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FARIAS, Francisco
Professor associado do departamento de Fundamentos da
Educação e do Programa de Pós-Graduação em Memória
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
frfarias@uol.com.br
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Esse capítulo é uma versão reformulada do artigo Incendies: Trauma and the Gray Zone in Denis
Villeneuve Film, publicado na revista International Journal of Advanced Engineering Research and
Science.
INTRODUÇÃO
A QUESTÃO DO TRAUMA
Como pudemos observar, o trauma de acordo com Freud está muito próximo à
noção de trauma estruturante proposta por Sándor Ferenczi (1873-1933). Porém, além
do trauma estruturante existe no pensamento de Ferenczi um outro tipo de trauma: o
desestruturante ou invalidante.
A fim de exemplificar a situação traumática desestruturante, Ferenczi
(1933/1992) propõe um modelo para pensar a cena de uma violência real: um adulto que
abusa sexualmente uma criança, dando relevo à confusão de linguagens aí envolvida, e
um outro adulto ao qual a criança confidencia o ocorrido. Nessa situação, portanto,
existem três personagens e dois momentos (PINHEIRO, 1995). Em um primeiro
momento a criança brinca com um adulto e, enquanto a criança está na linguagem da
ternura – ternura, aqui, não se opõe à sexualidade, referindo-se a uma sexualidade
vivenciada a partir de outro parâmetro, não genital, lúdico – fantasiando ludicamente
com relação ao adulto, este julga as brincadeiras infantis como investidas sedutoras de
quem já atingiu a maturidade. Por conta disso, o adulto responde a sedução lúdica
através de um outro tipo de linguagem: a da paixão. Ele confunde a ternura lúdica com
sedução genital e acaba por realizar atos de significados sexuais. Esse adulto, por culpa
ou por medo, diz à vítima que nada aconteceu.
No segundo momento a criança sem conseguir elaborar psiquicamente, ou seja,
dar um sentido ao que lhe passou, procura um outro adulto de sua confiança para que
ele a ajude com alguma explicação sobre a violência que sofreu. O segundo adulto
também nega o ocorrido. É através da violência sexual e do desmentido que se constrói
o cenário traumático desestruturante ou invalidante. O desmentido, aqui, não é apenas
uma questão de palavra, são “os afetos de um sujeito, o seu sofrimento, e ele próprio
enquanto sujeito que está sendo desmentido. A conjunção entre a violência do ato e o
descrédito da vítima, configuram, para Ferenczi, o trauma invalidante” (GONDAR,
2017, 91).
Este modelo construído por Ferenczi não invalida situações traumáticas
ocorridas em circunstâncias diferentes. Ele propõe esse modelo como uma referencia
organizadora. No entanto, em casos de violência extrema, o trauma invalidante pode
ocorrer sem que o ato violento e o desmentido se passem em dois momentos distintos
ou contendo três personagens especificamente.
Ferenczi valida o que estamos afirmando em Reflexões sobre o trauma
(1934/1992, p. 110), texto no qual trata da comoção psíquica como reação imediata ao
trauma: “uma comoção pode ser puramente física, puramente moral ou então física e
moral. A comoção física é sempre também psíquica; a comoção psíquica pode, sem
nenhuma interferência física, engendrar o choque”. De acordo com ele, o choque seria
equivalente à aniquilação do sentimento de si.
Sendo assim, se a comoção física é sempre também psíquica, podemos pensar a
possibilidade de a violência física produzir, psiquicamente, o correspondente a um
desmentido gerando o trauma invalidante. Gondar (2017) expõe duas situações que
podem ser consideradas similares ao cenário de abuso sexual na família, do ponto de
vista psíquico da vítima: a experiência da tortura e a experiência nos campos de
extermínio. O que será importante, nos três casos, é a vivencia de aniquilamento do Eu e
a importância do desmentido – situado no que será chamado de zona cinzenta – para
que isso aconteça.
Quem primeiro escreveu sobre a zona cinzenta foi Primo Levi (1919-1987),
sobrevivente no campo de extermínio de Auschwitz, em seu livro Os afogados e os
sobreviventes (2016). Levi escreve que
não era simples a rede das relações humanas no interior dos Lager:
não se podia reduzi-la a dois blocos, o das vítimas e o dos opressores. (...)
[todos] esperavam encontrar um mundo terrível mas decifrável, de acordo com
aquele modelo simples que atavicamente trazemos conosco, “nós” dentro e o
inimigo fora, separados por um limite nítido, geográfico. Ao contrário, o
ingresso no Lager constituía um choque em razão da surpresa que implicava. O
mundo no qual se precipitava era decerto terrível, mas também indecifrável:
não era conforme a nenhum modelo, o inimigo estava ao redor mas também
dentro, o “nós” perdia seus limites, os contendores não eram dois, não se
distinguia uma fronteira mas muitas e confusas, talvez inúmeras, separando
cada um do outro (LEVI, 2016, p. 28).
Levi escreve que o maior choque dentro do que ele chama de Lager (campos de
concentração) era o fato de que lá dentro o mundo não podia ser reduzido em dois
blocos: os opressores e os oprimidos. Os limites não estavam claros, pois, existia uma
classe hibrida, uma classe de prisioneiros, que por diferentes motivos, colaboraram com
os soldados, ou seja, com o inimigo. Com isso, já não era mais possível organizar uma
realidade, terrível mais decifrável, entre amigo e inimigo. Pois ao chegar lá o sujeito
sofria “uma agressão concêntrica por parte daqueles em que se esperava encontrar os
futuros aliados” (LEVI, 2016, p. 28). O choque sofrido era tão grande que logo
derrubava a capacidade de resistir e para muitos foi mortal, pois “é difícil defender-se
de um golpe para o qual não se está preparado” (LEVI, 2016, p. 29).
O fato de não conseguir separar o mundo, lá dentro, entre amigo e inimigo era o
choque maior. São esses contornos mal definidos dentro do campo de extermínio de
Auschwitz, essa impossibilidade de fazer uma divisão entre vítimas e opressores, entre
nós e eles – pois muitas vezes o nós estavam neles – que Levi chamou de zona cinzenta.
Ferenczi (1934/1992) explica que o choque produz na subjetividade “a perda de
sua forma própria e a aceitação fácil e sem resistência de uma forma outorgada, à
maneira de um saco de farinha” (FERENCZI, 1992, p. 109), ou, como já foi dito, o
choque é equivalente à aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir como
Si mesmo. Sendo assim, não é difícil perceber a relação entre o que Ferenczi chama de
desmentido e o que Levi está chamando de zona cinzenta. “Nas duas situações, estão
sendo desmentidos os valores e as referências de mundo que o sujeito possui e sobre as
quais seu psiquismo está estruturado; é o próprio sujeito, portanto, que está sendo
desautorizado a existir enquanto tal” (GONDAR, 2017, p. 93). O que nos interessa é
que em ambas as experiências os efeitos psíquicos serão semelhantes. A falta de sentido
e as dúvidas sobre a sua própria percepção de realidade são sentimentos experimentados
pelo sujeito desmentido, e, Levi, situa o que estamos chamando de desmentido, ou
descrédito, nessa zona cinzenta.
Já a relação entre a experiência da tortura e a zona cinzenta é trazida pelo
psiquiatra e ensaísta Frantz Fanon (1925-1961). Fanon, após sua formação acadêmica
na França, trabalhou como diretor do Hospital Psiquiátrico de Blida-Joinville, na
Argélia. Sua experiência médica nesse hospital, com os argelinos torturados,
possibilitou a constatação de que grande parte das vítimas de tortura passaram pelo uso
de uma mesma tática por parte de seus torturadores (FANON, 1979):
Essa tática consistia em se apresentar à vítima de maneira
contraditória, fazendo a atitude, a voz e o comportamento oscilarem entre dois
extremos. Assim, em alguns momentos, o torturador gritava, violentava e feria
o sujeito, enquanto que, em outros, falava-lhe de forma doce, dizendo-se
preocupado com suas dores e até tratando de suas feridas. (GONDAR, 2017, p.
94).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS