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A psicanálise do

fim do mundo
(e a política do sinthoma)

VI

O grau zero da clínica

Bem-vindos,

Temos trilhado um caminho, com relação ao fim do mundo, que chamamos às vezes de
político, com situações na cidade e temos outro, dito clínico, que seria o do passe.
Nada bom opor política e clínica, elas estão sempre misturadas. Digamos, então, melhor:
temos o tempo todo procurado a incidência da expressão “o fim do mundo” tanto na
cidade quanto no passe.
No passe, o fim do mundo ficou em torno da fantasia ou do atravessamento da fantasia.
No plano “cidade”, ficamos com o fim da escrita.
Abrimos, além disso, outra via com o que costumamos chamar de casos clínicos. Vocês
leram o que tenho chamado Haicais? Pensei em apresentar minhas reflexões a partir
dessas pequenas vinhetas clínicas que pedi a vocês. Selecionei algumas, vamos trabalhar
outras no segundo semestre. Gostaria que vocês continuassem mandando.

Meus casos se leem como romances


Não fui sempre, exclusivamente, psicoterapeuta, pelo contrário, pratiquei a princípio,
como outros neurologistas, o diagnóstico local e as reações elétricas, fui cientista. E a mim
mesmo me causa singular impressão, comprovar que minhas histórias clínicas, carecem
por assim dizer do selo da seriedade científica, e possam ser lidos como contos [die Novelle],
mas me consolo pensando que esse resultado depende completamente da natureza do
objeto [das Gegenstand] e não das minhas preferências pessoais.1

São dois termos-chave são Novelle e Gegenstand. O primeiro pode ser “romance”,
“conto”, ou mesmo “novela”. Na péssima tradução da Imago, aparece “Meus casos


Este texto reproduz o encontro do seminário na EBP-Rio “A psicanálise do fim do mundo” ocorrido em
06/07/17, transcrição Cida Malveira. Edição e notas Flavia Cera.

1
possuem um aspecto literário”, em outras está romance ou novela. O importante é
destacar que eles não “são” romances, mas podem ser lidos como.
O movimento do texto desloca a pergunta para o objeto. O termo é clássico para objeto,
o que se posta diante, em face, Gegenstand. É quase sempre traduzido por “assunto”
ou “matéria”. Vamos manter, com Lacan, a ênfase no aspecto objetal da coisa, por isso
modifico a tradução.
O objeto seriam os seres humanos em questão? É por que tratam de seres humanos?
Gente? Não, já que é inteiramente possível objetivar seres humanos e trazer para esta
objetivação o selo da seriedade científica. É o que faz todo dia a psicologia experimental
e as escalas em psiquiatria. Em vez do subjetivo, os números.
Se o objeto de um caso psicanalítico não é o homem, mas um modo de tomá-lo como
objeto, como seria? A história dele, sua narrativa? Não, de novo. Porque a história dele,
sua subjetividade, diríamos, se confundiria com seu discurso consciente. Se
acrescentamos a hipótese do inconsciente há que haver surpresas em sua narrativa. O
objeto já não é mais, então, sua narrativa, mas aquilo que nela surpreende, os
elementos inconscientes.
Então poderíamos dizer que o objeto da psicanálise é o inconsciente? Lacan não
concorda. Porque se o inconsciente é esse fragmento de história que reaparece, um
“fragmento de memória censurado” como Lacan o define em Função e campo... Se essa
história volta, ela é de alguma forma reincorporada no texto consciente, deixa ser o
inconsciente. Não há o objeto inconsciente, puro, apenas como irrupção no consciente.
Tomado em si ele é um conteúdo como outro qualquer. E seu caráter de estranheza que
o caracteriza. Por isso as histórias clínicas da psicanálise não são exatamente romances.
Podem se ler como romances, tem aspecto literário, mas apresentam elementos
heteróclitos, desencaixados, bizarros. Como tomar essa estranheza causada pela
apresentação dos elementos inconscientes como objeto?

O objeto da psicanálise
É própria abertura, o furo, a surpresa introduzida por estes elementos que caracterizará,
para Lacan, para começar, o objeto da psicanálise. Para defini-lo, Lacan se apropria da
maneira como Heidegger define a verdade, como desvelamento, o próprio movimento
do desvelar e define a aventura psicanalítica como uma experiência de verdade.
O objeto da psicanálise é, para começar, uma experiência de verdade. É o surgimento
de uma verdade, não seu texto, afinal, o que conta não é seu conteúdo, mas seu selo de
singularidade.
Ainda em Função de campo, Lacan vai dar a essa verdade o estatuto de uma fala, que
tem seu sujeito. O sujeito do inconsciente é o sujeito de uma verdade.
Essa ideia está presente até o Seminário 11 onde, em sua primeira lição, define o
inconsciente como “hiância e texto”. O sujeito é essa hiância, que é também a hiância
do desejo, afinal é esse espaço vazio, ponto cego da estrutura que tudo põe em
movimento. É o valor inexprimível no sentido de uma verdade que nos põe atrás dela.
Remeto vocês à Coisa Freudiana, outro texto dos Escritos em que Lacan põe isso em
cena magnificamente usando a história da mitologia grega de Diana e Acteão.

2
Nesse seminário ele introduz uma grande novidade. Se o sujeito da verdade é apenas
vazio, sem corpo, onde está sua substância? É quando ele, propõe seu objeto a como o
referente pulsional, real, do sujeito e ao mesmo tempo como o objeto da psicanálise.
O sujeito é vazio por definição, não tem materialidade como objeto. O texto, por sua
vez, é matéria, mas em si não tem verdade, não tem a marca de singularidade do
inconsciente. Lacan vai inventar o objeto a para localizar essa coisa material e ao mesmo
tempo resistente ao sentido, à incorporação pela consciência.
Em vez de retomar o Seminário 11, proponho a vocês o modo como ele resume isso em
suas conferências em Yale, onde Lacan tem uma maneira bem direta e clara para situar
essa materialidade paradoxal do objeto da psicanálise.
⎯ Pode a psicanálise fundar uma antropologia?
A melhor das antropologias não pode ir além de fazer do homem o ser falante. Eu, por
mim, falo de uma ciência definida por seu objeto.
Ora, o sujeito do inconsciente é um ser falado, e é o ser do homem; se a psicanálise tem que
ser uma ciência, esse não é um objeto apresentável.
De fato, a psicanálise refuta qualquer ideia até hoje apresentada do homem. Convém dizer
que todas, por mais numerosas que fossem, já não se prendiam a nada desde antes da
psicanálise.
O objeto da psicanálise não é o homem; é aquilo que lhe falta ⎯ não uma falta absoluta,
mas a falta de um objeto. Também é preciso nos entendermos quanto à falta de que se trata,
aquela que põe fora de questão que se mencione o objeto.
Não se trata do pão escasso, mas do bolo a que uma rainha remeteu suas massas em tempos
de fome. É essa a unidade das ciências humanas, se vocês quiserem, ou seja, ela faz sorrir,
se não reconhecermos nela uma função de limite.

Há dois tipos de falta aqui: o pão escasso e o brioche.


O pão escasso é a falta do pão. Significa dizer que a psicanálise não faz da falta objeto.
Se o objeto da psicanálise fosse a falta, ela não teria fim. Afinal, como dar pão quando
falta pão? Como dizer uma verdade fora do sentido se ela é fora do sentido?
Mas há outro modo da verdade se apresentar que não o da falta, do impossível como
impotência do dizer. É com outro impossível que lida uma análise. Por isso a metáfora
do brioche que Maria Antonieta mandava dar ao povo.
O objeto da psicanálise é o brioche da Maria Antonieta, que é o objeto a de Lacan. Ele
traz à cena outra modalidade de ser. Poderiam dizer que é essa metáfora é apenas uma
maneira de retomar o aforismo lacaniano segundo o qual a verdade é sempre apenas
meio-dita. Mas o dito de Maria Antonieta é mais que isso. Seu brioche é um escândalo.
É meio monstruoso, afinal que absurdo dizer isso ao povo. Reparem também que
podemos inverter a coisa. Escandaliza também pensar que eles fizessem a revolução
pelos brioches. Razoável pensar que eles querem pão? Ainda razoável que queiram
circo, mas o brioche em questão não é nenhum dos dois.
Lembro a vocês a tirada espirituosa da maionese de salada no livro dos chistes do Freud.
É a mesma estrutura. O sujeito dá dinheiro para o mendigo comer pão e o encontra logo
depois comendo um prato caro e chique, maionese de salmão. Fica indignado e o
mendigo diz: ué, quando não tenho dinheiro não posso comer salmão, quando tenho
também não posso? Quando vou comer salada de salmão?

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Fica claro que o que está em jogo não é a satisfação das necessidades, mas a verdade
de um gozo fora de esquadro, fora do razoável, que aparece nas cadeias do dizer
consciente e nelas se repete e insiste. O brioche é isso, um gozo descabido, uma
excrescência. Esse é o objeto da psicanálise.

Casos
O que procuramos num caso clínico são objetos desse tipo.
A premissa de base extraio do texto de E. Laurent “O relato de caso, crise e solução”.
Neste texto, ele propõe a crise do caso como a do romance e a solução como a arte da
nomeação:
Nomear o caso, a exigência de bem-dizer, é um dos nomes da lógica da experiência
analítica. Ela orienta o dizer do analisante, sua transferência e o dizer interpretativo do
analista.2

Um caso clínico não é um romance, senão ele estaria sepultado no fim do romance. Um
caso clínico talvez seja exatamente a narrativa que nomeie o ponto de encontro entre
uma falta e objeto que em vez de completá-la, satisfazer, a ultrapassa, extrapola. Talvez
seja a história de como, buscando o pão escasso de seu saber, o analisante encontra o
brioche de seu gozo.3
Como esse brioche é excesso e ruptura, a narrativa da apresentação não será linear, não
poderá ser romance. Senão perdemos o efeito de corte dos brioches de Maria
Antonieta.
Há, porém, mais que apenas corte. Um caso pode contar também a apresentação de
nomes que fazem corte, mas que vão delineando um gozo em suas sucessivas
aproximações, vão tornando-o objeto, como um real que volta sempre no mesmo lugar,
definição do real do Seminário 11. A cada corte, um pouco da repetição ou a estrutura
da repetição – e não o fato de uma ressignificação – vai se apresentando e começamos
a ter um desenho desse real.
Laurent não usa o termo objeto para esse gozo real, mas sinthoma como núcleo singular
de gozo, que ele mesmo equipara com o objeto como causa.
A nomeação do sintoma remete, em última instância, a um impossível, ao que da pulsão
se recusa ao significante (...) O lugar dessa parte ocupada, dessa parte "proibida" e não
maldita, é inicialmente nomeado por Lacan como o lugar do desejo. Este será, em seguida,
o lugar do gozo, no momento em que ele modificar a sua teoria do sintoma. A construção
formal gira em torno de um impossível, que inscreve um lugar vazio em reserva: S de (A)
barrado.

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O romance implodido pelo objeto

Lacan, no Seminário 12 “Problemas cruciais


para a psicanálise”4, traz esse exemplo: uma
cortina aberta e cinco vasos de flores. A dona
de casa combina um código com o amante:
quando a barra estiver limpa, na janela
aberta, estará a quantidade de vasos para
dizer a que horas. “Livre às cinco horas”. O
amante passa na rua e lê o código, “sou sua
às cinco horas da tarde”.
Lacan comenta que é um código, uma mensagem, que poderá dizer para ele alguma
coisa, mas também que ela está se colocando como objeto do desejo dele. Além do fato
da mensagem, o que conta é a abertura dela e a codificação, a estruturação do ponto
onde ela é objeto de desejo para ele, para esse encontro.
Essa é a estrutura da fantasia onde seremos uma hora objeto e outra hora sujeito, nunca
os dois ao mesmo tempo. Depende do lado em que se está. Lacan escreve:

O losango, que Lacan chama punção, é a janela, sendo que essa janela tem dois lados e
nunca se pode estar nos dois ao mesmo tempo. O que um caso clínico deveria destacar
é a estrutura da repetição dessas passagens, de um lado para o outro do espelho.
Entendem? O real não está do outro lado da janela da fantasia. Essa é a ilusão que uma
janela sustenta. O mundo está sempre dos dois lados. Nosso real está muito mais no
atravessamento, no que passa de um lado para o outro.
A narrativa só conta por isso. No limite, talvez pudéssemos prescindir dela, desde que
os pontos de virada, de acontecimento, em que o real da fantasia foi aproximado.
Por isso, entendo que J. A. Miller os aproxima do Witz. Afinal o chiste é uma operação
que conecta os dois lados, as duas cenas, consciente e inconsciente. Vejam, por exemplo
o familionário que sustenta o atravessamento de “familiar” e “milionário”criando um
ser bizarro e novo, o familionário, que não é meio do caminho entre um e outro, mas
outra coisa.
Laurent comenta:
A indicação fundamental que Lacan deu sobre esse ponto é que a demonstração em
psicanálise é homogênea à forma do chiste. É a partir do efeito de sentido, muito mais do
que do sentido que, em seu último ensino, Lacan mantém juntos o significante e o sentido.
Ele se junta assim a Wittgenstein, pelo menos ao segundo Wittgenstein, e seu sentido
agudo da disjunção entre significante e significado. É o que Jacques-Alain Miller nota.

Vale para o passe, mas também poderia valer para o caso clínico se ele tiver esses pontos
de virada. A história que vai mapear essas possibilidades de atravessamento, será uma
espécie de romance implodido, pois quando encontro o que está fora da separação
entre um lado e outro, já não estou mais no lugar de quem estava de um lado, desejando
o outro. Vejam o que diz Laurent.
O modus ponens, o desprendimento, se produz em nosso discurso no momento em que o
ganho libidinal é atingido. É o que Lacan conservou para a experiência do passe, em que

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cada um sustenta a demonstração de seu próprio caso. Esse dispositivo, no qual se conta
seu caso, no fim de análise, como uma boa história, tem a estrutura do chiste. Ela radicaliza
a enunciação de cada um. Esse modelo da transmissão da psicanálise é conservado por
numerosos autores psicanalistas fora da nossa orientação.

Interpretação
Participante: achei bárbara sua articulação, faço clínica há bastante tempo e nunca tinha
pensado a fórmula da fantasia como tendo dois lados. Bacana isso. Óbvio, né!
Para mim só ficou óbvio há dois anos, quando apresentava o Seminário do Passe e
trabalhamos com “As meninas” de Velásquez, tão cara a Lacan e a Foucault. É exatamente
essa estrutura, se vocês têm na cabeça a tela.5
Para concluir esse percurso, antes tentarmos ver se ele ilumina nossos flashes clínicos,
o resto da citação de Lacan:
Ela faz sorrir de um certo uso da interpretação como passe de mágica da compreensão.
Uma interpretação cujos efeitos são compreendidos não é uma interpretação psicanalítica.
Basta ter sido analisado ou ser analista para saber disso.

Lacan traz a interpretação, em articulação com o objeto que nós estamos vinculando
com a estrutura do caso clínico. Lembram das duas intervenções lacanianas de base da
última vez?
Uma é a do silêncio que corta. Ele traz a presença do analista como a de uma hiância.
Aquele silêncio que vem logo após um dito e apresenta sua verdade como a de um puro
vazio, mas que corta.
A outra é a de quando destacamos, em um dito, uma palavra, um fragmento ou algo
assim, um dito que não se entende, uma parte sem sentido (eventualmente trazemos
nós mesmos um termo novo, que condensa tanta coisa que ganha esse valor, mas é a
pior maneira). Algo se destaca do discurso analisante e torna-se excrescência, por
exemplo se apostamos na ambiguidade de um termo.
Classicamente, fazendo “hum!” podíamos conseguir os dois tipos de efeito. Hoje, é
preciso rebolar um pouco mais. De todo modo, cada uma dessas intervenções se apoia
em um dos lados da janela, que quero mapear, sujeito e objeto.
“Vou me casar um dia na igreja Santa Margarida” e o analista “Hummm?”. Seu hummm
parece indicar alguma coisa ouvida que se apresenta como vazio de sentido. Ou então
seu “Hummm!” faz com que “Margarida”, que parecia tão inocente, pareça dizer muito
mais. Pode ser algo, então, apresente o gozo envolvido nesse casamento e que ainda
não estava dito, pode ser que margarida venha funcionar como o brioche de Maria
Antonieta. Pode ser que ganhe algum tipo de nomeação, aí sim temos um caso.
Um caso pode ser, então, quase um Haicai, desde que situe esse ponto de
atravessamento, de acontecimento, em que algo cai, casus em latim. E o acontecimento,
como propõe Laurent, é sempre uma nomeação, a marcação de alguma coisa com um
nome que ou faz furo ou reverbera, mas não se encadeia em efeitos de sentido, pelo
menos não por um tempo.

6
O que a gente chama “atravessar a fantasia”, seguindo o
Lacan da última lição do Seminário 11, é se despedir do efeito
janela, da janela como única maneira de acessar o real do
Outro. Os neuróticos são os seres da janela, somos todos
Carolina (Chico Buarque) - Eu bem que mostrei a ela. O tempo
passou na janela. Só Carolina não viu. Pensamos que o
importante é mergulhar na cena, não o importante é se esse
mergulho pode apagar a janela.
Em 2015, no Seminário, coloquei Picasso relendo “As
Meninas” como uma demonstração do fim da janela. Peguei
um dos quadros da Infanta, como esse. Olhando essa Infanta
você diz não tem dentro e fora.
Vamos aos flashes?

Flashes
Cagado
Por Andrea Reis
Pedro diz que há muito tempo é “viciado em sexo casual” o que atrapalha sua vida. Nunca
teve um namorado e passa noites em claro usando um aplicativo de encontros entre
homens que procuram sexo com desconhecidos. Não entende o que o mantém na busca
pelos encontros já que o sexo que realiza com esses homens não lhe dá prazer e que nada
de importante acontece na cama para ele. Digo: Então onde acontece o que realmente
importa? Na sessão seguinte ele ensaia uma resposta: “Acho que estou viciado no barulho
do aplicativo, passo a noite com esse barulhinho na cabeça”. Pergunto: Como? Em que
momento? Descreve variações da cena: O som, a ansiedade; ele a caminho da casa do
desconhecido; o momento em que entra no elevador, o frio na barriga; a espera no hall e o
“coração quase saindo pela boca” na hora em que toca a campainha. Digo: “Então é aí que
as coisas acontecem”. Ele consente: “Depois que entro na casa não tem mais graça, mas
antes fico pra morrer. Entre o elevador e a hora em que a porta se abre é isso: coração
explodindo”. Silencio e ele, a seguir, pela primeira vez traz uma lembrança infantil: Ele
brincando sozinho na frente da casa em que morava com a mãe e os irmãos, na terra, sujo,
vestindo apenas uma camiseta, sem short ou cueca. O pai, que conhecia há pouco, pois
havia deixado a família antes do seu nascimento, chega, pega-o no colo e entra porta
adentro aos berros se queixando do menino estar naquele estado. “Meu pai sempre foi um
bruto, um ignorante, nem imaginou o que seria pra mim ser arrastado daquele jeito por
um homem que eu nunca tinha visto antes naquela gritaria horrível? Foi um susto enorme.
Eu estava todo cagado, imundo de terra”. Cagado, abriu a possibilidade de um trabalho
para além da queixa e do enigma, pois foi o significante que traduziu uma mudança de
posição fundamental. Este nome acusa a queda do idílio na relação amorosa com a mãe,
como consequência da entrada em cena do pai.

Qual é o ponto de passagem? O que Andrea fez foi forçar a que ele localizasse o lugar
do gozo do barulhinho. E ele diz “é no umbral”, é como se fosse uma janela. O que ele
vai encontrar do outro lado? Ficamos pensando que ele vai encontrar o objeto, mas
acontece, como dissemos, que uma vez do outro lado, ele se torna de sujeito, objeto.
Enquanto está na porta está angustiado. A angústia não é você se tornar um objeto, a
condição de objeto não é tão angustiante assim. A angústia é o puro enquadre sem
sujeito, nem objeto, é a passagem. O que faz a passagem?
Participante: o coração explodindo.

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Podemos dizer que Andrea destacou o significante da borda?
Andrea: a cena localiza alguma coisa, esse gozo que ficava insistindo com o barulhinho do
aplicativo. Depois tem a lembrança do pai, depois que essa coisa é localizada nessa cena
que ele descreve. Tem o gesto, o barulho, o coração saindo pela boca.

Houve corte, passagem a outro plano e sobretudo indicação do ponto de


atravessamento que é o do objeto causa.
Como define Lacan: a interpretação incide sempre sobre a causa do desejo.6
Às vezes se consegue esse efeito usando o silêncio. Às vezes, cutucando, fazendo
reverberar um significante que nos pareça trufado, polissêmico, um significante-mestre.
Andrea não se centrou nisso, mas ao buscar o significante de passagem, funcionou.
Andrea: tinha uma coisa lá, eu apostei nessa coisa lá, levei a sério,

A “coisa lá” era o outro lado do espelho.


Andrea: tem um lugar que modifica o regime de gozo do sujeito, que para mim tem a ver
com essa abertura para o inconsciente.

O objeto da psicanálise seria então esse gozo? Estou querendo situar o objeto da
psicanálise como o que se apresenta quando se atravessa o umbral. Não é o que está do
outro lado do espelho, o que está do outro lado do espelho é o lugar de objeto do
sujeito. O objeto a é o que cai quando a gente atravessa a borda.
Andrea: “cagado”, o objeto arrancado da mãe.

Isso. “Cagado” nomeia o sujeito não apenas como objeto do outro, mas como objeto
excrescência, brioche. Objeto “a”. A sensação é que se passou para outro plano, e aí o
lugar de sujeito muda. Não dá para contar essa história linearmente, talvez em espiral.7
Ainda no plano dos modernos, ou seja, dos antigos, pensei em O Witz do pianista, além
desse Cagado. Depois veremos os pós-modernos.

O Witz do pianista
Por Laure Naveau

Trata-se de uma mulher jovem que veio a análise por conta de seus fracassos amorosos.
No percurso da análise, ela encontra o homem de sua vida. Mas, eles continuam a viver
separados, o que acaba por entristecê-la um pouco. Ela, então, sonha com um teclado de
piano. Isso a atravanca, ela não sabe onde colocá-lo. Sobre a janela, ele esconderá a luz. No
chão, pegará poeira. Seu irmão chega, depois seu pai, eles querem ajudá-la. Isso a entendia.
Ela acorda. Aparece um monte de associações mais ou menos edípicas sobre o piano.
Aquela em que ela tocava piano quando criança. Depois, quando ela não se sentia pertencer
à classe social daqueles que tocavam piano. Aquela associação de seu irmão perguntando
à sua família pela filha mais velha etc. “Você sonha com os dois homens da sua vida, mas
quem virou pianista?”, disse-lhe no final da sessão. Ela fica siderada por não ter pensado
em nenhum momento em seu amigo pianista, cujo grande teclado de piano lhe atravanca
o apartamento, a ponto de não haver lugar para ela no apartamento dele... Depois de
algumas sessões, ela anuncia que deu o passo de propor a ele morarem juntos e que ele
aceitou com alegria. Ela então percebe que esse teclado de piano que atravancava era ela
própria, que não sabia onde meter-se desde sempre, como objeto atravancador que ela
achava ser para sua mãe depressiva, inconsolável pela perda de dois bebês antes dela
nascer. De palea, objeto que ela foi para o outro em sua fantasia, virou agalma, graças a uma
formação do inconsciente e da interpretação da analista. Ela se separa dessa posição de
objeto rejeitado. Então, uma outra porta se abre em sua análise. Outra música se faz ouvir,
da qual ela aprende a decifrar a partitura.

8
Trad.: Tatiane Grova

A analista pergunta: “Quem virou pianista?” Vocês fariam essa pergunta? O fato é eu
ela se lembra do amigo pianista, um namorado. Nisso, ela passou para o outro lado, mas
a questão agora muda. Agora o teclado é tão grande, não tem lugar para ela. Foi ela
como objeto “a” que caiu da cena. Ela era o teclado e ela como sujeito não sabia o que
fazer com ele. Com a passagem, virou, “eu, teclado-objeto, que não cabe, numa casa
cheia de teclados”. Essa virada é o que eu quero marcar.
Tem a história da sua mãe depressiva. Depois desse sonho ela foi morar com o
namorado. Ela se separa dessa posição de objeto rejeitado e uma outra porta se abre
na sua análise, outra música se faz escutar.
O caso da Andrea está mais no umbral, então, é mais claro o atravessamento. Talvez
Laure tenha carregado no romance. Mas a virada também está aqui, o atravessamento.
Participante: acho que dá para ver as duas posições de objeto e sujeito. Mesmo com o
romance.
É um momento. Podemos tomar o caso clínico como apenas um atravessamento, são os
flashes, os haicais, ou uma sucessão de alguns articulados, que podem mapear a
estrutura da fantasia.
Nem sempre é um romance, com o obsessivo pode ser uma lista que sustenta o dentro
e o fora. É o que vemos no Haicai - A lista do Sr. V.
A lista do Sr. V,
por Jacques Borie
O Sr. V decide procurar um analista. Ele se reconhece aprisionado ao TOC, tal como
proposto pelos psiquiatras, a ponto de ele ter aderido a um grupo que reúne pessoas que
sofrem de TOC. Fazer parte de uma comunidade com pares com TOC, no entanto o coloca
diante do enfrentamento de um limite em relação às mulheres. Elas realmente não parecem
partilhar desse ideal comunitário ou melhor, ignoram seu “sonho de TOC”, assim se refere
agressivamente uma delas. Ele vem então demandar ao analista a conciliação entre ter o
TOC e seu envolvimento com as mulheres. Ele me entrega na primeira entrevista um papel
onde escreve a lista com as boas razões pelas quais a última mulher que o deixou deve
concordar em repensar. Ele confessa que fazer listas é o ponto central de sua obsessão,
mantido desde a infância. Está convencido de que o analista vai ajudá-lo a aprimorar a lista
com uma argumentação infalível e que demoverá a mulher de sua decisão. Essa primeira
sessão terminará com um suspiro do analista que proporcionará à segunda entrevista um
forte toque de angústia.
O Sr V quer, constantemente, dentro de uma precipitação cercada de urgência me
convencer da absoluta necessidade de terminar a lista com a minha colaboração, já que
você deve conhecer as questões relativas ao sexo, ele detalha. O ponto crucial, segundo ele,
é o de fechar [boucler] a lista. Eu intervenho então, suspendo a sessão de modo um pouco
teatral e ligeiramente bombástico: “Você não avançará em sua análise se seu objetivo é
fechar a boca [la boucler] “Este equívoco foi o momento decisivo de seu engajamento pela
cura.
Trad.: Lourenço Astua

O sujeito chega ao analista para “fechar a lista”. Fechar a lista é trazer a ex para dentro
da casa, deixar tudo como era antes e blindar a janela. É recusar o atravessamento8. O
analista traz um ponto de atravessamento pela ambiguidade, que perdemos na
tradução. De um lado, fica o casal antes da separação, casinha fofa, do outro o silêncio
da boca calada, prenhe de sentidos recalcados: outra mulher? Outro homem? Seja o

9
que for, o analista desenha a ponte para esse outro lado. O importante é a ponte, mais
que o outro lado, mesmo se o outro lado é imprescindível para que haja análise. E essa
ponte estabelecida, faz cair um objeto que instaura um novo plano, nova janela. Esse
objeto que “cai”, na verdade na cai, o então, cai fora do impasse anterior, mas cai dentro
da análise. Esse objeto é a boca calada, costurada, selada, bouclée. Imagino que ele
poderia abrir uma nova série de associações com relação ao silêncio ou a necessidade
louca de fechar todos os buracos.

Vânia: Você começou com o romance, mas por mais que você não queira, um caso se
escreve. Estou tentando pensar, com o Flusser, que a escrita seria o modelo antigo. Estamos
reafirmando o tradicional. Um caso pode ser lido como romance. Se a escrita acaba, acaba
também o caso
O que quis primeiro foi perturbar a ideia de que a escrita de um caso seria linear, romance.
O caso clínico pode ser lido como um romance, mas é difícil. O que o Flusser fala é do fim
da escrita linear, mas poderia haver uma escrita por presságio, que seria a
transcodificação. Em nossos termos, estamos tentando imaginar a passagem do regime
da fantasia para esse outro regime, o da condição litoral.
A condição litoral é trazida por Lacan com o japonês, com Joyce, não é a mesma coisa. É
a de uma escrita não linear, mais uma trama. Aqui, em vez de atravessar para o outro lado
para experimentar o artificial, o fechado da estrutura, já estamos no “fora”, em um espaço
aberto, onde o problema é como recortar, porque não há janela, como reduzir, como
ganhar coesão. Às vezes é um ritual que vai fazer isso, como no flash de Renata.

Grampear um corpo (da janela ao mosaico)


Por Renata Martinez
O interesse de Gabriel em “arranjar uma namorada” situa-se muito mais na vontade de ser
visto com alguém do que propriamente por um desejo sexual pelo outro sexo. Apesar de
seus 20 anos, nunca demonstrou interesse por mulheres ou homens. Gostaria de beijar na
boca para “saber como é”. Quando vê casais jovens andando de mãos dadas ou beijando-
se não entende como as pessoas fazem para se encontrar. Sua maneira de falar do tema é
sempre a de alguém que precisa aprender as ferramentas necessárias para entrar em cena.
A sexualidade aparece na prática da masturbação. Por muito tempo, queixou-se de
“manias” impossíveis de conter, que apareciam após a masturbação ou o simples
pensamento no assunto. Aves Marias, Pais Nossos, inúmeros sinais da cruz na testa, nariz
e queixo, e a necessidade absoluta de manter um terço sempre com ele, em contato com
sua pele – o que o fazia, mesmo no ônibus, retirar o rosário do bolso para tocá-lo. De tão
angustiado com o olhar dos outros sobre seu comportamento bizarro, a analista intervém:
“Por que você não usa um escapulário? “Ao modo de uma prescrição, o uso permanente
da correntinha em volta do pescoço fez cessar abruptamente todos os rituais e com isso,
também, o assunto. O estranhamento experimentado entre Gabriel e seu corpo parece ter
sido tratado por esse elemento suplementar que serviu para “fazê-lo sustentar-se com seu
corpo”. Gosto de pensar que essa pergunta inusitada, que insere um novo significante na
cena, tenha o estatuto de uma interpretação. Uma interpretação só é analítica se fizer
efeitos. Nesse caso, o gozo desmedido das manias impossíveis de conter foi reduzido
fazendo com que Gabriel conseguisse evitar o olhar dos outros sobre ele e pudesse ir e vir
bem menos angustiado. Entretanto, nesse caso, o efeito não perece ter sido uma abertura
para o inconsciente, mas de redução, de localização. Seria apenas um efeito terapêutico ou
um efeito analítico?

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Cadê o “dentro e fora”? Há uma cena “ele queria ir para o sexo, seria um homem e uma
mulher juntos fazendo sexo”, mas não tem profundidade, o outro lado da janela onde
estaria o casal, falta o “quero chegar lá e não consigo”.
Renata: difícil né, não tem desejo para o outro sexo.
Desejo é querer ir para o outro lado da janela, ou querer estar desse lado, objeto,
recebendo o olhar do outro. Parece que não tem nada disso, mas o que tem?
Renata: É muito mais tentar encontrar um lugar, tentar de alguma maneira se identificar.
Não sei como dizer isso! O lugar para ele é muito mais assim do que “aqui e lá”. O
significante é muito mais material, tem alguma coisa que é muito mais aqui e agora.
Você está dizendo que o significante não faz a passagem para a Outra cena, para
dimensão da verdade. Uma maneira de falar dessa sensação é a de que um sujeito sem
profundidade, como muitos falam dos adolescentes, ou, pior, dos pobres. Neste
contexto, sem a escrita linear com a sua maneira própria de tratar o real, pela janela,
Flusser entende que, nessas circunstâncias, tendemos a “construir uma mosaico de
sentido para o absurdo da vida”, esse mosaico vai valer como um modo de lidar com o
real pelo tempo que durar.
Renata: é bem isso que esse paciente faz. A vida é um absurdo, ele busca alguns
significantes para ficar menos absurdo. Mas é momentâneo, pode parar de funcionar dali
a dois minutos. O escapulário deu.
É preciso usar o significante como arma de fixação e não de atravessamento. Não é o
que fez o escapulário? Como foi?
Renata: ele estava no ônibus, queria se masturbar. A masturbação para ele era algo
excessivo demais. Eram muitas e o tempo todo ele pensava e se perguntava sobre isso.
No ônibus ou qualquer lugar que ele estivesse, precisava pegar um terço que ficava dentro
do bolso, rezar mil aves maria, fazer milhões de sinais da cruz, e nada. Isso era angustiante
para ele, todo mundo olhando.
Vamos inverter nossa leitura habitual. Não era um real que voltava sempre ao mesmo
lugar, o de uma necessidade sexual de se masturbar, mas a masturbação era o que ele
fazia com o real que aparecia em qualquer lugar, ela seria uma espécie de localização
do gozo. E o escapulário?
Renata: sei lá, saiu da minha cabeça, tinha o terço e tinha a coisa corporal, isso veio para
mim “por que você não usa um escapulário”.
Ele sabia o que era um escapulário? Suponho que não havia um objeto estavel. O
escapulário se torna esse objeto.
Participante: você pôs um clip e extraiu o objeto. Esse objeto auxiliar de alguma maneira
foi suficientemente, competente, para fazer a extração do objeto no objeto que ele não
conseguia extrair.
O escapulário não é o que está do outro lado, é o que estabiliza a janela. Não sei se nesse
registro “japonês” é preciso criar o dentro e fora, não sei se tem extração do objeto,
pode ser que seja só localização. Lacan ensina sobre a extração do objeto com o Cross
Cap, Ele vai cortando, com pequenos atravessamentos, e uma hora o objeto sai.
Renata: Não acho que o escapulário tenha sido uma extração do objeto, acho que é o
contrário, é o oferecimento de um objeto.
Participante: no caso dele prescinde da coisa da religião.
Sim, mas como Renata falou, ela deu um peso para aquilo porque estava ali, o corpo de
Cristo, por exemplo. É preciso entrar com alguma coisa, o perigo é cair na

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contratransferência e não dá também para você querer guiar o que você quer escolher.
É uma escolha, mas na intuição.
O próximo fragmento dos flashes, que será o último, fala um pouquinho disso tudo, mas
na neurose. Apesar de profundidade e janela, fica tudo meio alinhavado.

Alinhavos
Por Maria Corrêa de Oliveira
O enorme temor com a violência da cidade é o que faz Genaro, 14 anos, buscar a
psicanálise. Muito identificado com a mãe frágil, porém exigente e com sua máquina de
costura, temeroso em decepcionar seu pai, a violência marca seu corpo não somente no
enorme medo de viver de uma cidade grande, mas principalmente no encontro com seu
desejo homossexual. Ao longo de seis intensos anos de trabalho analítico a violência sob a
qual se via afetado esvaneceu-se e Genaro foi se tornando um jovem sexualmente vivo,
destemido e criativo; apropriou-se da satisfação em desenhar, criar roupas e a costura vai
tecendo seu caminho rumo à carreira de estilista. Ainda que reste o desencontro com os
parceiros amorosos, uma análise parecia se encaminhar para um término. Até a presença
do real bater novamente em sua porta. Recentemente a expressão ”isso lá é roupa de
respeito?”, dita por seu pai de modo agressivo em censura ao seu modo de vestir-se, o
paralisa. A roupa havia sido feita por Genaro. Em silêncio penso, a costura se desfez e G.
quase concomitante, me ensinando à não me antecipar, enuncia: “Era uma roupa que ainda
estava em alinhavo”. Retorna ao ponto de partida, em novo embate com seus temores.
Agora, finalmente, a ferocidade e a gritaria são internas. Nas sessões que se seguem, o pai,
até então preservado e mantido à distância, passa a ocupar o lugar central na cena analítica
trazendo à tona com sua presença toda a dimensão violenta presente do desejo sexual no
alinhavo de novas costuras.

Ele está montando uma identidade, de costureira, de estilista, de identificação feminina,


mas ele não está mexendo com a violência que o leva ele a fazer isso, a violência do pai.
É melhor aproximado como sublimação, monta alguma coisa não exatamente apoiada
no recalque.
Participante: porém uma situação faz com que esse alinhavo, essa suposta costura se
mostre, quando o pai entra com a ferocidade dele.
Com o retorno do recalcado desmonta-se o negócio. Isso que é um pouco dos nossos
tempos. Como cada um constrói uma versão de si, ao modo sublimatório, essa versão
ou bem fica frágil, como a dele, ou bem é reforçada por Deus e o mundo e fica
extremamente rígida.
Lembro que Flusser propõe a escrita por presságio, é bom voltarem lá, a
transcodificação, que é um pouco a ideia da fixação, fixação de alguns pontos, mosaico.
É o que estou aproximando da sublimação. Quando essa cair faz-se outra. Não tem que
durar. É um pouco essa ideia.
Hoje, nossa subjetividade vive uma sucessão de sentidos preconfigutados, são, por
exemplo, as opiniões do Facebook. A gente veste uma, sabe que depois virá outra, de
longe parece fake, mas é verdade a cada vez que está se vivendo. Na política isso pode
aparecer também, também no bom sentido, por exemplo o de um coletivo que faz alguma
coisa e ele depois se desfaz, não adianta querer procurar uma causa maior. Pode ser uma
possibilidade da política, os coletivos mosaico. Há que se ver.

Haicais

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Tenho que terminar, vou dar só mais uma indicação.
Leiam um haicai do Paulo Leminski, quase todos são de atravessamento, em seguida
leiam um Haicai japonês. Não é atravessamento. É estranho, dá essa sensação de
superficialidade, meio burro, nada acontece.

Antes é antigo
Chove vinho sobre um campo de trigo

Velho lago, mergulha uma rã


Fragor d`água9

Não parece diferente? Já escrevi um texto sobre isso. Seria a diferença da interpretação
que atravessa para a epifania que localiza. Apesar da rã mergujar e a cena ser a de um
atravessamento, não é isso. Não há outro lado, só há a linha da algua. Parece ter dentro
e fora, céu e água. Mas o que tem lá em baixo, o que tem lá em cima, não tem a menor
importância é só o momento mergulho, essa seria a sensação do escapulário segurando
alguma coisa, enquanto que passar do trigo para o vinho, o campo de trigo, antigo e o
novo, o vinho, são dois mundos que está se atravessando. Os do Leminski são de
passagem, os do Bashô, são de localização, fixação. O “Haicai” da Andrea é do Leminski
e o da Renata, do Bashô.
Vamos ficar por aqui. Vocês vão ter notícias da continuação no segundo semestre. Foi
um prazer nesse semestre.

1
Freud, S. Estudos sobre a histeria (1895). Na versão da Companhia das Letras: “Nem sempre fui
psicoterapeuta. Como os outros neuropatologistas, fui formado na prática dos diagnósticos locais e do
eletrodiagnóstico, e a mim mesmo ainda impressiona singularmente que as histórias clínicas que escrevo
possam ser lidas como novelas e, por assim dizer, careçam do cunho austero da cientificidade. Devo me
consolar com o fato de que evidentemente a responsabilidade por tal efeito deve ser atribuída à natureza da
matéria, e não à minha predileção; o diagnóstico local e as reações elétricas não se mostram eficazes no
estudo da histeria, enquanto uma exposição minuciosa dos processos psíquicos, como estamos acostumados
a obter do escritor, me permite adquirir, pelo emprego de algumas poucas fórmulas psicológicas, uma
espécie de compreensão do desenvolvimento de uma histeria” (p.231)
2
Laurent, É., “Le récit du cas, crise et solution”, In: Liminaire des XXemes Journées de l’ECF, Paris, p.
23. Traduzido como “O relato de caso, crise e solução”. Almanaque de Psicanálise e Saúde
Mental. Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Ano 6, N. 9, Nov. 2003). Disponível em
http://ea.eol.org.ar/03/pt/template.asp?textos/txt/relato_caso.html)
3
A falta “pão escasso” também é real, a falta sujeito e a falta objeto. A falta sujeito como ponto de
interrogação a falta objeto como ponto de exclamação, mas tanto o ponto de interrogação como o de
exclamação, são modalidades de falta, daquilo que não está lá, um no sentido de buscar o que faltam em
termos de escassez e o outro no sentido de encontrar alguma coisa que nomeia a falta. Mas que não supre
nada.
4
Lacan, J. “O Seminário, livro 12, Problemas cruciais para a psicanálise”, inédito, lição de 7/4/65.
5
Lições do Passe – Seminário da Diretoria da EBP-Rio. Março 2015. http://www.ebprio.com/
6
Cf. Lacan, J. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 2001, p. 473.
7
Lacan no Seminário 1, usa a imagem em espiral: “ (...) o analista o ouve, mas, em compensação, o sujeito
também. O eco do seu discurso é simétrico ao especular da imagem. Essa dialética giratória, que eu
represento no esquema por uma espiral, aproxima sempre mais O' e O. O progresso do sujeito no seu ser
deve finalmente levá-lo a O, por uma série de pontos que se repartem entre A e O. Nessa linha, trazendo
cem vezes ao tear o nosso trabalho, o sujeito, confessando a sua história na primeira pessoa, progride na
ordem das relações simbólicas fundamentais em que tem de encontrar o tempo, resolvendo as paradas e as
inibições que constituem o supereu. É preciso o tempo. Se os ecos do discurso se aproximam muito depressa
do ponto O' - quer dizer, se a transferência se faz muito intensa -, produz-se um fenômeno crítico que evoca
a resistência, a resistência sob a forma mais aguda em que possamos vê-la manifestar-se - o silêncio.”

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8
Ele diz “fermer là” que é calar a boca. E o sujeito disse “fermer la list”, “eu vim fechar a lista”, o analista
responde “não é possível que você vem aqui “fermer”, no sentido de calar a boca.
9
Tradução de Alberto Marsicano. A tradução de Bashô por Haroldo de Campos
o velho tanque / rã salt’ /tomba ¹rumor de água
Tradução de Guimarães Rosa: Tatálou e caiu com ondas espiraladas. Fragor de entrudo.
Tradução da Josely Viana Batista: O tanque estanque / mergulho de rã: t / SHI / Bun! /circunfluindo
Outras versões ao português: https://escamandro.wordpress.com/2017/10/16/haicai-da-ra-de-basho-por-
matheus-mavericco/
Para essa seção, cf. Vieira, M. A. La escritura del silencio, introdução, Buenos Aires, Tres Haches, 2018.

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