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Um destino tão funesto: o processo traumático de filiação e as

profecias no filme Incêndios de Denis Villeneuve1

HILDENBRAND, Johanna Gondar


Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
johanna_gondar@hotmail.com
Bolsista FAPERJ

FARIAS, Francisco
Professor associado do departamento de Fundamentos da
Educação e do Programa de Pós-Graduação em Memória
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
frfarias@uol.com.br

Resumo: Baseado na peça de teatro homônima do libanês radicado no Canadá Wadji


Mouawad, o filme Incêndios (2009) tem como premissa a busca de um casal de gêmeos, Jeanne
e Simon, pela história de vida, e de morte, de sua mãe. Esta uma mulher de meia idade, dentro
de uma piscina comunitária observa os pés das pessoas que se encontram na borda de fora da
piscina. Em meio a diversos pés é tomada por uma cena que lhe causa desespero e horror:
enxerga a marca inconfundível tatuada no calcanhar direito do filho no dia de seu nascimento.
Mãe e filho foram separados no momento em que ele nasceu, e agora se reuniam por esse
desnível do olhar. Nawal, ao sair da piscina, aproxima-se do filho, olha-o em seus olhos,
reconhecendo nele também outra pessoa em seu semblante: seu torturador e violador durante o
período em que passou em uma prisão no Oriente Médio. Após sua precoce e inesperada morte
deixa a cargo de seu testamenteiro incumbir seus filhos de duas funções: localizar seu
desconhecido pai, que eles acreditavam estar morto e um irmão que eles não sabiam existir.
Tendo como pano de fundo o filme de Denis Villeneuve, nossa proposta, neste artigo, é tratar
dos efeitos dos traumas tanto para Nawal quanto para seus filhos Jeanne, Simon e Abou
Tarek/Nihad nos dois lugares que ocupa: filho e pai de seus irmãos. Partiremos da definição de
trauma proposta por Sigmund Freud, na qual ele define o trauma como um estímulo que excede
nossa capacidade de assimilação e, a partir dessa definição trataremos das ideias sobre o trauma
atribuídas ao psicanalista Sándor Ferenczi, nas quais ele o divide em dois: o trauma estruturante
e o trauma desestruturante ou invalidante. Será com base nessas divisões que iremos construir
uma justificativa para o estado catatônico de Nawal e o motivo que ela teria de incluir seus
filhos (todos eles) em sua história repleta de “incêndios”.
Palavras-chave: Trauma; Cinema; Segredo; Filiação; Desvelação.

1
Esse capítulo é uma versão reformulada do artigo Incendies: Trauma and the Gray Zone in Denis
Villeneuve Film, publicado na revista International Journal of Advanced Engineering Research and
Science.
INTRODUÇÃO

Comecemos a nossa reflexão pelos elementos mais enigmáticos do filme: as cartas


e o testamento escritos em letras vivas e mortais, de forma a não deixar nenhum
anteparo de proteção para aqueles que se aproximam do seu conteúdo e segredo.
Para traçar as diretrizes da análise que pretendemos, em termos dos destinos que
são selados a partir do momento em que saberes e segredos são descortinados sobre
questões religiosas, etnias, assassinatos, crianças entregues a fluidez das águas, incesto e
consequências do acesso ao terreno das sombras e enigmas, tomaremos, como ponto de
partida, as cartas. Estas, na rubrica de profecias malditas que selam destinos infelizes,
na medida em que descortinam cenas e cenários que deveriam ser mantidas em segredo,
silêncio e aterradas nas profundezas da escuridão. Quer dizer, existem determinados
tipos de saberes que são vetados para cada ser humano, para que cada um possa garantir
seu estatuto de filiação e também preservar sua condição desejante.
Conforme é aludido no início do filme, a matemática pura aponta para um
insondável impossível de ser solucionado. Na medida em que os personagens de Jeanne
e Simon descobrem a evidência que os levam ao horror, já não mais estão no terreno da
matemática e sim no âmbito da experiência humana: 1 + 1 = 1, em uma encruzilhada
que não dispõe de nenhuma alternativa de solução, pelo fato de que a descoberta da
variável desconhecida abriu um imenso deserto onde não circulam as palavras, visto ser
habitado pelo sofrimento e pelo horror. Podemos, em certo sentido, afirmar que a
solução para a incógnita presente na complexa equação da vida evidenciou um abismo
de escuridão e desespero, sem esteios para retorno à luz. Essa é a dimensão de uma
experiência traumática, que por ser completamente da ordem do indizível não há
qualquer possibilidade de elaboração a não ser conhecer de perto o estado de ruinas
diante do aniquilamento dos marcos que são os suportes das subjetividades.
Um mais um é igual a um? No universo do filme de Denis Villeneuve, em uma
atualização estonteante do Édipo de Sófocles, essa pergunta se responde
afirmativamente, por mais espanto que cause. Nesse sentido, a linguagem matemática é
convocada para subsidiar uma solução a um dos mais marcantes enigmas da
humanidade: o parricídio e o incesto: é notória a utilização dos princípios matemáticos
para lançar luz aos dramas existenciais.
Aos três irmãos, em um plano, dois filhos e um pai, em outro (diante da
condenação expressa nas profecias malditas, corporificadas pela escrita), não há solução
para seus dilemas, nem saídas possíveis para os seus estados de terror, ou seja, qualquer
tentativa de aproximação de Abou Tarek com Jeanne e Simon (seus filhos) traz a tona o
fato de ter estuprado a mãe e consumado o incesto, confirmando assim que seus filhos
são seus irmãos.
Diferentemente do Édipo da conhecida trilogia tebana escrita por Sófocles, Abou
Tarek apresenta-se na cena final com as cartas nas mãos procurando os filhos, mas o
que encontra é uma imensidão circunscrita apenas pela luminosidade do dia seguida de
um vazio de ser: não há mais à vista filhos-irmãos. Por sua vez, para Jeanne e Simon, a
situação é também uma encruzilhada sem qualquer direção: o encontro com o pai-irmão
confirma que o irmão Abou Tarek consumou o incesto.
Caberia a esses filhos proclamarem o fim de suas existências uma vez que
ruíram todos os sustentáculos que marcavam a inscrição no âmbito da ancestralidade:
Jeanne e Simon viveram sob o manto da mentira de que seu pai teria sido morto na
guerra. Abou Tarek cresceu e viveu, em um orfanato, sem saber de onde viera e nem a
quem teria condições de recorrer, ou seja, às figuras que o geraram: sua mãe e seu pai
assassinado antes de seu nascimento. De certo modo, esse desfecho apresenta o cenário
de um pai inexistente (invenção de um pai morto), para Jeanne e Simon, e de nenhum
para Abou Tarek (pai assassinado antes de seu nascimento, por questões étnico-
religiosas).
O filme começa em tom oracular com a presença de um tabelião que parece ser a
incorporação da figura de Tirésias que, ao ler o testamento, faz uma enunciação: a cena
centra-se na entrega de duas cartas aos filhos gêmeos da morta com uma recomendação:
as duas cartas devem ser entregues respetivamente ao seu irmão e a seu pai, para que
enfim ela possa ser dignamente enterrada e ser colocado uma lápide em seu túmulo.
Situação difícil em relação à descoberta acerca da existência de um pai e de um irmão
vivos, especialmente no momento em que a mãe que poderia falar, decaiu em uma
situação de mutismo ao encontrar o filho que, durante toda a sua vida, procurou, até o
momento de sua morte. Mesmo não revelando nada em vida, deixa um traçado com
variáveis complexas de difíceis soluções e assim insere os dois filhos em uma travessia
sombria e perigosa no âmbito do processo de filiação: afinal descobrem que tem um
irmão, o qual é, ao mesmo tempo, seu pai.
A sentença oracular que determina a entrega das referidas cartas aos seus
destinatários é condição sine qua non para a finalização do ritual referente ao funeral
com a colocação de uma lápide, uma vez que a mãe deixa para os filhos uma de suas
promessas: encontrar o seu primeiro filho. E se a promessa não for paga não poderá ser
colocada uma lápide em sua sepultura. Vale salientar que a mãe, por sua determinação,
foi enterrada sem orações, nua e com o rosto virado para o solo, por se considerar
devedora da promessa não cumprida em vida de encontrar seu primeiro filho.
O destino traçado em função da entrega das cartas gera um conflito entre os
irmãos: a irmã se dispõe a realizar o pedido da mãe e o irmão se recusa. De certo modo,
essa sentença coloca os dois em uma rota que, ao percorrê-la, fazem importantes
descobertas: desvendam o passado da mãe através de uma história marcada de
percalços, dores, violência, sofrimento e tortura, para enfim, chegar ao paradeiro do
irmão que é também o seu pai, figura que se reveste de modalidades de práticas cruéis,
tendo sido reconhecido como um exímio matador e torturador, motivo pelo qual foi
mantido vivo.
Uma das falas do filme da personagem Jeanne que enveredou pelas sendas da
matemática é bastante elucidativa a esse respeito: “serão discutidos problemas
insolúveis que vão sempre levar vocês a outros problemas igualmente insolúveis”. Foi a
empreitada de desvendar os enigmas da história de vida de sua mãe (problemas
insolúveis) que os dois personagens, Simon e Jeanne, se defrontaram com o horror
diante de um saber insuportável de ser sabido, mesmo tendo sido advertidos pelo
zelador de uma escola acerca de que “as vezes é melhor não saber de tudo”.
Nesse ponto se conjugam as histórias da mãe e dos dois filhos Simon e Jeanne,
num encontro marcado pelo trauma, visto que essa mãe emudeceu depois que descobriu
que o filho que buscava encontrar fora seu torturador e pai de seus dois filhos. Eis uma
evidência bastante forte que teve um efeito traumático imediato: apagar a capacidade de
transmitir a revelação com a qual se deparou Nawal. Via de regra é a mãe quem aponta,
ou não, para um filho o homem que será reconhecido como pai.
Diante do abismo em que se afundou o único recurso que dispôs para cumprir
essa função consistiu na escrita de cartas, de teor bastante contundente no âmbito da
constituição dos arranjos subjetivos. Certamente essa seria uma constatação que
imporia, aos seus filhos, caminhar por veredas sombrias, reunir filigranas de saber e
finalmente, em um instante de ver, presenciar o choque sofrido pelo pai/irmão no
momento em que se deparou com essas certezas.
É interessante observar que a antinomia água/fogo traçam as linhas que são
indicadas pelas cartas do destino que, em suas profundezas, são cativantes, mas ao
mesmo tempo ameaçadoras.
Considerando a água, um dos elementos centrais no desenvolvimento da temática,
juntamente com o fogo, podemos estabelecer as seguintes linhas de raciocínio: enquanto
a água pode ser entendida como um símbolo da vida, ou seja, o que conserva em
movimento realizando percursos ou itinerários que podem seguidos, o fogo tem a
conotação de remeter à morte, na medida que sua ação, além de nada conservar, não
deixa rastros para serem seguidos.
A esse respeito é importante trazer para reflexão uma cronologia que escreve uma
geografia bastante particular: Em um primeiro momento, situamos o nascimento de uma
criança que é retirada de sua mãe e destinada a ser colocada na fluidez das águas, que
colocaria essa criança em uma situação à deriva. Em um segundo momento, a
desvelação acontece na piscina quando a mãe descobre finalmente o paradeiro de seu
primeiro filho, mediante os indícios corpóreos, vestígios de memórias cravados, a ferro
e sangue para deixar um sinal de identificação e de reconhecimento. No terceiro
momento, aludimos à cena referida à resistência, em termos do cumprimento do ritual
de jogar água para realizar o funeral da mãe. E, no quarto momento, há uma cena bem
particular altamente significativa que consiste em uma modalidade de ocupação desse
primeiro filho que trabalha com água fazendo limpeza em ônibus. É pertinente lembrar
que esse meio de deslocamento de pessoas foi incendiado durante o filme por conflitos
religiosos, sendo um verdadeiro massacre. A luz desses encaminhamentos podemos
considerar a água como um elemento de conexão que atravessa o filme a ponto de se
constituir um vestígio de memória.
Em princípio, pelo fato de que foi nas águas que o mistério se desvelou a Nawal.
Esta, uma mulher de meia idade, dentro de uma piscina comunitária observa os pés das
pessoas que se encontram na borda de fora da piscina. Em meio a diversos pés é tomada
por uma cena que lhe causa desespero e horror: enxerga a marca inconfundível tatuada
no calcanhar direito do filho no dia de seu nascimento que atravessou o tempo como
marca de memória. Mãe e filho foram separados no momento em que ele nasceu, e
agora se reuniam por esse desnível do olhar.
Nawal, ao sair da piscina, aproxima-se do filho, olha-o em seus olhos,
reconhecendo nele também outra pessoa em seu semblante: seu torturador e violador
durante o período em que passou em uma prisão no Oriente Médio. Essa informação é
bastante paralisante e aniquiladora que inviabiliza os meios e recursos dessa mãe em
elaborar essa cruel descoberta, ou seja, ela não consegue criar um sentido para o que
está vendo e o que está sendo desvelado naquele exato momento através do
processamento do olhar. Diante de tamanha impotência ante as evidências constatadas,
entrou em um estado catatônico e mutismo até o momento de sua morte, tendo sido
preservadas a sua capacidade de escrita que se tornou o grande caminho para levantar
várias camadas de saber soterradas pela ação de inúmeros personagens.
Mas, como dissemos anteriormente, o filme de David Villeneuve não começa
por aí. Baseado na peça de teatro homônima do libanês radicado no Canadá Wadji
Mouawad, o filme Incêndios (2009) tem como premissa a busca de um casal de gêmeos,
Jeanne e Simon, pela história de vida, e de morte, de sua mãe Nawal. Esta, após sua
precoce e inesperada morte deixa a cargo de seu testamenteiro incumbir seus filhos de
duas funções: localizar a partir sua cidade natal – algum lugar não especificado do
Oriente Médio, muito provavelmente o Líbano – seu desconhecido pai, que eles
acreditavam estar morto e um irmão que eles não sabiam existir.
Para entender a relação entre as funções deixadas por sua mãe, no testamento, e
de sua morte os gêmeos deverão começar por seu passado. A partir de uma história
fragmentada, entre cenas do passado de sua mãe e do presente dos gêmeos, eles vão
descobrindo que, em decorrência de seus próprios traumas, Nawal escondia a maior
parte de sua vida e de seus próprios filhos. Contando que o passado foi repleto de
experiências traumáticas era de se esperar que ela lutasse com todas as suas forças para
se afastar desse mundo, geográfica e subjetivamente.
Nawal, de família cristã, nascida em um país dividido pelo conflito étnico-
religioso, nação não nomeada no Oriente Médio, engravida de um refugiado
muçulmano, este, morto pelos irmãos dela ao saberem do romance. A criança, que nasce
em segredo graças à interferência da bisavó, é levada para um orfanato, não sem antes
receber uma marca distintiva, três pontos tatuados na vertical do calcanhar, para um dia
ser reconhecido, quem sabe por sua mãe; de fato, o reencontra.
Antes de prosseguir em nossa reflexão, faz-se necessário circunscrever os
cenários que correspondem às experiências de vida de Nawal. O repertório de cenas
traumáticas, permeadas de violência, é bem extenso que praticamente acompanham todo
o desenrolar da narrativa fílmica nas passagens explicitadas a seguir: a) a execução do
amante de quem estava grávida por seus dois irmãos que, após o ato, queriam também
matá-la por considerarem que, uma vez grávida de um homem de outra etnia, mancharia
e desonraria a sua família. Estigma que carrega em sua vida sendo evidenciado na
recusa das mulheres, da região em que nasceu, em falar dela para a sua filha; b) a cena
do massacre de pessoas no ônibus pelo fogo e por armas, motivados por questões de
cunho religioso; c) o confronto com seu filho estuprador e praticante do incesto,
certificado por um encontro estabelecido pelo olhar dentro da piscina; d) a cena final
em que o filho mais velho, pai e irmão dos gêmeos, lê as cartas e o segredo é desvelado,
ou seja, ele tem acesso a um determinado tipo de saber e então olha para o lado e não vê
ninguém; confronta-se com um vazio, podendo ser entendido como um tipo de
condenação diante da certeza do incesto consumado e de ter filhos, aos quais é pai e
também irmão.
São complexos traçados de memórias com variáveis insolúveis que se
constituem como verdadeiras ruinas para os sobreviventes que tentam se apaziguar, em
um encontro furtivo, no âmbito da massa de mortos, conforme formula Canetti (1995),
para cumprir o ritual de colocar um lápide no túmulo materno.
Nossa proposta, nessa reflexão, é tratar dos efeitos dos traumas tanto para Nawal
quanto para seus filhos Jeanne, Simon e Abou Tarek/Nihad nos dois lugares que ocupa:
filho e pai de seus irmãos. Traumas estes que aos poucos se evidenciam no decorrer da
história do filme pelas descobertas dos gêmeos. Partiremos da definição de trauma
proposta por Sigmund Freud, na qual ele define o trauma como um estímulo que excede
nossa capacidade de assimilação, ou, em seus próprios termos, “uma experiência que
traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de estímulo grande demais para
ser absorvido” (FREUD, [1917]1976, p. 335). A partir dessa definição trataremos das
ideias sobre o trauma atribuídas ao psicanalista Sándor Ferenczi, nas quais ele o divide
em dois (PINHEIRO, 1995): o trauma estruturante e o trauma desestruturante ou
invalidante. Será com base nessas divisões que construiremos uma justificativa para o
estado catatônico de Nawal na piscina e o motivo que ela teria de incluir seus filhos
(todos eles) em sua história repleta de “incêndios”.

A QUESTÃO DO TRAUMA

Nos escritos psicanalíticos, desde Freud, o evento traumático pode se apresentar


de maneiras diversas, incluindo diversos tipos de agressões, qualquer acontecimento
grave, “ou mesmo qualquer situação crônica danosa” (DOIN, 2005, p.2). O que importa
para Freud, é que esses eventos ultrapassam a capacidade de assimilação, ou seja, de
elaboração psíquica dos indivíduos que os vivenciam. Esses traumas não são,
necessariamente, de natureza sexual. A partir da observação de soldados austríacos que
retornavam da Primeira Guerra Mundial, que apesar de muitas memórias
atormentadoras não conseguiam falar sobre elas, Freud identifica que experiências de
guerra, de violência social e política também podem ser encaradas como traumáticas, na
medida em que todos que dela participam são invadidos por estímulos que não
conseguem assimilar ou representar.
Na esfera desse tema, o filósofo e ensaísta alemão Walter Benjamin (1892-1940)
escreve, em seu conhecido texto O narrador (1936/1994), que a experiência estaria em
vias de extinção e, com isso, o ser humano moderno estaria perdendo a capacidade de
elaborar como verdadeira experiência o que vive. Isso se dá, porque as transformações –
tecnológicas, éticas, estéticas, perceptivas, etc. – que ocorreram a partir da Modernidade
teriam ocasionado uma profunda modificação na estrutura da experiência. Não teríamos
mais a capacidade de integrar as percepções às nossas memórias individuais e coletivas,
ou seja, à sabedoria acumulada historicamente. É essa capacidade de integração de
memórias que Benjamin chama de elaboração da experiência no sentido tradicional do
termo. A respeito disso ele relata o retorno dos soldados da I Guerra Mundial:
No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos
do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência
comunicável. (...) Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve
experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica
pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência
do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma
geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao
ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens,
e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil corpo
humano (BENJAMIN, [1936]1994, p. 198).

Nessa passagem descrita acima, Benjamin está usando como exemplo a


experiência traumática sofrida pelos soldados na I Guerra Mundial. Foi uma
experiência também de choque sobre a qual os soldados, que dela voltaram, não
conseguiram elaborar como verdadeira experiência. Assim como o trauma, a
experiência do choque “traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de
estímulo grande demais para ser absorvido” (FREUD, [1917]1976, p. 335). De fato, é
da noção de trauma em Freud que Benjamin irá derivar sua concepção sobre os choques
vividos na Modernidade. Assim como os soldados receberam mais estímulos do que
conseguiram dar conta, os habitantes das grandes cidades estariam a todo o tempo tendo
que lidar com mais estímulos do que seus aparelhos psíquicos seriam capazes de
elaborar.
Tendo isso em mente, podemos afirmar que sofremos um trauma quando
recebemos uma quantidade de estímulos maior do que a nossa capacidade de elaborá-
los, de assimilá-los. Se os estímulos são excessivos, não conseguimos dar um sentido ou
produzir uma representação acerca do que vivenciamos, não conseguimos integrar esses
estímulos ao conjunto de nossas experiências passadas. O traumático é, portanto, o
excessivo para nós que nos inunda de um afeto: o terror. Estímulos excessivos não nos
fazem produzir lembranças, mas apenas imagens congeladas e repetidas
indefinidamente, imagens que pedem uma elaboração, como acontece em um sonho
traumático (FREUD, [1920]1976). Freud afirma que o sonho traumático se caracteriza
por uma compulsão à repetição; o sonhador repete compulsivamente a cena traumática
tentando fazer com que ela seja assimilada ou elaborada pelo psiquismo.
De acordo com Freud o excesso proveniente dos traumas podia ser integrado à
nossa memória se sofresse um trabalho de elaboração (FREUD, [1914]1976). De acordo
com o criador da psicanálise, a elaboração é um trabalho que o aparelho psíquico realiza
para dominar as excitações e estabelecer ligações entre ideias ou representações,
evitando a descarga direta das estimulações, ou seja, conforme diz Farias (2011, p. 18)
“a focalização de um tempo de elaboração psíquica que não reproduz o fato ocorrido,
reveste-lhe de colorido próprio em razão da formação de um espaço intransponível entre
o evento e o surgimento do sintoma”. Nesse sentido, a elaboração produz sentidos e
possibilita escolhas entre um estímulo e a reação a ele, tornando um sujeito menos
dependente dos impulsos ou das ordens que lhe chegam (FREUD, [1926]1977).
Sendo assim, o trabalho de elaboração consistia em reviver o trauma, falar dele e
transformá-lo numa lembrança como as outras. Ao invés de repetir, recordar. Desse
modo, seria possível retomar o funcionamento habitual da memória e das sensações, ao
invés de viver com lembranças congeladas e sensações anestesiadas.
Essa concepção de trauma, passível de elaboração, estaria mais próxima do que
o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi tratou como trauma estruturante, como veremos
mais adiante. Estes seriam os traumas sofridos pelos filhos de Nawal, Jeanne e Simon,
no decorrer do filme. Pois o filme nos mostra como os gêmeos, aos poucos, descobrem
os eventos traumáticos da vida de sua mãe e, a partir daí, vão entendendo, cada vez
mais, o por que dela ter deixado instruções específicas para eles. E aos poucos,
galgando todos os passos por ela indicados em sua carta testamento, eles finalmente
poderiam construir sua lápide, sentindo com isso que um determinado percurso havia se
cumprido.
Esses passos, ou funções, os quais os gêmeos deverão seguir, podem ser
encarados como potenciais formas de elaboração de traumas que, em um primeiro
momento, nem sabiam existir e que acabam vivenciando durante sua jornada. Ou seja,
eles vão descobrindo um evento de cada vez – como por exemplo, o fato de terem um
irmão e este ter se tornado um soldado de guerra, as tragédias sofridas pela mãe
enquanto ela vivia no Oriente Médio, e finalmente o motivo que a levou a entrar em
estado catatônico naquela piscina comunitária. Sem ter sua capacidade de elaboração
invalidada, os filhos poderiam integrar suas vivências traumáticas às suas memórias
individuais e coletivas, ou seja, à sabedoria acumulada historicamente.
Ferenczi acredita que todo encontro do sujeito com o mundo tem uma
potencialidade traumática e os traumas são uma das possibilidades que abrem espaço
para as transformações no ritmo da vida. “É pelas rupturas num equilíbrio estabelecido
que os seres vivos se modificam. Nesse sentido, o trauma potencializa a vida” (REIS,
2017, p. 182). Mesmo quando os gêmeos descobrem o pior dos segredos, que seu irmão
é também o violador de sua mãe e como consequência disso seu próprio pai, ao o
encontrarem e entregarem a ele as cartas de sua mãe contendo todas as explicações, eles
estão em processo de elaboração de todo o ocorrido. O trauma estruturante contribui
para o desenvolvimento, mesmo que seja a partir do sofrimento. O choque traumático
pode produzir um excesso que, elaborado, impulsiona o ser para diante, para algo novo.
Nesse caso, entendemos como trauma estruturante “um acontecimento ou
processo que excede a nossa capacidade de assimilação num certo momento, e que
pode, aos poucos, ser integrado ao psiquismo e articulado a outras imagens e
representações” (GONDAR, 2017, p. 90-91).
Até aqui vimos que existem traumas que podem ser assimilados, permitindo que
o sujeito retorne o funcionamento habitual de sua memória e de suas sensações. Mas e
quando o trauma não pode ser assimilado, ou melhor, o que acontece quando um trauma
permanece incomunicável, irrepresentável no psiquismo?

O TRAUMA COMO DESVELADOR DA FILIAÇÃO

Como pudemos observar, o trauma de acordo com Freud está muito próximo à
noção de trauma estruturante proposta por Sándor Ferenczi (1873-1933). Porém, além
do trauma estruturante existe no pensamento de Ferenczi um outro tipo de trauma: o
desestruturante ou invalidante.
A fim de exemplificar a situação traumática desestruturante, Ferenczi
(1933/1992) propõe um modelo para pensar a cena de uma violência real: um adulto que
abusa sexualmente uma criança, dando relevo à confusão de linguagens aí envolvida, e
um outro adulto ao qual a criança confidencia o ocorrido. Nessa situação, portanto,
existem três personagens e dois momentos (PINHEIRO, 1995). Em um primeiro
momento a criança brinca com um adulto e, enquanto a criança está na linguagem da
ternura – ternura, aqui, não se opõe à sexualidade, referindo-se a uma sexualidade
vivenciada a partir de outro parâmetro, não genital, lúdico – fantasiando ludicamente
com relação ao adulto, este julga as brincadeiras infantis como investidas sedutoras de
quem já atingiu a maturidade. Por conta disso, o adulto responde a sedução lúdica
através de um outro tipo de linguagem: a da paixão. Ele confunde a ternura lúdica com
sedução genital e acaba por realizar atos de significados sexuais. Esse adulto, por culpa
ou por medo, diz à vítima que nada aconteceu.
No segundo momento a criança sem conseguir elaborar psiquicamente, ou seja,
dar um sentido ao que lhe passou, procura um outro adulto de sua confiança para que
ele a ajude com alguma explicação sobre a violência que sofreu. O segundo adulto
também nega o ocorrido. É através da violência sexual e do desmentido que se constrói
o cenário traumático desestruturante ou invalidante. O desmentido, aqui, não é apenas
uma questão de palavra, são “os afetos de um sujeito, o seu sofrimento, e ele próprio
enquanto sujeito que está sendo desmentido. A conjunção entre a violência do ato e o
descrédito da vítima, configuram, para Ferenczi, o trauma invalidante” (GONDAR,
2017, 91).
Este modelo construído por Ferenczi não invalida situações traumáticas
ocorridas em circunstâncias diferentes. Ele propõe esse modelo como uma referencia
organizadora. No entanto, em casos de violência extrema, o trauma invalidante pode
ocorrer sem que o ato violento e o desmentido se passem em dois momentos distintos
ou contendo três personagens especificamente.
Ferenczi valida o que estamos afirmando em Reflexões sobre o trauma
(1934/1992, p. 110), texto no qual trata da comoção psíquica como reação imediata ao
trauma: “uma comoção pode ser puramente física, puramente moral ou então física e
moral. A comoção física é sempre também psíquica; a comoção psíquica pode, sem
nenhuma interferência física, engendrar o choque”. De acordo com ele, o choque seria
equivalente à aniquilação do sentimento de si.
Sendo assim, se a comoção física é sempre também psíquica, podemos pensar a
possibilidade de a violência física produzir, psiquicamente, o correspondente a um
desmentido gerando o trauma invalidante. Gondar (2017) expõe duas situações que
podem ser consideradas similares ao cenário de abuso sexual na família, do ponto de
vista psíquico da vítima: a experiência da tortura e a experiência nos campos de
extermínio. O que será importante, nos três casos, é a vivencia de aniquilamento do Eu e
a importância do desmentido – situado no que será chamado de zona cinzenta – para
que isso aconteça.
Quem primeiro escreveu sobre a zona cinzenta foi Primo Levi (1919-1987),
sobrevivente no campo de extermínio de Auschwitz, em seu livro Os afogados e os
sobreviventes (2016). Levi escreve que
não era simples a rede das relações humanas no interior dos Lager:
não se podia reduzi-la a dois blocos, o das vítimas e o dos opressores. (...)
[todos] esperavam encontrar um mundo terrível mas decifrável, de acordo com
aquele modelo simples que atavicamente trazemos conosco, “nós” dentro e o
inimigo fora, separados por um limite nítido, geográfico. Ao contrário, o
ingresso no Lager constituía um choque em razão da surpresa que implicava. O
mundo no qual se precipitava era decerto terrível, mas também indecifrável:
não era conforme a nenhum modelo, o inimigo estava ao redor mas também
dentro, o “nós” perdia seus limites, os contendores não eram dois, não se
distinguia uma fronteira mas muitas e confusas, talvez inúmeras, separando
cada um do outro (LEVI, 2016, p. 28).

Levi escreve que o maior choque dentro do que ele chama de Lager (campos de
concentração) era o fato de que lá dentro o mundo não podia ser reduzido em dois
blocos: os opressores e os oprimidos. Os limites não estavam claros, pois, existia uma
classe hibrida, uma classe de prisioneiros, que por diferentes motivos, colaboraram com
os soldados, ou seja, com o inimigo. Com isso, já não era mais possível organizar uma
realidade, terrível mais decifrável, entre amigo e inimigo. Pois ao chegar lá o sujeito
sofria “uma agressão concêntrica por parte daqueles em que se esperava encontrar os
futuros aliados” (LEVI, 2016, p. 28). O choque sofrido era tão grande que logo
derrubava a capacidade de resistir e para muitos foi mortal, pois “é difícil defender-se
de um golpe para o qual não se está preparado” (LEVI, 2016, p. 29).
O fato de não conseguir separar o mundo, lá dentro, entre amigo e inimigo era o
choque maior. São esses contornos mal definidos dentro do campo de extermínio de
Auschwitz, essa impossibilidade de fazer uma divisão entre vítimas e opressores, entre
nós e eles – pois muitas vezes o nós estavam neles – que Levi chamou de zona cinzenta.
Ferenczi (1934/1992) explica que o choque produz na subjetividade “a perda de
sua forma própria e a aceitação fácil e sem resistência de uma forma outorgada, à
maneira de um saco de farinha” (FERENCZI, 1992, p. 109), ou, como já foi dito, o
choque é equivalente à aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir como
Si mesmo. Sendo assim, não é difícil perceber a relação entre o que Ferenczi chama de
desmentido e o que Levi está chamando de zona cinzenta. “Nas duas situações, estão
sendo desmentidos os valores e as referências de mundo que o sujeito possui e sobre as
quais seu psiquismo está estruturado; é o próprio sujeito, portanto, que está sendo
desautorizado a existir enquanto tal” (GONDAR, 2017, p. 93). O que nos interessa é
que em ambas as experiências os efeitos psíquicos serão semelhantes. A falta de sentido
e as dúvidas sobre a sua própria percepção de realidade são sentimentos experimentados
pelo sujeito desmentido, e, Levi, situa o que estamos chamando de desmentido, ou
descrédito, nessa zona cinzenta.
Já a relação entre a experiência da tortura e a zona cinzenta é trazida pelo
psiquiatra e ensaísta Frantz Fanon (1925-1961). Fanon, após sua formação acadêmica
na França, trabalhou como diretor do Hospital Psiquiátrico de Blida-Joinville, na
Argélia. Sua experiência médica nesse hospital, com os argelinos torturados,
possibilitou a constatação de que grande parte das vítimas de tortura passaram pelo uso
de uma mesma tática por parte de seus torturadores (FANON, 1979):
Essa tática consistia em se apresentar à vítima de maneira
contraditória, fazendo a atitude, a voz e o comportamento oscilarem entre dois
extremos. Assim, em alguns momentos, o torturador gritava, violentava e feria
o sujeito, enquanto que, em outros, falava-lhe de forma doce, dizendo-se
preocupado com suas dores e até tratando de suas feridas. (GONDAR, 2017, p.
94).

Assim como os judeus recém chegados no campo de extermínio, como relatou


Primo Levi, tinham dificuldades de organizar uma realidade entre opressor e oprimido,
as vítimas de tortura na Argélia, como identifica Fanon, também não conseguiam
integrar o torturador apenas na imagem de opressor. O torturador se colocava em uma
zona cinzenta na qual nada fazia sentido contribuindo mais ainda para o aniquilamento.
Tanto na experiência do campo de extermínio, na experiência de tortura, acima
relatada, e na experiência do abuso sexual, sofrido por uma criança em um ambiente
familiar, os valores e as referências de vida que estão sendo desmentidas se situam em
uma zona cinzenta. No caso de abuso cometido por um adulto que deveria proteger essa
criança o desmentido já começa na possibilidade de o ato acontecer. Pois, mais uma
vez, podemos perceber os contornos mal definidos para o psiquismo dessa criança em
questão. Ela não consegue identificar seu abusador somente como inimigo ou opressor,
“e sim como alguém que também tem por ela sentimentos ternos, que também cuida
dela, alguém que não pode ser situado no eles, e que faz parte do nós, a fim de garantir o
eu” (GONDAR, 2017, p. 94). Nesse caso, o adulto violador se apresenta para a criança
em um lugar mal definido, ou melhor, em uma zona cinzenta.
Podemos afirmar que Nawal sofreu um trauma desestruturante, pois, ao sair
daquela piscina comunitária e reconhecer no semblante de seu filho perdido o seu
torturador, e violador, ela também se chocou com um lugar de contornos mal definidos,
uma zona cinzenta. O choque experimentado por Nawal foi tão grande que derrubou sua
capacidade de resistir. “Um choque inesperado, não preparado e esmagador, age por
assim dizer como um anestésico. (...) Pela suspensão de toda espécie de atividade
psíquica, somada à instauração de um estado de passividade desprovido de toda e
qualquer resistência” (FERENCZI, 1934/1992, p. 113). O seu estado catatônico, de
acordo com Ferenczi (1934/1992), também abarca a suspensão da percepção e a
suspensão do pensamento. Como consequência disso, a personalidade fica desprovida
de qualquer proteção.
Não há como se defender de um golpe que você não esperava lhe atingir. Seus
valores de mundo e a estruturação de seu psiquismo foram quase que completamente
aniquilados. Para ela o trauma desestruturante, ou invalidante, acabou sendo mortal.
Mesmo tendo passado por todos os traumas que marcaram sua existência – assassinato
de seu noivo, perda do filho, prisão, tortura e estupro –, sendo todos potenciais traumas
desestruturantes, e ainda assim continuar seguindo em frente, apesar de todo sofrimento,
ao se dar conta que seu filho perdido era na verdade pai de seus filhos gêmeos ela não
consegue criar uma representação acerca do que está testemunhando e sucumbe a um
estado catatônico.
Antes de reconhecer aquela tatuagem de três pontos verticais no calcanhar do
filho, mesmo tendo passado por inúmeros traumas como já citado, seu mundo, por mais
terrível que fosse, fazia sentido. Ela conseguia diferenciar o amigo do inimigo, o
agressor do oprimido, o torturador da vítima. Mas no momento em que ela sai daquela
piscina e reconhece na mesma pessoa tanto uma vítima de suas ações – trataremos os
traumas de Abou Tarek adiante – quanto o inimigo, ou melhor, o seu agressor, o seu
mundo é desmentido e tudo que antes fazia sentido para ela de uma hora para outra não
faz mais.
O aspecto concernente à movimentação da personagem Nawal pode ser assim
caracterizado: ela teria o poder de ter levado para o túmulo o segredo e ser a única a ser
afetada. Porém, quando ela impõe, pelas cartas profecias, aos filhos gêmeos, a tarefa de
descortinar o impossível que deveria ter sido mantido como um espaço inabitável pela
palavra, acontece a abertura de um pórtico que se lança ao vazio e à escuridão, sem
qualquer suporte. De certo modo, com a decisão e com a imposição, aos seus filhos,
Nawal os coloca em uma rota extremamente perigosa, ou seja, Jeanne e Simon serão
encarregados de trazer, para o irmão-pai Abou Tarek, as vias malditas de um destino.
Assim Nawal condena, de um só golpe, os três filhos, destruindo qualquer chance a
alternativa de puderem viver tranquilos, a partir do momento que se tornaram cônscios
de suas origens.
Esse desfecho apresentado no filme nos leva a pensar que a mãe morreu
sossegada e em paz consigo mesma, na medida em que alimentava a esperança de
quebra do silêncio e ter um ritual funeral recomendado pelos costumes e tradições
morais de um grupo social. A contrapartida de seu sossego pode ser pensada em termos
do inferno que deixou como uma herança intransmissível e dificilmente assimilável para
seus filhos: ou seja, Nawal, em um ato de extrema astúcia, aniquilou subjetivamente
seus três filhos, encurralando-se em um janela, fechada a sete chaves, sendo que as
mesmas foram lançadas ao tenebroso mundo de Netuno conhecido somente por quem
faz a travessia do Hades. Indagamos: essa maldição seria necessária para seus três
filhos, especialmente se pensarmos como irão viver após a descoberta dessas incógnitas
insolúveis?
Contudo, não estamos postulando que a luta de Nawal, como mãe para encontrar
o filho, fruto de seu amor, não seja legitima, uma vez que não foi testemunha do funeral
do mesmo, condição fundamental para uma mãe ter garantias de não praticar o incesto.
Quer dizer, a mãe precisa saber onde anda seu filho para evitar a consumação do
incesto, fato esse que não aconteceu em razão do estupro exatamente pelo seu filho. Do
mesmo modo consideramos legítima a criação de cenário encobridor para os gêmeos,
pela apresentação da farsa de que seu pai teria morrido na guerra, uma vez que Jeanne e
Simon que são filhos do horror, situação confirmada ante a certeza do estupro e depois a
confirmação do incesto.
No caso de Abou Tarek, ou Nihad, ao nascer, foi separado de sua mãe e enviado
a um orfanato, Tarek também foi uma vítima da guerra étnico-religiosa no Oriente
Médio. Depois de ter seu orfanato destruído, Abou Tarek é recrutado para a guerra santa
na qual se transforma em um exímio soldado. Tendo conhecido somente a violência, ele
cresce e se torna o mais cruel torturador de uma prisão feminina, prisão esta que seria a
mesma que Nawal ficaria durante um tempo. O filme não acompanha a história de vida
de Abou/Nihad, o que sabemos sobre ele são informações obtidas pelos relatos de outras
pessoas que, de uma forma ou de outra, teriam relação com a história, conforme
propõem Hildenbrand e Farias (2020). O que é mostrado para nós, espectadores, é que
quando os gêmeos conseguem encontrar seu pai, e irmão, eles lhe entregam duas cartas.
A primeira é dirigida a Nihad, explicando que ela era a sua mãe e que nunca deixou de o
procurar e o amar; a segunda é destinada a Abou Tarek, seu torturador, violador e pai de
seus filhos gêmeos.
Cabe advertir que uma estratégia de resistência de Nawal para não sucumbir
subjetivamente às sessões de tortura pelos castigos corpóreos e estupros consiste em
cantar. Assim podemos considerar a invocação do canto como uma estratégia criativa da
memória, no sentido da existência, ou mesmo uma forma de suportar o excesso que se
apresentava na situação de estupro e maus-tratos. Considerando as deixas explicitadas
no filme acerca do incesto poderíamos pensar que os vestígios de memória acerca dessa
nuance da experiência humana (o incesto), deveriam ter sido objeto de naufrágio para
não deixar qualquer tipo de pista, ou seja, deveriam ter ganhado a fluidez das águas ou
serem destruídos pelo fogo.
Todavia, o fogo que poderia tudo ter destruído foi vencido, nesse intento, pela
fluidez das águas que, na simbolização de vida, produziram rastros e vestígios que se
personificaram em caminhos para o insondável que deveria ter sido protegido por um
anteparo. Enfim, existem evidências que, sequer são destruídas pelo fogo, do mesmo
modo que, às vezes, seria preferível não ter acesso a determinado tipo de saber, para que
a vida seja possível. Desse modo, desvendar os intricados enigmas da acerca das origens
para Jeanne, Simon e, por extensão, Abou Tarek corresponde a uma modalidade de
violência que deixou marcas de sangue, às quais jamais serão extirpadas, nem apagadas
da história de cada um, em termos de seus arranjos subjetivos. Eis o que se afigura no
momento das descobertas, ou seja, da possível solução de uma variável insolúvel e do
ritual de entrega das cartas.
Ao entregarem as cartas ao seu pai/irmão os gêmeos vão embora, e, como
dissemos anteriormente, eles estariam em processo de elaboração por conta de tudo o
que descobriram sobre a história de sua mãe e de sua própria história. Resta agora, para
Abou Tarek/Nihad lidar com seu próprio desespero, temor e dor, após todas as suas
descobertas mediante a entrega das cartas entregues por Jeanne e Simon. O filme não
nos mostra a continuidade do que acontece psiquicamente com ele após a leitura das
cartas, porém não é impossível pensar que devido a tudo que ele passou em sua vida, e
ainda por cima a nova informação sobre ele ter cometido incesto, sua própria percepção
de realidade tenha fronteiras mal definidas, ou seja, que ele se encontre em estado de
perplexidade.
A cena da entrega das cartas é bastante emblemática, primeiro pelo fato de que
evidencia, de forma cabal, a constatação de Simon de que um mais um é igual a um,
dando um contorno bastante complexo ao enigma do filme que reúne, a um só tempo, os
argumentos da matemática na solução de dramas existenciais. Uma vez que a solução da
operação matemática foge completamente ao domínio da realidade concreta, o
argumento utilizado no filme, tanto pelo autor da peça, quanto pelo diretor, tangencia
uma solução insolúvel acerca da origem dos dois irmãos: são frutos da violação, no
âmbito do incesto e por essa razão condenados a ter um pai que é ao mesmo tempo
irmão, colando assim duas linhagens de descendência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O filme conjuga duas nuances da condição humana, conforme podemos


depreender de um trecho de uma das cartas: “meus amores, onde começa a sua história?
Em seu nascimento? Então ela começa no horror. No nascimento de seu pai? Então ela
começa em uma história de amor”.
A história traumática da origem dos três filhos de Nawal começa no amor e
chega ao horror. Do amor ao horror decorrem a existência de quatro vidas marcadas
pelas pegadas do destino com traumas que jamais serão curados e fronteiras que jamais
serão definidas. O desfecho produzido pelas letras vivas das cartas confere novo sentido
à vida dos gêmeos e enlaça o irmão/pai em uma jaula de desespero da qual somente a
morte o libertará, como aconteceu com sua mãe. Enfim é o trauma e por final a morte
que une para sempre, Abou Tarek, Simon e Jeanne.
Provavelmente, se houvesse, depois da desvelação promovida pelas cartas,
espaço de utilização da palavra Jeanne, Simon e Abou Tarek diriam para si mesmos: é
possível continuar vivendo diante desses destroços irremovíveis? Caso a resposta seja
afirmativa uma outra se desdobra: como é possível viver com um grande vazio, jamais
impreenchível, no processo de filiação? Certamente essas três subjetividades são
filhos(as) do acaso: existem linhas que o destino traçou e que por mais distantes que
sejam, umas das outras, não há meio para escapar de segui-las, mesmo que essa profecia
oracular custe a vida ou a renúncia ao viver.
Dito de outro modo: haveria um lugar no mundo para esses três filhos de Nawal,
após essa condenação? Provavelmente não, pois Nawal ao emudecer e ao se encarregar
de deixar como heranças as profecias, personificadas nas cartas, levou junto com o seu
emudecimento seus três filhos para um pântano onde só reina a escuridão, a dor e a
morte.

REFERÊNCIAS

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