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“Homo Patiens” : Projeto de uma patodicéia – trecho

... mas não era o sofrimento o seu problema,

e sim o fato de não achar resposta para a questão angustiante:

para que sofrer?

Friedrich Nietzsche

A. Do Automatismo à existência: crítica do niilismo

Antes de abordarmos a questão de uma interpretação do sentido do sofrimento,


devemos nos ocupar da possibilidade básica de que a própria noção de sentido seja
negada, e não apenas o sentido do sofrimento. Ao problema da interpretação, se
antepõe, portanto, o fenômeno da negação.

Defrontamo-nos com essa possibilidade, no contexto daquilo que é conhecido


como ‘niilismo’, cuja essência, ao contrário do que costuma ser dito, não consiste em
negar a existência da existência, mas seu sentido. O niilismo de nenhum modo afirma
que nada existe; o que afirma é que a realidade ‘não é nada mais do que’ isto ou aquilo
a que é reduzida ou de que é deduzida por ele próprio em sua correspondente
concretização.

Conforme resíduos a que a realidade, em cada caso, se vê reduzida ou de que é


deduzida, distinguem-se fundamentalmente três variantes ou modalidades de
niilismo. Se a redução se realiza em benefício da realidade física, o niilismo surge
sob a forma de um fisiologismo; se de uma realidade psíquica, um psicologismo;
enfim, no caso de uma redução concentrada na realidade sociológica, um
sociologismo.

Seja como for, em cada caso, a realidade é diminuída até se limitar a mero efeito,
produto e resultado de fatos fisiológicos, psicológicos ou sociológicos. Mas onde se
vê apenas efeitos, não se é capaz de ver a intenção, não se pode ver sentido algum. A
existência, dessa forma, é privada de sentido. Ao mesmo tempo se torna claro porque
essas três modalidades de niilismo – fisiologismo, psicologismo e sociologismo – não
conseguem captar o sentido: em sua concepção do mundo, cada uma se restringe a
uma camada da existência – física, psíquica ou social – deixando de lado precisamente
o tipo de existência em que pode aparecer algo como intencionalidade, ou seja, a
existência espiritual. Somente quando ela é levada em conta na sua aspiração essencial
ao sentido e ao valor, é que se estabelecem condições para que venha a se manifestar
o sentido da realidade e se tornar evidente o sentido da vida.

As três modalidades mencionadas de niilismo não devem ser confundidas com a


fisiologia, a psicologia e a sociologia. Ao contrário, o “ismo” começa justamente
quando o ângulo de visão de uma camada se amplia até chegar a constituir uma visão
de mundo, ou seja, quando tem início a generalização. A psicologia, a fisiologia e a
sociologia erram ao generalizar. Reduzindo tudo acabam tornando tudo relativo, cm
uma exceção, absolutizam a si mesmas. Examinando particularmente o fisiologismo,
vemos que só admite mecanismos e químismos. Mesmo se esta concepção mecânica
é abandonada em favor de um vitalismo, o ser vivo e, portanto, o ser humano, continua
a ser considerado um aparelho ou autômato dominado por reflexos condicionados ou
não. A antropologia se degenera, então, num apêndice da biologia, e o conhecimento
específico de verdadeiros homens se converte no estudo de determinados mamíferos
aos quais a capacidade de caminhar eretos subiu à cabeça.

O psicologismo também concebe o homem como um aparelho e se refere a


“mecanismos psíquicos”. Atentar, porém, exclusivamente ao automatismo do
aparelho psíquico, significa deixar de perceber a autonomia da existência espiritual.
A vida psíquica dará a impressão de ser um jogo de forças impulsoras de
funcionamento automático, e o homem, um feixe de impulsos. No contexto do
psicologismo, faz-se menção a “impulsos parciais” w “componentes de impulsos”
como se , com tais componentes , fosse possível obter uma resultante , a exemplo do
que ocorre com o paralelogramo de forças.

Para o sociologismo, enfim , o homem também se torna um mero joguete , é


verdade que não da energia vital , mas das forças sociais.

Em cada um dos três aspectos , a existência humana carece forçosamente de


sentido. O homem parece como uma marionete movimentada ora por fios internos ,
ora externos. Em lugar de uma autêntica pintura do homem , temos uma caricatura ;
em lugar do homem autêntico , um homúnculo. É evidente que uma teoria tão infiel
á realidade há de fracassar também na prática. Jamais o niilismo poderá levar ao
humanismo , sempre desembocará numa espécie de “homunculismo”.

(...) Trecho sobre a Ciência e os recortes necessários aos cientistas

( página 221)

A Ciência é forçada a empobrecer a existência , não pode senão recortar em cada


caso do espectro da realidade , um aspecto particular do mundo. Somente quando faço
abstração de tudo que o homem ultrapassa , somente quando ajo como se o homem
se limitasse apenas ao ser físico , somente então posso dedicar-me , por exemplo , à
neurologia. Para mim , como neurologista – ou melhor , quando me dedico , na
qualidade de neurologista , a um homem , um doente – apenas nesse espaço de tempo
é válido o que afirmou Hartwig : as qualidades psíquicas são funções de sistema
nervoso.

Cumpre que ninguém esqueça isso : muito antes de ter visto em minha vida uma
cérebro , eu já conhecia o espiritual – sempre tive consciência da espiritualidade como
realidade imediata e indubitável. Posso colocá-la entre parênteses , devo inclusive
fazê-lo , na medida em que não deseje apenas saber algo do homem , mas praticar a
ciência do homem , a ciência natural do homem. Ao mesmo tempo , convém lembrar
que esse colocar entre parênteses ( em benefício ) da realidade somática cria uma
ficção. Não arbitrariamente , mas realmente finge o neurologista que o homem “é”
um sistema nervoso , finge que somente existe o corporal , “como se” o homem não
existisse espiritualmente e só adquirisse realidade no plano somático.

Já dissemos a ciência natural deve forçosamente agir “como se” o homem fosse
exclusivamente um “sistema nervoso” e , como tal , carente de liberdade. Vemos, pois
, que a carência de liberdade é que constitui uma ficção. (...).

FRANKL , Viktor E. Fundamentos Antropológicos da Psicoterapia. 1ªed. Rio


de Janeiro : Zahar Editores, 1978

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