas.
A minha medida vai ficando menor, mais estreita como uma porta
e por ela deve passar cada vez o impessoal, o coletivo em sua
grandeza. Para que suporte esta enorme força é preciso que se
impessoalize cada vez mais, morta, amálgama que se preste a todas as
deformações, elástica e resistente. É o vazio de 'o dentro é o fora'.
(Clark apud Carneiro, 2004, pp. 88,89)

Potência contra o poder. Para abrir a penúltima entrada, o canto barroco e


impressionante de um sacerdote institucionalizado. Trata-se de um trecho do Sermão do
Espírito Santo, de 1657, do padre Antonio Vieira:
Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casa de prazer de
príncipes, veríes naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de
estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de
mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois
de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre
conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar,
pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre
reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de
assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que
lhe decompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que
pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a
diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas
nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente
recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas,
duvidam com o entedimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam,
argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez
rendidas, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como
estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras
nações, pelo contrário – e estas são as do Brasil – que recebem tudo o que lhes
ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar,
sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a
mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza
antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista
sempre estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os
olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que
vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus
102

antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam os pés, para que se
abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira,
trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode
conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura do ramos.
(Vieira apud Castro, 2002, pp. 183,184)

Difícil seria encontrar algum relato mais preciso do que esse sobre a psicologia da
besta loura. Sua vontade de poder se expressa através da ode à conservação. Seus
procedimentos: cortar, esquartejar, decepar, cercear... O texto põe em fila uma violência
refletida e executada até os dias de hoje. O juízo aí é implacável, não se pode dar nenhum
espaço às estátuas de murta. Em poucos dias elas explodem. Elas são vivas, errantes. A
vontade de poder se desespera com o nomadismo. Que os pés sejam cortados. Que os olhos
anulados habilitem a crença no Invisível. Que as orelhas decepadas não recebam mais as
narrativas dos ancestrais. A vontade de poder quer lotear os rudes. As terras dos selvagens não
param de ser segmentadas, seus corpos organizados, suas culturas decepadas. Divisões mil.
Mas a terra selvagem empapada de sangue grita e gritará nos corpos de justiça. “Um
corpo de justiça em que se desfazem os segmentos, perdem-se as diferenciações e se
embaralham as hierarquias, preservando-se apenas intensidades que compõem zonas incertas
e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista
devolvido a si mesmo.” (Deleuze, 1997, p. 149) Indez tenta ouvir os gritos dessa terra ao pôr
em cena signos selvagens, como a própria atriz de ascendência indígena, portanto uma mulher
de cor (o que é bastante incomum no teatro brasileiro, pois é majoritariamente realizado por
pessoas brancas). Indez tenta construir orelhas para escutar os cantos nas línguas rudes, já que
a atriz executa alguns cantos indígenas. Indez talvez tente ouvir as fábulas perdidas nos
confins dos tempos. Talvez em Indez nasçam pés nômades, como das crianças nas florestas.
Talvez brote em Indez olhos para olhar no fundo dos olhos das antigas mulheres da floresta.
Mulher selvagem que retorna dos horizontes dos tempos através de velhas corcundas, e nesses
corpos rudes encontra forças que desafiam o destino de morte traçado faz séculos.
[…] a atuação do teatro, como a da peste, é benéfica, impelindo os homens a
se enxergarem como são, fazendo caírem as máscaras, descobrindo a mentira,
a velhacaria, a baixeza, a hipocrisia; sacudindo a inercia asfixiante da matéria
que toma conta até dos dados mais claros dos sentidos; revelando às
coletividades seu poder sombrio, sua força oculta, convidando-as a tomarem
atitude heróica e superior diante do destino, que de outro modo jamais
assumiram. (Artaud, 1983, p. 64)
103

O combate contra a guerra. Em continuidade com a linha anterior, pode-se


relacionar a vontade de potência ao combate, e a vontade de poder à guerra branca,
assimétrica, desigual. Heráclito contra o padre. Em Para acabar com o juízo de deus, Artaud
denuncia os americanos porque “(…) eles querem a todo custo e por todos os meios possíveis
fazer e produzir soldados com vista a todas as guerras planetárias.” (Artaud, 1983, p. 147) A
ovelha é o duplo do soldado. São máquinas treinadas para obedecer a qualquer tipo de ordens.
É preciso distinguir o combate contra o outro e o combate contra si. O combate-contra
procura destruir ou repelir uma força, mas o combate-entre, ao contrário, trata de apossar-se
de uma força pra fazê-la sua. O bebê representa a vitalidade do combate, querer viver
obstinado, cabeçudo, indomável. “Com o bebê só se tem relação afetiva, atlética, impessoal,
vital” (Deleuze, 1997, p 151). A doutrina do juízo, por outro lado, é afeita à guerra e a sua
violência programada, monopolizada principalmente no aparelho de Estado.
Indez não luta contra. Indez luta entre. Entre Deleuze e Artaud. Entre a doutrina do
juízo e o sistema físico da crueldade. Entre a subjetividade branca e o corpo de cor da atriz.
Entra a água e a argila, entre pedras e comidas estragadas, entre a dança e o teatro, entre a
mulher e o Homem branco. Lutar contra tem cheiro de guerra de Estado, aí é a racionalidade
do soldado e do sacerdote. Habitar o entre, o meio, é sustentar um combate que não visa a
pacificação através do esmagamento da diferença, como faz a subjetividade branca.

[…] a humanidade não quer se dar ao trabalho de viver, de entrar


nesse acotovelamento natural das forças que compõem a realidade, a
fim de extrair dela um corpo que nenhuma tempestade poderá mais
consumir. (Artaud, 2008, p. 284)

O sistema físico da crueldade é uma prática de amor e de vida. Longe da compaixão


que visa a segurança e paz ideais. Ele suspende o juízo para acolher os afetos. Se se abre mão
do julgamento, isso não significa que tudo se equivalha. Não. As escolhas e decisões passam a
ser imanentes, as coisas convêm ou não convêm. Não cabe julgar os demais existentes mas
sentir se eles convêm ou não, isto é, se trazem forças ou remetem às misérias da dominação, à
frieza da organização e à pobreza do sonho.
As conversações entre Indez e o sistema físico da crueldade de Artaud e Deleuze
descritas aqui apontam para uma captação de forças. Indez se associa à crueldade. Mas Indez
come insuspeitas forças e signos de lugares desconhecidos. Diálogos insondáveis
104

borboleteiam no seu ventre. A peça Indez pode ser perspectivada a partir dos pontos
abordados aqui. Porém, como tudo que é vivo, ela é indefinível.
A atitude de crueldade é um modo de amar. Amar a si, amar as pessoas, as coisas e o
mundo. Indez talvez seja um gesto de amor. Amor às avessas. Amor pelo avesso. Amor entre.
Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será seu verdadeiro lugar. (Artaud, 1985, p.
162)
105

2
eu sou palestino
minha pátria é dor
minha bandeira é desespero
minha cidade é queimadura
meu sono é pólvora
meu corpo é medo
minha casa é cemitério
minha família é número
minha mãe é memória soterrada
meu pai é presente esmagado
meu filho é futuro abortado
minha companheira é noite sem estrelas
eu sou palestino.
106

Coragem

O poder devem biopoder. Ele governa a vida em detalhe. Mas eis que por vezes o
poder soberano, o poder do chefe de guerra, o poder de espada, o poder de matar, o poder que
caça aqueles que o importunam, eis que o poder, desde a colonização no século XVI, reativa
alguns inimigos no interior da sua população, do seu rebanho e do qual ele é zelador: é o
racismo de Estado. Ora, e quem, no Brasil, é alvo histórico e privilegiado do racismo de
Estado? O povo negro.
E eis que no interior das políticas tutelares, das políticas de governo da vida, o
Estado bio-político encontra “adversários” (perigos para a saúde do Estado e das suas ovelhas
– o que dá no mesmo). Vê-se, então, uma exigência, uma atroz exigência de coragens
precisamente do povo negro. Coragem de viver e viver contra o “cadafalso”, a “espada”, o
terror, os “suplícios” nas prisões, nas delegacias, nos educandários para adolescentes ditos
infratores, nos quilombos, alagados, favelas, morros, ruas, cortiços. Povo negro, inimigo do
Estado. É aí, somente aí, entre pretos e índios, que a coragem ganha corpo. É desse povo
condenado, do qual nada se espera a não ser a existência subalterna, é nesse povo condenado,
é desse povo condenado que se exige heroísmos políticos inauditos. Lá onde o racismo ativa a
espada, o confronto desequilibrado e covarde, porque não se nomeia e não se declara como
estratégia de destruição, é lá que o combate imundo acontece. Coragem negra, heróis negros.
Heróis sem glória, sem louro, sem busto e sem rosto, mas heróis. Inimigos por excelência do
Estado. Este é a imagem da política branca por excelência: anti-guerreira por exelência, anti-
combate por excelência, anti-inimigos por excelência.
Do outro lado, ou melhor, dentro dos círculos da serpente, a política branca exige
uma coragem negra tenaz. Veja os tupinambá da Serra do Padeiro enfrentando o Exército e a
Polícia Federal durante o governo do PT; veja os quilombolas da Malhada lutando contra a
invasão de seu território pelo Estado (este ocupou parte das terras do quilombo para dar
espaço as atividades de uma empresa de energia nuclear federal) e companhias privadas
geradoras de energia eólica; veja o Ocupa-Alemão que através de estratégias diversificadas se
insurge contra o governo armado (UPP e o tráfico de entorpecentes) do Complexo do Alemão
(RJ); veja um único homem, negro, ter que criar recursos para se livrar das 96 interceptações
107

policiais e aquelas que ainda virão; veja o Reaja na Bahia e sua microrrevolta cotidiana contra
o que eles chamam de “cidade túmulo”, o intolerável extermínio de jovens negros em
Salvador. Aí, em todos estes exemplos, toda uma atitude, um estilo de fazer política que a
prática de governo racista (tanto o racismo de tipo europeu e o de tipo estatal. Diria, digo, que
o europeu se atualiza, se cristaliza no aparelho de Estado) exige: é uma estética, uma ética e
uma política de coragem numa guerra imunda, imunda (ou branca) porque os inimigos não se
põem.
Todo corpo negro é um quilombo (homenagem à Beatriz), e todo quilombo é a favor
da guerra (homenagem a Abdias do Nascimento), e toda guerra é contra o Estado. Todo corpo
negro é contra o Estado e seu racismo. Todo corpo negro é contra a subjetividade branca e seu
racismo à europeia (homenagem a Zózimo).
De todo corpo e povo negro, a política de “cuidado” do Estado de polícia exige muita
coragem. Coragem de viver. Coragem para viver a despeito do desprezo. Coragem para viver
fugindo da condenação prévia à morte.
“Oyá me ensina a ter coragem”. (Alexandre T´Osossi)
108

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