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IZAQUE MIGUEL
DESPREZO
NITERÓI
2017
IZAQUE MIGUEL
NITERÓI
2017
Ficha catalográfica
Agradecimentos
A generosidade é tão boa quanto rara: maria da guia, mestre pedro lima, cecília coimbra,
fernando, glau, luiza oliveira, federico, maria lívia, ana cláudia, vanessa andrade, heliana
conde, renato, keila, renato nogueira, alessandro, luana, fábio costta, kezya, david, coletivo de
capoeira escola de vadiação, tambores de ogamilu, coletivo ocupa-alemão, letícia, maria clara,
ale, áurea, daniele, eliane, joão, passetti, maura.
Ele cortou com uma faca o que nos mantinha unidos, e nós nos despedaçamos.
Chinua Achebe
Línguas selvagens não podem ser domadas, elas podem apenas ser decepadas.
Glória Anzaldúa
Lenços …………………………………………………………………….. p. 7
Gestos ………………………………………………………………………p. 14
Andreia …………………………………………………………………….p. 24
Bestas………………………………………………………………………p. 42
Congo………………………………………………………………….…...p. 55
Branca ……………………………………………………………………..p. 75
Azul ………………………………………………………………………..p. 79
Indez………………………………………………………………………..p. 92
Coragem……………………………………………………………………p.106
Referências………………………………………………………………...p.108
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Lenços
O que posso?
É preciso começar.
Começar o quê?
A única coisa no mundo que vale a pena começar.
O Fim do mundo, na verdade!
(Césaire, 1942, s/p)
É preciso começar. Os acabados precisam começar. Para aqueles que o fim do mundo
chegou faz tempo e chega todo dia, é preciso começar. Os condenados desde o útero, porque
forjados em úteros já condenados, precisam começar.
Começar o quê? Começar o quê? Começar o fim. Começar o sim. O sim para o fim.
Um sim para a destruição. Filhos da negação, filhos do não. Já não nascem mais filhos da
guerra. A guerra é sim. Filhos de murmurações covardes, o indivíduo, o Homem, o Homem
Branco.
É preciso começar.
Os indivíduos são fetos vomitados por úteros invertidos. Eles têm veredictos de
morte tatuados em seus rostos. Filhos das ideias. E filho de ideia é bicho morto. Da ideia de
paz, da ideia de país, da ideia de vida, da ideia de homem, da ideia de doença, da ideia de
pensamento, da ideia de cor, da ideia de cidade, da ideia de morte, da ideia de criança, da
ideia de felicidade, da ideia de corpo, da ideia de coragem, da ideia de conduta, da ideia de
deus, da ideia de amor, da ideia de cidadão, da ideia de verdade, da ideia de saúde, da ideia de
virtude…
Vestidos de mármore sufocam toda vontade própria.
Há crianças que nascem, ao que parece, com má-formação. Bebês que não
correspondem às ideias. Desviados do rosto de Cristo, interceptados sem descanso pelos
entrepostos de poder.
É preciso começar.
Esses desviados não poderiam ter nascido, dizem os pais das ideias. Nasceram. E
quem somos nós?
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Para o mundo que está ereto, há os detestáveis. Aliás, as colunas desse mundo, os
fundamentos, o pasto que o engorda são as crianças. Ai do joio! Ou se é combustível para o
que está aí ou se é abraçado por uma vala. Em ambos os casos, putrefação.
É preciso começar.
Quem somos nós? Na mitologia dos mercadores de ideias, o horror é o demônio. O cão,
a criança. Os sacerdotes, quase anjos, não param de repetir: há um lago de fogo e enxofre no
qual o demônio e seus seguidores serão lançados e lá queimarão eternamente. É o sonho
deles. Esta profecia é realizada todos os dias. Todos os dias o lago recebe oferendas imundas.
A mitologia deles, posta em ação todos os dias, é o fim da possibilidade de mundos outros.
A glória das suas florestas
e dos seus campos férteis
se extinguirá totalmente
como definha um enfermo.
E as árvores que sobrarem
nas suas florestas serão tão poucas
que até uma criança poderá contá-las.
É preciso começar.
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E fogem.
Ouçam.
E retiram suas blusas pretas e com elas cobrem suas cabeças negras e correm e
picham nas paredes dos prédios históricos no Centro do Rio de Janeiro. Observem como são
magros, muito jovens, poucos. Parecem se divertir ao fugir da polícia nas manifestações em
junho de 2013.
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A água que vivifica é a mesma que afoga.
Ele era o mais famoso entre os seus e entre outras gentes. Apelidaram-no de “Chama
estrondosa”. Sua força e coragem cinzelavam o vento, e este carreava seu nome até as bordas
do desconhecido. Ele não era um herói, não era feliz nem infeliz. Ele era. Uma força
imprevisível, um guerreiro.
Rumores estranhos sopravam mais e mais nas aldeias vizinhas. As vozes sem bocas
diziam que homens da cor dos leprosos se espetaram na vizinhança do grande rio, o Níger. Os
gafanhotos chegaram.
Os anciãos consultaram o Oráculo e este declarou que aquele homem
estranho causaria a ruína do clã e espalharia a destruição entre eles. […] Ele
disse também que mais homens brancos estavam a caminho. Eram gafanhotos,
falou o Oráculo, e aquele primeiro homem era o batedor dos demais, enviado
por seus companheiros para explorar o terreno. (Achebe, 2009, p.93)
Algum tempo depois Okonkwo, o guerreiro ibo, fora encontrado morto pendurado no
tronco de uma árvore. Lá está a imagem de um homem negro com o pescoço quebrado,
suspenso, o corpo esticado verticalmente, do mesmo modo como tempos depois serão
encontrados tantos e tantos afro-americanos.
Okonkwo queria guerrear, e os “estranhos” queriam salvá-lo. De sua aldeia o valente
queria extirpá-los, mas os gafanhotos o chamavam de irmão. O africano fica confuso.
Os homens sem valor, os efulefu, curvam suas espinhas primeiro e adoram o deus dos
homens de olhos azuis. Os anciãos da tribo debocham, interrogam-se sobre esse
empreendimento dos missionários ingleses para o qual só vão os desnutridos de valores, os
mais fracos entre os ibos. Ruídos sem língua confirmavam o Oráculo, os clãs que não
dobravam os joelhos perante os senhores tinham suas aldeias inteiras destroçadas. “Ganhavam
vulto os comentários de que o homem branco trouxera não apenas uma religião mas também
um governo” (Achebe, 2009, p. 120).
Um governo?
Okonkwo convoca seu povo para a luta; os sacerdotes europeus constroem uma igreja.
Okonkwo se arma para a guerra; os missionários erigem uma escola e ensinam aos jovens
muito mais do que a ler e a escrever. Os servos de Jesus matam uma serpente sagrada;
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Okonkwo com um facão mata um kotma - homem africano que recebeu farda, armas,
migalhas de poder e ordens do colonizador. O homem branco faz um tribunal na cidade mais
próxima, os anciões não podem dirimir mais os entreveiros de sua gente; Okonkwo morre.
Desfalece pela falta de guerra, de inimigos. O signo da coragem entre os ibos no sudoeste
nigeriano se despedaça.
Uma forma nova de governo?
Chinua Achebe narra com precisão cirúrgica no livro O mundo se despedaça os venenos
que colonizam a vida e a coragem aportando entre os ibos. Venenos oferecidos como
remédios: polícia (kotmas), igreja, escola e tribunal, sem contar o dinheiro.
Uma forma nova de governo. Governo branco.
A coragem se despedaça é o título, é a tese. E quando a coragem se despedaça, quando
ela é desarticulada abre-se a possibilidade para outros despedaçamentos. À desarticulação da
coragem de viver, holocaustos se seguem. Chamemos ao despedaçamento, que segue o
escombro da coragem, de racismos. Este é um efeito do declínio da coragem de viver. Lá onde
o medo impera, racismos eclodem. Perguntem isto ao pensador senegalês Cheikh Anta Diop.
A vida apartada da coragem passa a pertencer a senhores, a ser produzida por senhores,
a ser cuidada por senhores ou sacerdotes, a ser organizada por senhores, a ter virtudes
promovidas pelos senhores, a ter a saúde definida pelos senhores.
Sacerdotes, funcionários da ordem, diretores de existência trabalham na separação entre
coragem e vida e depois trabalham outras divisões, outros cortes, outros fatiamentos da vida
governada no interior do rebanho ou população.
E o senhor que lhes deu o fôlego e o paraíso tem o direito de os suprimir. O senhor no
interior do que é seu escolherá seus preferidos, e no interior do que é seu amaldiçoará os
odiados.
Um novo governo?
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Gestos
1
Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o
grito não faz mais parte de minha vida.
(...)
E então? Então, calmamente, respondo que há imbecis demais neste
mundo. E já que o digo, vou tentar prová-lo. (Fanon, 2008, p. 25)
nunca esses pobres aprenderam com sábios, nem com velhas entendidas. assim não seriam tão
pobres.
e estive no meio de vinte jovens.
tremi.
e os mestres pobres não abandonam sua mestria.
nunca.
e semeiam pobreza.
e sob o olhar dos jovens não saía palavra da minha boca.
chorei.
tenho medo de ser pobre de experiências e lhes ofertar esta pobreza.
confusos, os jovens me deixaram entre as lágrimas e as paredes brancas.
[…] Mas então as verdades nos queimavam. Hoje elas podem ser ditas sem
excitação. Essas verdades não precisam ser jogadas na cara dos homens. Elas
não pretendem entusiasmar. Nós desconfiamos do entusiasmo. Cada vez que o
entusiasmo aflorou em algum lugar, anunciou o fogo, a fome, a miséria… E
também o desprezo pelo homem.
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Inclina teus ouvidos, ouve minhas palavras,
aplica teu coração em compreendê-las.
Bom é colocá-las em teu coração
e ruim pra quem delas se descuida.
Que permaneçam no cofre de teu ventre
e possam ser aferrolhadas em teu coração.
Amenemope
Crítica gestual.
É sabido que nos últimos anos de trabalho o filósofo Michel Foucault se debruçou
sobre textos antigos - do século IV a.C ao II de nossa era. Entre muitas escolas, correntes,
exercícios, princípios e problemas analisados por ele, encontram-se os filósofos cínicos.
Estes, diferentemente dos outros pensadores, não desenvolveram um corpo teórico
sofisticado, eles não constituíram uma “tradicionalidade de doutrina”. O estilo de filosofia
cínica era essencialmente gestual, a ética que eles defendiam deveria estar assentada na
“tradicionalidade de existência”. Ou seja, o logos se manifesta e dá testemunho da verdade da
sua filosofia no modo de vida, na maneira de viver e se conduzir. O discurso verdadeiro é a
vida verdadeira. Este é um aspecto que Foucault encontrará esparramado entre os antigos em
todas as escolas filosóficas. É a noção de harmonia entre vida e pensamento, vida e discurso
verdadeiro: o viver e o filosofar deveriam compor uma música ritmada e afinada. Aliás, só era
possível para um sujeito ter acesso à verdade modificando sua própria existência, alterando o
ser mesmo do sujeito que desejava filosofar. Ter nos lábios discursos bonitos e na cabeça
guardar febrilmente milhares de livros, mas viver de modo intemperante (dominado pelas
paixões) era motivo para uma má reputação. Os cínicos radicalizaram o princípio da vida
como um testemunho filosófico e fizeram da existência mesma um exercício ético de
liberdade.
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1 Por hora não diferencio o modelo de cuidado platônico, séc. IV a.C., restrito ao status do indivíduo e ligado
a uma fase pedagógica da vida dos jovens nobres, do modelo helenístico dos últimos dois séculos pagãos.
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Três movimentos dos três filósofos em torno dos antigos, da criança e da educação.
Outros temas poderiam ser trilhados no meio deles, tais como o tema do corpo e a noção de
combate/agonística/guerra.
Planejava fazer o seguinte caminho na tese: Primeira parte: os Antigos, “Sim”. 1 A
coragem de viver na Antiguidade, ela se expressa através do cuidado de si e seu ponto alto é a
coragem dos cínicos (parresía cínica). 2 Primeiro desprezo: o saber espiritual. Segunda parte:
os Antigos, “Não”. 1 A emergência, no ano zero, da máquina abstrata de rostidade descrita por
Deleuze e Guattari. Segundo desprezo: o corpo expressivo. Terceira parte: Poder pastoral.
Terceiro desprezo: de si e do mundo (desconfiança, renúncia, humildade, humilhação,
decifração de si e obediência). Quarta parte: Pastoral estatal (emergência da razão de Estado
no século XVI e a preocupação com a saúde das forças estatais). Quarto deprezo: da vontade.
Escrevo este texto vinculado a uma entidade de ensino superior. E ela está enredada
nessa longa história de falecimento das artes de viver no ocidente.
Existem diversas técnicas de dominação, há aquelas que exigem silenciamentos, e há
outras que extorquem enunciações. Elas não se excluem. Cada vez mais somos incitados a nos
posicionarmos, a dar opiniões, a aparecer, a se pronunciar, a responder sondagens, enfiam a
falar e a falar, verdadeiros tagarelas e patéticos.
Na aula do dia 3 de março de 1982 do curso A hermenêutica do sujeito, Foucault
abordou o processo de subjetivação do discurso verdadeiro. Isto é, como deveria proceder
alguém que quisesse fazer seu o discurso da tradição filosófica reconhecido como verdadeiro?
Como se tornar sujeito de enunciação de discursos verdadeiros? Como transformar um saber,
um preceito em uma regra de conduta, um modo de se conduzir eticamente?
A primeira etapa desse processo estava assentada nas técnicas em torno da escuta, da
leitura, da escrita e da fala. Na primeira hora desta aula o pensador francês se deterá na
“ascese da escuta”, pois ouvir é o primeiro passo em direção ao êthos.
A audição, todavia, comporta uma ambiguidade. Analisando um texto de Plutarco,
Foucault escreve que ouvir é o mais passivo dos sentidos, já que através dos ouvidos a alma
encontra-se exposta aos sons do mundo exterior e é muito difícil para o sujeito evitar escutar o
que o cerca. Passividade é a tradução de pathetikós. A audição é o mais pathétikós dos
sentidos, também, porque expõe a alma aos feitiços da lisonja e às artimanhas da retórica. Ela
possui uma natureza ambígua porque é, ao mesmo tempo, a fonte principal do logikós. Em
uma cultura profundamente oral, o meio principal para apreender o lógos, o discurso
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verdadeiro, é ouvindo. A visão, o tato, o olfato e o paladar estão mais ligados aos prazeres, já
a audição tem a possibilidade de levar a aprendizagem de virtudes porque dá acesso à
linguagem racional verbalmente articulada.
Como fazer, então, para não ser dominado pelo caráter patético da escuta? Como não
se tornar um indivíduo patético exposto a toda sorte de discursos? Purificando a escuta para
conservar o papel logikós desse sentido. Foucault descreve três meios de purificação: a regra
do silêncio, as regras da atitude física durante a escuta e as regras que dirigem a atenção.
Interessa-me neste momento focalizar somente o silêncio.
Trata-se aí de uma regra milenar, ancestral nas práticas de si. Os Pitagóricos, por
exemplo, impunham a regra de cinco anos de silêncio aos que adentravam na sua
comunidade. O noviço usava do silêncio como um espaço para guardar o máximo de
ensinamentos a que estava exposto, nada de intervir, nem objetar, nem dar opinião, apenas
escutar. Já para Plutarco, o primeiro vício a ser combatido quando se quer aprender a filosofar
é a tagarelice. “Foram os deuses, afirmava ele, que ensinaram o silêncio aos homens e foram
os homens que nos ensinaram a falar” (Foucault, 2010, p.304). Uma educação
verdadeiramente nobre dada às crianças seria aquela que antes de tudo as ensinasse a guardar
o silêncio.
Mais especificamente atrelada a purificação do logikós, a regra do silêncio deve
sempre atuar quando o indivíduo escuta uma lição, ouve um sábio ou um poema. Fazer atuar
nestes momentos uma “coroa de silêncio” e não converter o que se ouviu imediatamente em
discurso. Plutarco chega a postular uma espécie de anomalia fisiológica no tagarela, pois neste
o ouvido não estaria ligado a alma, mas se comunicaria diretamente com a língua. Neste caso
são derramadas, escoadas precipitadamente as coisas ouvidas, impedindo assim a maturação
necessária para que o discurso verdadeiro trouxesse algum efeito benéfico para a alma. “O
tagarela é sempre um recipiente vazio”. (Foucault, 2010, p.305)
Tenho a impressão de que os poderes nos contaminam com esta doença descrita por
Plutarco, a tagarelice. A produção desembestada não dá espaço e tempo para a ruminação,
exercício tão apreciado por Nietzsche para a atividade do pensar. Atolados, atolamos as outras
pessoas com excessos de discursos que produzimos afobadamente. Qual seria o valor do
pensar, do escrever e do pesquisar no interior de dessa economia discursiva? Dietas não
seriam prudentes nessas atividades?
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Com os riscos que há nessa atitude, disponibilizo para a defesa de minha tese apenas
uma parte do lógos a que tive acesso e uma parte dos textos que até então escrevi. Quando os
poderes elevam tagarelas e patéticos ao posto de pensadores (da ordem?), o silêncio talvez
seja uma crítica gestual oportuna.
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Andreia
2 Todas as citações da bíblia são da versão digital Almeida corrigida e revisada localizada em
bibliaonline.com.br.
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primeiro pecado narrado pela cultura cristã ¬, o casal foi expulso do paraíso. Na distribuição
das penas, o Deus e juiz determinou que sobre a primeira mulher da história recaísse maior
número de punições, parirá com dores multiplicadas “e o teu desejo será para o teu marido, e
ele te dominará” (Gênesis 3: 16). Arquitetado nas fronteiras do paraíso o inferno para as
mulheres.
Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a
cabeça da mulher; e Deus a cabeça de Cristo.
Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua
própria cabeça.
Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a
sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada.
Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para
a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu.
O homem, pois, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de
Deus, mas a mulher é a glória do homem.
Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem.
Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher
por causa do homem.
Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa dos
anjos. (1 Coríntios 11:3-10)
Não quer dizer que os poderes desconsideram o corpo. Não. Nem por um minuto.
Ele, o corpo, é produzido rostificado, hierarquizado, segmentado. Agride-se atacando o rosto,
quem viveu em favela sabe que um dos gestos de tortura mais infamantes e amado pelos
policiais é dar tapas no rosto das pessoas. A dor não é fruto da intensidade do golpe, mas da
demarcação da assimetria de poder: eu posso bater no seu rosto porque posso. “[…] a
qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mateus, 5:39).
O saber, o juízo, a razão, o conhecimento, o entendimento, o pensamento, a
inteligência se aninham na cabeça. O coração é a fonte do erro, sede do engano, ferida aberta
para ataques imundos. “[…] Sucedeu que, no tempo da velhice de Salomão, suas mulheres lhe
perverteram o coração para seguir outros deuses; e o seu coração não era perfeito para com o
Senhor seu Deus [...]” (1 Reis 11:4). A mulher é o coração, os povos de cor são o coração, as
crianças são o coração. Todos que não têm “cabeça” serão espetados nessa região dos
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Império Colonial Português, 1948. Planfleto comemorativo dos “descobrimentos” (disponível no site
https://br.pinterest.com/pin/550916966908609379/)
3
Em 1803 começou a ser escrito o atestado de óbito do tigre da Tasmânia. O último
morreu em 7 de setembro de 1936 na ilha de Hobart. Embora o governo britânico, que
colonizava a ilha, pagasse uma libra esterlina por animal morto e dez shillings por filhote
executado, o tigre resistiu aos colonizadores quase um século a mais do que os aborígenes
daquele lugar, todos massacrados até 1830. Há hoje exemplares do animal empalhado e um
vídeo de 62 segundos de uma fêmea se debatendo em sua jaula. (Ferrer, 2015)
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Não é de fácil definição e entendimento essa coisa chamada coragem de viver - este é o
tema que me interessa. Não é fácil. Não pela complexidade dos termos, nem pela vasta
bibliografia, pois não existe. Tenho a impressão de que ela, a coragem, fora esquecida nos
confins do tempo, afogada no fundo do oceano, soterrada nos bolsões de sangue, esmagada
sob montanhas de mercadorias. Eis aí a dificuldade que o tema impõe: a raridade desta
atitude. Criou-se o hábito segundo o qual a vida só pode ser vivida se governada por outras
instâncias que não ela mesma. A existência parece inevitavelmente precisar de senhores sobre
si para que ela se torne viável, digna de ser vivida. A coragem de viver é dizer um sim para a
vida apartada das tábuas generalizadoras de valores. Em resumo, pode-se indicar que para dar
estilo, forma, contornos singulares à vida, para constituir uma vida bela, autônoma, única,
uma vida que pode prestar contas de si é necessário coragem.
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3 Cf. mais precisamente a aula do dia 7 de janeiro deste curso, lá estão os termos: saberes locais, sujeitados,
saberes das pessoas, saberes sob tutela, desqualificados, sepultados, saberes das lutas.
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Beatriz foi morta duas vezes. Danone a executou na porta de um bar na zona sul do
Rio. Os historiadores mataram-na academicamente (Ratts, 2006). No primeiro caso, cinco
disparos; no segundo, o silêncio em torno de seu pensamento.
Beatriz saiu de Sergipe com a família para estudar no Rio. Ela também era poetisa. Na
faculdade de história se opôs ao eterno estudo do negro escravizado e pesquisou organizações
sociopolíticas ligadas historicamente ao povo afrodescendente. Lá onde, por exemplo, os
intelectuais viam um campo de concentração, a favela; Beatriz encontrava uma política
quilombola. Ela criou um novo conceito de quilombo.
Mas na distribuição diferencial dos sujeitos no interior da ordem colonial do discurso
verdadeiro, esta historiadora não é uma erudita, é um monstro. “Por mais que o discurso seja
aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua
ligação com o desejo e o poder.” ( Foucault, 1996, p.10)
A produção do discurso em toda sociedade é “controlada, selecionada, organizada e
redistribuída”, dizia Foucault no início de sua aula inaugural no Collège de France em 2 de
dezembro de 1970. Descreveu nesta ocasião três conjuntos de procedimentos de ordenação
dos discursos: o primeiro conjunto, através de princípios de exclusão, (a palavra proibida, a
segregação da loucura e a vontade de verdade) visa dominar os poderes do discurso. O
segundo conjunto, por meio de princípios de identidade, (comentário, autor e disciplina)
conjura o acaso no interior dos discursos. E o terceiro grupo (rituais da palavra, as sociedades
do discurso, grupos doutrinários e as apropriações sociais) determina as condições de
funcionamento do discurso e impõem regras para os sujeitos que os pronunciam com o
objetivo de não permitir que todas as pessoas tenham acesso a ele.
Fragmentos de enunciações, ruídos, gemidos. Discurso, não.
Os fragmentos aqui delineiam um movimento, eis a tese: à medida que os poderes
colonizam a vida ou os vivos, a coragem de viver é esmagada. E o rebaixamento da coragem
de viver se dá acoplado a desprezos. Sem coragem de viver não é possível cuidar da própria
vida. E vida cuidada por outros, é vida desprezada.
Colonizam-se a vida e a coragem capturando-as em meios de interioridade: interior da
alma cristã, interior do rebanho, interior da população administrada pelo Estado, interior das
instituições disciplinares, interior dos indivíduos, interior do mercado neoliberal.
Do bíos à biopolítica, do cuidado de si ao empreendedorismo de si, dos mestres da
soberania de si aos mestres de normalização, da razão de si à razão de Estado, da coragem
como virtude primeira na arte de viver à abolição de toda vontade própria, dos exercícios
espirituais ao adestramento em instituições de sequestro, da parresía à retórica e à bajulação,
passando pela confissão; da estilização de si à constituição do indivíduo através de
recompensas e punições, méritos e deméritos: longo cortejo macabro dos desprezos. Ai das
crianças!
Sem definir causalidades, mas costurando intuições, parece que os Homens Brancos
foram dominados pelo medo. Medo da vida, medo da Terra, medo de si. Medo da morte.
Apegaram-se com desespero febril à busca da verdade, renunciaram a si e ao mundo,
inventaram igrejas políticas para a salvação mundana da população. Parece que dominados
ainda pelo medo da morte transformaram e transformam tudo em mercadoria, inclusive a
vida. Estilhaçamento da coragem na história da subjetividade branca. Ai das mulheres negras!
Depois de colonizar a si mesma, de esposar a impotência, a subjetividade branca
colonizou e coloniza boa parte do mundo, dos mundos. Ela não relaxa sua mandíbula até que
as outras subjetividades, não brancas, tenham um rosto. Um rosto mortificado. Rosto pálido, o
rosto de Cristo. E não é a morte e a mortificação as virtudes promovidas pelo aparelho de
Estado, pelo cristianismo e pelo capitalismo? Bestas forjadas pelo Homem Branco.
Descrevo intuições. Talvez os pontos oferecidos aqui nada mais são do que enunciações
de cicatrizes. Ou ainda, narro alguns poucos pensamentos como quem desliza a mão em
pontos recém-costurados sobre a pele ferida do abdômen. A chaga ainda aberta pensa o
seguinte: dominada pelo medo da vida e da morte, a subjetividade branca se exilou da
coragem de viver.
Daí decorrem acontecimentos sinistros: o Homem Branco inventará instituições que
sequestram a vida, qualquer vida, pois presume ele que tudo lhe pertence. Ele é o Senhor. E
em nome da vida disseminará fraturas (racismos) no meio do que é seu. Apartada da coragem,
a vida se esteriliza. A subjetividade branca se apaixonará violentamente por mercadorias e
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através da violência de direito as empilhará. Daí ela, a subjetividade branca, não saberá mais o
que é a generosidade, pois a generosidade é própria aos valentes. Por esse motivo não saberá
também o que é amizade, já que sem largueza de alma não há amigos e entre os amantes dos
soberanos não há amigos. Por passar a sonhar sempre com o poder, predominará no Homem
Branco o caráter hostil e aniquilador nas suas práticas políticas em relação a tudo que se
desvia de seu rosto ariano. Os pontos doem.
Enunciado simples e terrível: para viver uma vida que vale ser vivida, para determinar o
valor da própria vida, para pôr a mão na própria existência é necessário coragem. É aí, contra
as tutelas promovidas pela subjetividade branca, contra seu rosto colonizador, contra suas
políticas despóticas, as quais não param de prestar homenagens à impotência... É aí que fugas
são tentadas, fugas para dizer sim à vida outra. E só se pode fugir dizendo sim a vidas outras.
Fugir do poder pastoral e da pastoral estatal.
As guaritas que coroam os muros brancos estão abarrotadas de insuspeitos vigias,
armados de pequenos poderes e prontos para abater tudo que foge. Urge ter coragem de viver
se se quer uma vida vivida desviada dos cadáveres postos como modelo.
A generosidade. “O homem é sim. Não cessaremos de repeti-lo. Sim à vida. Sim ao
amor. Sim à generosidade”. (Fanon, 2008, p. 179)
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5
Devir branco do Homem Branco e devir branco do mundo. Estes perspectivados a
partir da coragem de viver.
O Homem Branco se julga apartado dos animais e da natureza. Ele é a imagem mais
acabada, mais perfeita do Homem. Ele é o Homem. Ele se orgulha de conhecer a Deus, e
servi-lo. Ele é devotado a Deus, e este será fiel salvando-o deste mundo infiel.
O Homem Branco se orgulha de organizar-se politicamente. E a esta organização ele
chama Estado. Ele entrega todas as dimensões da sua vida ao Estado, e este lhe salvará dos
perigos deste mundo infiel.
Infiro: o Homem Branco, provavelmente por medo, criou um Deus que lhe daria uma
verdadeira vida de paz eterna em uma cidade celestial. O Homem Branco por medo criou o
Estado para que este lhe dê saúde, paz, bem-estar e segurança enquanto o Homem estiver
condenado a viver na Terra.
Concluo que o Homem Branco é provavelmente a personagem mais covarde que a
Terra já conheceu.
E este par Deus Estado serve-lhe como esquadro a partir do qual os “bárbaros” os
“primitivos”, os “selvagens”, os animais, os “incivilizados” são avaliados.
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6
Os holandeses chegaram às ilhas Maurício em 1662. O pássaro dodô vinte e quatro
anos depois não era encontrado mais lá. Destruíram os bosques nativos, introduziram animais
estranhos àquele ecossistema e caçaram: exterminado o pássaro. Sobraram gravuras da época,
um ovo e um esqueleto desenterrado em 2007 (Ferrer, 2015).
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7
A novidade de tudo o que eu digo de novo está na força da repetição.
Cada qual com seu vocabulário, instrumentos e agonias próprios já trilhou os
caminhos que aqui pisarei. Muitas e muitos me antecederam.
Aqueles que nos dominam dançam covardemente suas facas sobre os fios de
memória traçados pelos que já atravessaram os labirintos do desespero e do desprezo.
Desesperados não sabemos esperar nada para além da mordida fatal.
Aqueles que nos dominam trocam suas peles e nos dão a impressão aterradora de que
todo dia nasce um inimigo novo sob o sol. Desesperados não sabemos esperar, lançamos
nossas poucas moedas de sangue no poço da esperança: para amanhã o novo gesto de
insubmissão que arruinará o muro novo.
Aqueles que nos dominam manejam com maestria antigos instrumentos de
capitulação: em cada esquina de cidade, dos corpos e da gramática erigem um guardião da
memória dos assassinos e de suas “conquistas”. Desesperados não sabemos esperar,
empunhamos pacificamente as ferramentas cegas que nos cegam, elas dão a sensação
esperançosa de que nos desviará da anemia política.
Quando perceberemos que aquilo que afirmam ter valor, que as cartas políticas
postas na mesa, que os ídolos aparentemente antagonistas, que a imagem do pensamento e os
pensadores que têm o direito de pensar… nada mais são do que instrumentos usados para nos
esfolar, e louvor à memória dos espoliadores (Diop, 2012; 2015)? Até quando a colheita de
abismos?
O inimigo não é novo e não somos tão pobres politicamente como nos ensinam os
nossos senhores. Faz parte da estratégia de dominação tatuar o horror na ordem da natureza: o
forte é forte porque é forte e domina o fraco; e o fraco é fraco porque é fraco e é subjugado
porque é fraco.
Há uns desesperados que esperam pelo futuro. Prefiro, eu também desesperado,
tentar fugir, parar e ficar à espreita do passado.
Daquele passado que não está pacificado em museus, nem amansado e nem morto
entre as enunciações daqueles que nos governam. À espreita daquele passado que vive como
rios subterrâneos e rios voadores. Não os vejo sempre, mas sei das suas existências porque
39
ainda chove, porque nascem plantas, porque estou vivo e porque vejo crianças pretas recém-
nascidas mamando nos seios de mulheres negras.
Os fragmentos que vêm banham-se de diferentes modos nas águas do filme de curta
metragem Alma no olho (1973) de Zózimo Bulbul; em Beatriz Nascimento, a costureira do
texto que compõem o documentário Orí, dirigido por Raquel Gerber (1989)5 e no disco
Africadeus (1973) de Naná Vasconcelos.
Os fragmentos que vêm também conspiram (respiram juntos) e se inspiram nas
atitudes e estilos políticos de personagens absolutamente sem valor, se olhados da perspectiva
da política dominante.
O berimbau que faz música é o mesmo que bate como borduna.
Descontada a minha falta de criatividade, é uma espécie de homenagem torta a estes
rios de bálsamo e lama que nos curam. Homenagem tímida a todas e todos que não se cansam
de beijar as negras memórias da insubordinação, corajosamente.
Bestas
Infelizmente não sabemos o que as “bestas” da costa brasileira usavam como critério
de avaliação dos cristãos.
Algum tempo depois Nietzsche fará algumas considerações sobre a história do
homem europeu e identificará perigos nos lábios que não param de fazer apelo a uma certa
noção de justiça.
[…] Eles rondam entre nós como censuras vivas, como advertências dirigidas
a nós – como se saúde, boa constituição, força, orgulho, sentimento de força
fossem em si coisas viciosas, as quais um dia se devesse pagar, e pagar
amargamente: oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar,
como anseiam ser carrascos! Entre eles encontram-se em abundância os
vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como
baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a
cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de
ânimo tranquilo. (Nietzsche, 2009, p.104)
43
6 Para uma análise comparativa das políticas de pacificação colonial dos índios “brasileiros” no século XVI e a
pacificação nas favelas cariocas através das UPPs, conferir o capítulo Pacificação e tutela militar na gestão de
populações e territórios (Oliveira, 2016).
44
[…] o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro,
uma relação que não é uma relação militar e guerreira de enfrentamento, mas
uma relação do tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a
desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos
degenerados haverá em relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo
mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais
poderei proliferar.”
[…] O racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja,
com o genocídio colonizador.
A guerra. Como é possível não só travar a guerra contra os adversários,
mas também expor os próprios cidadãos à guerra, fazer que sejam mortos aos
milhões (como aconteceu justamente desde o século XIX, desde a segunda
7 Não desconsidero as críticas que Foucault (1988) faz à ideia de repressão, a famosa “hipótese Reich”
desembainhada pelo francês. Se minha ignorância permitisse, diria que Reich viu muito mais do que aquilo
que Foucault estrategicamente quis perceber em Reich.
45
massacra por toda a parte onde o encontra, em todas as esquinas de suas próprias ruas, em
todas as esquinas do mundo” (Fanon, 1968, p. 271).
[…] O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não
é o grande temor, mas o grande nojo ao homem; e também a grande
compaixão pelo homem. Supondo que esses dois um dia se casassem,
inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a “última vontade” do
homem, sua vontade do nada, o niilismo. E de fato: muita coisa aponta para
isso. Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e
ouvidos, sente, em quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a
um ar de hospício – falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, toda
espécie de “Europa” sobre a terra. (Nietzsche, 2009, p.103 – itálicos no
original)
O tal casamento aconteceu faz muito tempo. E a “festa” foi no quintal8 e nos corpos
dos outros. Em 1977 em uma tensa entrevista com M. Osorio intitulada precisamente O
poder, uma besta magnífica, Foucault aborda o destino do Ocidente.
[…] quando digo Ocidente, você sabe, é uma palavra vaga, desagradável de
empregar e quase indispensável. Quero dizer que muitas coisas, muitas
práticas sociais, práticas políticas, econômicas nasceram e se desenvolveram,
com enorme força, em uma espécie de região geográfica que se situa entre o
Vístula e Gibraltar, entre as costas do norte da Escócia e a ponta da Itália. […]
Resta, não menos, que nosso destino de homem moderno desenvolveu-se
nessa região e durante uma certa época que se situa entre o começo da Idade
Média e os séculos XVIII ou XIX. A partir do XIX, é preciso dizer que os
esquemas de pensamento, as formas políticas, os mecanismos econômicos
fundamentais que eram aqueles do Ocidente tornaram-se universais, pela
violência da colonização, enfim, a maior parte do tempo, tornaram-se, de fato,
universais. É isso que entendo como Ocidente, essa espécie de pequena porção
do mundo cujo destino estranho e violento foi de impor suas maneiras de ver,
pensar dizer e fazer ao mundo inteiro. […] (Foucault, 2013, p. 157)
8 O filósofo camaronês Achille Mbembe aponta que “Há meio século, a maior parte da humanidade vivia sob o
julgo colonial, uma forma particularmente primitiva da supremacia racial. A sua libertação constitui um
momento-chave na história da nossa modernidade. O facto de esse acontecimento não ter deixado a sua marca no
espírito filosófico do nosso tempo, não é em si um enigma. Nem todos os crimes produzem necessariamente
coisas sagradas. De entre vários crimes da história, apenas remanesceu desonra e profanação, a esplêndida
esterilidade de uma existência atrofiada, em suma, a impossibilidade de existir em comunidade e de voltar a
percorrer os caminhos da humanidade. (Mbembe, 2014,[2013] p.13)
47
corrigido porque não cabe na régua da norma. Dizimado porque é um perigo para a saúde do
esquadro.
A besta cobrou e cobra a dívida que ela mesma inventou. Preço pago amargamente
pelos filhos da Terra, os indígenas e os índios, desde o encontro macabro com os Homens
Brancos. Sim, a vingança do rebanho e de seus sacerdotes.
No Brasil há mais de 250 línguas índias faladas. O idioma yanomami traduz
“branco” por nape; no araweté “branco” é awin e em caiapó é kuben. Nestes três casos, como
em tantos outros, “branco” se traduz por “inimigo” na língua dos “selvagens” (Castro, 2016).
E “branco”, do ponto de vista dos “bárbaros”, são as pessoas e as instituições que não são
índias. Índio foi o nome que os europeus deram aos povos que viviam na América por conta
de um engano. Os invasores acreditaram ter chegado à Índia.
Talvez não haja contraponto mais preciso em relação à subjetividade branca do que a
noção de indígena. Este vocábulo significa: gerado dentro da terra que lhe é própria,
originário da terra em que vive. Desta feita há indígenas na Ásia, na Oceania, na África, no
Brasil. Porém não basta ter nascido no território do Brasil para ser indígena, por exemplo. Ser
“brasileiro” é muito diferente de ser “indígena”.
Ser brasileiro é pensar e agir e se considerar (e talvez ser
considerado) como “cidadão”, isto é, como uma pessoa definida, registrada,
vigiada, controlada, assistida – em suma, pesada, contada e medida por um
Estado-nação territorial, o “Brasil”. Ser brasileiro é ser (ou dever-ser) cidadão,
em outras palavras, súdito de um Estado soberano, isto é, transcendente. Essa
condição de súdito (um dos eufemismos de súdito é “sujeito de direitos”) não
tem absolutamente nada a ver com a relação indígena vital, originária, com a
terra, com o lugar em que se vive e de onde se tira seu sustento, onde se faz a
vida junto com seus parentes e amigos. Ser indígena é ter como referência
primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para
fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma
comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser
parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um
povo. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma população controlada (ao
mesmo tempo “defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para
baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão
olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado
transcendente; ele recebe seus direitos do alto. (Castro, 2016, pp.10-11 –
itálico no original)
Infelizmente o domínio colonial ainda é tão penetrante que mal conseguimos nomear
todos os efeitos das políticas de exílio produzidas pelo Homem Branco.
O nojo e a compaixão que acompanham tais empreitadas podem ser entendidas como
uma espécie de prática de vingança. Penso que a subjetividade branca é dominada por um
49
profundo ressentimento. Por ela mesma ser apartada, só pode subsistir dividindo quem ainda
não o é.
[…]Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente
desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança,
inesgotável, insaciável em irrupções atrozes contra os felizes, e também em
mascaramentos de vingança: quando alcançariam realmente o seu último, mais
sutil, mais sublime triunfo de vingança? Indubitavelmente, quando lograssem
introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de
modo que estes um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e
dissessem talvez uns aos outros: “é uma vergonha ser feliz!” […] (Nietzsche,
2009, p.105)
enquanto pelejam. Gente é esta mui atrevida e que teme muito pouco a morte,
e quando vão à guerra sempre lhes parece que têm certa a vitória e que
nenhum de sua companhia há de morrer. E quando partem dizem, vamos
matar: sem mais considerações, e não cuidam que também podem ser
vencidos. Não dão vida a nenhum cativo, todos matam e comem, enfim que
suas guerras são mui perigosas, e devem-se ter em muita conta porque uma
das cousas que desbaratou muitos portugueses foi a pouca estima em que
tinham a guerra dos índios, e o pouco caso que faziam deles, e assim
morreram muitos miseravelmente por não se aperceberem como convinha;
destes houve muitas mortes desastradas: e isto acontece cada passo nestas
partes. (Gandavo, 2008, p. 67)
Para o Homem Branco a conta, o peso e a medida das coisas são dadas por Deus,
pela Lei e pelo Rei; para o gentio a máquina de valores é a guerra selvagem.
Gandavo aponta para as mortes desastradas que os europeus sofriam porque não
levavam em consideração a guerra dos índios. Talvez aí a profecia dos morticínios que
ocorreriam e ocorrem regidos pelas mãos ordeiras da subjetividade branca e seu R, L e D.
Finalmente que são estes índios muito desumanos e cruéis, não se
movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem
concerto de homens, são muito desonestos e dados à sensualidade e entregam-
se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos, ainda que, todavia
sempre têm resguardo os machos e as fêmeas em seu ajuntamento, e mostram
ter nisto alguma vergonha. Todos comem carne humana e têm-na pela melhor
iguaria de quantas pode haver: não de seus amigos com quem ele tem paz se
não dos contrários. Têm esta qualidade estes índios que de qualquer cousa que
comam por pequena que seja hão de convidar com ela quantos estiverem
presentes, só esta proximidade se acha entre eles. (Gandavo, 2008, p. 69)
Politeístas!
Pluralistas!
Circulares!
Monoteístas!
Monistas!
Lineares!
No dia 28 de março de 1984 uma autoridade francesa, bem próxima de sua morte,
disse que os cristãos faziam a seguinte acusação e depreciação: “É isto que caracteriza a
parresía: não temor a Deus, não desconfiança em relação a si, não desconfiança em relação ao
mundo.” (Foucault, 2011, p. 295)
Depreende-se daí que parresía é um antídoto contra o desprezo. E lá onde a parresía
é evacuada, a desconfiança ou desprezo e o temor se entumecem.
Michel Foucault, professor do Collège de France, explicou em centenas de páginas
que parresía é o vínculo indissociável entre a coragem e a verdade. Parresía é a coragem da
verdade a despeito de tudo e de todos. Ela era expressa, na Antiguidade greco-romana, em
diferentes contextos e de diferentes modos. Havia parresía política, parresía ética, parresía
cínica etc.
A verdade para ser expressa aí exigia um sim. Sim para vários riscos, o exílio
político, o rompimento de uma relação de amizade e o extremo de perder a vida.
E a verdade dita era estritamente vinculada ao indivíduo que a proferia. Não era a
verdade derivada de uma tradição, nem de um domínio técnico, nem de uma revelação dos
deuses. Penso e tenho coragem para dizê-lo em meu nome. E faço-o diante do soberano (uma
relação assimétrica) e entre pares. A coragem e a coragem da verdade, portanto, dificilmente
pode ser exercitada pelos poderes, por aqueles que estão em posição de superioridade.
E esta parresía era um modo de cuidar da existência. Cuidar da vida exigia
inevitavelmente coragem. Cultuava-se a existência nesse jogo. Esperava-se que o interlocutor
do parresiasta também tivesse coragem, ou seja, largueza de alma para acolher verdades
ferinas. E no meio desse jogo a vida era estilizada.
Na história da subjetividade branca, não foi a parresía que se perpetuou, parece
óbvio. O temor e a desconfiança triunfaram, vieram os sacerdotes cristãos e os ministros de
Estado.
Se a parresía foi pisoteada, pode-se supor que o jogo mitigou. O jogo, imanência. O
cuidado será colonizado em uma longa procissão de desprezos, o sim corajoso será
substituído pelo não. A renúncia será a virtude aplaudida.
Na subjetividade branca a coragem de viver se despedaça.
53
4
na minha cidade, as dores cansam o vocabulário.
na minha cidade, torturadores e assassinos são homenageados sob o sol do meio-dia.
na minha cidade, o esgoto é espelho.
na minha cidade, do crepúsculo à imensidão do mar, faltam ouvidos para os gritos
gastos.
na minha cidade, as feridas são lambidas por urubus com língua de soda cáustica e
lavadas por sorrisos sem rosto.
na minha cidade, há casas com telhas de amianto e chão de pus.
na minha cidade, os profetas gaguejam.
na minha cidade, as crianças possuem calos de chumbo e ossos de areia.
na minha cidade, roubam-se os dentes dos pobres.
na minha cidade, há mais igrejas do que ruas.
na minha cidade, as mulheres sangram pelo nariz.
na minha cidade, a música é um lençol violeta sobre a calçada molhada.
na minha cidade, os pássaros são vestidos com fardamento militar.
na minha cidade, a lua escreve poesias nas paredes das geladeiras do necrotério.
na minha cidade, ensinam aos homens a marchar sobre seios.
na minha cidade, as portas têm medo do vento.
na minha cidade, ...
na minha cidade, as pessoas se cumprimentam com dois beijos e um desprezo.
na minha cidade, as narrativas dos desapossados são enrabadas em um quarto branco
com orelhas cansadas.
na minha cidade, há cemitérios sem nome e túmulos com epitáfios em bronze.
na minha cidade, a sombra escolhe uma cor de pele para refrescar.
na minha cidade, os trabalhadores têm os pés inchados e sono sem cor.
na minha cidade, todo perto é amanhã e todo longe é agora.
na minha cidade, o medo tranca as ruas e Exu borboleteia nas encruzilhadas.
na minha cidade, os revolucionários têm empregadas domésticas negras.
na minha cidade, algumas crianças são afogadas no útero.
na minha cidade, a tristeza pinga das torneiras de casas sem reboco.
54
na minha cidade,
55
Congo
1
Foi o meu batismo. O relógio caminhava para as cinco horas da tarde. Batizado nas
águas da condenação. Fiquei desde aquele sábado com uma cicatriz no gesto, um hábito: não
suporto que minhas mãos fiquem contidas por nada nem por ninguém, ao dormir não me deito
sobre elas; também não cruzo os braços, jamais; dou apertos de mãos ligeiros ao
cumprimentar. Não me sento nem deito em lugares que travam os movimentos dos meus
braços. Percebo-me como um trabalhador congolês castigado pelo exército do rei Leopoldo II
da Bélgica. “Árvore que chora” foi o nome que os índios do Congo deram em tempos
imemoriais a uma espécie vegetal que ao ser ferida libera resina. Em julho de 1887 Nietzsche,
em Sils-Maria - Suíça, finalizava suas três famosas dissertações intituladas: Zur Genealogie
der Moral (Genealogia da moral). Em 1887 um irlandês, John Dunlop, inventou a roda com
câmera de ar, esta rapidamente fora incorporada às bicicletas. O novo produto exigia
borracha. E a borracha precisava da goma retirada da árvore que chora. A tal goma
galvanizada estava associada a imagem do progresso, ela revestia cabos telefônicos e
telegráficos, objetos domésticos. Por duas décadas o Congo “forneceu” a seiva do progresso.
E este país por estas épocas era propriedade particular de Leopoldo II. Ele impunha a cada
congolês uma meta no colhimento das lágrimas da árvore de goma. Aqueles e aquelas que não
cumpriam o estabelecido tinham a mão decepada. Os soldados fotografavam (outro signo do
progresso) os mutilados. Eu os vi. Tinham a minha cor. Desde o meu batismo me senti como
um congolês despedaçado, partido. Ninguém sabe o número exato, mas calculam que cinco
milhões destes africanos tenham sido mortos pelos comandados do rei nesse período.
Ninguém sabe quantos sucumbiram. Não perdi as mãos, mas elas não são as mesmas. Até
então eu acreditava que quem fazia o mal, receberia o mal; e quem fizesse o bem receberia o
bem. Já tinha visto atrocidades e em grande quantidades, e tinha certeza de que os
desgraçados tinham feito por merecer suas dores. Era como eu podia, com esta lógica infantil,
dar sentido aos desesperos que davam plantão nas nossas esquinas. Estávamos no bar do
Celso em São Gonçalo. Não bebíamos cerveja, o que nos arrastava para lá com uma força
irresistível eram os jogos. Senti que fui cortado do mundo naquela tarde. Minha memória
maior é uma espécie de disritmia, um pulso enlouquecido, ou melhor, é a pulsação caótica.
56
Sufocado pelo próprio coração, é a lembrança mais forte que restou. O desespero é perceber
meu ritmo posto em outras mãos. Fui separado do meu próprio coração. Assim me recordo. É
como se ele não suportasse mais a caixa torácica, ameaçado por algo terrível, contorcia-se e
me afogava. O cheiro de óleo de motor misturado ao cheiro do meu suor. Não me lembro
quase da textura das vozes, nem do significado das palavras, somente o eco do meu coração
desgovernado. Ele gritava em silêncio. Parecia crescer e crescer e emparedava meus pulmões;
pescoço e cabeça latejavam, minhas entranhas pareciam um fole pisoteado por uma junta de
bois assustados. O coração queria fugir antes de mim. Algemado, punha a palma de uma mão
no dorso da outra, procurava, naquilo que até então era meu corpo, um pedaço de mim
reconhecível. Eu deveria ter uns quinze anos. Tateava o desespero na traseira da minha mão
direita como um cego toca a face de um desconhecido pela primeira vez. Não me achava e
sentia que ia desmaiar. O coração crescia, implodia-me e os cacos pareciam cortar as paredes
do estômago que doía. Curvado, vomitei sobre minhas pernas. Esse batismo foi um exílio, um
exílio duplo. Desterrado do meu próprio corpo e desterrado do mundo. Vi que a vida não me
devia algumas delícias, era eu quem devia ao mundo. E o preço que ele me cobrava era a
minha vida... morta. É como se eu fosse um erro que se paga extinguindo-o. Foi um rasgo,
uma espécie de fronteira de arame cortante e intransponível posta entre mim e a terra, entre
mim e o restante das pessoas. Embora não pensasse nisso, sentia até então que pertencia, que
era filho, e bom filho, do mundo. Eu era bom, nem se quer tinha vivido o bastante para poder
fazer um mal; imaginava, no máximo, fazer umas besteiras. Entendia-me como bom e o
mundo me devia generosidades. Eu mesmo era o mal, foi o que vi naquela tarde. O mal não
estava em mim, era eu. O batismo foi essa travessia, essa passagem. Foi isso, um ritual de
passagem. Uma experiência. Conduzido do bem ao mal em uma única tarde. Saí
transformado, modificado, ou mais precisamente, mortificado. Cheguei mesmo a pensar que o
que aconteceu foi uma punição por causa dos meus maus pensamentos ou porque eu enganava
e desobedecia à minha mãe ou porque às vezes me invadia a raiva e sentia vontade de dar uns
murros no meu pai quando ele me irritava. Aí as faltas mais graves que garimpava naquela
época. Espremido na caçapa do camburão, era assim que era chamado o carro de polícia,
indagava-me qual teria sido meu veredicto e qual a seria a acusação. É possível reverter,
anular, neutralizar um batismo? É possível atravessar o rio no sentido contrário, desbatizar-se?
Nunca soube de tal rito e de ninguém que o tenha feito. Naquela tarde morreu alguma coisa
em mim. Lá naquele lugar, todo mundo sabe onde é, decidiram não tirar minha vida.
57
gostava da cidade... olhou para trás e foi repentinamente transformada numa estátua de sal.
Morreu minha Sodoma e Gomorra lá naquela campina de desova. Quantos acabaram
destruídos? Ninguém sabe. Não olhar para trás é não mirar a vida antes dessas mortes? A
ordem de não olhar para trás tinha o intuito de me fazer esquecer o tempo no qual eu jogava e
só queria jogar e a vida jogava comigo? Para eu não lembrar das minhas cidades antes da
condenação? Seria isto? O rosto dos que me sequestraram, eu já tinha fitado, e mesmo assim
ordenaram, “corra e não olhe para trás!”. Ló correu, eu corri, e carregamos conosco as nossas
cidades mortas. E me sentenciaram a não olhar para trás, para não contemplar as gomorras
ainda vivas? Ninguém sabe das dores de Ló. Talvez ele muito tenha se atormentado por ter
corrido e não possuir a coragem da sua esposa, olhar para trás. Ela ficou lá, deve está lá até
hoje, talvez ao lado da cidade que amava; e Ló protegido em um buraco. Eles me mandaram
correr e viver como Ló, vivo e morto, preso a um hoje sem espessura. A única memória que
resta não é da cidade viva, já que não se pode olhar para trás e muito menos para adiante, mas
a memória da dívida. Esta gostaria muito de esquecer. Os anjos não param de me pegar pela
mão e dar a direção dos meus passos. Dívida por me deixarem sair com as mortes que
lançaram sobre mim, e por me oferecerem buracos nos montes. Gostaria também que os anjos
me esquecessem. Ló, Jó os congoleses e eu sabemos que aqueles que nos possuem e nos
protegem podem decidir que somos impuros e injustos, talvez já tenham decidido, e enviarão
seus anjos sem nome até as cavernas deles. Eu sei, desde esse batismo de morte, que sou o
mal. É um saber terrível. Independentemente do que eu faça, já estou condenado. Desde essa
tarde me oferecem como única comida a renúncia total, como único gesto o desprezo por mim
e contra o mundo, contra o jogo; ensinam-me a amar a imagem branca daqueles anjos que
extinguiram Gomorra e Sodoma, amar o senhor dos homens que me caçam. Desde a tarde do
batismo me dão instruções em buracos e de lá, se for bom aprendiz, poderei sair para caçar e
ensinar virtudes arianas para aqueles e aquelas que não estão mortificados ainda. Tornar-me-ei
um estrangulador de ritmos próprios e o meu único prazer, é isso que os anjos esperam, será
perceber o coração de cada um definhando como o meu; e a humilhação será nosso
cumprimento matinal. Foi o meu batismo.
59
A mulher sem nome. Ela era uma peça e não era uma peça. Ela tinha proprietário e
não tinha proprietário. Ela era mãe e não era mãe. Certamente os seus filhos a chamavam pelo
nome. Qual seria? Ela tinha um nome e não tinha nome.
Vivia como alforriada a mais de 25 anos e nesse período teve cinco filhos. Parece
que sonhou jamais voltar a ser propriedade de alguém. Parece que sonhou não submeter suas
crias à escravidão.
O jornalista se referiu a ela como “preta”, “mulher”, “mãe”, “forra”, “ela”. Os
historiadores a chamam de “escrava”, “preta”, “forra”, “peça”, “mulher”, “ela”.
Pelas investigações e escritos do delegado de polícia, “ela” trabalhava e vivia sob a
proteção de um fazendeiro. Mas este morreu. O antigo proprietário parece que não se
esqueceu dela. Acionou a polícia para reaver sua propriedade desgarrada. E a preta valia
muito, pois retornaria com cinco filhos. Por volta de 1860 o tráfico interprovincial de
escravizados estava em alta. Seriam bons negócios vender os filhos da escravizada que se
achava dona de seus passos.
Ela e os cinco filhos são capturados e espetados na cadeia. Um juiz determina,
tempos depois, que sejam soltos. Ela se muda para outro engenho. O senhor a persegue.
Irrefreavelmente o cativeiro se aproxima como o nascer do sol.
Em 27-06-1862 o jornal Diário da Bahia narra o desfecho ocorrido em Santo Amaro:
Recebemos do Libador de St° Amaro de 21 do corrente.
Lê-se nesta folha:
Que barbaridade! em um desses últimos dias apareceram em um tanque do
engenho Preguiça, propriedade do sr. Comendador Paranhos seis cadáveres,
cinco dos quais se achavam amarrados. Referem-nos que eram mãe e filhos, e
contam-nos o fato pela maneira seguinte: essa preta homiziara-se no engenho
Brejo, quando propriedade do capitão José Francisco de Pinho, aí passando
sempre por forra, tivera esses filhos. Agora, porém, chegando ao seu
conhecimento, que o senhor fora sabedor de acharse (sic) ela ali, e que de
certo a viria buscar, não querendo mais sujeitar-se ao cativeiro, manietara os
filhos e os lançara a afogar no tanque, e depois se atirara também.
Acrescentam que a preta tivera cúmplice no seu horrível atentado, visto como
os filhos já tinham idade e forças para resistir a esse ato contra suas
existências. A polícia tendo notícia de semelhante acontecimento, para lá
seguiu a proceder a corpo de delito, cujo resultado ainda ignoramos! (Apud
Reis, 1998, p. 78).
3
Concluo: As políticas da subjetividade branca são contrárias à vida.
Até os mais antigos mitos africanos nos falam desses homens louros.
São eles os fundadores de Estado. Nietzsche chega a estabelecer outros
cortes: da cidade grega, do cristianismo, do humanismo democrático e
burguês, da sociedade industrial, do capitalismo e do socialismo. Mas é
possível que, a títulos diversos, todos eles supunham este primeiro grande
corte, embora também pretendam repeti-lo, excedê-lo. Espiritual ou temporal,
tirânico ou democrático, capitalista ou socialista, é possível que tenha havido
somente um único Estado, o cão-Estado que “fala por uivos e solta fumaça
pelas ventas”. […] A terra devém um asilo de alienados. (Deleuze; Guattari,
2010 [1972], pp.254,255 – Itálicos no original, negritos meus)
Estado? Que é isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque eu vos vou falar
da morte dos povos.
[…]
Destruidores foram os que puseram armadilhas para o grande número, e
a isso chamam o Estado; suspendem sobre sua cabeça uma espada e cem
apetites.
Onde ainda há povo, não se compreende o Estado, e é detestado com o
mau olhar, como uma transgressão dos costumes e das leis.
[…]
Na verdade, o Estado é um sintoma da vontade de morrer. Na verdade, é
um convite aos pregadores da morte.
[…]
Sim; inventou para o grande número uma forma de morte que se
glorifica de ser vida; na verdade, foi o melhor serviço prestado aos pregadores
da morte.
Estado, sei, é onde todos bebem veneno, bons e maus; Estado, onde
todos se perdem a si mesmos, bons e maus; Estado, onde o lento suicídio de
todos chama-se ‘a vida’. (Nietzsche, 2014, pp.64-65)
4
Concluo: amor branco é amor de rebanho. Este amor é desprezo e horror a Terra e
aos filhos desta.
Bem o sabes; o covarde demônio que dentro de ti se compraz em juntar
as mãos e em cruzar os braços, e que desejaria ter uma vida mais fácil, esse
covarde demônio disse-te: “Há um Deus!” (Nietzsche, 2014, p. 231)
Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas porque
não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo
vos odeia. (João 15:19)
9 O antropólogo Bruce Albert explica que “Teosi vem do português ‘Deus’. Essa ‘gente de Teosi’ são os
missionários evangélicos fundamentalistas da organização americana New Tribes Mission (NTM), que
fizeram sua primeira visita ao alto rio Toototobi em 1958, quando Davi Kopenawa devia ter dois ou três
anos. A NTM foi fundada nos Estados Unidos, em 1942, por Paul W. Fleming e tem sede em Stanford,
Flórida; é conhecida no Brasil como Missão Novas Tribos (MNTB).” (Kopenawa; Bruce, 2015, p. 610)
10 Demiurgo da mitologia yanomami.
67
Para nós, todas essas palavras de branco a respeito de Teosi são sem
valor.
[…] Assim é. Continuaremos fazendo dançar as imagens dos ancestrais
animais para curar os nossos enquanto estivermos vivos, pois somos
habitantes da floresta. (Kopenawa; Bruce, 2015, pp. 278-279)
Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal
gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos
direitos de sobreviver à margem do rio Hovye próximo de nosso território
tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão
da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio
histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é,
a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas
vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já
perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso
território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos
denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do
Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências
contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos
morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva
de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos
aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes,
sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e
tortura de pistoleiros das fazendas.
11 Para uma análise desta carta e de alguns de seus desdobramentos, conferir Librandi-Rocha, M. A Carta
Guarani Kaiowá e o direito a uma literatura com terra e das gentes. estudos de literatura brasileira
contemporânea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014
71
, assim, observamos uma sociedade dominada por uma tara: o estado de obediência e seus
afluentes, mortificação de si, humildade, humilhação, renúncia de qualquer vontade própria.
Os indivíduos dessa sociedade tem uma outra obsessão: julgar. Julgar para punir,
punir, punir. Tarados mesmo por julgamentos. Aí a vida das pessoas gira ou melhor fica
atolada nesse esquema. Como é que se ensina e aprende? Punição e obediência. Como é a
religiosidade dessa gente? A divindade tem que punir e exigir obediência. E como se cuida
dos doentes? Obediência e punição. E o que define o "bom" cidadão dessa comunidade? É
aquele que obedece e está apto à punição. E como esse povo ama? São criativos, exigem
obediência e promovem punição. E a relação econômica desse pessoal? O mesmo, obediência
e punição. E a relação com as crianças, as forças da natureza, as forças do corpo? Punir punir
e obedecer obedecer. E a morte, o que é a morte pra eles? Punição. Isto a tal ponto que na
mitologia religiosa deles a punição vai caçar o indivíduo depois de morto e lhe dará uma
morte eterna. E o que é a vida para esses autóctones? A literatura etnográfica afirma que é
punição por alguma coisa que os pais deles fizeram. Eles acreditam que já nascem devendo, a
queda, logo aptos a punição, ao sofrimento. O sistema religioso dominante entre esses
selvagens afirma que a vida apartada de dor, da morte, do sofrimento, a vida em gozo virá
somente depois da morte. Mas somente pra quem obedeceu em vida.
Tem mais para ter menos.
Os mais velhos entre eles escreveram (eles se orgulham da sua história documentada,
escrita) que num determinado momento de sua história (eles também se orgulham de possuir
História) surgiu um novo personagem que logo logo teve adoradores (há entre eles quem diga
que essa entidade sempre existiu, embora o culto seja recente). Está nos textos deles que isso
deu confusão, guerras, uma espécie de ciúme. Diziam uns que quem se curvava a esse novo
personagem estava renegando a divindade mais antiga. A este novo ídolo eles chamam
Estado. Detratores acusam os sacerdotes desta divindade de supérfluos. Homens supérfluos. E
esse ídolo? Ele tem gosto por duas oferendas: punição e obediência. Aí parece que a
estranheza passou, porque esses ritos a tal sociedade sabia de cor e salteado. O panteão deles
tem arranjos curiosos, tem aqueles que depositam toda a sua fé no ídolo mais novo, a salvação
virá dele. Outros já aceitam adorar a ambos, mas de forma hierarquizada (aqui é outra coisa
que é costurada com fios de cobre na alma desse povo, a hierarquia). A salvação será efetuada
72
pelos dois, um salva a vida mundana o outro garantirá as delicias celestiais. Especialistas se
dividem. Eles são monoteístas, é a tese de uns. São politeístas, hipótese de outros. Estes
chegam a descrever outras divindades: ciência, capitalismo, homem branco, razão.
Essa comunidade tem uma característica a mais. Trata-se de uma acentuada
incapacidade de se relacionar com aquilo que destoa deles. Os mitos deles não abrem espaço
para o mistério, para o diferenciado, o estranho, o incompreensível. Não. Percebe-se então
que eles julgam os valores deles como universais. Os ídolos deles são projetados sobre aquilo
e aqueles que não são eles. Ou melhor, não existe não-eles. Tudo é eles. O que destoa é no
máximo eles mesmos mas degradados. Duplos mal acabados.
Esse povo tem um comportamento um tanto insólito. Quando eles se deparam no
meio deles ou longe deles com algo que não cabe nos seus esquemas, na sua tábua de valores,
o que eles fazem? Tentam salvar. É a compaixão. Usam suas máquinas de punição e
recompensa para reduzir tudo a imagem deles. E se não funcionar? Eles desenvolveram ao
longo de milênios uma tecnologia muito eficaz. Eles matam. É a formação histórica, milenar,
não há explicação plausível, deles que os deixa impotentes diante do mistério. Eles temem,
eles matam.
Aqui então se vê mais uma tara desse grupo étnico, eles amam com ardor a morte. A
divindade mais popular entre eles é um personagem com a cor deles, o rosto deles e o cabelo
deles afixado, morto, dependurado no madeiro. Ele se deixou matar docilmente.
É difícil explicar isto. Alguns tentaram. Tentemos. Se a vida é aquilo que produz
diferença, se o vivo produz diferença, se a vida é um vetor de diferenciação, esse povo se vê
ou se viu em completo desespero diante do mundo. E um mundo que não cabia no deles. Eles
por medo da vida parecem ter concretado o mundo com a sua imagem e semelhança. E
saíram. Saíram dominados por duas atitudes: reduzir tudo a esta imagem e o que não for
possível, eles exterminam. Ou seja, é sempre a vontade de matar. Nós, os mortos, dizem eles
nas noites de festas, nós os mortos, mataremos.
Essa sociedade com essas duas garras (punir obedecer) e seus ídolos submeteram o
mundo. Mataram o mundo. Fizeram do mundo o grande cemitério, semelhante a eles. Esse
povo medroso e pobre se tornou rico. Continuou medroso. Deixou atrás de si inúmeros
sacerdotes dos seus ídolos - para não deixar nascer vida nova sob o sol - e imensos vales de
escombros e cadáveres. Os que não são sacerdotes e não são herdeiros desses adoradores da
73
morte tentam com o peito nu beijar a vida. Mas são implacavelmente mortos ou reduzidos a
imagem daquela gente.
Os fracos venceram.
74
7
Bahia. Seu corpo é meu.
Jornal Correio Mercantil, 14-04-1841:
Quem quiser comprar um bonito jumento, e uma preta nagô, moça e parideira,
ja foi do trabalho de enchada, e sem vício nenhum, procure no aljube, c - 29,
que achará com quem tractar.
Jornal Correio Mercantil, 25-05-1841:
Vende-se uma negra de nação gége, que terá de idade 18 annos, com uma filha
de três, tem o préstimo de lavar, e vender/ e vende-se um moleque nagô, que
terá de idade 15 annos mais ou menos; quem pretender procure na rua
d'Ajuda, sobrado da quina de ama rei lo; e tambem se dirá quem vende 4
sendeiros de sella, gordos, e 13 rezes crioulas, entre vaccas, vitellas, e
bizerros.
Jornal Correio Mercantil, 23-04-1841:
Joaquim da Silva Rocha, ainda tem uma porção de dúzias de taboas de pinho
da Suecia, de differentes grossuras e até 30 palmos de comprido, e vende pelo
menor preço que he possivel... O mesmo vende um moleque africano quem
precisar de algum destes objetos procure o annunciante por baixo do Henrique
Marcineiro, ou na loja do mesmo. (apud Reis, 1998, pp. 58, 61)
75
Branca
1
A subjetividade branca?
Observe as próximas três páginas.
A autoridade filosófica Gilles Deleuze afirmou - ao analisar a obra do filósofo holandês
B. de Espinosa - em um livro que tem por título Filosofia prática: “A explicação é sempre
uma auto-explicação, um desenvolvimento, um desenrolar, um dinamismo: a coisa se
explica.” (Deleuze, 2002, p.81 – itálico no original).
76
77
78
79
Azul
O triunfo de Aquiles, de Franz Von Matsch, 1892 (afresco pintado no Palácio Achilleion, Grécia) 12.
a) A Guerra de Troia chega a seu décimo ano de batalhas. Homero narra, no poema épico
Ilíada, acontecimentos que marcam a fase final da peleja por Helena. A pintura de Matsch enquadra
um dos momentos mais importantes desta guerra: o destino do guerreiro troiano Heitor. Lá estava,
momentos atrás, Heitor nos portões da cidade gritando o nome do grego Aquiles; lá estava o pai do
troiano rasgando as próprias roupas e gritando de cima da muralha, aos prantos, para que seu filho, que
já tinha matado inúmeros outros guerreiros gregos, abrigasse-se dentro da cidade, pois o velho rei
estava cansado devido a tantas perdas; lá estava a mãe de Heitor, velha e rainha, em uma cena
comovente, colocando o seio para fora e do alto da muralha pedindo para que seu filho, que um dia
mamou naquela teta, entrasse na cidade. Irredutível, Heitor não pode negar a sua vocação guerreira.
Os deuses põem na balança os dois combatentes, embora querido por Zeus, o destino do troiano fora
traçado no Olimpo: a alma de Heitor irá para o Hades hoje. Após quatro voltas lutando em torno das
muralhas, Heitor desfalece. Metade deus e metade humano, Aquiles o vencedor:
Aquiles tinha se retirado da guerra, mas a ela voltara furioso após a morte de
Pátroclo (seu primo e grande amigo) pela espada de Heitor.
Aí está, no afresco de Matsch, a fúria da vingança; aí está o espólio do morto, o
capacete na mão de Aquiles; aí está a longa lança que achou brecha na armadura; aí está os
corcéis tocados em alta velocidade; aí está Heitor sem armadura e amarrado com pele de boi à
biga; aí está o júbilo de Aquiles que arrasta o morto diante das portas da cidade; e lá, lá ao
fundo, a cidade quebrantada chora:
b) Alexandre da Macedônia (nascido em 356 a.C. e morto em 323 a.C.,) 14, o mesmo
que é a personagem de uma diatribe gestual cínica. Conta-se que Diógenes, o mais conhecido
desta corrente, estava na praia. Alexandre e sua corte vai ao encontro do famoso filósofo, este
tinha como teto o céu e como casa um barril. O macedônio gostava de longas discussões com
os sábios. Diógenes parece não dar a menor importância para a presença de o Grande.
Alexandre diz admirá-lo e afirma que o cínico pode lhe pedir o que quiser, e eis a solicitação:
“Desejo que saia da frente do meu sol”. O conquistador teria dito aos seus generais, os quais
zombavam da atitude do filósofo: “Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes”. A
crítica cínica é direta, Diógenes não vê nenhuma grandeza no homem de poder. O destino da
filosofia no ocidente não acompanhará esta atitude, nascerão pensadores de Estado.
Analisando, em 1977, o livro Les Maîtres penseurs (Os mestres pensadores) de André
Glucksmann, Foucault escreverá sobre a filosofia política e sua relação com os “jogos do
Estado”:
Os massacres napoleônicos têm, há um século e meio, uma pesada
descendência. Mas apareceu outro tipo de holocausto: Hitler, Stalin (o
intermediário entre uns e outros e o modelo do segundo encontrando-se, sem
dúvida, nos genocídios coloniais). Ora, toda uma esquerda quis explicar o
goulag15, senão como as guerras, pela teoria da história, ao menos pela história
14 Alexandre teve como mestre intelectual Aristóteles. Plutarco, biógrafo dos antigos homens ilustres, ensaia
decifrar a origem da coragem do jovem que aos 16 anos saiu para vencer os rivais nas cidades gregas e nos
países “bárbaros”. Ele faz uso de uma difundida “teoria” segundo a qual o temperamento e suas virtudes ou
fraquezas eram produtos da temperatura corporal do indivíduo: “Li, nas Memórias de Aristoxeno, que sua
pele [de Alexandre] era perfumada, exalando-se-lhe da boca e de todo o corpo um odor agradável, que lhe
perfumava a roupa. Talvez isso se devesse ao calor de seu temperamento, que era ardentíssimo; pois o bom
odor é – como diz Teofrasto – o produto da cocção dos humores, mediante o calor natural. Aliás, os países
secos e mais quentes da Terra são os que produzem em maior abundância os aromas melhores, uma vez que
o Sol atrai, com substância corruptível, toda umidade que flutua na superfície dos corpos. Provinham,
decerto, desse calor natural a coragem de Alexandre e o seu gosto pelo vinho.” (Plutarco, 2004, p.16). Sobre
o calor dos corpos, escreve Sennett: “A fisiologia grega justificava direitos desiguais e espaços urbanos
distintos para corpos que contivessem graus de calor diferentes, o que se acentuava na fronteira entre os
sexos, pois as mulheres eram tidas como versões mais frias dos homens.” (Sennett, 2003, p.31). A coragem
portanto era da ordem da natureza, o sujeito nascia ou não com a virtude da coragem. Platão pensava que a
educação deveria servir para selecionar e aperfeiçoar as crianças que já demonstravam o temperamento com
mais bravura. Chega a imaginar que seria útil uma droga que ingerida pelos jovens produzisse alucinações
aterradoras, assim seria possível definir os destemidos para, futuramente, exercer as atividades mais
importantes no governo da cidade (Foucault, 2014, p.89,90). Para Aristóteles, pelo menos na Ética a
Nicômaco, a coragem – que é a mediania, o equilíbrio, entre o temerário e o covarde – parece depender mais
da educação e do hábito. Aliás, aí onde Plutarco vê a origem da coragem, Aristóteles, que viveu antes deste,
identificava um erro de nomeação. O indivíduo de temperamento sanguíneo (o de corpo mais quente) não
teria, para o filósofo peripatético, a verdadeira coragem, simplesmente porque o sanguíneo pensa ser mais
forte do que os adversários e imune aos males. Ora, diz Aristóteles, se observarmos o comportamento dos
“sanguíneos transitórios” (os homens embriagados) veremos que estes podem se passar por corajosos, mas,
na verdade, ignoram o perigo real e se superestimam; são, mais precisamente, intemperantes. Desprezar o
medo não é sinônimo de coragem (2007)).
15 Stalin tomou o Estado na Rússia em 1917, no final de 1919 já existiam 21 lager registrados, ou seja, foram
iniciados bem antes do que os campos nazistas e se estenderam por muitas décadas depois destes. Para uma
82
da teoria. Massacres, sim, sim, mas “foi um erro terrível”. Releiam então
Marx ou Lenin, comparem com Stalin e vocês verão com clareza onde foi que
este se enganou. Tantos mortos, é evidente, só poderiam vir de um erro de
leitura. Poder-se-ia prevê-lo: o stalinismo-erro foi um dos principais agentes
desse retorno ao marxismo-verdade, ao marxismo-texto ao qual assistimos
durante os anos de 1960. Contra Stalin, não escutem as vítimas, pois estas só
teriam seus suplícios para contar. Releiam os teóricos. Eles lhe dirão a verdade
do verdadeiro.
[E em uma passagem anterior a esta, ele afirma]:
A prova decisiva para os filósofos da Antiguidade era sua capacidade
de produzir sábios que, na Idade Média, racionalizassem o dogma; na Idade
Clássica, fundassem a ciência. Na época moderna, é sua aptidão a justificar os
massacres. Os primeiros ajudam o homem a suportar sua própria morte; os
últimos, a aceitar a dos outros. (Foucault, 2012, pp.68-69)
Desviei-me muito. Alexandre, como escrevia, cerca mais uma cidade em algum lugar
perto do que seria nomeado tempos depois como Oriente Médio. Ele vencera um dos maiores
exércitos que a Antiguidade conheceu, o da Pérsia do rei Dario (o pai deste era o rei Xerxes, o
qual subjugou as cidades gregas). Alexandre, o Grande, empreende um longo cortejo
conquistador. Cerca então uma pequena cidade fortificada. Como de costume, dá os termos da
rendição. A cidade, porém, decide guerrear e impõe uma resistência inesperada e infernal aos
exércitos gregos. Após dias e dias de sitiamento, a cidade cai. Os cronistas reais não se
preocuparam em registrar o nome da cidade, mas do homem que orquestrou a luta, sim: Batis.
Ele é morto, finalmente. Alexandre o amarra pelos pés em um carro e os cavalos arrastam o
falecido através dos acampamentos gregos.
Heitor16 e Batis, Aquiles e Alexandre: homens de guerra. O gesto de arrastar é
marcado, como se vê, por um triunfo: vitória no combate. Os arrastadores, caso perdessem,
também poderiam ser arrastados. Seriam despojo de guerra, troféu. A guerra é um “sim”, das
partes envolvidas, para a possibilidade de morrer. E nestes casos, o risco compartilhado de ser
puxado como troféu conquistado.
c) 2 de março de 1757, Paris. Michel Foucault tornou famoso o nome Damiens ao
citar, no início de Vigiar e Punir, um grande relato contendo os detalhes dos procedimentos
punitivos contra este condenado: “e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro
cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas
lançadas ao vento.” (Foucault, 1987, p.9)
condenado entrava numa espécie de luta com o carrasco, até o último instante, momentos
antes da execução da pena capital, o destino do julgado não estava decidido.
A personagem principal da execução pública era o povo. O espetáculo era feito para
este, o brilho do rei e o terror de sua força deveriam se abater sobre o povo. Mas acontecia de
o povo se por, não ao lado do carrasco, mas do condenado. Essa fricção entre a justiça do
soberano e o corpo do povo será condenada no final do século XVIII pelos reformadores do
sistema punitivo europeu. Eles identificavam perigos aí, espaços para revoltas. No instante
mesmo da execução, no cadafalso, o rito se carnavaliza e os papéis são invertidos: nesse
momento o condenado pode muito, pois já não tem nada mais a temer, blasfema contra o céu,
insulta os poderosos, xinga o rei. E o povo por vezes se vê nessas personagens com a foice
colada ao pescoço, dores e descontentamentos compartilhados: espancam o carrasco e
libertam o até então condenado. Batalha absurdamente desequilibrada, mas batalha ainda. “A
infâmia se transforma no contrário; a coragem deles, seus gritos e lamentos só podem
preocupar a lei”. E continua o filósofo francês: “Para o povo que aí está e olha, sempre existe,
mesmo na mais extremada vingança do soberano, pretexto para uma revanche.” (Foucault,
1987, p. 51)
Nesta liturgia dos suplícios, no palco do teatro da dor, possibilidade ainda da
emergência da coragem. Os folhetins, as novelas e os almanaques – toda uma literatura
popular que narrava os últimos atos destes criminosos – por vezes fabricavam santos (pois
resistiram de modo incomum dores indescritíveis) e faziam entrar na história heróis negros
(porque forças indomáveis diante de poderes atrozes). Havia ali ainda a possibilidade de
combates.
Heitor, Batis e Damiens. As muralhas de Troia, o calor do Oriente Médio, as ruas de
Paris. Arrastados, mas em batalhas. Arrastados, mas em confrontos. Arrastados, mas
desafiando outras forças, ora simétricas, ora infinitamente desiguais. Arrastados, mas não
apartados da possibilidade de alguma glória, mesmo sob o bafo da morte. Arrastados, mas não
totalmente esquartejados da força da coragem.
Chegará o dia no qual a coragem não achará mais momentos oportunos. Chegará o
dia no qual o poder quererá se movimentar nas sombras para por sob a luz outras personagens,
chegará o dia no qual o governo não incitará mais nenhum combate, chegará o dia no qual o
adestramento substituirá as cerimônias e os jogos, chegará o dia no qual haverá condenados e
condenadas desde antes de nascer, chegará o dia no qual o poder não se preocupará com a sua
85
própria força, nem com a sua glória, mas se encarregará da vida de todos e de cada um, não
mais vingança, nem força desmedida, mas cuidado, cuidado através da polícia. Este dia
chegou. Faz tempo.
Na relação de soberania, o soberano recolhe produtos, colheitas,
objetos fabricados, armas, força de trabalho, coragem; […].
No exército, tal como existia sob essa forma que chamarei de poder
de soberania, existia algo que poderíamos chamar de exercícios: eram coisas
como as justas, os jogos. Isto é, regularmente, os guerreiros, pelo menos os
que eram guerreiros por estatuto, isto é, nobres, os cavaleiros, praticavam a
justa, etc. Em certo sentido, pode-se interpretar isso como uma espécie de
exercício, como um condicionamento do corpo; mas era essencialmente, creio,
uma espécie de repetição de bravura, […]. (Foucault, 2006, p.53, 60 – itálicos
meus)
Assim é aberto o capítulo “Os Corpos Dóceis”, ele integra o Vigiar e Punir:
Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal
do soldado. O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que
leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu
orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade
que deve aprender aos poucos o ofício das armas – essencialmente lutando –
as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam,
em boa parte, de uma retórica corporal da honra […].
Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se
fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que
se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação
calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto,
torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo
dos hábitos; […].
[e mais adiante]:
Desde o fim do XVII, o problema técnico da infantaria foi de
libertar-se do modelo físico da massa. Armada de lanças e mosquetões –
lentos, imprecisos, que não permitiam ajustar um alvo e mirar – uma tropa era
usada ou como um projétil, ou como um muro ou uma fortaleza; “a temível
infantaria do exército da Espanha”; a repartição dos soldados nessa massa era
feita principalmente segundo sua antiguidade e valentia; no centro,
encarregados de fazer peso e volume, de dar densidade ao corpo, os mais
novatos; na frente, nos ângulos ou pelos lados, os soldados mais corajosos ou
reputados os mais hábeis. […]
[Já no XVIII] O corpo singular tornou-se um elemento, que se pode
colocar, mover, articular com outros. Sua coragem ou força não são mais as
variáveis principais que o definem; mas o lugar que ele ocupa, o intervalo que
cobre, a regularidade, a boa ordem segundo as quais opera deslocamentos. O
homem de tropa é antes de tudo um fragmento de espaço móvel, antes de ser
uma coragem ou uma honra. (Foucault, 1987, pp.117,137,138-139 – itálicos
são meus)
17 Em nota o tradutor Paulo César escreve: “Hic niger est significa literalmente ‘esse é negro.’” (p.143).
87
da Itália, que através da cor se distinguia claramente da raça loura, ariana, dos
conquistadores tornados senhores; ao menos o gaélico me oferece um caso
correspondente – fin (por exemplo, no nome Fin-Gal)18, o termo distintivo da
nobreza, por fim do homem bom, nobre, puro, originalmente o homem louro,
em contraposição aos nativos de pele escura e cabelos negros. Os celtas, diga-
se de passagem, eram sem dúvida uma raça loura; […]. (Nietzsche, 2009, pp.
19, 20 – itálicos no original)
Na segunda dissertação, intitulada “Culpa, má-conciência e coisa afins”, ele fará uma
relação entre memória e dor, e a progressiva vergonha, diante do prazer na crueldade (infligir
dor), que o homem europeu desenvolveu ao longo dos séculos, uma sublimação dos instintos
agressivos, a moleza tomou conta da vida. Escreve ele:
Talvez então – direi para consolo dos fracotes – a dor não doesse
como hoje; ao menos é o que poderia concluir um médico que tratou negros
(tomados aqui como representantes do homem pré-histórico -) vítimas de
graves infecções internas, que levariam ao desespero os mais robustos
europeus – o que não acontece com os negros. (Nietzsche, 2009, p. 52 –
itálico no original)
18 Em nota o tradutor: “Fin-Gal: herói mítico irlandês do século III a. C. (p. 143).
88
da cruz”), o que seriam as vivissecções de animais interrogados com o bisturi para a extração
de respostas científicas?
Pauline terá seu segundo bebê. Ela é uma personagem do romance O olho mais azul
escrito pela grande autora norte-americana Toni Morrison. Pauline, uma mulher negra, faz a
seguinte reflexão:
(…) Me puseram num quarto grande, com um bando de mulher. As
dor tava vindo, mas não muito forte. Um médico baixinho e velho veio me
examinar. Ele tinha um montão de instrumento. Pôs uma luva, passou um
creme na mão e enfiou a mão entre as minhas perna. Depois que ele foi
embora, vieram outros médico. Um velho e outros moço. O velho tava
ensinando os moço sobre bebês. Mostrando como fazer. Quando chegou a
minha vez, ele disse que com essas mulher vocês não tem problema algum.
Elas dão à luz logo e sem dor. Exatamente como as égua. Os moço deu um
sorrisinho. Olharam a minha barriga e entre as minha perna. Não me
disseram uma palavra. Só um olhou para mim, pro meu rosto. Eu encarei ele,
ele baixou a vista e ficou vermelho. Acho que ele entendeu que eu talvez não
era uma égua parindo. Mas os outros não entendeu, foram em frente. Eu vi
eles conversando com as mulher branca: ‘Como você está se sentindo? Vai
ter gêmeos?’. Conversa à toa, claro, mas conversa boa. Conversa boa e
atenciosa. (…) O que é que eles pensava? Que só porque eu sabia como ter
um bebê sem fazer espalhafato o meu traseiro não tava repuxando e doendo
como o delas? E também aquele médico não sabia o que estava falando. Ele
nunca deve ter visto uma égua parir. Quem disse que ela não senti dor? Só
porque não grita? Só porque ela não sabe gritar, eles pensa que a dor não
está lá? Se eles olhasse no olho dela e visse os globo arregalado, visse o
olhar aflito, eles ia saber. Bom, o bebê veio. Grande e saudável. Ela era
diferente do que eu tinha imaginado. (…) Um bebê esperto. Eu gostava de
olhar pra ela. Eles faz um barulhinho guloso. O olho meigo e úmido.
Cruzamento de cachorrinho e homem morrendo. Mas eu sabia que ela era
feia. A cabeça coberta de um cabelo bonito, mas, meu Deus, como ela era
feia”. (Morrison, 2003, pág.126 - itálico no original)
Cláudia era conhecia como Cacau na comunidade, tinha quatro filhos e criava
outros quatro sobrinhos.
- Foi revoltante ver aquele corpo pendurado. Eles iam ultrapassando outros
carros, e o corpo ia batendo. As pessoas na rua gritavam, tentando avisar os
policiais, mas eles não ouviam. Só pararam por causa do sinal e, aí,
conseguiram ouvir o que as pessoas diziam. Dois policiais, então, desceram da
viatura e puseram o corpo de volta no carro - disse o cinegrafista.
19 https://extra.globo.com/casos-de-policia/moradores-da-comunidade-de-congonha-fazem-protesto-apos-
morte-de-mulher-durante-operacao-policial-11892904.html
90
- Eles arrastaram minha mãe como se fosse um saco e a jogaram para dentro
do camburão como um animal - revoltou-se a jovem.
Agora é uma mulher arrastada. Uma mulher negra. Está lá a imagem, Claudia de
blusa vermelha e um short jeans, colada no asfalto e presa ao carro.
20 https://extra.globo.com/casos-de-policia/viatura-da-pm-arrasta-mulher-por-rua-da-zona-norte-do-rio-veja-
video-11896179.html
92
Indez
Indez é essa lima. O muro é como uma boca da qual saem dois cantos, duas vozes no
momento da criação: a voz organizada e com mau hálito do sacerdote, e o canto desarticulado
de um bebê. Criar é ouvir o bebê, acolhê-lo, captá-lo, retirá-lo do seio do muro. “É como o
lamento de um abismo sendo aberto: a terra ferida grita, mas vozes se levantam, profundas
como o fundo do abismo e que são o fundo do abismo gritando” (Artaud, 1985, p. 79). Por
94
outro lado, da psicologia do sacerdote, que sempre quer tudo julgar, deve-se tentar fugir.
“Morte, morte, esse é o único julgamento, e o que faz do julgamento um sistema. Veredito”
(Deleuze; Guattari, 1996, p. 45).
A doutrina do julgamento se desenrola desde a tragédia grega e deságua na filosofia
moderna. O primeiro a se rebelar contra tal doutrina foi Espinoza. Artaud, que padeceu
terrivelmente do juízo implacável dos psiquiatras, foi um dos que deu continuidade a essa
revolta. Em uma Carta aos médicos dos manicômios ele escreve,
[…] nos rebelamos contra o direito concedido a homens – limitados ou não –
de sacramentar com encarceramento perpétuo suas investigações no domínio
do espírito.
E que encarceramento! Sabe-se – não se sabe o suficiente – que os
hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos
fornecem uma mão-de-obra gratuita e cômoda, onde os suplícios são a regra, e
isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da
ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra. (Artaud,
1985, p. 30)
Ninguém me acredita
e posso ver o público dando de ombros
mas esse tal cristo é aquele que
diante do percevejo deus
aceitou viver sem corpo
quando uma multidão
descendo da cruz
à qual deus pensou tê-los pregado há muito tempo,
se rebelava e armada com ferros,
sangue,
96
fogo e ossos
avança desafiando o Invisível
para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS.
(Artaud, 1985, pp. 153, 154 – destaque no original)
É possível perceber em cena esse sim à crueldade do real quando a atriz sai trêmula
de dentro de uma banheira de ferro, como um potro recém-nascido, e desaba de cara no chão
coberto de comida em decomposição. É como se ela mergulhasse no meio dos restos de uma
grande oferenda numa encruzilhada. E ali as forças de Indez se debatem com outras em
decomposição. Não o belo texto recitado com voz empostada, mas o corpo nu contorcido,
arrastando-se entre frutas frescas e comida podre, um corpo trêmulo entre pedras grossas e
peças de metal tomadas pela ferrugem.
A cena de abertura é uma passagem lenta do corpo da atriz saindo de dentro da
banheira cheia de água para o chão, a terra. Os seios tocando a argila, debatendo-se nos
alimentos produzidos pela terra. Sensualidade e nojo. Move-se como um filhote com suas
células novas em meio a outras perecendo. Um sim à vida é um sim à crueza da finitude.
A embriaguez contra o sonho. Os juízes gostam da atmosfera do sonho. As
personagens dos textos de Kafka sempre estão mergulhadas em uma penumbra onírica. A vida
cotidiana se dá como em um sonho, uma história avança à revelia daquele que sonha. Isso
acontece com as personagens do Processo. Todos, herdeiros de Apolo. Ao sonhar nada novo
acontece, ele é apenas a continuação, o rebatimento exangue, do estado de vigília no qual
predomina o juízo. No escrito O teatro de serafim, Artaud faz uma afirmação aparentemente
paradoxal: “Quando vivo não me sinto viver. Mas quando represento, então sinto que existo”
(1983, p. 82). No teatro ele cria, no teatro ele inventa, no teatro ele existe. À vida apartada do
que ela pode, separada, loteada, cabe apenas seguir modelos, representar formas, responder
aos códigos morais preestabelecidos. A existência que sonha, obedece. “O sonho ergue os
muros, nutre-se da morte e suscita as sombras, sombras de todas as coisas e do mundo,
sombras de nós mesmos. É o sonho que encerra a vida nessas formas em nome das quais a
julgamos” (Deleuze, 1997, p. 147).
Para o xamã yanomami Davi Kopenawa,
Os brancos nos chamam de ignorantes só porque somos gente
diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e
obscuro. Não conseguem se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a
morte. […] Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito,
mas só sonham consigo mesmos. (Kopenawa & Albert, 2015, p.190).
97
momento o som fica mais rápido e mais alto e se tem a impressão que a atriz entra numa
espécie de transe.
Um teatro que em primeira instância, se apresente como uma
extraordinária força de derivação. Um teatro que produza transes
como as danças dos Derviches e dos Issauas, que se dirija ao
organismo por meios precisos, pelos mesmos meios das músicas
curativas de certos povos, as quais admiramos em discos, mas somos
incapazes de refazer.
Proponho qualquer coisa para sair do marasmo, em vez de
continuar reclamando desse marasmo e do tédio, da inércia e da
estupidez de tudo. (Artaud, 1983, 75).
de uma necessidade:
suprimir a ideia,
a ideia e seu mito
e no seu lugar instaurar
a manifestação tonante
dessa necessidade explosiva:
que é noite,
nada,
irreflexão,
meu corpo.
(Artaud, 1983, p. 157)
A organização não abre mão das ideias. Estas subjugam o corpo, o mundo. São as
formas superiores, inicialmente exteriores ao corpo, que loteiam a vida. Cada existente é
radicalmente uma singularidade. Os sacerdotes não toleram isso. A ideia é uma generalização,
esta mania do Homem Branco (Castro, 2016), uma laminação das singularidades. Uma
mulher, singular, tem que responder A mulher, ideia. Uma criança será submetida e julgada
pela generalidade A criança. Um índio será esquadrinhado a partir da ideia O índio. E assim
ao infinito. “O juízo implica uma verdadeira organização dos corpos, através da qual ele age:
os órgãos são juízes e julgados, e o juízo de deus é precisamente o poder de organizar ao
infinito.” (Deleuze, 1997, p. 149)
Na performance e no teatro performativo, através do trabalho de alguns artistas, a
urgência necessária apontada por Artaud pode ser percebida. Encaram-se o pavor e o medo. O
corpo grita. Os artistas tentam explodir suas funções. No artigo Corpo visual e corpo
performático, Anita Koneski (2009) escreve a respeito do corpo em escombros.
O corpo da fala do espaço da arte na contemporaneidade
[...] vai envolver-se nos gestos próprios de seu tempo, nos contatos
passageiros, na exacerbação das sensações corporais, na fixação dos
odores, sejam eles quais forem, num misto de prazer e repúdio dos
100
E o que grita esse corpo em risco, em escombros? Que o corpo sem órgãos é um
corpo afetivo, intensivo, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes. Uma poderosa
vitalidade não-orgânica o atravessa. E o que é vitalidade não-orgânica? “É a relação do corpo
com forças ou poderes imperceptíveis que dele se apossam ou dos quais ele se apossa, como a
lua se apossa do corpo de uma mulher” (Deleuze, 1997, p.149).
Indez talvez indique a necessidade de dar passagem aos gritos do corpo, a fala
corporal, não para que a artista busque seu eu, seus sentimentos ou alguma verdade interior.
101
Mas um corpo selvagem, expressivo, não rostificado, não dominado por agenciamentos de
poder. Não se trata de expor os infortúnios que acometem sua vida, muito menos para
transformar em espetáculo suas neuroses e reificar uma individualidade assujeitada. O
trabalho é outro. Urge se deslocar da subjetividade branca. Se o corpo é contorcido é para que
ele se desindividualize, entre em relações intensivas com outras forças. É um corpo
minoritário, coletivo. Para criar, o eu, esse sacerdote-mor, deve ter suas forças minadas.
A minha medida vai ficando menor, mais estreita como uma porta
e por ela deve passar cada vez o impessoal, o coletivo em sua
grandeza. Para que suporte esta enorme força é preciso que se
impessoalize cada vez mais, morta, amálgama que se preste a todas as
deformações, elástica e resistente. É o vazio de 'o dentro é o fora'.
(Clark apud Carneiro, 2004, pp. 88,89)
antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam os pés, para que se
abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira,
trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode
conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura do ramos.
(Vieira apud Castro, 2002, pp. 183,184)
Difícil seria encontrar algum relato mais preciso do que esse sobre a psicologia da
besta loura. Sua vontade de poder se expressa através da ode à conservação. Seus
procedimentos: cortar, esquartejar, decepar, cercear... O texto põe em fila uma violência
refletida e executada até os dias de hoje. O juízo aí é implacável, não se pode dar nenhum
espaço às estátuas de murta. Em poucos dias elas explodem. Elas são vivas, errantes. A
vontade de poder se desespera com o nomadismo. Que os pés sejam cortados. Que os olhos
anulados habilitem a crença no Invisível. Que as orelhas decepadas não recebam mais as
narrativas dos ancestrais. A vontade de poder quer lotear os rudes. As terras dos selvagens não
param de ser segmentadas, seus corpos organizados, suas culturas decepadas. Divisões mil.
Mas a terra selvagem empapada de sangue grita e gritará nos corpos de justiça. “Um
corpo de justiça em que se desfazem os segmentos, perdem-se as diferenciações e se
embaralham as hierarquias, preservando-se apenas intensidades que compõem zonas incertas
e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista
devolvido a si mesmo.” (Deleuze, 1997, p. 149) Indez tenta ouvir os gritos dessa terra ao pôr
em cena signos selvagens, como a própria atriz de ascendência indígena, portanto uma mulher
de cor (o que é bastante incomum no teatro brasileiro, pois é majoritariamente realizado por
pessoas brancas). Indez tenta construir orelhas para escutar os cantos nas línguas rudes, já que
a atriz executa alguns cantos indígenas. Indez talvez tente ouvir as fábulas perdidas nos
confins dos tempos. Talvez em Indez nasçam pés nômades, como das crianças nas florestas.
Talvez brote em Indez olhos para olhar no fundo dos olhos das antigas mulheres da floresta.
Mulher selvagem que retorna dos horizontes dos tempos através de velhas corcundas, e nesses
corpos rudes encontra forças que desafiam o destino de morte traçado faz séculos.
[…] a atuação do teatro, como a da peste, é benéfica, impelindo os homens a
se enxergarem como são, fazendo caírem as máscaras, descobrindo a mentira,
a velhacaria, a baixeza, a hipocrisia; sacudindo a inercia asfixiante da matéria
que toma conta até dos dados mais claros dos sentidos; revelando às
coletividades seu poder sombrio, sua força oculta, convidando-as a tomarem
atitude heróica e superior diante do destino, que de outro modo jamais
assumiram. (Artaud, 1983, p. 64)
103
borboleteiam no seu ventre. A peça Indez pode ser perspectivada a partir dos pontos
abordados aqui. Porém, como tudo que é vivo, ela é indefinível.
A atitude de crueldade é um modo de amar. Amar a si, amar as pessoas, as coisas e o
mundo. Indez talvez seja um gesto de amor. Amor às avessas. Amor pelo avesso. Amor entre.
Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será seu verdadeiro lugar. (Artaud, 1985, p.
162)
105
2
eu sou palestino
minha pátria é dor
minha bandeira é desespero
minha cidade é queimadura
meu sono é pólvora
meu corpo é medo
minha casa é cemitério
minha família é número
minha mãe é memória soterrada
meu pai é presente esmagado
meu filho é futuro abortado
minha companheira é noite sem estrelas
eu sou palestino.
106
Coragem
O poder devem biopoder. Ele governa a vida em detalhe. Mas eis que por vezes o
poder soberano, o poder do chefe de guerra, o poder de espada, o poder de matar, o poder que
caça aqueles que o importunam, eis que o poder, desde a colonização no século XVI, reativa
alguns inimigos no interior da sua população, do seu rebanho e do qual ele é zelador: é o
racismo de Estado. Ora, e quem, no Brasil, é alvo histórico e privilegiado do racismo de
Estado? O povo negro.
E eis que no interior das políticas tutelares, das políticas de governo da vida, o
Estado bio-político encontra “adversários” (perigos para a saúde do Estado e das suas ovelhas
– o que dá no mesmo). Vê-se, então, uma exigência, uma atroz exigência de coragens
precisamente do povo negro. Coragem de viver e viver contra o “cadafalso”, a “espada”, o
terror, os “suplícios” nas prisões, nas delegacias, nos educandários para adolescentes ditos
infratores, nos quilombos, alagados, favelas, morros, ruas, cortiços. Povo negro, inimigo do
Estado. É aí, somente aí, entre pretos e índios, que a coragem ganha corpo. É desse povo
condenado, do qual nada se espera a não ser a existência subalterna, é nesse povo condenado,
é desse povo condenado que se exige heroísmos políticos inauditos. Lá onde o racismo ativa a
espada, o confronto desequilibrado e covarde, porque não se nomeia e não se declara como
estratégia de destruição, é lá que o combate imundo acontece. Coragem negra, heróis negros.
Heróis sem glória, sem louro, sem busto e sem rosto, mas heróis. Inimigos por excelência do
Estado. Este é a imagem da política branca por excelência: anti-guerreira por exelência, anti-
combate por excelência, anti-inimigos por excelência.
Do outro lado, ou melhor, dentro dos círculos da serpente, a política branca exige
uma coragem negra tenaz. Veja os tupinambá da Serra do Padeiro enfrentando o Exército e a
Polícia Federal durante o governo do PT; veja os quilombolas da Malhada lutando contra a
invasão de seu território pelo Estado (este ocupou parte das terras do quilombo para dar
espaço as atividades de uma empresa de energia nuclear federal) e companhias privadas
geradoras de energia eólica; veja o Ocupa-Alemão que através de estratégias diversificadas se
insurge contra o governo armado (UPP e o tráfico de entorpecentes) do Complexo do Alemão
(RJ); veja um único homem, negro, ter que criar recursos para se livrar das 96 interceptações
107
policiais e aquelas que ainda virão; veja o Reaja na Bahia e sua microrrevolta cotidiana contra
o que eles chamam de “cidade túmulo”, o intolerável extermínio de jovens negros em
Salvador. Aí, em todos estes exemplos, toda uma atitude, um estilo de fazer política que a
prática de governo racista (tanto o racismo de tipo europeu e o de tipo estatal. Diria, digo, que
o europeu se atualiza, se cristaliza no aparelho de Estado) exige: é uma estética, uma ética e
uma política de coragem numa guerra imunda, imunda (ou branca) porque os inimigos não se
põem.
Todo corpo negro é um quilombo (homenagem à Beatriz), e todo quilombo é a favor
da guerra (homenagem a Abdias do Nascimento), e toda guerra é contra o Estado. Todo corpo
negro é contra o Estado e seu racismo. Todo corpo negro é contra a subjetividade branca e seu
racismo à europeia (homenagem a Zózimo).
De todo corpo e povo negro, a política de “cuidado” do Estado de polícia exige muita
coragem. Coragem de viver. Coragem para viver a despeito do desprezo. Coragem para viver
fugindo da condenação prévia à morte.
“Oyá me ensina a ter coragem”. (Alexandre T´Osossi)
108
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