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V JORNADA DE ESTUDOS DE CASOS CLÍNICOS EM PSICOLOGIA

DA TUIUTI - 10 de novembro de 2023

A MISTERIOSA MORTE DOS BURARI

Felipe Diniz Casagrande

Falar sobre a misteriosa morte dos Burari é um desafio por que não falta
muito mistério na compreensão desse caso, já foram dadas várias respostas. Eu me
satisfiz com a hipótese que a família operou um ritual para a ressurreição do
patriarca falecido, encabeçado por um de seus filhos. Porque essa hipótese não
seria suficiente? Porém, a cena de um suicídio coletivo não deve ser animadora ou
confortável sem dúvida, sendo motivo suficiente para pensarmos que há aí um
mistério.
Das respostas dadas, a mais fascinante é a que alia essa cena com a ideia
de que se construiu ali uma espécie de culto, desses que aparecem em notícias
internacionais que acabam como essa história acabou. Que nos leva à figura
emblemática do sociopata, o perverso, à lá Jim Jones. Me interessa também o que
geralmente nos choca mais em relatos assim, a suposta perversão das leis sociais
“normais”, a superação de limites que para muitos de nós são intransponíveis e nos
causam repulsa moral e nos fazem procurar um culpado, no caso, criminoso.
Além disso, é importante salientar que o mistério é aliado à figura da psicose.
E para ser mais preciso não exatamente à psicose, mas à loucura em sua totalidade.
A psicose é apenas um diagnóstico, com seu objetivo de direção de tratamento; a
loucura é mais abrangente e sua polissemia pode ser especificada. Nesse sentido,
falar de psicose e loucura seria falar sobre as formas que temos para compreender
tanto situações misteriosas assim mais gerais que vem desse âmbito midiático, mas
também no âmbito particular da atividade clínica.
Na clínica nos deparamos com formas muito similares, claro que não com tal
desfecho, mas rituais secretos para manter vivo um personagem que ali falta ou que
sequer existiu. Uma grande questão é que nossos pactos, nossos cultos secretos
não são dados à vista, não viralizam nas redes sociais. Nossos cultos são
adorações cotidianas e cheias de sofrimento para sustentar um ideal, sustentar a
esperança de novidade diante da repetição constante de nossa atividade, sustentar
um mestre. Sustentar um Pai, essa é a neurose.
Então, a misteriosa morte da família Burari traz muitos elementos para pensar
uma amplitude das questões que se imputam ao nosso trabalho clínico-teórico. Meu
foco é que nas notícias que eu li, no documentário sobre o caso e no podcast
referenciado, sempre se termina com um respaldo médico. “Bom, se trata de uma
psicose”, dizem, e é por isso que não tem mistério, já está respondido. Além disso,
também temos uma estranha noção de “psicose compartilhada” que em algum lugar
foi dito que a “psicose compartilhada” é uma espécie de contágio. O que não
acredito que seja bem assim.
Pois bem, para poder falar sobre isso, para poder falar alguma coisa sobre a
teoria que embasa essas nossas discussões, é preciso falar um pouco sobre
psicose, mesmo que pensar esse caso relativo às questões da psicose seja
insuficiente. O que eu quero trazer também é a problemática da loucura para
podermos discutir a partir desse caso e entender um pouco dessas diferenças e por
que talvez a loucura seja mais interessante do que a psicose para pensá-lo. Aqui
vocês já podem ver que há uma diferença entre loucura e psicose.
Bom, o que seria uma Psicose? Vale lembrar que a minha base teórica é a de
Lacan, que se diferencia das noções por Freud. É óbvio que a gente precisa, quando
fala de psicanálise, seja em Lacan ou em algum outro autor dos grandes autores a
que a gente se refere, é preciso passar pela questão freudiana. Na teoria freudiana,
a psicose se caracteriza principalmente como um conflito, uma cisão, com a
realidade. É a psicose no modelo freudiano, o Eu em conflito com a realidade.
Assim, os fenômenos da psicose, delírios, alucinações, paranoias, etc, são
características dessa cisão.
De fato, quando a gente escuta notícias assim, nosso desconforto com
relação a isso ele tem a ver com esse ponto, parece uma cisão com a realidade. Só
que é preciso pensar o que significa isso de “realidade”. Penso que o fundamento de
Freud para pensar essa questão da realidade tem características bastante
empíricas, é uma realidade materialista, utilitarista. Assim, para Lacan a realidade é
outra coisa.
Para Lacan, a realidade é uma montagem, uma montagem principalmente
simbólica, e nessa montagem simbólica várias coisas acontecem. Quando se fala de
fantasia ou fantasma, por exemplo, se trata da "realidade", não é? O fantasma, é a
realidade, não é uma construção além da realidade, é a moldura da realidade.
Então, quando se fala de uma certa cisão com a realidade, em Lacan, isso toma um
sentido muito diferente do que aquele em Freud.
Pois bem, dentro da teoria do Lacan, a psicose vai se caracterizar assim:
enquanto estrutura discursiva psicose é definida pela “foraclusão do Nome-do-Pai”.
Infelizmente fica muito extenso tratar desses assuntos específicos porque é preciso
pensar o que é foraclusão, o que é o Nome-do-Pai. Mas, de maneira geral, esse
campo simbólico que constitui a realidade, incluindo seus outros registros, do
Imaginário e do Real, esse campo simbólico que constitui a realidade é organizado
em referência a alguns elementos significantes que são fundamentais e que tem
uma centralidade. Eles organizam os elementos à sua volta.
O Nome-do-Pai não é literalmente o nome do pai, mas o significante
Nome-do-Pai atua como uma operação lógica que estrutura o conjunto simbólico
através de uma metáfora substitutiva. Na psicose, este elemento centralizador e
organizador do conjunto simbólico está ausente. A falta desse elemento provoca um
efeito de expansão, até o infinito, inclusive em termos de tempo e espaço. Isso é o
Inconsciente a céu aberto. Neste contexto, é possível refletir sobre questões de
alucinações, delírios e paranoias.
Na Psicose se tem um funcionamento muito natural do simbólico. Quando me
refiro a "natural", é preciso destacar que não há nada de natural no simbólico.
Contudo, o que se pode considerar natural em termos simbólicos é justamente a sua
função de conectar um elemento significante a outros de maneiras específicas. Essa
ligação pode ocorrer como metáfora ou metonímia, resultando em uma significação.
Assim, para voltar ao nosso caso, o drama se inicia com a morte do patriarca,
e quem toma essa responsabilidade no sentido concreto, ali daquela família, seria
um dos filhos. Então é explícito que tem alguma questão relacionada à figura do pai.
O poderíamos imaginar disso? A ausência da figura do pai poderia remeter à
ausência desse elemento organizador de um certo conjunto, seja de um conjunto
simbólico, mas, propriamente dizendo, de um conjunto familiar. E o próprio lugar
desse filho, como as coisas foram trazidas a ele, foram relativas a essa morte e à
identificação com esse pai morto.
E não só a identificação no sentido individual, aliás, a identificação não é só
individual, mas é no sentido de reorganizar a vida daquela família, as atividades da
família, do trabalho e dos papéis que cada um exercia. E aí está um ponto
interessante para pensar, será que de fato é uma psicose que explica esse caso?
Será que uma psicose dá conta desse papel? Assim, será que mesmo que fosse
num certo delírio por si só (a comunicação com o pai morto), a psicose explicaria tal
processo?
Eu penso que essa resposta de colocar a psicose como diagnóstico desses
acontecimentos ou de um indivíduo específico nele contido, é insuficiente e ela só
retrata uma cartada da clínica, é uma resposta forçada. E eu não acho que falar de
psicose seja falar sobre a resolução desse mistério da morte dos Burari. Eu acho
que o que é mais explícito nesse caso é muito mais uma dinâmica de loucura do que
de fato de psicose. Bom, qual a diferença entre psicose e loucura?
Já falamos que a psicose se caracteriza pela foraclusão do Nome-do-Pai. A
loucura é um processo diferente, a loucura é “a identificação ao ideal”. A loucura é
um processo, é um acontecimento, é um drama que pode estar presente em
qualquer estrutura discursiva, incluindo a neurose. É interessante pensar nesse caso
assim. O filho que se identifica justamente ao pai está dentro desse esquema de
identificação ao ideal. O que pode, inclusive, explicar por que os outros também
estavam incluídos nisso, por que toda a família estava contida nesse sistema e sem
perceber as nuances que, para nós de fora, são bizarras.
Na loucura, a identificação com o ideal não é idêntica àquela experienciada
durante uma análise. Neste processo, estamos compreendendo nossos sofrimentos
e os objetos que nos trazem satisfação. Ao mesmo tempo, nos deparamos com a
figura do Ideal-do-Eu, que frequentemente possui uma relação significativa com a
figura paterna.
Na loucura isso não acontece. Esse ideal, ele é completo. Se pode dizer
lacanianamente que nesse ideal não está inscrita a falta do Outro. Outro com “o”
maiúsculo. Essa família toda foi tomada por essa dinâmica, uma vez que num
período de luto, envolto em crises como todo o período de luto, é possível pensar
que as coisas se encaixaram de uma forma de que essa loucura foi assumida pelo
grupo familiar.
Nas investigações e nas discussões é muito comum a tentativa de encontrar
um culpado, o que nesse caso caiu sobre esse filho identificado ao pai assim. Penso
que aconteceu um processo que envolveu todos, todo o grupo familiar. Então, nesse
ponto se pode pensar, foi loucura, não uma loucura compartilhada, sem precisar
necessariamente recorrer à psicose.
Para encerrar, ainda uma palavra sobre diagnósticos. Um diagnóstico não é
um mistério, não é um objetivo no tratamento. O diagnóstico é, sobretudo, uma
chave de leitura que habilita a operação do analista sobre os elementos significantes
que compõem o texto clínico. Assim, um exercício didático como esse que fizemos
nos ensina sobre essas leituras que fazemos, longe de chegarmos até a verdade do
caso, corremos atrás do mistério que o recorte que nos interessa.

REFERÊNCIAS

BONORIS, B. (2017). El sujeto de la ciencia y la locura moderna: el problema de la


atadura en el ser. IX Congreso Internacional de Investigación y Práctica
Profesional en Psicología XXIV Jornadas de Investigación XIII Encuentro de
Investigadores en Psicología del MERCOSUR, pp. 137-140. Recuperado de
https://www.aacademica.org/000-067/823

DUTRA, F. (2023). Invasión de Otredad en el campo de la holofrase: ¿es posible una


economía?. El Rey está Desnudo: revista para el psicoanálisis por venir, n.
20, pp. 99-112. Recuperado de https://elreyestadesnudo.com.ar/edicion-20/

EIDELSZTEIN, A. (2008). Las estructuras clínicas a partir de Lacan: intervalo y


holofrase, locura, psicosis, psicosomática y debilidad mental. Vol. 1. Buenos
Aires: Letra Viva Ediciones.

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