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O inconsciente em Lacan
Morgana Justen

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A " formação " do analist a I -O desencant ament o da psicanálise


T hais Silva do Nasciment o

Verdade e Técnica em Psicanálise


Vit or Hugo Triska

"Falar no fio da fala": A diferença e a ciência na aplicação da lingüíst ica saussurieana à psicanálise


Léa Silveira
Arquivo Charles Lang - 2004

O inconsciente em Lacan
Contardo Calligaris

O ensino de Lacan, como vocês sabem, se estende por 25 anos ou mais, segundo a
data que se escolhe para começar a contar, e é certo que, se tivéssemos que responder ao
título “O Inconsciente em Lacan” de um jeito mais orgânico, precisaria falar, talvez, de
um primeiro, de um segundo e de um terceiro Lacan. Além disso, de fato teria preferido o
título “Lacan no Inconsciente”, talvez isso se explique depois.
Enfim, vou falar do “Inconsciente em Lacan” no momento no qual Lacan fala
mais do inconsciente. Vou escolher uma época importante no ensino de Lacan, o começo
dos anos 60. Se é que a clínica lacaniana é diferente do que seria uma clínica
propriamente freudiana, e eu acredito que é; isso pode ser entendido como implicando
concepções distintas do inconsciente. Daqui a importância deste começo dos anos 60.
Para dar uma referência textual à qual vocês possam facilmente voltar, se quiseram, trata-
se dos primeiros capítulos do Seminário XI, “Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise” e do texto “Posição do inconsciente”, que está nos Escritos. Este texto,
“Posição do inconsciente”, tem uma relação com o que foi falado ontem, particularmente
sobre Merlcau-Ponty, pois ele resume a intervenção de Lacan no mesmo colóquio de
Bonneval, que foi mencionado.
Vou introduzir, então, o que não deixará de ser uma certa simplificação deste
jeito: vocês certamente já notaram, se já tiveram uma relação de leitura com o texto
freudiano e com o texto lacaniano, que esses textos participam de estilos diferentes; isso,
acredito, é uma evidência para todos. Esta observação é tanto mais relevante aqui, que um
dos raros momentos nos quais Lacan explica porque o seu ensino se dá neste estilo que
conhecemos e que faz com que a leitura seja aparentemente difícil, um dos raros
momentos é justamente em “Posição do inconsciente”. E a explicação que ele dá do estilo
que ele escolheu para o seu ensino, e que foi escolhendo, de uma certa forma, cada vez
mais, desse estilo que poderíamos chamar de aforismático, embora não seja bem disso
que se trata, a explicação é que o que se de um ensino são efeitos. Freud teria — acredito
— justificado o seu próprio estilo com a idéia que q espera de um ensino seria a
transmissão de um saber (sem deixar por isso de observar que, como se expressa Goethe,
“o que podes saber de melhor, não vai podê-lo transmitir”). Não é por acaso — parece-me
— que Lacan justifica o seu estilo justamente no texto onde ele resume a posição do
inconsciente, pois, esta diferença entre estilo freudiano e estilo lacaniano de ensino é
relativa a uma diferença de posições do inconsciente.
Se tivéssemos que resumir, quanto mais brevemente possível, então
caricaturalmente, a diferença entre uma prática freudiana e uma prática lacaniana,
acredito que o caminho mais breve seria dizer que o próprio de uma prática freudiana é
pensar que a verdade do sujeito, a sua verdade inconsciente é suscetível de ser convertida
em um saber e que esse saber pode ser, evidentemente, formulado e devolvido ao sujeito,
que não sabia, ou que sabia sem saber. O essencial é a idéia que a verdade possa vir a ser
um saber (ou o saber que já era). E certo que as coisas em Freud estão bem mais

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complicadas do que isso. É certo que a partir dos Escritos sobre a técnica, Freud volta
sobre esta questão, a sua prática muda, se torna mais silenciosa e ele pára de comunicar
aos pacientes o saber psicanalítico. Vocês se lembram deste texto importante do fim da
vida de Freud, que é “Construções em análise” onde aparece quanto o estatuto do que é
comunicado ao paciente é particular e problemático, mas, enfim, a grosso modo, acredito
que se possa dizer q é algo próprio da prática freudiana pensar que a verdade do sujeito
seja suscetível de ser transformada em um saber
D ponto de vista existe uma oposição da prática freudiana com a prática lacaniana,
porque para a prática lacaniana trata-se justamente do contrário, eu diria: de separar
verdade e saber, pois a verdade não é suscetível de transformar-se em um saber. Que não
pare de tentar transformar-se em um saber, é um efeito da neurose; por quê? Vou
explicar-me. De onde surgiria essa idéia que a verdade inconsciente do sujeito poderia ser
um saber? E uma idéia que surge na constituição mesma do sujeito neurótico, porque a
constituição edípica, então neurótica do sujei to, implica que ele aposte num pai ou, em
outras palavras, que ele suponha um pai como sujeito de um saber. A idéia mesma que a
sua verdade possa ser um saber é uma idéia sustentada pela posição paterna. É um ponto
extremamente importante, porque se a prática freudiana é fundada nessa idéia, que a
verdade pode converter-se em um saber, isso nos explica a constatação decepcionada de
Freud ao fim de sua vida, quando neste texto magistral que é “Análise finita e análise
infinita”, ele constata que a psicanálise, de uma certa forma, irremediavelmente não
consegue levar um sujeito além da confrontação com a rocha da castração.
É desta decepção que surge a aposta lacaniana a partir dos anos 60, quando Lacan
começa a pensar, a partir de sua experiência, em um fim de análise que seja um pouco
outra coisa, um além da rocha da castração, mas por isso precisa, evidentemente, que a
verdade e o saber se divorciem. Por que precisa isso? Por que se na prática mesma é
sustentada a idéia que a verdade pode chegar a transformar-se em um saber, essa prática
só pode fortalecer a função paterna que justifica a suposição que a verdade seja um saber.
Retomemos. Não é uma idéia natural que a verdade seja um saber. Porque a
verdade teria que ser um saber? Não é nada natural que a verdade tenha que ser um saber.
Os psicanalistas acham, às vezes, normal que um sujeito se apresente em psicanálise, com
uma demanda como: “eu quero analisar-me para saber mais sobre mim”. É uma coisa
absolutamente extravagante, sintomática: normalmente, se está numa queixa, ele deveria
apresentar-se dizendo que ele quer que algo mude. Ninguém se apresenta a um médico
dizendo que tem uma dor, e, portanto quer saber a explicação anatomo-patológica desta
dor; ele quer que a dor pare. Então, como é que o sujeito que sofre, produz uma queixa,
chega em análise e pergunta: “eu gostaria de saber algo sobre porque estou assim”, e
esquece de pedir que a coisa mude. É algo freqüente e altamente sintomático: o que é
sintomático é que o essencial para o sujeito em questão seja a sua relação com um saber
possível sobre a sua verdade.
Este saber suposto sobre a sua verdade é justamente anima do pela instância
paterna: por quê? Quando um sujeito constitui-se no Édipo, ele supõe o pai como quem
deteria um saber sobre, digamos assim para simplificar, o gozo materno, como quem
poderia defendê-lo cuidando desta demanda apavorante. A partir desta suposição, o
sujeito vai apostar na necessidade, para se manter, de sustentar um saber (com o seu
depositário) que o de fende. Então, a sua verdade aparece ao sujeito como sendo
possivelmente um saber suposto, só à medida na qual o sujeito está tomado numa
perspectiva propriamente neurótica. Por con seqüência, há uma grande diferença entre,
por um lado, uma prática que acredita nisso, que é a posição neurótica mesma do sujei to:

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uma prática que se propõe a transformar a verdade em um saber vai fornecendo tudo que
precisa para que o sujeito acredite na suposição paterna; isso é inevitável em uma análise,
mas só pode deixar o sujeito confrontando ao seu destino edípico, à rocha da castração,
como fala Freud. E, por outro lado, uma prática que, muito pelo contrário, tenta
justamente separar saber e verdade, quer dizer, confrontar o sujeito à sua verdade
inconsciente, mas sem que por isso ele tenha necessariamente que supor que essa verdade
é ou poderia ser um saber. Em outras palavras, mais freudianas, dissolver o complexo,
deixando do Édipo o que é estruturante, poderia se dizer assim: levar a uma experiência
da verdade na qual a função paterna se revele nua, não precisando do manto de um saber.
Mas a questão que resta é: o que seria uma verdade que não seria suscetível de ser
um saber, de transformar-se em um saber? É um problema sério até porque para nós,
enquanto neuróticos, pensar isso é complicado. Para poder avançar um pouco nesse
assunto, vou abrir um parêntese: vocês certamente conhecem esse aforisma lacaniano “o
inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Esse aforisma é problemático pois,
juntando-se ao que foi na elaboração do ensino lacaniano o impacto da leitura de Saussure
e geralmente da lingüística estrutural, esse aforisma acabou autorizando uma leitura
extremamente simplificada do que seria o inconsciente para Lacan. Vale a pena assinalar
isso, pois geralmente acontece que, quando se quer ser pedagógico, se acaba nessa leitura
simplificada que não para acreditar. Vocês conhecem certamente alguns elementos
básicos da lingüística saussuriana, como a distinção língua/palavra que é uma oposição
que se sobrepõe a distinções como competência/performância, paradigma/sintagma,
diacronia/sincronia e código/produção. O código sendo a língua num eixo vertical, a
competência de quem fala, e a produção sendo o eixo horizontal da palavra. Em outros
termos, uma idéia básica da lingüística estrutural é que, para poder produzir uma fala, é
necessário uma presença permanente do código, enquanto ele permite que os elementos
falados sejam diferenciados e que esses elementos sejam organizados de forma a produzir
um sintagma significativo. O que importa para nós é a leitura pedagógica que foi dada do
aforisma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, particularmente quando se
começa a explicar o que é inconsciente em Lacan pegando o lapsus — sempre o mesmo,
aliás, o de Signoreili — como exemplo princeps. O que se tenta mostrar com esse lapsus
é que a verdade inconsciente seria da ordem do código, da língua; em outras palavras,
quer-se mostrar o seguinte: que o sujeito estaria falando, produzindo uma fala e
normalmente haveria, a cada momento da sua produção, um eixo vertical que seria o
código que permite que o que ele produz na fala sejam elementos diferenciados. Só que,
por exemplo, haveria uma parte desse código que seria de uma natureza qualitativamente
diferente do código propriamente lingüístico, seria um código inconsciente. Então, desde
que tivesse alguma falha no discurso do sujeito, elementos desse código inconsciente
precipitar-se-iam porque, como cada um sabe, a natureza a horror do vazio. Então, a
simplificação se ria pegar o aforisma lacaniano, “o inconsciente é estruturado co mo uma
linguagem” para pensar o inconsciente como sendo uma parte singular do código
lingüístico. Vocês vêem bem que, se vamos por este lado, de repente o inconsciente em
Lacan é “alguma coisa”. Ir por este lado significa dar ao inconsciente de Lacan um
estatuto ôntico: ele seria alguma coisa, um pedaço da memória, seriam alguns
significantes na memória do sujeito que se organizariam num código alternativo que
atrapalha o código normal e que se manifesta então em lapsus, sintomas e companhia.
Além das questões que surgiriam imediatamente (por que diabo esse código alternativo
interviria? Em quais falhas e como essas falhas se produziriam?), o problema é o
seguinte: Lacan nunca falou que o inconsciente é estruturado como uma língua, ele falou
que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é muito diferente. Lacan
geralmente pesa suas palavras e sabia perfeitamente que em Saussure linguagem quer

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dizer língua e palavra, código e fala. E se Lacan propõe o inconsciente estruturado como
uma linguagem, a primeira coisa que isso quer dizer é que o inconsciente fala, não que o
inconsciente seja um pedaço do código, mas que ele fala. Quer dizer o quê, que ele fala?
Que o inconsciente é a moradia, a casa do sujeito, do sujeito que fala: em outras palavras,
o inconsciente é o lugar de uma enunciação.
É isso que quer dizer “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, só que
isso que acabo de enunciar, evidentemente, é também problemático, porque, se vocês
conhecem um pouco de lingüística, vão perguntar-me: em que sentido você entende o
“sujeito da enunciação”? O sujeito da enunciação, vocês sabem o que é: é o sujeito que
fala, que produz o enunciado, distinto então do sujeito gramatical ou lógico do enunciado.
Se falo “estamos aqui reunidos”, “nós” é sujeito do meu enunciado, mas o sujeito da
enunciação sou “eu”. O sujeito da enunciação não é só expresso pelo pronome pessoal da
primeira pessoa, mas também por uma série de elementos da linguagem que são índices
da enunciação, comutadores, shifters. Benvéniste, um lingüista que trabalhou com Lacan,
escreveu um texto famoso sobre os pronomes de pessoas e sobre os shifters, um texto
importante para os psicanalistas. Um shifter é um elemento na linguagem que faz
referência ao sujeito da enunciação. Por exemplo, se eu falo “agora” é certo que “agora”
denota uma temporalidade que só se entende relativamente ao momento no qual estou
falando, então “agora” é um shifter, porque denota, indica o tempo da minha própria fala.
Mas será que é desse sujeito da enunciação que Lacan está falando, quando ele
insiste, tanto no começo do Seminário XI ou em “Posição do inconsciente”, sobre o laço
indissociável entre o inconsciente e o sujeito do inconsciente como sujeito da enunciação?
Acho que ele fala de algo diferente do que se reconhece como sujeito da enunciação do
ponto de vista lingüístico. Há um exemplo bonito que Lacan nos dá, no Seminário XI,
acredito no segundo capítulo, esta frase: “eu tenho três irmãos Paulo, Roberto e Eu”. É
uma frase muito interessante do ponto de vista do sujeito da enunciação. Outro exemplo
do que seria um shifter da enunciação inconsciente são algumas construções bem
específicas, que foram explicitadas numa monumental gramática da língua francesa que
Lacan menciona, uma gramática admirável escrita por um lingüista e um psicólogo que
chamam-se Damouret te e Pichon. Trata-se do fenômeno seguinte: quando se fala em
francês “je crains qu’il ne vienne”, a tradução é “receio que ele venha”. Se quisesse dizer
“receio que ele não venha”, seria “je crains qu’il ne vienne pas”, só que quando você
afirma isso no po sitivo, “receio que venha” (je crains qu’il ne vienne) a primeira parte da
negação francesa (o ne da negação “ne ... pas”) permanece, como se falássemos algo
parecido a “receio que não venha” para querer dizer “receio que venha”. Um francês
entende perfeitamente do que se trata, pois fica aí, na frase, um indicador de algo que
talvez seja uma realização fantasmada antecipada do que a gente está querendo (que ele
não venha). Lacan assinala isso como sendo um tipo de shifter, de índice da enunciação
da qual ele está falando.
A questão que coloca a idéia de um sujeito inconsciente da enunciação aquém do
sujeito lingüístico da enunciação, para um analista lacaniano, está constantemente
presente. Se de uma certa forma, caricaturalmente, um analista freudiano estaria se
perguntando sobre o que o paciente está dizendo, um analista lacaniano estaria
constantemente se perguntando de onde ele está falando. Por isso, embora eu esteja
viajando e morando no Brasil há algum tempo, sempre parece-me terrivelmente brutal o
fato de que justamente quem liga pergunte: “De onde fala?”. É uma coisa que me deixava
num estado de afânise subjetiva, porque, de repente, um desconhecido parecia perguntar-
me a coisa mais íntima da minha pessoa: de onde que eu falo? As primeiras vezes dava
respostas agressivas do tipo: “Mas de onde fala você? Mas é você quem está ligando”. É

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um fato cultural interessante; na Europa ninguém pergunta isso. A primeira coisa que
alguém que liga fala: “Aqui é fulano. Eu queria falar com sicrano”. No Brasil é ao
contrário: “Quem fala?” ou “De onde fala?”. As minhas respostas produziam um efeito
estranhíssimo, porque eu não queria entender, então, por exemplo, eu estava em Porto
Alegre, alguém me ligava: “De onde fala?”, eu respondia: “De Porto Alegre”. Era
cômico, mas me defendia de uma pergunta violenta.
Então de que sujeito trata-se nesse sujeito da enunciação in consciente?
Infelizmente, não se dispõe, por um mistério que eu não me explico, na tradução dos
Escritos de Lacan, de um texto capital no ensino lacaniano que é o texto sobre “O estagio
do espelho como mecanismo formador do ‘eu’ “. Assinalo o seguinte: trata-se do estado
do espelho como mecanismo formador do “eu”, que não tem nada a ver com o “eu” no
sentido de “ego”. Em francês o que nós chamamos de “eu”, no sentido de “ego”, é
designado pelo pronome complemento “moi”, e Lacan fala no estagio do espelho como
mecanismo formador do Je, do “eu” gramatical, do “eu” como sujeito da enunciação, não
do “eu” como “moi”, como ego. Freud fala, como vocês sabem, Ich (que é tanto “je”
quanto “moi”), com a diferença que em alemão o artigo neutro permite imediatamente
diferenciar o ego como elemento tópico, que para Freud é das Ich, neutro, e Ich pronome
pessoal da primeira pessoa. Não quero retomar a história do espelho que é bem conhecida.
Mas vocês se lembram do esquema L, que está na página 53 dos Escritos em francês,
representado na página ao lado.
Queria chamar sua atenção sobre a direção das flechas. O que é diagramatizado
nesse esquema é, como se sabe, o seguinte: que o sujeito aquém da subjetividade encontra
a imagem de um semelhante (i (a)) e que essa imagem antecipa para ele uma certa
intuição do seu corpo próprio, o que funda a sua alienação imaginária. Quer dizer que nós
temos uma intuição do nosso corpo próprio só como efeito de uma antecipação especular
que nos outorgou o encontro com um semelhante. Mas o esquema não pára aí, há uma
flecha embaixo que vem de “A” que é o Outro, quer dizer, falando geralmente, que vem
do campo da linguagem e cuja flecha é justamente o que abre, prepara, falando um pouco
imaginariamente, um espaço que é a casa da qual estava falando antes, um espaço
necessário no simbólico para que a antecipação da imagem surja como embrionária
constituição do sujeito.

Incito vocês a retomarem particularmente as últimas páginas do texto que chama-


se “Subversão do sujeito e dialética do desejo” nos Escritos. Nestas páginas, Lacan fala
de algo que ele chama de nome próprio, e que não se reduz ao nome próprio como
Contardo, Felícia etc., trata-se do nome próprio como o que designa o sujeito enquanto a
significação desse sujeito é absolutamente incalculável. Lacan produz, aliás, um cálculo
simples no qual consegue mostrar que a significação do sujeito é o primeiro número
imaginário, quer dizer, V-1 (a definição de um número imaginário, e que é um número
incalculável, pode ser escrito, mas não pode ser calculado, por exemplo a raiz de um

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número negativo). Trata-se de algo disso nessa flecha embaixo no esquema L que vem
constituir uma casa para o sujeito do qual estamos falando, para o sujeito da enunciação.
Algo da ordem de um nome próprio que abre um espaço cuja significação é incalculável,
ou seja, cuja verdade não é suscetível de um saber, embora na sua história edípica o
sujeito não pare nunca de procurar transformar a sua verdade num saber.
Nesse lugar primeiro, nesta casa do sujeito, é que estaria o que é
fundamentalmente o inconsciente para Lacan, quer dizer, o sujeito inconsciente da
enunciação. Mas estamos bem longe de ter respondido a nossa pergunta: o que é este
sujeito inconsciente da enunciação? Para explicar um pouco mais, vamos tomar um
caminho que vai parecer estranho, porque vai levar-nos, aparentemente, a acreditar em
uma tese quase filosófica e talvez bem próxima das posições fenomenológicas; só depois
veremos que as coisas não estão bem assim. A idéia é que esse sujeito inconsciente da
enunciação é sempre ele quem fala, não só na fala de um dito discurso inconsciente, Só
tem fala porque tem sujeito inconsciente da enunciação; ele é constantemente presente e,
se não tivesse esse sujeito da enunciação, a gente não falaria. Este sujeito não é que esteja
falando algo, ele é a condição para que qualquer um fale algo. Se eu não fosse animado
pelo meu sujeito do inconsciente, pelo meu sujeito da enunciação, não conseguiria falar
agora; não é só quando eu vou acabar fazendo um lapsus, que é inevitável, não é só aí que
este sujeito falaria por cima de mim: é à medida na qual eu falo, que esse sujeito está
falando em mim, está mesmo, diria, sustentando a minha fala, e na minha fala a
significação que eu estou produzindo é justamente o que oculta o lugar do qual eu falo, de
onde estou falando.
Esta hipótese tem uma série de conseqüências clínicas e éticas importantes,
assinalo-as imediatamente. Se o sujeito do qual estou falando, que faz com que eu fale, se
este sujeito também é o sujeito do desejo, este sujeito deseja, mas não deseja algo; sabe-se
que em “lacaniano”, aliás, desejar é um verbo intransitivo. Quer dizer que se estou
pedindo cerejas, o problema não é que, pedindo isso, eu esteja pedindo outra coisa, pois o
desejo inconsciente não é desejo de algo esquecido, de algo proibido, recalcado, sobre o
qual eu produziria a mentira manifesta do meu desejo de cerejas. Nada disso: se eu desejo
cerejas, são cerejas mesmo; não por que o meu desejo inconsciente esteja querendo
cerejas, mas por que, se desejo cerejas, é porque o meu desejo inconsciente está
sustentando este desejo. E um fato importante do ponto de vista clínico. A distinção
latente/manifesto é uma distinção pouco lacaniana. Lacan, nas suas supervisões, quando
alguém chegava e comentava: “o paciente disse assim e certamente queria dizer assado”,
respondia geralmente que a única coisa certa é que não era assado que o paciente falara.
Então, o desejo enquanto tal é o que se expressa em todas as minhas demandas, seja o que
for o que vou procurando na vida, de qualquer forma o desejo anima a metonímia dos
meus objetos. Desse ponto de vista, querer a transformação do mundo, ou um carro novo,
não é diferente, O problema é querer, e se existe uma ética do desejo, não é uma ética do
desejo de carro novo e de cerejas, é uma ética do querer. O difícil não é querer alguma
coisa, o difícil é querer. Isso faz justamente com que a ética da psicanálise não seja de
jeito nenhum redutível a uma forma qualquer de moral, pois é uma ética do desejo, não de
tal desejo.
Se evoca freqüentemente que a ética psicanalítica, segundo Lacan, se enunciaria
“precisa não desistir do próprio desejo”. Se a ética da psicanálise se formulasse assim,
seria um imperativo super egóico, ou seja, a última coisa que a psicanálise pode produzir
como ética. O que Lacan fala é que “a única culpa que a psicanálise reconhece seria ter
desistido do próprio desejo”. Isso não quer dizer que é culpa se resignar a não ter um
carro novo ou a cama materna ou outra coisa ainda que, quem sabe, ao fim de uma análise

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eu finalmente saberia o que é, nada disso: talvez ao fim da análise eu possa me permitir
desejar (intransitivamente). Voltando às considerações clínicas que fazia antes, sabemos
perfeitamente quanto este pedido de análise que começa com um: “eu gostaria de saber
algo mais sobre mim”, se completa assim: “uma vez que eu soubesse, eu poderia tomar
algumas decisões”, sabemos quanto este começo de análise promete as piores inibições.
Esta posição, saber o que se deseja para depois poder fazê-lo, só dificulta desejar. Porque
o desejo não é algo suscetível de um saber. O desejo é um exercício sem saber e o difícil é
conseguir desejar.
Posso acrescentar uma coisa para que isso apenas fique mais claro. Vocês se
lembram, certamente, que em A interpretação dos sonhos Freud escreve que qualquer
sonho sempre seria uma realização do desejo. Isso parece fácil quando se consideram os
sonhos alucinatórios das crianças, nos quais quem está com fome alucina um sorvete de
côco e dá certo, um sonho realiza um desejo. Mas fica muito mais complicado quando um
sonho não é desse tipo, não é alucinatório do objeto querido, o que é extrema mente
freqüente. Mas Freud mantém até o fim essa idéia do sonho como sempre sendo a
realização de um desejo. Como então o sonho seria sempre a realização de um desejo? Se
a realização do desejo é poder desejar, que o desejo possa enunciar-se, é já o que o
realiza.
Ainda tenho que acrescentar duas coisas. A primeira é a seguinte: não dá para
conceber este sujeito do inconsciente do qual estou falando como uma entidade
ontológica, tanto menos que é um sujeito evanescente. Por que? Se consegui fazer-me
entender até aqui, esse sujeito é algo que só existe à medida em que o significante o
representa, à medida na qual fala, e 6 justamente à medida na qual fala que ele já
desapareceu. Porque de repente não 6 mais ele, é o significante que o representa, então
este sujei to é uma pulsação.
O segundo ponto, mais importante talvez, é uma questão: no que esse sujeito
inconsciente seria diferente de um sujeito transcendental do ponto de vista da
fenomenologia? Pois o que falei até aqui, acredito que seja compatível com uma
reescritura das Meditações cartesianas que foram justamente citadas ontem. A diferença
se entende talvez passando por um outro leit-motivo lacaniano: “um significante
representa um sujeito para um outro significante”. Um outro significante, o que é? Um
outro significante é um outro sujeito. Em outras palavras, o sujeito do inconsciente é
certamente o lugar de onde Isso fala, quer dizer, esse lugar de onde o sujeito enuncia, mas
este sujeito não está falando sozinho, ele está falando em uma rede com outros sujeitos.
Sabe-se que para Lacan o inconsciente é “transubjetivo”. Até acredito que, numa tradução
portuguesa, deveríamos dizer que é transa-subjetivo, tradução que o próprio Lacan teria
gostado, certamente, O sujeito do inconsciente do qual falamos é bem o lugar “de onde
fala”, mas isso fala para alguém e com alguém. A enunciação inconsciente não é só um
lugar de proveniência ocultado pela significação produzida. A medida mesma na qual isso
fala, imediatamente desenha uma rede de lugares de interlocução, quer dizer, de lugares
com os quais se está falando, rede que épropriamente uma estrutura inconsciente. Daí as
questões clínicas são várias, não só: “de onde fala”, mas também “com quem” e “para
quem”, “contra quem” etc. Desde que Isso fala, imediatamente um mapa desenha-se, um
mapa no qual o sujeito está falando numa transasubjetividade com e em uma rede de
outros sujeitos (também inconscientes).
O inconsciente de repente não seria só o sujeito que fala — a sua enunciação —
mas o grafo de subjetividade com o qual ele está organizado. Esta estrutura é o que
poderíamos considerar como sendo o inconsciente do sujeito. Será que é alguma coisa,

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algum “ser”, será que tem um estatuto ontológico? Se poderia dizer com efeito que o
inconsciente lacaniano assim concebido tem um estatuto ontológico, é uma certa forma de
memória: seria uma enunciação — a do desejo — que se produz num grafo de
interlocução transasubjetiva diferente do grafo consciente; por exemplo, pensar que estou
falando com vocês, e de fato a minha enunciação está falando com e no Outro,
autorizando-me de tal traço do meu avô paterno, endereçando-me ao pai, e assim em
seguida.
Acredito, com Lacan, que o “estatuto ôntico do inconsciente é frágil”, pois o
inconsciente, assim definido como grafo de uma transasubjetividade onde aparece o
sujeito, é algo para ser realizado. O que isso quer dizer? É uma posição que nos afasta da
idéia da estrutura lévi-straussiana, e também não é uma posição fenomenológica, pois
“para ser realizado” não tem nada de eidético. Este “para ser realizado” é uma questão
ética e clínica.
Quando Lacan aponta, no mesmo texto, “Posições do inconsciente”, que o analista
faz parte do conceito do inconsciente, ele nos indica que o inconsciente se realiza na cura.
Nada aqui de difícil: é certo que sem a escuta freudiana, o lapsus, por exemplo, nunca
teria deixado o seu estatuto de acidente para existir como formação do inconsciente.
Em outras palavras, é a escuta e a fala do analista que carregam a responsabilidade
de devolver o paciente ao lugar transa subjetivo de sua enunciação inconsciente (onde
isso estava, eu tenho que advir). Por sinal, esta devolução é a chance de uma possível
intervenção terapêutica eficiente, pois o mapa da transasubjetividade não poderia ser
modificado, por marginalmente que seja, a não ser na sua realização.
Talvez se entenda agora porque o título “Lacan no inconsciente” teria me parecido
mais adequado, se é verdade que, mesmo no seu ensino, Lacan nunca deixou de procurar
mais os efeitos possíveis desta realização, do que a transmissão de uma doutrina.

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