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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 140/141, 22-44

Re t ra t o, a ut o-re t ra t o e c onst ruç ã o


m e t a psic ológic a de
Se rgué i Const a nt inovit c h Pa nke je ff,
o “H om e m dos lobos”

José Luiz Caon

ste artigo contribui para a fundamentação teórica e prática do método


E psicanalítico de construção do caso. Para esta fundamentação, o autor
confronta alguns textos sobre o “Homem dos lobos”, afirmando que esses
diferentes “retratos” revelam que a redação do caso do pesquisador
psicanalítico é o relance metapsicológico do discurso do analisante. Esse
relance é o ocaso do psicanalista e é ele, esse ocaso, que constitui o caso do
psicanalista.
Palavras-chave: Psicanálise, fundamentação do método psicanalítico,
Homem dos lobos, caso clínico

his work contributes to the theoretical and practical foundation of the


T psychoanalytic method of case construction. For this foundation, the
author confronts some texts about the “Wolf man”, stating that these
differents “pictures” disclose that the psychoanalytic researcher’s case
writing is the metapsychological re-release of the patient speech. This
re-release is the psychoanalyst’s sunset and the psychoanalyst’s sunset is
the sunset that constitutes the case of the psychoanalyst.
Key words: Psychoanalysis, fundation of the psychoanalytic method, Wolf man,
clinic case
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 23

... é impossível não ficarmos inquietos peças do quebra-cabeças, mais desafian-


diante do confronto entre o que foi te é a recomposição. Essa é determina-
dito do paciente por seus analistas e o da pela representação suposta da totali-
que ele mesmo relata de sua vida.
dade do quadro. À medida que o qua-
(Marcos Comaru de Araújo)
dro vai tomando feição, as peças, mes-
mo ausentes, são identificadas a partir

P ode parecer demasiado ao leitor


ser solicitado, bem no início des-
te texto, a posicionar-se perante três
do lugar que devem ocupar. Há um mo-
mento em que até a peça dada por defi-
nitivamente perdida pode ser identifica-
perspectivas: da. É essa a peça que o criminoso, via
1. aquela que examina o auto-retrato de de regra, esconde ou suprime. Entretan-
Serguéi Constantinovitch Pankejeff; to, mesmo ausente e perdida para sem-
2. aquela que examina o retrato de Ser- pre, a peça emerge presentificada e, en-
guéi Constantinovitch Pankejeff feito quanto tal, impõe-se como verdadeira-
por Muriel Gardiner e por Karin mente presente.
Obholzer; O que acontece com a reconstrução do
3. aquela que examina o retrato produ- retrato falado do Homem dos lobos,
zido por construção metapsicológica realizado por Muriel Gardiner e Karin
do Homem dos lobos, feito por Sig- Obholzer, ou com o auto-retrato reali-
mund Freud e por Ruth Mack zado pelo próprio paciente não difere
Brunswick. muito da atividade detetivesca do conto
Pois, neste texto, trata-se realmente dis- policial, ou da história clínica dos psi-
to: de uma pequena galeria de retratos. quiatras e psicólogos clínicos. Uma ma-
Num dos recantos dessa galeria, situa- lograda psicóloga clínica gabava-se de
se Serguéi Constantinovitch Pankejeff ter encontrado um perito em História
com seu auto-retrato, confrontado com Clínica com quem ela se supervisiona-
os retratos dele realizados por Muriel va. Segundo ela, ele era capaz de re-
Gardiner e Karin Obholzer. E noutro re- constituir uma história inteira de um
canto, novamente o Homem dos lobos, paciente a partir de alguns poucos da-
com seu auto-retrato e os retratos dele, dos colhidos, aqui e acolá, numa entre-
feitos pelas duas retratistas, todos con- vista inicial! A idéia de que o caso
frontados com os retratos metapsicoló- psicanalítico equivale a uma recupera-
gicos do Homem dos lobos, feitos, ção ou reconstituição arqueológica é ou-
respectivamente, por Sigmund Freud e tro equívoco não menos desastrado que
por Ruth Mack Brunswick. aquele que considera o caso psicanalí-
Sabemos que a recomposição ou cons- tico como uma reconstrução de um
trução simulada de um crime asseme- caso de detetive criminologista.
lha-se à remontagem de um quebra- Desde meus estudos universitários de
cabeças. Quanto maior for o número de graduação e mestrado em psicologia
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clínica, quando me aprofundei em his- de restauração. O lema médico “restau-


tórica clínica, eu não conseguia me con- ratio in integrum”, ou o princípio cató-
vencer de que o estudo de caso feito lico, “restaurare omnia in Christum”,
com história clínica tivesse alguma ser- cada qual a seu modo, não diferem des-
ventia para o psicanalista, durante a di- se ideal.
reção psicanalítica de cura de tratamen- O estudo de caso com história metapsi-
tos. O psicanalista tem outra melhor cológica do sujeito supõe que a peça
possibilidade ao estudar os casos me- faltante não seja carência ou defeito
tapsicológicos modelares de Freud, nem como fiasco nem como fracasso.
sempre merecidamente retomados. Nessa segunda posição, o faltante não
Há tempo, compreendo por que o estu- é peça que falta, mas a própria falta cujo
do de caso com história clínica é ina- significante equivale à pedra angular,
proveitável para a pesquisa psicanalíti- constituinte ou fundamento. É falta fun-
ca. O pivô da urdidura da história clíni- dante. É pedra angular fecunda e
ca é, de fato, a peça faltante. Ora, a peça permanente da constituição e da cons-
faltante que completa e conclui o caso trução da sujeitidade, da subjetividade e
em história policial, ou outras histórias das aprendizagens humanas.
clínicas, nem sequer serve para o estabe- Com a finalidade didática de fazer sen-
lecimento do diagnóstico psicopatológi- tir o que afirmo como distintivo do caso
co. No caso psicanalítico, o pivô não é a psicanalítico, transcrevo o poema XI da
peça faltante, mas o significante ou sig- obra Tao Te King, do poeta-filósofo Lao Tse
nificantes da falta constituinte do sujei- (1996, p. 23):
to e da subjetividade que a ressignificam.
Trinta raios convergem para o meio
Outrossim, a peça faltante no estudo de Mas é o vazio do centro
caso com história clínica é uma carên- Que faz avançar o carro.
cia, isto é, um defeito que corrompe a
totalidade. Nessa proposta, a lacuna Molda-se a argila para fazer vasos,
Mas é do vazio interno
pode ser fechada, caso se descubra ou
Que depende o seu uso
se adivinhe a peça faltante. Esse ideal
clínico não deixa de ser um derivativo Uma casa é fendida por portas e janelas,
do ideal “pedagogicamente correto” de É ainda o vazio
uma ortopsicologia do desenvolvimen- Que a torna habitável.
to que supõe uma atividade clínica di- O Ser dá possibilidades,
daticamente ortopédica como atividade Mas é pelo Não Ser que as utilizamos.1

1. Pode-se ler esse mesmo poema em espanhol, na Internet: http://www.ddnet.es/noproblemo/


adelgado/Fuentes/Tao/tao.html
Treinta radios convergen en un solo centro; Del agujero del centro depende el uso del carro.
Hacemos una vasija de un trozo de arcilla; es el espacio vacío de su interior el que le da su
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 25

O método de pesquisa decorrente des- memorias de Hombre de los lobos (com


sa última posição é método de associa- sete seções: Recuerdos de mi infancia;
ção livre de representações mentais, sem El duelo inconsciente, 1905-1914;
restrições. É praticado pelo analisante. Castillos em el aire, 1908; Cambio de
E é praticado pelo pesquisador psicana- decisiones, 1909-1914; Después de mi
lítico em alteridade. Para o pesquisador análisis, 1914-1919; La vida cotidiana,
psicanalítico, essa alteridade é a teoria 1919-1938; El clímax, 1938); Parte II:
psicanalítica, quer transmitida de boca El psicoanálisis y el Hombre de los lo-
a orelha, quer reencontrada nos textos bos (com única seção: Mis recuerdos de
da comunidade dos pesquisadores psi- Sigmundo Freud por el Hombre de los
canalíticos e com eles compartilhada, lobos).
estejam ou não em instituições psicana- 2. De autoria de Muriel Gardiner:
líticas ou na universidade. La vida d el Hombre de los lobos
Tendo situado vaga, ligeira e perfunc- a ños después (com quatro seções:
toriamente, o alcance de minha peque- Encuentros com el Hombre de los lo-
na investida de pesquisa psicanalítica bos, 1938-1940; Outro encuentro com
representada neste pequeno trabalho, el Hombre de los lobos, 1956; El
anuncio ao leitor, em primeiro lugar, que Hombre de los lobos envejece; Impres-
o presente texto toma como referência siones diagnósticas.2
e apresenta sucintamente sete textos, a 3. De autoria de Karin Obholzer: Con-
saber: versando com o Homem dos lobos: 3
1. De autoria de Serguéi Constantino- Parte I: O Homem dos lobos (com duas
vitch Pankejeff: El Hombre de los lobos seções: Um personagem da Belle
por el Hombre de los lobos, Parte I: Las époque; No espelho da psicanálise); Par-

utilidad. Construimos puertas y ventanas para una habitación; pero son estos espacios vacíos
los que la hacen habitable. Así, mientras que lo tangible tiene ventajas, es lo intangible de
donde proviene lo útil.
Em inglês, http://www.ii.uib.no/~arnemo/tao/gnl.html
11. Tools
Thirty spokes meet at a nave; Because of the hole we may use the wheel.
Clay is moulded into a vessel; Because of the hollow we may use the cup.
Walls are built around a hearth; Because of the doors we may use the house.
Thus tools come from what exists, But use from what does not.
2. Os textos do Homem dos Lobos e de Muriel Gardiner fazem parte do livro organizado por
essa autora: El hombre de los Lobos por el Hombre de los Lobos. Buenos Aires: Nueva
Vision, 1983.
3. Karin Obholzer lançara, em 1980, Gespräche mit dem Wolfsmann – Eine Psychoanalyse
und die Folgen.
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te II: Conversas com o Homem dos lo- caso. A pesquisa psicanalítica utiliza o
bos (com onze seções: Freud, o pai; método psicanalítico como procedimen-
Restos transferenciais; Outras lembran- to para a coleta de fatos empíricos e a
ças infantis; Teresa; O complexo da construção do caso psicanalítico como
irmã; Sexualidade, dinheiro e masoquis- instrumento de redação de pesquisa a
mo; O corretor de seguros; “Eu, o caso ser compartida com os demais pesqui-
mais célebre”; Amor-Ódio; Um rapaz de sadores da comunidade científica
noventa anos; Um relacionamento hu- universitária.
mano); Parte III: O Homem dos lobos A exposição do método psicanalítico
e eu (com única seção: Crônica de um aparece em excelentes trabalhos didáti-
moribundo). cos. Ex-professo, como o faz Freud,
4. De Sigmund Freud: A partir de aparece em obras representativas da li-
l’histo ire d’une névrose infantile, teratura psicanalítica. Depois de Freud,
po r Freud, na tradução de André fazem-no, com excelente cuidado, tam-
Bourguignon, Pierre Cotet et Jean La- bém outros.
planche. De Freud, podemos contar com:
5. De autoria de Ruth Mack Brunswick: 1. A interpretação dos sonhos (1900a);
“Suplemento a la ‘História de uma 2. Psicopatologia da vida cotidiana
neurosis infantil’ de Freud”. (1901b);
6. De autoria de Patrick J. Mahony, pela 3. O chiste e sua relação com o incons-
The Chicago Institute for Psycho- ciente (1905c);
analysis e Mark Paterson and 4. Conferências introdutórias à psicaná-
International Universities Press, Inc., lise, I, II, III e IV (1915-1916a). É um
1984. Cries of the Wolf Man. Essa obra dispositivo didático dos mais eficazes
é publicada, em luso-brasileiro, pela que permite o aproveitamento e o enten-
Imago, em 1992, sob o título, Gritos do dimento dos casos metapsicológicos
Homem dos lobos. escritos por Freud.
7. De autoria de Jean-François Chian- De outros autores podemos contar
taretto, “Cas et contre-cas. De ‘L’Homme com:
aux loups’ à Serge Doubrovsky”, in- 1. La psychanalyse comme méthode,
cluído no livro de Fédida et F. Villa (Imre Hermann, 1933);
(orgs.). Le cas en controverse. Paris: 2. La méthode psychanalytique et la
PUF, 1999. doctrine freudienne (Roland Dalbiez,
Em segundo lugar, esse exame e essa 1937);
apresentação permitem-nos encaminhar 3. Seminário V: Formações do incons-
questões referentes à temática de estu- ciente (Jacques Lacan, 1957-1958,
dos e pesquisas destinados a contribuir segundo Miller, 1998);
à fundamentação teórica e prática do 4. Psicanálise da alfabetização
método psicanalítico de construção do (Bettelheim, 1981);
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 27

5. Pratique de la méthode psychanaly- relance da análise do analisante que


tique, I e II (Claude Le Guen, 1982); comprova que a situação psicanalíti-
6. Les voies d’accès de l’inconscient ca da cura 4 de pesquisa (spcp) é a
(Gérard Bonnet, 1987). Essa literatura, Nachträglichkeit (relance) da situação
sem contar com a sempre imprescin- psicanalítica de cura de tratamentos
dível obra de Freud, acrescenta-se à (spct).
bateria de textos embasadores da teoria ARGUMENTO:
e da prática do método psicanalítico. A - A escritura do caso psicanalítico não
Recomendações especiais para o estu- representa nem retrata o paciente nem
do e construção do caso psicanalítico retrata seu mundo prévio ou seu mun-
aparecem nos próprios textos dos ca- do circundante.
sos de Freud, especialmente no caso B - Assim, ela não é nem discurso psi-
Dora e no caso O Homem dos lobos. cológico nem discurso médico.
Atualmente, uma razoável literatura vem C - Ela é ficção, invenção e teorização
se pondo à disposição dos psicanalistas metapsicológica do pesquisador psica-
e dos pesquisadores psicanalíticos que nalítico.
estão em contato imediato com os par- PLANO: A afirmação, “a escritura do
ticipantes da comunidade dos caso é ficção, invenção e teorização me-
pesquisadores em geral. tapsicológica do pesquisador psicanalí-
Cabe informar ao leitor que meu presen- tico” serve de bússola para confrontar
te texto, em forma de proposta, foi o caso “O Homem dos lobos”, construí-
apresentado, em redação sumária, aos do por Freud, com o auto-retrato feito
participantes do Laboratório de Psicaná- pelo próprio paciente. Outrossim, far-
lise, alunos e professores do Departa- se-á uma aproximação entre o auto-re-
mento de Psicanálise e Psicopatologia e trato apresentado pelo paciente e o retrato
do Curso de Pós-Graduação de Psico- produzido como biografia, por Muriel
logia do Desenvolvimento do Instituto Gardiner e Karin Obholzer. Verificar-se-
de Psicologia da UFRGS. Foram então á, também, se o autor que trata desses
anunciados, explicitados e discutidos, temas, no livro Le cas en controverse,
preliminarmente, o título, o argumento, Jean-François Chiantaretto, “Cas et con-
o plano e a introdução do esboço do ar- tra-cas. De ‘L’Homme aux loups’ à Ser-
tigo, da forma como se segue: ge Doubrovsky”, consegue estabelecer
TÍTULO DO ARTIGO: O caso do psica- diferenças e critérios definitivos entre o
nalista pesquisador psicanalítico é o método psicanalítico de construção de

4. Utilizo o termo cura como tradução direta do termo alemão Kur. Para o termo Heilung, temos
em luso-brasileiro os termos restabelecimento ou convalescença. O francês, o italiano e o
inglês são mais precisos: guérisson, guarire, healing.
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caso e os métodos psicológico e médi- Finalmente, o presente artigo, em for-


co de estudos de caso. Isto pode servir ma de esboço e comunicação, afirma
de proposta para fazer o mesmo em re- que o caso do psicanalista, isto é, a re-
lação a outros pesquisadores, cujos tex- dação do caso do pesquisador psicana-
tos aparecem nesse volume. lítico é o relance metapsicológico do
Quando examinamos os textos de Ser- discurso do analisante, primeiramente
guéi Constantinovitch Pankejeff e de lançado por esse enquanto formação do
Sigmund Freud, podemos confrontar os inconsciente na situação psicanalítica de
discursos, respectivamente, do sujeito cura de tratamento. Esse relance
analisante e do psicanalista. O auto-re- (Nachträglichkeit) é, ao pé da letra, o
trato fornecido pelo primeiro vai ser ocaso do psicanalista. E também afir-
lido, agora, pelo pesquisador psicanalí- ma, o presente artigo, que a situação
tico de hoje, num outro dispositivo, de psicanalítica de cura de pesquisas, isto
tal forma que, desse auto-retrato, vão é, a direção psicanalítica da iniciação e
persistir somente aqueles processos que aprofundamento de estudos e pesquisas
subsistem no retrato metapsicológico, do psicopatológico é o relance da si-
os quais, de outra forma, dificilmente tuação psicanalítica da cura de trata-
poderiam ser adivinhados pelo leitor co- mentos.
mum. Sabemos que Freud não esteve Mesmo que aquilo que se acaba de di-
tão cômodo, como nós, quando fez isso zer aponte para diversas e instigantes
com o auto-retrato de Schreber. Entre- aberturas, atenho-me, a seguir, a essas
tanto, Freud não é um leitor comum das seguintes seções:
memórias de Schreber!
Cabe lembrar que, na discussão do 1. Alguns elementos do auto-retrato fei-
caso de O Homem dos lobos, Freud re- to por Serguéi Constantinovitch
toma uma das suas mais originais e Pankejeff e dos retratos feitos, res-
profund a s c o n c epções, p r i m e i ra- pectivamente, por Muriel Gardiner e
mente elaboradas nos tempos de sua por Karin Obholzer;
splendid isolation, a saber, a genial 2. Alguns elementos do caso de Freud,
intuição da noção de nachträglich e “História de uma neurose infantil”
Nachträglichkeit. Essa noção fun- (Freud, 1918b) e do “Suplemento à
damentalmente exclusiva e distintiva ‘Historia de uma neurose infantil’”
da pesquisa psicanalítica permi te (1928) de Ruth Mack Brunswick;
postular uma racionalidade para a 3. O caso do psicanalista é o ocaso de
pesquisa psicanalítica, assim como psicanalista, isto é, a situação psica-
a Aufhebung hegeliana, noutro cam- nalítica da cura de pesquisa (spcp) é
po de pesquisa, perm i t e a r acio- o relance da situação psicanalítica da
nalidade da pesquisa psicológica. cura de tratamentos (spct).
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ALGUNS ELEMENTOS DO AUTO-RETRATO II. “A psicanálise e o Homem dos lobos”.


FEITO PORSERGUÉI CONSTANTINOVITCH A obra organizada por Muriel Gardiner
PANKEJEFF E DOS RETRATOS FEITOS, apresenta a autobiografia do Homem dos
RESPECTIVAMENTE, POR MURIEL lobos ocupando 160 páginas do livro de
GARDINER E POR KARIN OBHOLZER 288 páginas. Algumas notas não muito
extensas de Muriel Gardiner acompa-
Em 1983, Ediciones Nueva Visión, de nham o texto do autobiógrafo.
Buenos Aires, inicia a publicação da sé- Em “Recuerdos de mi infancia”, primei-
rie, Los casos de Sigmund Freud. O ra seção, ele relata lembranças bem
primeiro volume é a tradução do livro primordiais, como as que se referem ao
de Muriel Gardiner, El Hombre de los fato de sofrer de malária, conservando
lobos por el Hombre de los lobos.5 a memória de um ataque dessa doença
Muriel Gardiner, analisante de Ruth (p. 19). Essa primeira seção da auto-
Mack Brunswick, publica, em 1971, biografia é de longe bem mais
The Wolf-Man by the Wolf-Man. Basic informativa do que a segunda seção do
Books, New York, 1971. É uma cole- texto de Freud, em “Aus der Geschichte
tânea de textos onde, além de suas einer infatilen Neurosen”. Outrossim, o
próprias observações que constituem Dr. Pankejeff acrescenta inúmeras ob-
seu texto próprio e pessoal, aparecem servações de cunho psicanalítico,
os ensaios metapsicológicos de autoria explicando, ele mesmo, as causas in-
de Sigmund Freud e de Ruth Mack conscientes de certas vivências e
Brunswick. Na tradução espanhola de comportamentos de sua infância.
que me sirvo não aparece o texto de A seção dois, “El duelo inconsciente”,
Freud. Muriel Gardiner apresenta, além abarca o período de 1905-1908, isto é,
da “Introdução” ao livro, uma pequena dos 7 aos 11 anos. Cabe lembrar que,
introdução ao texto de “O Homem dos segundo nosso calendário gregoria-
lobos” e diversos textos que podem ser no, o Dr. Pankejeff nasceu em 6 de
incorporados na biografia tardia desse janeiro de 1887. Creio que o leitor, ago-
analisante generoso e corajoso: “A vida ra, pode servir-se da lista de fatos da
do Homem dos lobos anos depois”. O vida e dos tratamentos do Homem dos
prefácio é de autoria de Anna Freud. lobos. Encontra-se no livro de Mahony,
Os textos autobiográficos de Serguéi acima citado. Entretanto, fiz algumas
Constantinovitch Pankejeff, O Ho- pequenas adaptações que permitem uma
mem dos lobos, estão em duas partes: melhor representação do Homem dos
I. “As memórias do Homem dos lobos”; lobos.

5. A Editora Escuta anuncia que essa obra está no prelo.


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ACONTECIMENTOS IMPORTANTES NA VIDA futura esposa. Seu pai, 49 anos, prova-


DO HOMEM DOS LOBOS6 velmente suicidou-se.
23a (1910): Início da análise com Freud
6 de jan de 1887: Nascimento. (Confor- 27a (1914): Termina a análise com
me calendário gregoriano). Freud e casa-se com Teresa.
1a (1987): A cena primária. 29-33a: Primeira Guerra Mundial e per-
2a e 6m (1989): Pouco antes desta data: da da fortuna.
Cena com a babá (Kindermädchen) 35a: Outra profunda alteração de per-
Grusha, que aparece na sua vida antes sonalidade.
da enfermeira (Kinderfrau) Nanya. 36a: Impacto desastroso da primeira
2a e 6m (1989): Partida dos pais com operação de câncer que Freud faz.
Anna; sozinho com Nanya, ele repudia 37-38a: Preocupações com o nariz, de-
Anna e Grusha. silusões e principais sintomas na sua
3a e 3m (1890): Antes desta data: Na análise com Brunswick aparecem, em
sua frente, a mãe queixa-se ao médico, fevereiro de 1924, durando aproximada-
“Não posso mais continuar assim”. mente seis meses, e reaparecem na
3a e 3m (1890): Seduzido por Anna. Páscoa de 1925.
3a e 6m (1890): Chegada da governan- 39a: A perturbadora carta de Freud, en-
ta inglesa Senhorita Oven. viada em 6 de junho de 1926,
4a (1891): O sonho com o lobo e a ori- perguntando sobre a exatidão do relato
gem de sua fobia. do sonho com o lobo.
4a e 6m (1891): Influência da história 51a: Teresa suicida-se; ele mora com
bíblica e o início de seus sintomas ob- sua mãe.
sessivos. 53-59a: Segunda Guerra Mundial; ele e
Pouco antes do 5a (1892): Alucinações sua mãe quase morrem de fome.
sobre a perda de seu dedo. 64a: O aniversário da morte de Anna;
8a, 10a (1895-7): Manifestações finais ele “descuidadamente” perambula pela
de neurose obsessiva. zona russa da Viena ocupada.
12-13a (1899-1900): Tratamento das 67a: Morte de sua mãe, aos 89 anos.
complicações nasais. 90a: Ficou no Hospital Psiquiátrico de
18a (1905): Contrai gonorréia de Ma- Viena, da época de seu ataque cardía-
trona e entra em séria depressão. co, em julho de 1977, até a sua morte.
19a (1906): Sua irmã Anna suicida-se. 92a: O Homem dos lobos morre em 7
21a (1908): Ele encontra Teresa, sua de maio de 1979.

6. Dados extraídos de Gritos do Homem dos lobos, de Patrick Mahony, pp. 34-36.
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 31

CRONOLOGIA DO APOIO TERAPÊUTICO canalista e especialista em Rorschach.


DADO AO HOMEM DOS LOBOS No mesmo ano, Jones escreve: “Ainda
me correspondo regularmente com ele
Ano Terapeuta
[o paciente].”
1905: Anton, em Berlim.
1956: Ele consulta um analista con-
1907: Consulta em Moscou.
tinuamente por poucos meses. Será que
1907: Séries de consultas, incluindo
é o mesmo analista, Dr. Wilhelm Solms,
Professor Bekhterev (Petersburgo),
presidente da Sociedade Psicanalítica de
Kraepelin (Munique [Munique] e Ziehen
Viena, que depois passa a consultar uma
(Berlim).
vez por semana?
1909: Drosnes e Wulff em Odessa.
1950 ou 1960: Diversas sessões com
1909-14: Freud; o tratamento termina Dr. Winsterstein, depois com uma ana-
em 14 de julho de 1914. lista e, mais tarde, com o psiquiatra Dr.
1919-20: Freud. Menninger.
1926-27: Brunswick; essa análise dura A seção três, “Castillos em el aire,
quatro meses: de outubro a fevereiro. 1908”, oferece interesse para o estudo
1929: Brunswick; essa é uma análi- das idas e vindas ineficazes à busca de
se irregular, que se estende por vários profissionais e de instituições de saúde
anos. psíquica. Até presente, pouco podemos
1938: Brunswick; Paris e Londres; saber sobre o que faz com que um pa-
esse tratamento interrompido ocorre em ciente se encontre com um psicanalista.
várias semanas durante o verão. Mas já sabemos bastante sobre as ra-
1938-79: Encontros ocasionais e corres- zões que levam um paciente a deixar o
pondência esporádica com Muriel psicanalista por outro ou a psicanálise
Gardiner, que o conhece em 1927. por outra forma de tratamento. A seção
Início de 1950: Discussão de seu pro- quatro, “Cambios de decisiones, 1909-
blema romântico com vários psicólogos 1914”. De qualquer forma, mesmo que
e psiquiatras. Freud tenha sido indicado ao Homem
Meio de 1950: Eissler passa várias se- dos lobos, como todos os outros pro-
manas, quase todo o verão, em Viena, fissionais e instituições o tinham sido,
diariamente submete o Homem dos lo- com Freud, o Homem dos lobos vive
bos a conversas analíticas diretas, e uma situação nova:
prescreveu-lhe medicação.
Cuando llegamos a Viena em enero de
1955: Tratamento com um neurolo-
1910 y conocí a Freud, su personalidad
gista que diagnostica sua condição como me impresionó de tal manera que le
uma recaída à melancolia; conseqüen- díje al doctor D. que ya estaba decidi-
temente, o paciente fica três semanas do a que me analizara Freud, de modo
num sanatório neurológico. Foi testado que no tenía sentido que seguéramo s
por dois dias, por Frederick Weil, psi- viaje hasta Ginebra para ver a Dubois,
32 Pulsional Revista de Psicanálise

como l o c u al D. estubo de acuerdo. Na seção cinco, “Después de mi


Como es de suponer, le relaté a Freud mi análisis”, o Homem dos lobos recupera
tormentosa relación com Teresa em o tempo perdido. Dedica-se com afin-
Munich y la visita de ella a Berlin, que ha- co a seus estudos universitários e
bía terminado em forma tan inesperada forma-se advogado.
como funesta. Freud estimó que el primer
O período de 1909-1938 é assunto da
episodio era positivo, pero consideró al
seção seis, “La vida cotidiana”. O Ho-
segundo como uma “huída de la mujer”,
mem dos lobos visita Freud e recebe das
y de acuerdo con ello, cuando le pregun-
té si debería volver a Teresa me espondió mãos desse, como acontece com o Pe-
com um “sí”, pero com la condición de que queno Hans, o caso psicanalítico em que
eso sólo se produjera después de varios ele, Homem dos lobos, é o paciente.
meses de analisis. [Veja-se p. 73, onde se Muitas coisas e acontecimentos desse
diz que: “Quisiera mencionar que el pro- período, das quais sabemos, como a re-
fesor Freud evaluaba em sentido positivo tomada da análise por sugestão de Freud
mis esfuerzos por conquistar a Teresa. Los e a recaída que o levou a tratar-se com
consideraba uma ‘apertura hacia la mujer’7, Ruth Mack Brunswick, não são contem-
y em uma ocasión llegó a decir que se tra- pladas tão profusamente como o são
taba de mi ‘maior logro’”]. outros acontecimentos nas seções ante-
Durante los primeros meses de análisis riores. E a última seção da primeira
com freud de abrió ante mis ojos um parte, 1930, com o título de “El clímax”,
mundo completamente nuevo, um mundo
aborda praticamente o suicídio da espo-
que muy pocas personas conocían em
sa e os gritos subseqüentes do Homem
aquellos días. Muchas cosas de mi vida
que hasta entonces habían sido
dos lobos, um homem viúvo abandona-
incompreensibles empezaron a cobrar sen- do que se queixa e se culpa ao mesmo
tido, a medida que relaciones que habían tempo.
estado ocultas em las tinieblas comenza- A segunda parte contém somente uma
ban a emerger em mi consciencia (p. 102). seção, “Mis recuerdos de Sigmund
Freud”. São muitas as observações que
Nas situações anteriores, nosso Homem ele nos dá de Freud. Cabe trazer aqui a
dos lobos eximia-se de tomar decisões que se refere aos primeiros encontros
e freqüentemente quando não as toma- e como o Homem dos lobos considera-
va ficava na posição de oposição à va seu primeiro psicanalista:
decisão de outrem à qual ele mesmo
aderira. Nessa vez, o Homem dos lobos El aspecto de Freud era tal que se ganó
decide ficar mesmo com Freud. inmediatamente mi confianza. Andaba por

7. Der Durcbruch zum Weib


Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 33

la mitad de la cincuentena y gozaba al pa- uma representação ou recordação que


recer de perfect asalud. De altura y não se consegue trazer à luz:
corpulencia medianas, em su rostro más
bien largo y enmarcado por uma barba re- Freud también apreciaba mucho a los
cortada que empezaba a encanecer, el homiristas y admiraba enormemente a
rasgo más impresionante eran los inteli- Wilhelm Busch. Uma vez dimos em hablar
gentes ojos oscuros que me miraban com de Conan Doyle y su creación, Sherlock
penetración, pero sin provocarme el más Holmes. Yo había pensado que a Freud no
leve sentimiento de incomodidad. Su le interesaría esse tipo de lecturas frívo-
manera de vestir, convencional y correcta, las y me sorpeendió descubrir que de nin-
y la seguridad em sí mismo que transmitía, gún modo era así, y que había leído com
dentro de la sencillez de sua porte, mucha atención a esse escritor. El hecho
indicaban sua amor por el orden y su de que las pruebas circunstanciales sean
seguridad interior. Toda la actitud de Freud útiles en psicoanálisis para reconstruir
y la forma en que me escuchaba lo uma historia infantil puede explicar el in-
diferenciaban de manera sorprendente de terés de Freud por esse tipo de literatura.
sus famosos colegas a quienes yo había Digamos de paso que el padre espiritual
conocido hasta entonces y en quienes del famoso héroe de Conan Doyle, el de-
había encontrado uma total carencia de tective aficionado que supera a todos los
comprensioón psicológica profunda. Em mi organismos oficiales, no es em realidad el
primeir encuentro com Freud tuve la próprio Conan Doyle sino nada menos
sensación de encontrarme frente a uma que Edgar Allan Poe, com su Monsieur
gran personalidad (p. 161). Dupin (se hallarán más detalles em el
... em mi análisis com Freud yo no me interessantísimo estudio psicoanalítico
sentía tanto em la situación de paciente de Edgar Allan Poe realizado por Marie
como em la de colaborador, el camarada Bonaparte). Era natural que um raisonneur
más joven de um explorador experimenta- infaillible como Poe dotara a Monsieur
do que se embarca em el estudio de um Dupin de la capacidade de llegar a las
territorio nuevo y recién descubierto. Esse conclusions más extraordinarias median-
nuevo territorio es el campo del inconscien- te la observación exata del comportamien-
te, sobre el caul el neurótico há perdido el to humano y sopesando todas las circuns-
dominio que ahora, mediante el análisis, tancias. Gracias a esas dotes excepciona-
intenta recuperar (p. 164). les, que Poe denomina “analíticas”,
Surpreende saber a opinião do Homem Monseiur Dupin – um prototipo de
dos lobos quando nos diz que Freud lia Sherlock Holmes – consigue reconstruir y
resolver los complicadissimos y misterio-
autores como Sherlock Holmes. Pare-
sos crimines de la Calle Morgue (p. 171).
ceria que o caso psicanalítico para
Freud, segundo o Homem dos lobos, Essa suposição do Homem dos lobos de
seria um caso do gênero literário poli- que o psicanalista é um detetive da alma
cial em que o “crime” não é uma ação humana é noção habitual como se pode
transgressiva que se quer ocultar, mas ver com aquilo que agora passo a rela-
34 Pulsional Revista de Psicanálise

tar. Assim como há o gênero literário Padre Brown, diz que o psicanalista
lógico e o gênero literário retórico, pro- identifica-se com a prostituta, com o
ponho chamar de gênero literário espe- assassino etc. O método do Padre
cial ao que me refiro como linguageria. Brown consiste em imaginar como ele
A linguageria é praticada, por exemplo, faria o crime que o criminoso perpe-
pelos alunos, em situação de aprendiza- trou. De tanto meditar sobre o crime,
gem, quando deixados em grupos. No acaba dando de cara com o criminoso,
momento em que o ensinante se apro- descobrindo-o serendipidosamente.
xima de um grupo barulhento, os parti- Até o presente, pelo que se vê, alguns
cipantes desse grupo ficam imediatamente psicanalistas, incluo-me entre esses, te-
emudecidos. Passam a discorrer logica- mos noções mais justas do que é um
mente ou retoricamente! Nesse grupo, psicólogo, como Sara Pain, ou um di-
antes, imperava a linguageria! data, como Gérard Vergnaud; um tea-
A linguageria é a fofoca, a palpitagem, trólogo, como Augusto Boal, ou uma
a baboseira resultante do dizer dez ve- poetisa como Adélia Prado. Mas eles
zes antes de pensar, como é solicitado nem concebem o que é que somos como
o analisante, na situação psicanalítica de psicanalistas e o que é a paixão do psi-
cura de tratamentos. E quando cons- canalista. E o psicanalista, sabe ele disso?
trangido, então deve mesmo entregar-se Essa linguageria que se dá freneticamen-
ainda mais a essa linguageria. te no cotidiano é o petróleo de escuta
A linguageria é a paixão do psicanalista na situação psicanalítica de cura de tra-
e do pesquisador psicanalítico. Pergun- tamentos. E é o petróleo explorado e
tei a Sara Pain o que se pode fazer com recolhido pelo pesquisador psicanalítico
a linguageria em situação de aprendiza- em situação psicanalítica de pesquisa.
gem. Respondeu-me que a sala de aula Que retrato do Homem dos lobos nos dá
é o lugar de aprender! Gérard Vergnaud Muriel Gardiner? Ela diz que passou a
respondeu-me que essa linguageria é o conhecê-lo mais intimamente, em 1938,
patológico e que deve ser considerada por ocasião do suicídio da esposa. Entre-
pelos psicanalistas! (Pas mal, M. tanto, ela o conhecia há onze anos. Ela
Vergnaud!). freqüentava aulas de russo que ele mi-
Augusto Boal e Adélia Prado, participan- nistrava. Outrossim, ele lhe vendera uma
tes de uma mesa, no V Congresso de apólice de seguros, renovada anualmen-
Psicopatologia Fundamental, em Cam- te, motivo que o fazia procurá-la pelo
pinas, deram respostas inusitadas. Boal menos uma vez por ano, e fora também
disse que o psicanalista tem a paixão do professor de russo. E os dois escreveram-
detetive. Iguala-nos a um Sherlock Hol- se cartas durante muito tempo.
mes, como se fôssemos discípulos de Muriel Gardiner diz-nos, no fim da se-
Conan Doyle! Adélia Prado, identifican- ção sete da autobiografia do Homem dos
do-nos ao detetive de Chesterton, o lobos, “El clímax, 1938”, escrita trinta
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 35

anos depois, que, às vezes, ele não con- tolerante y más considerado com los
segue ficar fiel aos fatos históricos, demás. Há dominado em cierta medida su
embora secundários. É claro que hou- agresión. Por más que el análisis ho haya
ve o suicídio da esposa, a guerra, mas impedido su reacción agresiva ante los
houve também a morte de Freud, em 23 traumas, reforzó su resistencia al stress. Y
las tensions y pérdidas reales em la vida
de setembro de 1939. Aparentemente,
del Hombre de los lobos han sido muchas
os autores que tratam da literatura do
y grandes.
caso do Homem dos lobos não abordam No cabe duda que el análisis com Freud
o significado para um analisante da mor- salvó al Hombre de los lobos de una
te do psicanalista. existencia mutilada y de que su nuevo
Muriel Gardiner é mais expansiva nas análisis com la doctora Brunswick le
quatro seções: “Encuentros con el permitió superar una grave crisis. Ambos
Hombre de los lobos, 1938-1949”, “Ou- permitieron al paciente llevar uma larga
tro encuentro com el Hombre de los vida, aceptablemente sana (p. 285).
lobos, 1956”, “El Hombre de los lobos
Muriel Gardiner só aparentemente retra-
envejece” e, finalmente, “Impresiones
ta o Homem dos lobos influenciada pela
diagnósticas”. Desses textos, extrai-se
leitura do texto de Freud. Muitas de suas
que o Homem dos lobos gostava de li-
observações não aparecem no texto de
teratura e de pintar, mas lhe era penoso
Freud. Assim, não deixa de dizer taxa-
trabalhar como funcionário numa em-
tivamente:
presa de seguros. Sabemos também que
a mãe dele passou a morar com ele e Daba la impresión de ser ordenado y
ele cuidava dela, depois do suicídio da confiable al máximo; siempre se lo veía
esposa. É-nos informado também que adecuada y cuidadosamente vestido; era
muy cortés y considerado com los demás.
o Homem dos lobos teve outras opor-
Era aun conversador excelente, aunque era
tunidades de reacertar sua vida
poco lo que hablábamos de nosotros
amorosa. Enfim, o retrato do Homem mismos, ya que los temas principales eran
dos lobos que nos é passado por Mu- el arte, la literatura y el psicoanálisis. Era
riel Gardiner mostra um homem comum un escupuloso professor de lengua rusa,
que se ocupa com o cotidiano da vida, por más que esperaba un poco demasia-
agüenta os reveses da existência e des- do de mi. Su alemán – nuestra lengua
fruta moderadamente o que a vida común – era excelente y el mío bastante
oferece. A conclusão da última seção inadecuado (p. 277).
escrita por essa autora retrata o Homem ... el Hombre de los lobos era un genio
dos lobos como analisante: para contraponer uma persona a outra.
Más adelante, por lo menos com respecto
Desde su análisis, el Hombre de los lobos a uno de sus asuntos amorosos, se las
há sido capaz de mantener uma cantidad arregló para encontrar um consejero que
de relaciones y há llegado a ser menos in- le digo: “Si alguna vez llegas a casarte com
36 Pulsional Revista de Psicanálise

esa mujer, te matarás”, em tanto que ou- uma mulher do início do século. Mais
tro expresó: “seguro que te suicidas si no tarde, ele mesmo confessa que ela lhe
te casas con ella”8 (p. 279) lembra a irmã Anna. Mas Karin somen-
El rasgo que la [personalidad] caracteriza te encontra um homem, cinqüenta anos
es la prominencia de las dudas obsesivas,
mais velho que ela, confirmando uma
las vacilaciones, el cusetinamiento, el ver-
observação de Jean Cocteau: “O pior da
se totalmente absorbido por sus proprios
problemas e incapaz de relaiconarse com velhice é que continuamos jovens”.
los demás, y la incapacidad para leer o pin- Outra forma como a jornalista cativa a
tar (pp. 279-280). confiança do Homem dos lobos é a
Personalmente, em los cuarenta y tres años prática explícita e propositada da cum-
– más de la mitad de sua vida – que plicidade. Sabendo que o entrevistado
conozco al Hombre de los lobos jamás he estava constrangido a falar sobre a inti-
visto pruebas de psicosis (p. 283). midade, ela o tranqüiliza servindo-se de
A representação do Homem dos lobos cúmplice:
transmitida por Karin Obholzer, certa- Karin Obholzer: Freud escreveu que sua
mente, nos oferece outros aspectos doença se havia manifestado por que o
desse analisante exemplar. Obholzer senhor tinha contraído uma pingadeira.
descobre, por acaso, o livro agora Homem dos lobos: Uma o quê?
em alemão, Der Wolfsmann vom Karin Obhholzer: Uma gonorréia.
Wolfsmann, da S. Fischer Verlag, 1972. Homem dos lobos: Como foi que a se-
E decide-se encontrar esse ilustre ana- nhor aidss?
lisante. Consegue, em 1973, quando o Karin Obholzer: Go-nor-ré-a.
Homem dos lobos completa 83 anos. Homem dos lobos: Ah... nós temos mes-
Desejava fazer somente uma reporta- mo que falar dessas coisas horrorosas?
gem jornalística e acaba acompanhando Karin Obholzer: Por que não? Pode
o Homem dos lobos até o fim da vida acontecer com qualquer um. Se isso lhe
dele, aos 92 anos, mesmo contra o con- serve de consolo, posso confessar que
selho de Muriel Gardiner que o eu mesma sofri desse mal.
desaconselhara a dar entrevistas a Ka- Homem dos lobos: Vejam só. A senho-
rin Obholzer. Karin, irmã mais velha, em ra deve mesmo ter confiança em mim,
sua família de origem, entra proposita- para falar comigo dessa maneira. Vou lhe
damente como irmã mais velha de dizer como as coisas aconteceram.
Serguéi, a Anna. Veste-se, de propósi- (Conversando com o Homem dos lobos,
to, em seus primeiros encontros, como p. 44).

8. O que faz lembrar o suposto conselho que Kant teria dado a seu aluno que lhe pedia conse-
lho sobre se devia casar-se ou ficar solteiro. “Tanto faz” – teria dito o mestre solteirão –
”faze uma coisa ou outra, de ambas te arrependerás!”.
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 37

Morris West, em seu romance, Um Aqui, mais uma vez, podemos trazer
mundo transparente, retoma, como fun- a especificidade do caso psicanalítico.
damento, essa prática na relação entre Não cabe ao caso psicanalítico forne-
profissional e paciente, atribuindo-a a cer-nos um retrato biográfico do anali-
Jung. É sabido que a abertura recípro- sante. Cabe, ao caso psicanalítico,
ca de um para o outro gera confiabili- conter as hipóteses e constatações me-
dade. Mas esse procedimento não tapsicológicas do diagnóstico do ana-
produz a remoção do psicopatológico lisante. Os fatos clínicos não retratam
inconscientemente insuportável e cog- a vida social e cotidiana do paciente,
nitivamente inconciliável. Essa forma de proposta de biógrafos e jornalistas, mas
aproximação entre dois seres humanos fornecem fundamentos teóricos que
produz necessariamente parceria e inti- explicam cientificamente os fatos clíni-
midade. Nesse aspecto, o amor poderia cos relevantes. A tradução ou transpo-
ser definido como uma cumplicidade sição metapsicológica dos fatos clínicos
cada vez mais complexa.... que compõem a vida do analisante,
Um tratamento fundado no ideal da objeto da direção da cura do tratamen-
transparência recíproca, ou cumplicida- to por parte do psicanalista, estruturam-
de crescente, pode construir apoio e se num texto e contexto tais que
consolo recíprocos para suportar a vida. somente interessam aos psicanalis-
Entretanto, a verdade de cada sujeito tas e participantes da comunidade dos
continuará se recusando e o ideal da pesquisadores em geral. Isto quer di-
transparência estará continuamente su- zer que, se num momento epocal fo-
jeito a decepções e desilusões. rem lidos como novelas, por exemplo,
Nas entrevistas com Karin Obholzer, o o caso Dora, no início do século XX,
Homem dos lobos aparece-nos bem di- eles continuam sendo casos psicana-
ferente não só daquilo que podemos líticos. Parece que o estilo altamente
apreender do texto de Freud e de Ruth literário de Freud teria sido responsá-
Mack Brunswick, mas também do tex- vel por essa impressão transitória e oca-
to da própria Muriel Gardiner. Freud sional.
passa-nos preponderantemente algumas
idéias de como foi a infância do Homem ALGUNS ELEMENTOS DO CASO DE
dos lobos; Ruth Mack Brunswick for- FREUD, “HISTÓRIA DE UMA NEUROSE
nece-nos mais idéias sobre a vida adulta. INFANTIL” (FREUD, 1918B) E DO
O curioso é que as notas autobiográfi- “SUPLEMENTO À ‘HISTÓRIA DE UMA
cas do Homem dos lobos, embora NEUROSE INFANTIL’” (1928) DE
generosas, não chegam perto daquilo RUTH MACK BRUNSWICK
que se depreende com a leitura das con-
versações que ele teve com Karin O texto de Freud abarca nove seções,
Obholzer. a saber:
38 Pulsional Revista de Psicanálise

1. Vorbemerkungen: Observações pre- Brunswick. Entretanto, embora os tex-


liminares tos de Freud e de Brunswick sejam
2. Übersicht des Mileiu und der notoriamente textos ou retratos me-
Knakengeschichte: Visão de conjunto do tapsicológicos do Homem dos lobos,
meio e da história do paciente Freud não se deixa retardar com o as-
3. Die Verführung und ihre nächsten pecto médico do analisante. Brunswick,
Folgen: A sedução e suas conseqüên- pelo contrário, estende-se nesse aspec-
cias imediatas to, dedicando-lhe praticamente as três
4. Der Traum und die Urszene: O so- primeiras seções.
nho e a arquicena Que aspectos e que essencialidades dos
5. Einige Diskussionen: Algumas dis- textos de Freud e de Brunswick apóiam
cussões o interesse do pesquisador psicanalíti-
6. Die Zwangsneurosen: A neurose ob- co atual em sua atividade de utilização
sessiva (coerciva) do método psicanalítico e da redação da
7. Analerotik und Kastrationskomplex: pesquisa psicanalítica sob a forma de
Erotismo anal e complexo de castração caso psicanalítico? Esse tema, no mo-
8. Nachträge aus der Urzeit – Lösung: mento, continua convocando os
Suplementos provenientes da época ori- pesquisadores psicanalíticos desejosos
ginária – Solução de se inserir na comunidade dos pesqui-
9. Zusammenfassungen und Probleme: sadores universitários.
– Resumos e problemas Como já deixei dito, meu trabalho quer
O texto de Ruth Mack Brunswick, bem chamar a atenção para a especificidade
menos extenso, compreende seis tópi- do estudo e a construção do caso psi-
cos: canalítico não apenas opondo-o à his-
1. Descripción de la enfermedad actual tória clínica dos psicólogos e dos
2. 1920-1923 psiquiatras mas, especialmente, apresen-
3. Historia de la enfermedad actual tando-o como instrumento de validação
4. El curso del análisis actual de pesquisas psicanalíticas universitá-
5. Diagnóstico rias. No momento, para introduzir com
6. Mecanismos mais propriedade essa proposta, atenho-
O leitor, neste momento, pode confron- me, como venho fazendo, apenas a dois
tar os títulos das seções dos textos de casos psicanalíticos mais utilizados na
Freud e de Brunswick e as seções dos tradição dos estudos e da pesquisa psi-
textos do Homem dos lobos, de Muriel canalítica: “História de neurose infantil”
Gardiner e de Karin Obholzer. Essa com- (Freud, 1918b) e “Suplemento à ‘His-
paração elementar já permite uma tória de uma neurose infantil’” (Bruns-
primeira simples visão da natureza de wick, 1928).
um caso psicanalítico. Pode-se ver que Strachey, em “Nota do editor inglês”,
a exigência teórica submete Freud e realça duas características do texto de
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 39

Freud. É, em primeiro lugar, “o mais pesquisa psicanalítica entre 1895 e


elaborado e sem dúvida o mais impor- 1897. Veja-se, por exemplo, “Weitere
tante de todos os casos clínicos de Bemerkungen über die Abwehr-
Freud”; e, em segundo lugar, continua, Neuropsychosen” – Observações
“talvez seja legítimo chamar a atenção adicionais sobre as neuropsicoses de
para a extraordinária habilidade literária defesa (Freud, 1896b) e “Zur Ätiologie
com que Freud expôs o caso. Estava der Hysterie” – Para a etiologia da his-
diante da tarefa pioneira de fornecer um teria (Freud, 1896c). De fato, em 1906,
relato científico de eventos psicológicos Freud já retomara esse tema que, ago-
de novidade e complexidade jamais so- ra, aprofunda no Homem dos lobos.
nhadas. O resultado é um trabalho que Trata-se de “Meine Ansichten über die
não apenas evita os perigos de confu- Rolle der Sexualität in der Ätiologie der
são e obscuridade, mas também pren- Neurosen” – Minhas visões sobre o pa-
de a fascinada atenção do leitor do prin- pel da sexualidade na etiologia das
cípio ao fim” (ESB, v. XVII, pp. 13 e 17). neuroses (Freud, 1906a). Em sua Car-
Freud desenvolve diversas teses a par- ta 69/139, de 21 de setembro de 1897,
tir do Homem dos lobos. Duas delas Freud confessava a Fliess: “Ich glaube
podem agora ser indicadas. an meine Neurotica nicht mehr” (Eu
Sua teoria da sexualidade infantil, mais
não mais creio em minha Neurótica”).
do que nunca, é agora cientificamente
Esse termo “Neurotica”, pode ser com-
reafirmada contra as teorias desviantes
preendido como um neutro plural.
de Jung e de Adler. A cena primária
Assim, não se trata de “teoria das neu-
(Urszene), fática e fantasiada, ou ape-
roses”, mas das próprias neuroses do
nas fantasiada, é um determinante da
mesmo Freud que o teriam induzido a
sexualidade infantil. Então: “Wie die
crer que, via de regra, nos casos de neu-
Sachen liegen, scheint mir die
Wiedergeburtsphantasie eher ein rose adulta, o pai, inclusive o dele,
Abkömmling der Urszene, als deveria ser considerado perverso (als
umgekehrt die Urszene ein Spiegelung pervers beschuldigt werden musste,
der Wiedergebusrtsphantasie zu sein”. mein eigener nicht ausgescholossen).
Como as coisas se põem, parece-me Ora, para que se possa acompanhar essa
que é a fantasia de renascimento que é transformação no pensamento de Freud,
um derivado da cena primária e não a não podemos deixar de divisar o subs-
cena primária um derivado da fantasia trato conceptual do qual ele não se
de renascimento (GW, XII, p. 137). afastava, a saber, a intuição, noção e
Por outro lado, como ele mesmo afir- concepção de Nachträglichkeit, ou
ma, retoma e reelabora definitivamente après-coup, só-depois ou relance. A uma
uma das mais preciosas concepções psi- certa altura da Seção VIII, Freud nos diz
canalíticas divisadas desde o início da como ele retoma essa concepção:
40 Pulsional Revista de Psicanálise

Neste ponto devo voltar momentaneamen- longo sobre esses termos e concepção
te ao histórico do tratamento. De vez que vai ser encontrado no Dicionário comen-
a cena de Grusha fora assimilada — a pri- tado do alemão de Freud, de nosso Luiz
meira experiência da qual podia realmente Hanns e no As palavras de Freud, o vo-
lembrar-se, e da qual se lembrara sem
cabulário freudiano e suas versões do
quaisquer conjecturas ou intervenção de
também nosso Paulo César de Souza.
minha parte —, o problema do tratamento
tinha toda a aparência de estar resolvido. Creio que o leitor encontra nesses três
A partir daquele momento não houve mais artigos de dicionário, incitação a fre-
resistência; tudo o que restava fazer era qüentar os textos onde, de fato, se
coletar e coordenar. A velha teoria do empregam tanto o termo como a con-
trauma das neuroses, que foi, afinal de cepção de Nachträglichkeit. Os três ar-
contas, construída sobre impressões ob- tigos referem o texto maior de Freud,
tidas da prática psicanalítica de repen- o Homem dos lobos, entretanto não
te viera outra vez para o primeiro plano. se detêm suficientemente nem se pode-
[O realce é meu] (ESB, p. 119, v. XVII). ria esperar isso de um artigo de dicio-
O leitor que quiser estudar e compreen- nário. Seria lástima, contar, então,
der definitivamente a concepção de somente com o estudo dos artigos de di-
Nachträglichkeit não pode ficar apenas cionários.
com o estudo dos dicionários. Nada No texto, o Homem dos lobos, Freud
melhor do que acompanhar o uso des- faz a epistemologia prática dessa con-
sa concepção ao longo do texto do cepção fundamental da metapsicolo-
Homem dos lobos. Ali, nada menos do gia. O que Hegel, Marx e seus suces-
que quinze vezes ela é invocada e tam- sores fazem com o termo e concepção
bém remetida às pesquisas primordiais de Aufhebung, sem dúvida, Freud,
de Freud. L acan e sucessores fazem com
Os dicionários podem ser bons guias Nachträglichkeit. Laplanche, por exem-
para o estudo e apropriação de conhe- plo, utilizou praticamente todo seu cur-
cimentos. Mas, este não está nos so de DEA, de 1989-1990, para expli-
dicionários, está, sim, ao longo dos per- citar e aprofundar essa concepção, a
cursos dos textos dos autores. partir do Homem dos lobos.
Tome-se, por exemplo, o conhecido vo- O Homem dos lobos é modelo de cons-
cabulário de Laplanche e Pontalis. trução do caso psicanalítico em que
Nachträglichkeit, nachträglich, après- aparece conhecimento novo. Portanto,
coup, em francês, é vertido para “pos- é instrumento modelar de pesquisa psi-
terioridade, posterior, posteriormente”. canalítica em que clínica e pesquisa são,
Não creio que o leitor consiga apropriar- praticamente, uma e mesma coisa.
se dessa concepção com a leitura do ar- O texto de Brunswick, embora levante
tigo dos autores. Um trabalho mais a problemática do diagnóstico também
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 41

ressaltada, atualmente, por exemplo, por Esse autor equipara o voto de Freud,
Chiantaretto, não é um mero suplemen- mais tarde transcrito em lápide, com o
to ao texto de Freud. É claro que, como voto que ele, Mahony, supõe também ter
apontamos, a autora não precisava se sido o de Freud. À lápide do primeiro
deter em tanta história médica. Entretan- voto referente ao sonho, Mahony visua-
to, a observação de não encontrar no liza uma apresentação monumental que
mesmo analisante, dela e de Freud, seria a própria capa do livro de Muriel
aquilo que o texto de Freud dele diz, Gardiner.
mostra como o retrato metapsicológico O leitor sonha ver essas duas “placas”
não desvela o cotidiano do analisante, equiparadas, na página 18, de Gritos do
mas sim sua inserção na teoria apenas. Homem dos lobos, que transcrevo
A questão pertinente seria então inter- abaixo:
rogar se o retrato metapsicológico de o
Homem dos lobos, de Freud, difere do NESSA CASA, EM 24 DE JULHO DE
retrato metapsicológico de o Homem 1895, O SEGREDO DOS SONHOS FOI
dos lobos, de Brunswick. Isto é, o mes- REVELADO AO DR. SIGMUND FREUD
mo analisante, em momentos diferentes
de análise, pode permitir a construção
de dois casos psicanalíticos diferentes? O HOMEM DOS LOBOS PELO HOMEM
DOS LOBOS
O CASO DO PSICANALISTA É SEU OCASO EM
DE PSICANALISTA, ISTO É, A SITUAÇÃO O CASO DE “O HOMEM DOS LOBOS”
PSICANALÍTICA DA CURA DE PESQUISA DE SIGMUND FREUD
E
(SPCP) É O RELANCE DA SITUAÇÃO
SUPLEMENTO
PSICANALÍTICA DA CURA
DE RUTH MACK BRUNSWICK
DE TRATAMENTOS (SPCT) PREFÁCIO
DE ANNA FREUD
Mahony inclui-se entre os pesquisado-
EDITADO COM NOTAS,
res psicanalíticos que consideram “O INTRODUÇÃO E CAPÍTULOS
Homem dos lobos” modelo de todos os POR MURIEL GARDINER
casos psicanalíticos. Afirma, categori-
camente, no início de seu livro:
Na verdade, a partir do meu exame de cen- Patrick J. Mahony publica, em 1987,
to e cinqüenta comentários pertinentes, pela Yale University, outro livro, Freud
esse caso mostrou ser como uma caixa de as a Writer, que a Imago traduz e lan-
ressonância para várias linhas clínicas, ça, em 1992, sob o título, Freud como
variando da psicanálise clássica à teoria escritor. Esse trabalho tem estreita vin-
das relações objetais, psicologia do ego e culação com o outro, Gritos do Homem
do self e psicanálise lacaniana (p. 17). dos lobos. Pode-se divisar que ao “gri-
42 Pulsional Revista de Psicanálise

tos [não escritos] do Homem dos lobos” depois de deixar o divã temporariamen-
de Serguéi, Mahony equivalem “escri- te ou definitivamente? Pode escrever in-
tos [não gritados] de Sigmund Freud!” termitentemente, na primeira possibilida-
Mahony, mesmo, diz: de, ou definitivamente, na segunda pos-
sibilidade, seus achados e suas constru-
Até certo ponto, esse livro [Gritos de “O
Homem dos lobos”] é uma conseqüência ções metapsicológicas que explicam os
de minha monografia, Freud como escri- processos inconscientes manifestados
tor (1981), a qual explica a escrita de Freud durante o período da direção psicanalí-
funcionalmente como uma chave para seu tica da cura do tratamento.
pensamento; nela, tracei a natureza cursi- Entretanto, o psicanalista também aban-
va dos escritos de Freud, e dei especial donou o divã, pois antes de ser psica-
atenção às obras, A interpretação dos so- nalista é analisante. Atualmente, não se
nhos (Über den Traum), Totem e tabu pode conceber a fundação da experiên-
(Totem und Tabu), Conferências introdu- cia psicanalítica de outra forma. Ora, é
tórias à psicanálise (Vorlesungen zur concebível que os restos inanalisáveis,
Einführung in die Psychoanalyse) e Além os constituintes, não se dissolvem pela
do princípio do prazer (Jenseits des
análise. Continuam a insistir sem parar
Lustprinzips). Agora pretendo expor a
de não se inscreverem, como se diz na
soma dos elementos cursivos e dos con-
flitos no mais importante do caso clínico lógica do ensinamento lacaniano. Esses
relatado por Freud (p. 32). restos inanalisáveis, por serem consti-
tuintes, são fonte de eterna inspiração
Conta-nos, Ernest Jones, que Otto Rank não somente para a pesquisa psicanalí-
mostrou sagacidade quando soube que tica. São como os novíssimos sobre o
Freud escrevera definitivamente seu que se debruçam as diferentes pesqui-
curso anual de introdução à psicanáli- sas de ponta sobre a alma humana: a
se. Rank previra que Freud não mais teológica, a mítica, a metafísica e a neu-
ministraria o curso. E de fato foi assim. robiológica. A pesquisa psicanalítica ri-
A escrita de verdade é um ocaso do valiza com essas pesquisas, e com todo
escritor. Digo de verdade, pois que há o direito. É, sem dúvida, de todas es-
escritos que não passam de translitera- sas linhas de pesquisa, a mais recente,
ção de falas mal-improvisad as. É embora devido ao ressurgimento sur-
compreensível que não façam muito preendente das neurociências, um leitor
efeito. menos avisado, fique com a impressão
A construção, redação e publicação do de que a pesquisa neurobiológica seja
caso é o ocaso do psicanalista. Assim proposta atual. Griesinger, em meados
sendo, o caso é a pesquisa psicanalíti- do século XIX, propunha, por exemplo;
ca em circulação. “Geisteskranken sind Gehirnkranken”,
De fato, em relação a um paciente es- isto é, “As enfermidades do espírito são
pecífico, o que é que faz o psicanalista enfermidades do cérebro”.
Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica... 43

Ultimamente, Pierre Fédida e François nomina de “contracaso”, isto é, a escri-


Villa retomaram, com outros pesquisa- tura do tratamento pelo analisante
dores psicanalíticos, a temática da mesmo. É o que fez, por exemplo, o
construção do caso psicanalítico. São Homem dos lobos mesmo. Poderíamos
responsáveis pela organização de uma incluir como contracaso também aqui-
publicação que muito está ajudando os lo que se escreve do analisante, a partir
pesquisadores psicanalíticos na retomada de outras escutas que não a psicanalíti-
do estudo crucial como o é a constru- ca, na situação psicanalítica da cura do
ção do caso psicanalítico. Entre os tratamento. É o que fizeram, por exem-
autores dos capítulos do livro, destaco plo, Muriel Gardiner e Karin Obholzer.
o de Jean-François Chiantaretto, “Cas et Não parece que seja possível ao anali-
contre-cas. De ‘L’homme aux loups’ à sante escrever seu retrato metapsicoló-
Serge Doubrovsky”. No resumo, Chian- gico próprio. E fora da situação
taretto diz: psicanalítica da cura do tratamento ou
Retomando uma formulação de Freud, se- da situação psicanalítica da cura de pes-
gundo a qual o interesse por um caso não quisa, a escuta dada a uma pessoa não
é anódino e que é preciso não perder de permite que os dados coligidos sejam
vista “a repressão da contratransferên-
fatos metapsicologicamente aproveitá-
cia”, realçam-se alguns aspectos impor-
veis. Mas Freud não usou uma autobio-
tantes concernentes á redação e à
apresentação do caso do Homem dos lo- grafia, no caso Schreber? Sem dúvida,
bos. É justamente em torno desse caso que entretanto, o que Freud resolve, nesse
surgem numerosas interrogações. Incon- estudo, é definitivamente um “novíssi-
testavelmente, é o caso que mais recebeu mo”, como o da homossexualidade pa-
o maior número de comentários, aquele que ranoicamente defendida. É por isso que
se tornou o “caso exemplar” para todo o dirá, como todos sabemos, “lá onde o
fim didático. Dada a longevidade do pa- paranóico fracassa, eu tive sucesso”.
ciente [92 anos] e ao fato de que ele sem-
O estudo da construção do caso psica-
pre tenha estado em tratamento, existe
uma multiplicidade de pontos de vista em nalítico está sendo objeto de intensas e
relação ao caso. Como a boneca russa, extensas ocupações de pesquisadores
esse caso esconde sempre um outro den- psicanalíticos em todas as instituições
tro dele. Por fim, comparamo-lo brevemen- psicanalíticas e nas universidades. É,
te à Autobiografia de um psicótico, de M. sem dúvida, a bússola que pode reorien-
Robert. Todo esse percurso nos permite tar aquilo que se apresenta como
por em evidência a implicação do interes- especificidade, denominando-se pesqui-
se científico que influencia diretamente na
sa em psicanálise, que não passa de
apresentação do caso.
uma derrapagem e degradação da pes-
Chiantaretto questiona aquilo que ele de- quisa psicanalítica de verdade. ̈
44 Pulsional Revista de Psicanálise

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS go, 1996.


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alemão de Freud. Rio de Janeiro: Ima-

Artigo recebido em outubro/2000


Revisão final recebida em novembro/2000

A Pulsional Revista de
Psicanálise,
do mês de fevereiro/2001 O livro O legado fa-
terá como tema miliar, de Olga Ruiz
Correa foi editado pela
“$em?” e outros Contra Capa Editora,
e não pela que foi citada
trabalhos na resenha publicada no
no 139 desta revista.

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