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Os corvos que criamos: a falta tocada por Carlos Saura

José Artur Fragoso Feitosa

O acaso é sempre um aliado no meu caminho. Antes da decisão final, durante o pensar
desse texto, ainda não escolhido o assunto a ser tratado e muito menos como iria ser tratado,
encostei, casualmente, em obras que se debruçam sobre um tema comum e universalmente
específico a todos nós: o luto. Luto é um aglomerado de sensibilidades em nossa pele frágil.
Compreender uma ausência, suprir uma perca e perceber um espaço que se fez é a única
certeza, além de nossa finitude, algo aterrador demais para uma vida. Carlos Saura com sua
obra “Cría cuervos” (1976), se demora em retratar e fantasiar sobre os efeitos desse
sentimento. O filme narra o cotidiano de Ana e suas irmãs, que após o falecimento sucessivo
de sua mãe e pai, vão morar com sua tia, o que apresenta novos desafios para a convivência
das meninas, enquanto lidam com a orfandade.

Como espectador, acompanhamos Ana passear pelos corredores e quartos da casa,


transitar pela cozinha e quintal quase de forma invisível aos adultos preocupados em suas
rotinas, guardando no porão um poderoso e fatal veneno, ao qual o guarda um mórbido
fascínio pelo perigo desse objeto. A história é atravessada por momentos que digressionam a
cronologia com monólogos da própria Ana, agora já adulta e interpretada pela mesma atriz
que vive a personagem de sua mãe, sugerindo essa maldição em que caímos de nossas
árvores genealógicas, mas nunca circulando muito longe da raiz do arvoredo em que
vivemos, permanecendo ali, perecendo como nossos pais, sem escapar. São maldições que se
iniciam na infância e tem seu resultado no adulto, que lida com as faltas inexatas.

Ana, já madura, relembra o que cercou esse momento conflituoso em sua vida, lidar
com a morte em tenra idade. Um dos feitos impressionantes do filme é mostrar, com essas
lembranças, os abismos incompreensíveis que a perca infere nessas meninas, deixadas sem
entender o fim de um laço primário. Os momentos mais emblemáticos do filme estão nos
devaneios de Ana, em que são engatilhados por algum elemento que espiram em um
momento marcado pela sua mãe, como os momentos em que toca sua música favorita e
vemos ela cantar em desamparo: ¿Porqué te vas? ¿Porqué te vas?

Continuamente, o luto atinge outras qualidades nos efeitos que impactam Ana, aos
poucos desconcertando a criança. Ascende em seu imaginário infantil, a crença em um poder
sobre a dinâmica de vida e morte, com a ocorrência de ideações suicidas disfarçados de um
sútil pensamento, além de tentativas frustradas de envenenar aqueles que ficam em seu
caminho. É nessa alteração em Ana que mora o desafio doloroso do luto. É contornar a
impossibilidade de voltar ao estado antes de perder o objeto e lidar com o que ficou, ou pior,
com o que resta. Em Ana, isso se traduz nos extremos, principalmente, porque lida-se com o
luto na infância em que não se desenvolve os mecanismos para entender a perca e como com
essa perca, as linhas de vida e morte tem seus significados atenuados. Qual o sentido de uma
vida se há a morte? Como viver sob essas fragilidades? São nessas questões em que Ana se
depara, assim como todos nós diante dessa insustentável certeza.

O filme tem uma qualidade em que, ao passo que desenvolve uma narrativa do
microcosmos que cerca Ana, entende-se muito da sociedade macro em que está fadada a se
subjugar a nossas formas e meios. Se passando na Espanha pós-franquista, há um senso de
luto coletivo por tudo que se passou nesse período histórico comprometido com a morte do
coletivo, aniquilação do dissidente, em que não há chance para a justiça, muito menos para o
luto. Convivendo com Ana, há sua avó, uma senhorinha muda que passa os dias melancólica
em sua cadeira de rodas encarando as fotos penduradas nas paredes, rememorando um outro
momento, um estado passado, lembrando em cada rosto e momento registrado pelas fotos o
que há muito passou e que já não há de voltar. Ao passo que Ana se perde na sua ideação
sobre quem vive e quem morre, sua avó se vê diante de um fardo imensurável: a solidão que
é estar vivo e perceber que do que foi vivido sobrou apenas as fotografias. É um sublime
momento sobre o impacto da memória no espectro do luto.

Os aspectos psicológicos que se enredam a história do filme na conturbação em que os


sentimentos de Ana se confundem após perder o pai. Ao contrário da perca da mãe em que
Ana sofre com a saudade do que antes se viveu, com a morte do pai, Ana questiona o que
sentia com a presença do pai e como isso se traduz para sua ausência. Ana presenciava
diversos momentos de infidelidade e intransigência do pai para com a mãe, causando a
mesma um enorme pesar e sofrimento, visto que estava presa em um casamento com um
homem que não a amava e não a respeitava. Há falta, também, em sua mãe. Sua mãe vive
com a falta de amor, de respeito, de validação. Presa em uma teia que a apaga
constantemente. É diante dessa falta que sua mãe começa a se desvanecer da vida, adoecendo
até a morte. Com isso, Ana se vê agoniada e inquieta, tentando quebrar as correntes,
condenada a repetir os erros de uma estirpe amaldiçoada.
É como reflexão sobre o que nos é dado, sobre a bagagem que somos determinados a
carregar e a falta que temos que lidar que o filme brilha. Na câmera seguindo retamente os
personagens, com paciência ao se demorar nos olhares vagos dos personagens, se encantando
com o trágico que é se estar em família. Cría cuervos te oferece uma lente para enxergar o
que carregamos e o que isso nos traz, além de espelhar como crianças somos ao pensar no
que um dia a de ser falta em nossa vida.

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