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PERVERSÃO

FUNDAMENTOS TEÓRICOS E
CLÍNICOS

Profa. Dra. Christiane da Mota Zeitoune


AULA 04 – 04/03/2023

Debate a partir do filme “Veludo Azul” de David Linch e


da Literatura – Escritor André Gide
• O objeto fetiche na perversão e a fantasia como traço de
perversão na clínica da neurose.
• A perversão de André Gide: Entre o amor e o desejo.
o Lacan, J. Juventude de Gide ou a letra e o desejo
(1958). In: Escritos, pp. 749-775.
o Miller. J-A Sobre Gide de Lacan. In: Opção Lacaniana
online nova série. Números 17 e 18. Julho 2015.
• Vicissitudes da Clínica com Perversos.
AULA 04 – 04/03/2023

• Por que recorrer à literatura e ao cinema para fazer esse debate clinico?
• Freud deu muito valor às artes e aos artistas.
Os poetas e os filósofos descobriram o inconsciente
antes de mim. O que eu descobri foi o método que
nos permite estudar o inconsciente – afirma Freud.
• E Lacan:
o artista precede o psicanalista na matéria que é a sua
(Outros Escritos, p. 200).
A proposta é debater sobre
o objeto fetiche na
perversão e a fantasia
VELUDO AZUL como traço de perversão
na neurose, a partir dos
personagens Frank e
Jeffrey do filme Veludo Azul.
André Gide
• E vamos tratar, também, do tema da perversão,
a partir do escritor francês, André Gide.
• Em sua criação literária, Gide descreve e
formaliza episódios de sua vida, de seu romance
familiar.
• Mostra o modo que utiliza para negar a
castração do Outro: O desmentido
(Verleugnung).
• Ilustrando de forma paradigmática o que é a
estrutura perversa para a psicanálise.
Retomando
• “O escândalo da novidade da psicanálise está em suprimir a
fronteira entre perversão e normalidade”. (Julian, 2003, p. 104
A psicanálise apud Guedes, slides aula 01)
subverte a noção de
alguns perversão como
patologia:

pontos das
aulas • “A disposição para as perversões não é algo raro ou excepcional”.

anteriores... É parte integrante da constituição normal dos seres humanos.


• Sexualidade Infantil como sexualidade perversa-polimorfa:
• Polimorfa - Capacidade de obter prazer de múltiplas maneiras, em
múltiplas partes do corpo e com múltiplos objetos.
A sexualidade • Perversa - Caracteriza-se pelo desvio (prevalente/total) referente
humana é ao objeto da satisfação pulsional e pela exclusividade da prática
originalmente desse desvio com relação ao objetivo da pulsão (satisfação).
(Ref. Aulas Prof.: Rosa perversa.
Guedes)
A perversão não é um desvio.

Retomando
alguns O que nos interessa como psicanalistas é pensar a
perversão como estratégia de gozo do sujeito, onde
pontos das o que está em jogo é negar a castração do Outro,
construindo a mulher ideal, não castrada.
aulas Um analista deve, portanto, desvelar a posição
anteriores... estrutural de um sujeito baseando-se não em
moralismos, mas naquilo que determina as escolhas
do sujeito em função da sua relação com o Outro.
(Ref.: Aulas Prof.: O que isto quer dizer?
Rosa Guedes)
Perversão - Resposta subjetiva, que
responde ao problema da angústia de
castração, gerada a partir da fase fálica.

Ela é uma maneira de responder ao


encontro com o Outro sexo.

O perverso é aquele que, como descreve Catherine Millot (2004, p. 07)


consegue “transmutar o sofrimento em gozo e a falta em plenitude”.
O sujeito é produzido a partir do campo do Outro.

Retomando
alguns O infans chega ao mundo já imerso no simbólico e é através
dos através dos cuidados, carícias e mesmo palavras, das
pontos ... pessoas que o cercam, que vai se constituindo.

Significantes lhe serão transmitidos e através deste


processo resultará um sujeito e seu objeto (oral, anal, olhar
e voz), que todavia não fazem um todo – As pulsões são
(Ref.: Aulas Prof.: parciais.
Rosa Guedes)
Tornar-se homem ou mulher envolve uma nova amarração,
a partir do que se operou na estrutura, na passagem pelo
Complexo de Édipo e pelo Complexo de Castração e que
serão ressignificados no momento da puberdade.
A relação do sujeito com seu objeto é sempre da ordem do
desencontro; pois não há correspondência possível entre sujeito
e objeto.
Retomando
alguns O objeto em psicanálise é relativo a essa estrutura. É da ordem
do definitivamente perdido.
pontos das Objeto perdido: condena a pulsão ao circuito pelo qual pode se
aulas fixar em alguns objetos sem que nunca obtenha uma satisfação
plena com algum.
anteriores...
O prazer de sugar se sobrepõe ao leite enquanto objeto da
necessidade de nutrição (autoconservação).
(Ref. Aulas Prof. Rosa
Guedes) Objeto original: não é reencontrável. O que se encontra: um
substituto por deslocamento ou condensação.
A condição humana do não-todo revela o
impossível da completude narcísica, garantindo,
assim, que a castração é estrutural, não é
proibição, é impossibilidade.
Retomando Somos todos marcados por essa falta
estruturante, que é o que promove o movimento
alguns do desejo, e o que se transmite de pai para filho é
a castração.
pontos das No Édipo, o pai tem uma função normativa –
aulas representante da Lei que impede o gozo da mãe.

anteriores...
Criando uma barreira entre a criança e a mãe, a
função simbólica do pai é de unir o desejo com a
lei, impossibilitando o gozo absoluto.
• Para que a função paterna opere, é necessário que
a mãe a introduza.
Retomando • Espera-se que ela reconheça a Lei paterna como
alguns mediadora de seu desejo.
• Se a mãe deixar uma interrogação sobre o seu
pontos das desejo pelo pai.
aulas • Se ela vacilar em indicar para o filho que algo lhe
falta e que o pai possui,
anteriores... • ou vacilar em indicar que o seu desejo está para
(Ref. Aulas Rosa Guedes)
além do filho, uma outra dinâmica, que não a
neurótica se constituirá.
• Recalque
(Verdrängung) Neurose.
• Desmentido
Inscrição do NP (Verleugnung) Perversão.
(Ref. Aulas Rosa • Foraclusão (Verwerfung)
Guedes – Aula 03) Psicose.
• Lacan vai localizar o surgimento das perversões no 1º.
Retomando Tempo do Édipo:
• A criança é o falo da mãe. A mãe é uma mãe fálica.
alguns pontos • A mãe é objeto de amor tanto para o menino quanto para a
das aulas menina.
• Relação imaginária.
anteriores... • A criança se identifica, especularmente, com aquilo que é o
objeto de desejo da mãe. Deseja ser tudo para ela, deseja
ser o complemento da sua falta: o falo.
(Ref.: Rosa Guedes – Aula • Desejo da mãe - ponto de interrogação enigmático que a
03) criança simboliza como capricho.
• Nesse primeiro momento, a instância paterna se introduz
de maneira velada no discurso da mãe.
• Forma-se uma tríade mãe – falo – criança.
Vimos que a maternidade torna-se uma das possíveis vicissitudes
da relação da mulher com a falta fálica e, neste sentido, a criança
vem ao mundo para fantasisticamente preencher esta falta da
mãe.

A relação pré-edipiana mãe-criança é conceituada por Lacan em


termos de uma tríade imaginária. Ou seja, na relação da criança
com a mãe, o falo já se encontra inserido.

Tríade Mãe- Esta relação é abalada quando a criança reconhece que não é o
objeto único da mãe, mas que o objeto de desejo da mãe é o falo.

Falo-Criança
Ao perceber que a mãe também é privada deste objeto, temos um
momento crítico, angustiante, pois diante deste furo da imagem da
mãe a criança está sob a ameaça de se tornar cativa das
significações maternas.
A saída, que aponta para a neurose, se dá com a entrada da
função do pai nesta triangulação mãe / criança / falo, como quarto
elemento: o pai como possuidor do falo, aquele que possibilita que
a falta do falo assuma seu lugar na ordem simbólica.
TRÍADE IMAGINÁRIA MÃE-FALO-CRIANÇA

Falo

Tríade
Imaginária

Mãe Criança

É o modo como estabeleceu as condições da articulação mãe-criança-fala, que estabelece a


escolha pela neurose, psicose ou perversão - Entrada do pai – Nessa dialética a criança é
ativa e passiva.
As perversões se constituem a partir da identificação imaginária com o falo.
Há uma identificação com a mãe da infância, aquela que tinha um pênis chamado por Freud de
“específico e muito especial”.
• É porque a mãe nomeia o pai como razão
do seu desejo que ele pode exercer a
função de recalcar o insondável desejo
PAI: Elemento terceiro, dela do qual a criança teria sido o objeto.

externo, que dialetiza • A função da mãe como mulher cessa a


sua alternância mortífera, enquanto a
o “tudo ou nada” função paterna nomeia o desejo materno e
materno. retira a criança do labirinto que é esse
desejo.
• Inserção do pai como nome do Desejo
(Guedes, Rosa. Slides aula 03) Materno.
• A mãe mostra que não é toda mãe; que é
também mulher.
Na perversão, a ambiguidade da mãe quanto ao desejo do pai é
claramente percebida pelo filho, o que leva a testar o desejo da
mãe por ele.

A mãe não deixa claro sobre o seu desejo em relação ao pai.


Fica o equivoco sobre o lugar do pai no seu desejo.
O que
ocorre nas
De um lado, há a cumplicidade libidinal da mãe; de outro, a
perversões complacência silenciosa do pai.

?
Lacan, inclusive, faz referencia a essa carência do pai na
história do sujeito: Os autores notam, com muita frequência, a
ausência às vezes repetida do pai na historia do sujeito, a
carência, como se diz, do pai como presença: Ele sai em
viagem, vai à guerra, etc. (Lacan, 1956-57, p. 163)
A perversão de Gide

• Vamos retomar esses principais pontos teóricos sobre


a perversão, a partir da abordagem lacaniana de André
Gide
• Escrito de Lacan “A juventude de Gide ou a letra e o desejo”
(1958).
• Miller (2015) ressalta que Lacan apresenta uma perversão não-
standard.

• O neurótico tem uma maior variabilidade, uma maior


mobilidade, no que se refere ao gozo;
• O perverso, ao contrário, fica fixado em uma mesma
posição de gozo, desvelando, assim, uma estereotipia.
A perversão de Gide
• Disjunção entre amor e desejo – chave da
construção lacaniana do caso, segundo Miller (2015,
p. 26).
• Relação de Gide e sua mãe - Uma mãe que não
enlaça amor e desejo.
• Juliette - Mãe biológica do amor e do dever x Tia
Mathilde - Mãe do desejo

Gide conheceu o amor com sua mulher,


Madeleine; as alegrias da paternidade coma a
“pequena dama”, mãe de sua filha, e o prazer com os
rapazes mais jovens.
A perversão de Gide não se deve ao fato de ele
ser um pedófilo, mas porque ele constrói a mulher
ideal, não castrada.
O que é A escolha de objeto homossexual de Gide é
inteiramente deixada no segundo plano por
importante Lacan.

considerar no Gide faz existir A Mulher, sua mãe é “toda para


ele” e Madeleine é a única do amor.
caso de
Gide? Toda a análise de Lacan está centrada sobre o
amor único de Gide, quer dizer sua escolha de
objeto heterossexual.
A escolha de objeto heterossexual está no centro
da coisa.
• É com relação às figuras femininas
que se inscreve a posição de Gide.

• A questão clínica do caso é a


A perversão de seguinte: “O que foi para esse
menino sua mãe?”.
Gide É a questão que Lacan tenta
responder.

VAMOS AO CASO
André Paul Guillaume Gide (1869-1951) nasceu e morreu em Paris aos 82
anos de idade. Devotou toda a sua vida à literatura.

Filho de Paul Gide, um professor de direito na Universidade de Paris, e de


Juliette Rondeaux.

1908 – Fundou com mais três colegas (Gaston Gallimard, Jean Schlumberger,
Henri Gheon) a Editora Gallimard e a Revista Nouvelle Revue Française.

1909 – A publicação de “A porta estreita”, importante obra autobiográfica, o


transformou em um dos autores mais célebres de seu tempo.

1947 - Recebeu o Nobel de Literatura – obra “O imoralista” escrito em 1902.


Gide foi autor de mais de 50 livros, dentre os quais varias ficções, poesias, críticas, biografias e traduções.

Além das obras publicadas, ele escreveu uma série de notas, papéis íntimos, os quais endereçou a Jean Delay, um
psiquiatra e amigo, que publica a biografia de Gide, após sua morte.

A porta estreita e Se o grão não morre são dois romances autobiográficos nos quais ele descreve e formaliza
episódios de sua vida, de seu romance familiar.

Gide era homossexual assumido. Falava abertamente em favor dos direitos dos homossexuais.

Corydon - Livro destinado a combater os preconceitos homofóbicos da sociedade de seu tempo. Foi publicado separadamente entre 1911 e 1920. O livro
completo apenas teve a sua primeira edição em francês em 1924.
• Lacan especifica a matéria que Gide oferece a Delay para posterior
publicação de sua biografia:

“Notas pessoais de Gide para suas memórias, editadas sob o titulo de Se o grão
não morre; trechos inéditos do Diário; caderno de leituras, mantido dos 20 aos 24
anos e significativamente designado como seu subjetivo, a imensa correspondência
com sua mãe até a morte dela, quando Gide tinha 26 anos; e uma soma de cartas
inéditas cuja compilação por seu círculo de relações fez aumentar-lhe o porte de
edifício, proporcionalmente ao quadrado de sua massa aliada às cartas publicadas.”
(Lacan, 1958, p. 753)
Gide nasceu rico. Burguês da boa sociedade
protestante. Somente mais tarde é que foi se
interessar, ainda assim de longe, pelas lutas
sociais de seu tempo.

Pai - Descendia por parte de seu pai, de homens


burgueses: magistrados e acadêmicos,
protestantes do sul; seu avô era pastor; seu pai,
A FAMILIA Paul Gide, teve uma fulgurante carreira
universitária como professor de Direito.
Mãe – Descendia por parte de sua mãe, Juliette
Rondeaux, de uma família de industriais ricos,
católicos convertidos ao protestantismo pelo
casamento. Um Rondeaux fora prefeito de Rouen,
tendo seu nome numa das ruas da cidade.
Juliette Rondeaux - Mulher austera, rigorosa, masculinizada
e moralista. Impunha uma lei tirânica, se sacrificava em
nome do dever.
Gide a respeitava e a temia. Foi criado sob a atmosfera da
Bíblia e dos Evangelhos.

Ela lhe transmitia as tradições de economia, de vida simples


na opulência.

SUA MÃE Considerava que a criança deveria submeter-se às ordens


sem questioná-las.

Juliette Rondeaux, casou-se tarde com o pai de André, por


insistência da família, quando seu desejo se satisfazia com
a presença de Anna Shackleton, sua preceptora, sua amiga.
A posição subjetiva da mãe de Gide é marcada por uma
homossexualidade não manifestada no corpo, mas a partir
de uma relação apaixonada com a sua preceptora inglesa.
Paul Gide - foi para ele um homem sensível, terno, amigo, por quem
tinha certa veneração. Tinha o encanto, a alegria, a tolerância, a cultura
intelectual.

Passava a maior parte do seu tempo no escritório em casa, uma


espécie de templo que André frequentava nos raros momentos em que
usufruía a companhia do pai.

SEU PAI Eu adorava sair com meu pai; e, como raramente se


ocupava de mim, o pouco que fazíamos juntos tinha um
aspecto insólito, grave e um tanto
misterioso que me encantava”
(GIDE, 1926, p. 15).
Na relação com seu pai André tinha o encanto, a alegria, a tolerância e
a cultura intelectual.
• Paul divergia de sua mulher quanto à educação do
filho, acreditava que a melhor pedagogia seria
explicar tudo à criança até que ela pudesse
compreender,
• Deixava a encargo dela toda a educação do menino.
Em Se o grão não morre, escreve:
SEU PAI Quando meu pai não tinha muito trabalho, ele me dizia: ‘Meu
pequeno amigo, venha passear comigo!’ Ele sempre me
chamava meu pequeno amigo! Minha mãe retrucava: ‘Vocês
serão razoáveis, não é? Não voltem tarde!’ Eu adorava sair
com meu pai, e como ele raramente se ocupava de mim,
do pouco que eu fazia com ele guardava um aspecto insólito,
grave, alguma coisa um pouco misteriosa, que me
encantava.(Gide,1955,p. 17-18)
• Ao fazer o relato de sua infância em Se o grão não morre ele se descreve como
privado de luz:
A espessa noite em que minha puerilidade se demorava
O estado larvar em que eu me arrastava
As trevas em que pacientava a minha infância
• A infância de André Gide é marcada por essa falta de graça. Suas primeiras fotografias
o mostram feio, com o rosto contraído, com ar ranzinza, ele parece privado da
florescência da infância.

SUA • Criança solitária, educada na mais estrita moral protestante. Um pai doce e uma
mãe tirânica.

INFÂNCIA • O sentimento de solidão e de dessemelhança é experimentado por André desde muito


pequeno.
• Aos doze anos de idade, depois da morte do pai, diz com desespero: “eu não sou igual
aos outros”.

• Desespero que evoca o Schaudern, palavra que Gide tomou de Schopenhauer, que
em alemão significa “sobressalto, calafrio na espinha do ser ou situação catastrófica”,
onde, segundo Lacan, há claramente emergência de angústia (LACAN, 1958/1998, p.
762).
• Primeira manifestação do Schaudern -
provocada pelo anúncio da morte de um primo
pequeno. Ele ouve a conversa dos pais, começa a
chorar, entra em desespero e diz à sua mãe:

As manifestações Eu não sou igual aos outros.


• Logo depois ele é inundado por esse sentimento, o
do Schaudern – sentimento de não ser igual aos outros. O
sentimento de ser excluído da relação com o
Emergência da semelhante.

angústia • O segundo momento - ocorreu alguns meses


depois da morte de seu pai.
• Ele chorava, caía nos braços da mãe, tinha
convulsões e sentia de novo a angústia inexplicável
sem conseguir explicar o motivo exato de sua
angústia (GIDE, 1955, p. 133).
• O terceiro momento - quando ele descobriu que
Bernard, um dos coleguinhas de escola, estava
interessado nas prostitutas.
• A mãe de Gide havia recomendado que ele evitasse
passar pela rua do Havre, pois era um lugar
extremamente mal frequentado.

As manifestações do • Ele escuta as palavras da mãe como algo muito grave


e pergunta a Bernard: "Bernard, quando você sair da
Schaudern – escola você não vai passar pela rua do Havre, não
é?". Bernard não disse nem sim, nem não e perguntou

Emergência da a Gide o que este pedido queria dizer.


• Gide é tomado pela angústia e relata:
angústia De repente alguma coisa de enorme, de
religiosa, de pânico, invadia meu coração, como a
morte do pequeno Raul, [...] eu me precipitava aos
joelhos de meu amiguinho. 'Bernard! Oh! Eu
te suplico: não vá (GIDE, 1955, p. 133).
• Essas manifestações de sufocação profunda
(schaudern), acompanhada de lágrimas e soluços, eram
frequentes, mas ele tentou dominá-las, procurando não
se assustar mais.
• Contudo, muitos anos depois, as mulheres do Havre –
“criaturas errantes” (ibidem, p. 149) – ainda lhe
inspiravam terror.
• Sua falta de curiosidade para com o Outro sexo parecia
A sexualidade total; ele nada queria saber sobre o mistério feminino.

infantil • Ele vivia fechado, constrangido, e criara um ideal de


resistência; se cedesse, seria vício, por isso não
prestava atenção às provocações vindas de fora.
• O erotismo masturbatório marca a sexualidade de
Gide desde a mais tenra idade. Seu prazer sempre
foi masturbatório.
• Aos nove anos de idade um professor o surpreendera
se masturbando diante de toda a classe. Ele foi
suspenso da escola. O diretor dera-lhe três meses
para que ele se curasse de seus “maus hábitos”.
• Seus pais preocupados com a sua atitude o levaram a
um médico. Este era um médico legista, que o fez
entrar em seu gabinete e o ameaçou dizendo que se
A sexualidade ele não se emendasse usaria nele os instrumentos
cortantes com que operava os meninos nesses casos.

infantil • Essa ameaça de castração não provocou no menino o


menor efeito, ele não acreditava que algo tão violento
pudesse ser verdade.
• O modo de gozar de Gide não sofreu qualquer
modificação com a puberdade.
• Divisão subjetiva - característica da neurose
A CLIVAGEM DO EU • Efeito: Rejeição no inconsciente de um
NO PROCESSO DE desejo irreconciliável com o eu, através do
mecanismo do recalque – retorno sob a
DEFESA - Ichspaltung forma do sintoma;
• Clivagem do eu – característico da perversão

(Freud, 1940[1938]) • Efeito: Desdobramento em dois polos, que


permite sustentar o conflito sem renunciar
a nenhum de seus termos, mantendo a
coexistência dos contraditórios, através do
mecanismo do desmentido –
(Ref. Aula Prof. Rosa Guedes) Verleugnung.
• O conflito se desfaz porque a criança não escolhe
apenas UM dos caminhos.
• Ela NÃO renuncia a uma parte da satisfação. Ela
toma ambos.
• Responde ao conflito por duas reações contrárias,
A CLIVAGEM DO EU ambas válidas e eficazes.

NO PROCESSO DE • Por um lado - rejeita a realidade e se recusa a


aceitar qualquer proibição.
DEFESA • Por outro - reconhece o perigo da realidade, assume
o medo desse perigo como um sintoma patológico e,
(Freud, 1940[1938]) em seguida, tenta se desfazer do medo.
• A solução provocada pela Verleugnung satisfaz,
simultaneamente, a exigência pulsional e a proibição
(Ref.: Aula Prof. Rosa Guedes) proveniente da realidade.
• A pulsão alcança a satisfação pretendida e a
realidade da proibição é respeitada.
• A castração é desmentida.
• Efeito: produção de uma dupla posição subjetiva:
A CLIVAGEM DO EU • O sujeito reconhece que a mãe/mulher não

NO PROCESSO DE tem o falo.


• O sujeito desmente este reconhecimento: ela o
DEFESA tem através do fetiche situado como falo por
deslocamento.
(Freud, 1940[1938])

(Ref.: Aula Prof. Rosa Guedes)


VOLTANDO AO CASO...
• Em Gide, essa clivagem do eu se manifesta no modo de
pensamento como no estilo de vida e até mesmo na própria escrita,
pela escolha de figuras retóricas privilegiadas, como a ambiguidade
e a ironia tão caras a Gide.

Eu nunca soube renunciar a nada; e protegendo em mim a um só


tempo melhor e o pior, é desmembrado que vivi. Mas como explicar
que essa coabitação em mim dos extremos não trouxesse tanta
inquietude e sofrimento quanto uma intensificação patética do
sentimento da existência da vida? As tendências mais opostas
nunca conseguiram fazer de mim um ser atormentado; mas
perplexo – pois o tormento acompanha um estado de que se
deseja sair, e eu não desejava escapar ao que punha em vigor
todas as virtualidades de meu ser; esse estado de diálogo , que,
para tantos outros, é mais ou menos intolerável, tornava-se para
mim necessário [...] longe de levar à esterilidade, convidava-me,
ao contrário, à obra de arte e precedia imediatamente a criação,
chegava ao equilíbrio, à harmonia.” (Journal, 1889-1939, pp. 777-
778, apud Millot, p. 45)
SUA PUBERDADE

• Aosonze anos de idade, Gide começou o seu primeiro ano no


Liceu.
• Era muito diferente de seus colegas – julgavam-no posudo
porque recitava versos dando-lhes o ritmo – ele foi escarnecido,
encurralado.
• Qualquer escola tornava-se um inferno para ele.
Simulava crises nervosas para não ir a escola.
• Naquele mesmo ano, 1980, aos 12 anos de idade, Gide perdeu
o pai, o que representou para ele uma infelicidade irremediável.
[...] Eu de súbito me senti envolvido por aquele amor que
desde então se fechava sobre mim (GIDE,1926, p.71).
• Estar entregue à mãe é estar fadado à morte, é estar
condenado a permanecer prisioneiro desse amor materno.
SUA PUBERDADE
Em seus romances autobiográficos Gide
descreve a casa do tio Rondeaux (irmão de
sua mãe), da tia Mathilde (mulher do tio) e da
prima Madeleine (filha do casal), foi palco de
duas cenas, vividas aos treze anos de idade:
• Sedução vivida com tia Mathilde
• Cena com Madeleine em seu
quarto chorando.

Vejamos então a cena com a tia Mathilde.


• A tia Mathilde interviu de forma decisiva na história de
André.
• Ela era uma mulher bela e sensual. Passava seus dias
estendida sobre algum sofá, às voltas com o tédio ou
com alguma crise nervosa.
Sua Tia • Ela não escondia seu gosto pelos jovens,
Mathilde escandalizando o meio puritano a que pertencia seu
Rondeaux esposo, um homem mais velho que a amava.
– A sedução • Certo dia sua tia encontrava-se a sós com Gide e sob
o pretexto de ajeitar-lhe a roupa, passou a mão em
seu peito, numa tentativa de sedução.
• Em A porta estreita, Gide escreve:
• Vou até a sala buscar um livro. Encontro-a. Já estava saindo quando
Mathilde, que quase não me parece notar, pergunta: Por que a pressa?
Você tem medo de mim? O
Sua coração batendo descompassadamente, aproximo-me; faço um esforço
para sorrir-lhe, estender-lhe a mão. Ela a conserva presa e, com a mão
Tia Mathilde livre, afaga-me o rosto. – Pobrezinho... como sua mãe o veste mal!... A gola
marinheira deve ser usada muito mais aberta!, diz ela, abrindo- me um
Rondeaux botão da camisa. – Aí está! Veja se não fica melhor assim!.

–A • E, tirando o espelhinho, cola o rosto ao meu, cobrindo-me o


pescoço com o braço nu, insinua a mão na abertura de minha camisa,
indaga sorrindo se sinto cócegas, ousa um pouco mais... Recuei tão
sedução bruscamente que minha jaqueta se rasgou, as faces afogueadas, ouço-a
exclamar: mas que idiota! Fujo, correndo, até a extremidade do jardim;
mergulho o lenço numa pequena cisterna da horta, levo- o à testa, lavo e
esfrego as faces, o pescoço, todas as partes onde ela tocara (GIDE, 1909,
p. 18).
Sua Tia Mathilde Rondeaux
• Ela foi ao mesmo tempo salvadora e pervertedora.
• Fugiu com um de seus amantes. Abandonou os filhos e o
marido, que não sobreviveu a essa mágoa.
• A tentativa de sedução da tia Mathilde foi narcisicamente
fundadora para Gide e despertou-lhe desejo, dando à
libido figura humana.
• Mas, entre os dois lugares constituintes da cena
originária, a subjetividade de Gide rejeitou aquela que
fazia dele o objeto do desejo feminino para identificar-se
com a sedutora.
• A descoberta, aos vinte e quatro anos, de seus gostos
pederastas representa o momento constituído pela cena
com a tia.
• A sedução salvadora teve o efeito de
uma mutação decisiva, mostrando o
recuo da morte.

• Gide assume o desejo do qual ele foi


Sua Tia Mathilde objeto e que não pôde suportar, ficando
para sempre e eternamente apaixonado
Rondeaux pelo mesmo menino que fora por um
instante nos braços da tia que lhe afagara
o pescoço, os ombros, e o peito. (Lacan,
p. 270)
• No Seminário V, Lacan escreve:
No momento daquela sedução, ele se
transformara no filho desejado e, aliás, fugira
horrorizado, porque na verdade, nada viera
introduzir o elemento de aproximação e
mediação que teria feito daquilo outra coisa que
Sua Tia não um trauma.
Mathilde Rondeaux No entanto, ele se descobrira pela primeira vez
na posição de criança desejada. Essa situação
nova, que sob certo aspecto seria salvadora para
ele, iria fixá-lo, no entanto, numa posição
profundamente dividida, em razão da maneira
atípica, tardia como se produziu esse encontro.
(Lacan, 1957-58, p. 270)
Vejamos a cena com a prima Madeleine
• Certo dia Gide chegou de surpresa à casa do
seu tio Rondeaux.
• Naquele dia o seu tio não estava em casa e
porta do quarto da sua tia estava aberta.
Sua prima Madeleine • Gide lançou um olhar rápido e entreviu sua
tia, estendida numa espreguiçadeira; a seus
Rondeaux pés estavam as duas filhas caçulas; atrás
dela, um homem jovem, com uniforme de
tenente.
• Sua tia dava gargalhadas. O tenente se
lançava de joelhos diante dela.
Sua prima Madeleine Rondeaux

Em seguida, Gide foi até o


quarto de sua prima mais Gide não sabia explicar as
velha, Madeleine. O quarto razões do êxtase que sentiu –
estava escuro. Ela estava daquele êxtase novo que
ajoelhada à cabeceira da arrebatou o seu coração – ao
cama chorando por ter se deparar com a
descoberto que sua mãe tinha prima chorando.
um amante.
• Gide, aos treze anos de idade, ao se deparar
com Madeleine, sua prima, dois anos mais
velha, de joelhos aos prantos define o que
sentiu:
O amor um auge de embriaguez, entusiasmo, amor,
por Madeleine desamparo e devoção. (GIDE, Se o grão não
morre, p. 269)
• A partir desse momento Gide se dedica a
proteger Madeleine.
• A elege como objeto único do amor.
O amor por Madeleine

• Em A porta estreita, Gide escreve:


Aquele instante decidiu minha vida... Ébrio de amor, de piedade, de uma
indistinta mistura de entusiasmo, de abnegação, de virtude, eu apelava a
Deus com todas as minhas forças e me oferecia, não concebendo mais
outro objetivo para a minha vida senão proteger quela criança contra o
medo, contra o mal, contra a vida. (GIDE, 1958, p. 504)
A vida não valia mais nada para mim sem ela, e eu sonhava com ela a
acompanhar-me por toda parte. (GIDE, 1926, p. 160).
O amor por Madeleine

• O amor de Gide por Madeleine teve sobre


ele uma influência apaziguadora.
• Para ele a vida não seria mais nada sem
ela.
• Eles liam juntos, faziam músicas,
caminhavam de mãos dadas. Quando
separados escreviam-se.
• Começou a se estabelecer entre eles uma
correspondência contínua.
• Eles trocavam belas cartas de amor.
• Mas, o amor de Gide não se conjugava ao
desejo.
Ele satisfazia seu desejo sexual com a masturbação. Desde
menino toda mulher lhe causava medo.

Embora tivesse percebido que para ele seria impossível conjugar


amor e desejo, quis muito jovem, casar-se com Madeleine. Casa-
se logo após a morte de sua mãe.
Sua mãe morreu a 31 de maio de 1895. No dia 17 de junho ficou
Dissociação noivo de Madeleine, casando-se com ela em 8 de outubro.

entre amor e Viveram por 20 nos um casamento sem sexo.


desejo
Madeleine não podia ser nem o objeto nem o agente de uma
sedução que lhe dava horror.

Madeleine, de um lado, se parece com a mãe de Gide em sua


ausência de graça, de outro ela tem também os traços de sua
própria mãe, tinha a mesma cor de pele, o mesmo ar lânguido.
Aos vinte e quatro anos, ainda virgem, na viagem à África, ao sol
de Biskra (Argélia), Gide assumiu seu desejo por rapazes.

Gide teve a sua primeira experiência sexual com um parceiro, um


O desejo árabe, muito jovem, de pele morena:
No adorável esplendor da tarde, de que feixes de luz se
vestiu meu gozo!... (GIDE, 1926, p. 227).

Pouco tempo depois ele teria pela primeira vez – e praticamente a


única – uma experiência sexual com uma mulher, Meryem, uma
jovem de dezesseis anos, de uma tribo berbere, cujo território se
estende desde a Biskra Jelfa na Argélia.
Gide relata que ao descobrir que ele se entregara ao pecado da carne, com uma
Ouled Naïl, sua mãe, ao invés de se regozijar, chora:

Lembro-me das suas lágrimas [...] aquelas lágrimas enterneceram e desolaram


o meu coração mais do que o teriam feito quaisquer censuras (ibidem, p. 235).

O tio Charles Gide, irmão do seu pai, a quem ele anunciara sua iniciação sexual,
censurou o sobrinho a respeito de sua primeira tentativa heterossexual – que
deveria por muito tempo permanecer a única – com Meryem.
Tanto pudor ofendido o fez retornar à sua inclinação sexual pelos meninos.
O desejo
O reconhecimento de sua sexualidade secreta iria libertar um homem e um
escritor:

Pela primeira vez eu vivia, saído do vale das sombras da morte, que eu nascia
para a verdadeira vida (ibidem, p. 136)
As cartas de amor
• Esse “casamento branco” com Madeleine só é perturbado quando ela
descobre que, aos 50 anos, Gide se apaixonara por Marc Allégrete, um
rapaz encantador de dezoito anos de idade, filho do pastor Allégret.
• Marc foi o único que levou Gide a experimentar a interseção entre amor e
desejo. Sua ligação com Marc deveria durar mais de vinte anos.
• Madeleine ferida ao tomar conhecimento dessa traição amorosa do
marido, queimou todas as cartas que, desde a adolescência, ele lhe havia
escrito.
Eu tinha – diz ela – que fazer alguma coisa.
As cartas de amor

• O desespero de Gide foi na medida do lugar que


tinham para ele aquelas cartas: o do coração.
O melhor de minha obra.. o mais puro de
minha existência... o mais puro do meu coração
(MIllot, 2004, p. 56)
• Todo o fundamento subjetivo que lhe davam
tanto seu amor por Madeleine quanto a escrita lá
se achava concentrado: essa correspondência
representava o derradeiro fundamento de sua
existência, aquela mesma da realidade das
coisas, o núcleo de seu ser.
• Ao tomar conhecimento desse desaparecimento,
foi, diz ele, como se tivesse cessado de viver.
(Millot, p. 56)
A paternidade de Gide
Aos cinquenta e quatros anos de idade,
enquanto estava vivendo com Marc
Allégret, ele se tornou pai de um
menina, Catherine Gide, fruto de um
relacionamento dele com Elisabeth van
Rysselberghe.
Catherine foi apenas reconhecida
oficialmente pelo seu pai depois da
morte de Madeleine, de quem este
nascimento havia sido cuidadosamente
escondido.
Lacan vai abordar o caso de Gide no seu texto, publicado nos
Escritos “Juventude de Gide ou a letra e o desejo”.

Este é um texto de 1958, que marca o 1º ensino de Lacan -


situado por Miller entre os seminários 1 e 10. Primazia do
simbólico.
A perversão
de Gide No Seminário 5 (1957-1968), contemporâneo ao texto dedicado a
Gide, Lacan afirma que ao contrário do que muitos possam
imaginar a perversão de Gide não se deve pelo fato de ele só
poder desejar os meninos, de ele ser um pedófilo, mas no fato de
que ele constrói a mulher não castrada.
Gide tenta fazer existir A Mulher, sua mãe é “toda para ele”
A perversão de Gide

Madeleine é a única do
amor, mas em seus • Ele costumava sonhar com “uma mulher que, caído o véu,
deixava visível apenas um buraco negro” (Lacan, 1958c, p.
pesadelos ele enfrenta o 761).
horror da castração.

Em “De uma questão • “conceber como a criança, em sua relação com a mãe,
preliminar a todo tratamento relação constituída na análise, não por sua dependência
possível da psicose” vital, mas pela dependência de seu amor, isto é, pelo
(1957a), Lacan propõe que seu desejo de desejo, identifica-se com o objeto
todo problema das imaginário desse desejo, na medida em que a própria
perversões consiste em mãe o simboliza no falo”. (LACAN, 1957a, p. 561)
Lacan interroga:
O que foi para esse menino sua mãe?
• No Seminário 5 (1957-1958), Lacan vai precisar que na
mãe de Gide o falo não tem o lugar que deveria ter para
assegurar o funcionamento da metáfora paterna.

A perversão • Na relação primária de Gide com sua mãe o que se


pode apreender é algo de abissal:
de Gide Uma mãe que ao mesmo tempo, que tinha altíssimas
e notabilíssimas qualidades, e um não sei-quê de
totalmente elidido em sua sexualidade, em sua vida
feminina, que, na presença dela, certamente deixava o
menino, no momento de seus primeiros anos de vida,
numa posição totalmente não situada. (LACAN, 1957-
1958, p. 269).
• O que estaria Lacan indicando com isso?
• O amor de que se trata aqui não é um amor
enlaçado ao desejo enquanto simbolizado pelo
falo. Ele não era uma criança falicisada.
• O amor de sua mãe é exclusivamente
identificado ao dever.

Amor, desejo e • Duas notas sobre a criança (1969) - Lacan


ressalta que a função da mãe é a de promover
dever cuidados que portem a “marca de um interesse
particularizado”.
• Na relação com a criança não se trata apenas da
satisfação das necessidades, mas de uma
constituição subjetiva, implicando a relação com
um desejo que não seja anônimo.
É fundamental que uma mãe, ao se ocupar de
seu filho, o faça de maneira particular, que veicule
o significante de sua falta, de seu desejo, que
transmita o Nome-do-Pai, para além da pura
satisfação das necessidades biológicas.
Duas notas sobre
Por sua vez, a função do pai é também tomada
a criança (1969) pela dimensão do particular, pois “[...] seu nome é
o vetor de uma encarnação da Lei no desejo”, ou
endereçadas seja, como agente da castração, limita a
a Jenny Aubry satisfação e opera a inclusão da Lei no desejo.

O que se poderia pensar sobre o Édipo de Gide?


Nesse caso o desejo da mãe permanece problemático em sua
significação. A mãe de Gide não simboliza o objeto de seu desejo
no falo.

O desejo da mãe não parece ser simbolizado pelo falo. Gide foi
uma criança amada e não uma criança desejada.
O que se
poderia O que domina aparentemente a história infantil de Gide é a
pensar sobre mortificação.

o Édipo de
Há aí uma falha do desejo da mulher, na mãe de Gide.
Gide?

Devido ao fato de que o amor da mãe se identificou com o dever e


que esta mãe homossexual não simboliza o desejo pelo falo, o
gozo do órgão não foi enganchado na metáfora paterna, ele
vagueia solitário.
O episódio vivido por Gide, aos nove anos de idade, em que se
masturba na sala de aula, é uma ilustração de que o gozo
fálico vagueia sozinho.

O que se Verifica-se, assim, que no lugar do que deveria ser o desejo da


mãe, temos a mortificação e de maneira concomitante, o gozo
poderia fálico desempenha seu papel solitário.

pensar O termo que Lacan emprega para indicar esta liberdade


solitária é “erotismo masturbatório”.
sobre o
Édipo de O amor de que se trata aqui não é um amor enlaçado ao
desejo enquanto simbolizado pelo falo.
Gide?
A criança Gide é alguém que teve este contato secreto com a
morte, devido ao avesso do desejo da mãe. (Miller, 2004, p.
10)
Percebemos de que há ali uma repartição da função fálica,
entre sua mortificação nas mãos da mãe e sua liberação de
modo solitário, como gozo do idiota, fora de todo laço social,
fora de todo laço sexual.
Por que Lacan
faz da morte O termo que Lacan emprega para indicar esta liberdade
solitária é o de “erotismo masturbatório”.
uma função
tão presente
Como acentua Lacan, temos alguma coisa que não é o que
no caso Gide? que está na articulação mais íntima do sentimento da vida
neste sujeito - sentimento de não ser igual aos
outros. O sentimento de ser excluído da relação com
o semelhante.
(Miller, 2004) É por isso que Lacan retoma o episódio enigmático do
Schaudern para estabelecê-lo como o lugar onde a voz da
morte se faz ouvir.
O que se poderia pensar sobre o Édipo de Gide?

• Lacan comenta:
O menino Gide, entre a morte e o erotismo masturbatório, só tem do amor a fala
que protege e a que interdita: a morte levou com seu pai aquela que humaniza o
desejo. Por isso é que o desejo fica para ele, confinado no clandestino. (LACAN,
1958c, p. 764).
• Há em Gide uma falha que se transmitiu no nível da função fálica. Gide se identifica
com a morte.
A mãe está sempre lá como “o invólucro de seu amor”,
isto aponta para o fato de que o amor devora o desejo,
O que se não deixa lugar para a falta que é a via mesma do sujeito
para o desejo.
poderia
pensar
A posição de Gide é então de ser, identificado a seu ser
sobre o de morte.
Édipo de
Gide? De forma geral, pode se dizer que para um sujeito o traço
do objeto amável está sempre em relação com o valor da
significação do falo. Para Gide, ao contrário, é necessário
que o objeto amável tenha a significação da morte.
• Como vimos, há de um lado, a cumplicidade
libidinal da mãe; de outro, a complacência
silenciosa do pai.
• O pai de Gide não é um pai ausente.
• Como afirma Miller (2015, p. 21-22)
O que ocorre nas A questão clínica a colocar não é a de saber o
que está presente ou o que está ausente, o
perversões em que é venerado ou o que é maldito - um pai
detestado faz seu trabalho muito bem - mas de
geral? saber onde no casal se situa a autoridade. A
veneração do pai absolutamente não substitui
uma autoridade que não tem necessidade de
ser venerada. Ora, parece que no casal Gide,
qualquer que seja a presença do pai, por mais
terno que ele seja, e constituindo objeto de
uma nostalgia, ela nada tem a ver com o que
se trata de maneira operatória.
No momento em que seu pai morre Gide diz que
ele está preso ao amor de sua mãe. Sua mãe é
toda para ele. Ora, o princípio fálico do desejo
comporta precisamente que a mãe é não-toda
O que se fálica para a criança.
poderia
pensar A singular perversão de Gide vem ilustrar a
seguinte cisão: de um lado, para esse sujeito, A
sobre o Mulher existe, de outro, ele sonha que isso não é
verdade.
Édipo de
Gide?
Verifica-se isso, primeiramente, através da posição
de Gide na relação com a sua mãe; e em seguida,
na sua relação com Madeleine, no amor infinito e
imóvel que ele lhe dedica.
Desde a infância Gide opunha as
mulheres virtuosas às prostitutas. Sua
mãe ficava do lado das virtuosas,
O que se enquanto a sua tia das levianas.
poderia
pensar Que acesso à mulher sua mãe lhe
sobre o permitiu? Ela lhe permitiu acesso a uma
única mulher, a do amor, Madeleine.
Édipo de
Gide?
Vimos que Gide teve aventuras com
Meryen, e mais tarde, com a mãe de sua
filha, mas o uma só mulher está no
registro do amor.
Madeleine - Por um lado, se parecia com a mãe de Gide em sua cor,
sua ausência de graça, por outro, ela tinha traços de sua própria mãe.

Juliette - Mãe do amor e do dever é inibidora.

O que se
poderia Mathilde - Vem autorizar, humanizar o desejo.
pensar sobre
o Édipo de
Lacan observa que em Gide: Encontramos a palavra que interdita e a
Gide? que protege, mas falta a palavra que humaniza o desejo, a que enlaça o
amor e o desejo. (LACAN, 1958c, p. 764).

Momento em que foi seduzido pela tia Mathilde, Gide se transformara


no filho desejado e, aliás, fugira horrorizado, porque, na verdade, nada
viera introduzir o elemento de aproximação e mediação que teria feito
daquilo outra coisa que não somente um trauma.
• No entanto, ele se descobrira pela primeira vez na
posição da criança desejada.
• No Seminário V, Lacan escreve:
Essa situação nova, que sob certo aspecto seria
salvadora para ele, iria -fixá-lo, no entanto, numa
posição profundamente dividida, em razão da
O que se maneira atípica, tardia e, sem mediação como se
produziu esse encontro. (Lacan, 1957-1958, p.
poderia 270).
[...] Nesse lugar, onde tinha havido um furo,
pensar sobre passou a haver um lugar, porém nada além disso,
pois, ao mesmo tempo, Gide recusou-se esse
o Édipo de lugar, por não poder aceitá-lo, já que não podia
aceitar o desejo do qual foi objeto. Em
Gide? contrapartida, não parou de se identificar para
sempre com o sujeito do desejo do qual ele se
tornou dependente. Gide apaixonou-se para
sempre, até o fim da vida, por aquele menininho
que ele fora por um instante nos braços de sua
tia, dessa tia que lhe afagara o pescoço, os
ombros e o peito. Sua vida inteira se resumiu
nisso (ibidem, p. 270)
O que se poderia pensar sobre o Édipo de Gide?

Em suas obras autobiográficas, Gide confessou que já em sua


viagem de núpcias, praticamente diante de sua mulher, ele acariciava
os braços e os ombros dos rapazinhos que encontrava no trem.

Gide mostra o que permaneceu para ele como o ponto privilegiado


de toda a fixação de seu desejo.
Gide o assumiu por si mesmo, ficando para sempre e eternamente apaixonado
pelo mesmo menininho acariciado que ele não quis ser (Lacan, 1957-58, p. 270).
Do lado materno da função paterna, há duas funções – a do
amor e do desejo – que deveriam estar associadas, mas em
Gide o que se encontra é uma dissociação entre estas duas
funções.
Em sua infância Gide se divide entre Juliette – a mãe biológica,
a mãe do amor e do dever – e, a tia Mathilde – a mãe do desejo.
O que foi para
esse menino Em sua juventude essa divisão também se evidencia em dois
sua mãe? pólos: de um lado, o amor por Madeleine – sua prima, sua
esposa – e, do outro, o desejo sexual pelos rapazes.
(Lacan, 1958, p.
760) O objeto do amor está do lado do anjo. É nesse nível que a
mulher ideal para Gide, Madeleine, se desenha sob a forma do
anjo, quer dizer, do ser sem sexualidade.

O objeto de desejo está do lado dos pivetes, dos menininhos de


pele morena.
• O gozo erótico permanece no erotismo
masturbatório com os meninos.
• Como afirma Miller (2015, p. 26)
[...] A partir do momento em que o amor deve
conservar seu lugar desencarnado, bater em sua
carne é, com efeito, uma solução. A sexualidade
homossexual de Gide é antes de tudo uma
O que foi para esse sexualidade masturbatória. Esta sexualidade é
dedutível da fórmula inicial - a ponto que o próprio
menino sua mãe? Gide, Delay o cita - dizia quando já tinha uma certa
idade: “Neste plano, sou apenas uma criancinha que
(Lacan, 1958, p. 760) se diverte”, que se diverte com seus amiguinhos,
mas com uma prevalência do elemento
masturbatório.
Este caso de perversão ilustra, que para Gide ao
menos, A Mulher existe. [...] É a mãe Gide e em
seguida Madeleine reduzida ao singular, enquanto
que os garotos estão no plural
E o que dizer do fetiche nesse caso?
Lacan vai demonstrar que, tomada na dimensão de
sua materialidade, a carta não tem valor de
mensagem, mas cumpre uma função sexual nas
relações entre Gide e Madeleine, a função de fetiche.

Ao comentar o conto de Alan Poe “A carta roubada”,


As Cartas Lacan chama atenção para a dupla essência de uma
carta.
Fetiche de Gide
(Mandil, R.)
A carta não está inteiramente do lado da mensagem, a
carta possui, também, materialidade, e sendo portanto
manuseável, passível de ser esquecida, rasgada,
guardada, adulterada ou tratado como detrito.
• Carta como mensagem - elemento de um sistema significante #
• Carta como objeto - como pedaço de papel rabiscado, timbrado,
selado ou virado pelo avesso.
Pensar a lettre (carta) como um significante
especial é pensar em uma extensão do simbólico
que vai além do campo das representações para
inscrever-se em uma materialidade de objeto.
As Cartas
É preciso reconhecer que a dimensão de
Fetiche de carta/lettre não apaga seu funcionamento sexual
Gide mas, ao contrário, acaba por revela-la.

(Mandil, R. )
É o que ocorre com a correspondência entre Gide
e Madeleine, ela revela a dimensão fálica da
satisfação sexual.
• Para Gide, é impensável relacionar-se com
Madeleine sem as cartas a ela endereçadas.
• Gide dá a correspondência um estatuto corporal,
como algo que completa o corpo de sua mulher.
• A íntima relação entre as cartas endereçadas a
Madeleine e o lugar ocupado pela esposa na vida
de Gide vem à tona com esse verdadeiro trabalho
As Cartas Fetiche de luto desenvolvido por Gide após tomar
conhecimento da destruição da correspondência.
de Gide
• A dor desmesurada desencadeada em Gide,
(Mandil, R.) segundo Lacan, indica que o que foi consumido pelo
fogo não tinha apenas valor estético:
Isso quer dizer que não visamos aqui à perda sofrida
na correspondência de Gide pela humanidade, ou
pelas humanidades, mas à troca fatídica pela qual a
carta/lettre assume o próprio lugar de onde o desejo
se retirou. (Lacan, p. 773)
FETICHE (Freud, 1927)
Substituto por deslocamento do pênis que “falta” no corpo feminino.

Um facilitador para a vida erótica.

Substitui o pênis que o menininho acreditou que a mulher [mãe] tivesse crença que ele
não deseja abandonar.

A operação da Verleugnung permite a permanência da crença de que a mulher teve o


pênis apesar de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Foi substituído.

Outra coisa tomou o seu lugar e herdou o seu valor.

Como ninguém conhece o significado do fetiche, este não é retirado do fetichista;


FETICHE (Freud, 1927)
O objeto fetiche é facilmente acessível e permite obter a satisfação sexual
ligada a ele.

Os objetos escolhidos para substituir o falo ausente na mulher não


aparecem necessariamente como símbolos do pênis, ou se aparentam
com ele, como se poderia esperar.
A atitude dividida se mostra no uso que o fetichista faz com o fetiche na
realidade ou na imaginação.

Não basta dizer que o fetichista reverencia o fetiche. Em muitos casos,


trata-o de modo equivalente a uma representação da castração.
Veludo Azul
Filme com roteiro e direção de
David Lynch de 1986.
Tem um clima de mistério que
envolve o filme, que é a marca do
David Lynch.
VELUDO AZUL
FRANK
• Submete a personagem Dorothy a todo
um script rígido e submisso, tomando-a
como objeto de sua encenação:
• Proibe de olhá-lo; usar um vestido de
veludo azul; apagar as luzes; servi-lo
bourbon e de chamá-lo de papai, ao
mesmo tempo em que toma para si o
papel materno.
• Segue cena do abuso de Dorothy
sempre mantendo o vestido de veludo
como elemento central do ato.
FILME VELUDO AZUL

• Veludo – objeto fetiche.


Possibilita o gozo sexual onde
antes havia angústia da castração
para ele inaceitável.

• Jeffrey – Ao ver a cena do


armário, angustia-se. Nessa cena
há elementos de voyeurismo,
sadismo, masoquismo, abuso
sexual e fetichismo.
A “perversão generalizada” como efeito e o
resultado da mercantilização dos objetos
oferecidos para o gozo.
• Vamos situar o tema dessa aula, a partir da seguinte
questão:
Próxima Como situar a posição subjetiva nos dias de hoje,
Aula quando os ideais vacilam e o Outro, com suas
insígnias, não existe para orientar os rumos da
vida do sujeito? O que recolhemos na clinica,
hoje?
• DELAY, J. (1958). Le journal, tomo I. Paris:
Gallimard, p. 241
• Freud, S. (1927). Fetichismo. Obras Completas.
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1977, Vol. XXI.
• Freud, S. (1940 [1938]) A divisão do ego no
processo de defesa. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1977, Vol. XXIII.
• Freud, S. 1933 [1932]. Novas conferencias
Referências introdutórias sobre psicanálise. Obras
Bibliográficas Completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1977, Vol.
XXII.
• GIDE, A. (1954[1939-1949]). “Si le grain ne
meurt”. In: Jour La Pléiade. Paris: Gallimard
• Julien, P. (2003). Psicose, perversão, neurose.
RJ: Cia. de Freud.
• Lacan, J. (1956-57). O Seminário, livro 4: as
relações de objeto. RJ: JZE, 1995.
• Lacan, J. (1957-58). O Seminário, livro 5:
as formações do inconsciente. RJ: JZE, 1999.
• Lacan, J. (1958) “A significação do falo”. Escritos.
RJ: JZE, 1998, p. 692-703. Lacan, J. (1998).
Escritos. RJ: JZE.
• Lacan, J. Juventude de Gide ou a letra e o desejo
(1958). In: Escritos, pp. 749-775.

Referências • Miller. J-A Sobre Gide de Lacan. In: Opção


Lacaniana online nova série. Números 17 e 18.
Bibliográficas Julho 2015. Disponível em oLacan, J. Juventude
de Gide ou a letra e o desejo (1958). In: Escritos,
pp. 749-775.
• Miller. J-A Sobre Gide de Lacan. In: Opção
Lacaniana online nova série. Números 17 e 18.
Julho 2015.
• Millot, C. Gide, Genet e Mishima: Inteligência
da Perversão. Rio de Janeiro: Companhia
das Letras, 2004.

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