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O acaso é sempre um aliado no meu caminho. Antes da decisão final, durante o pensar
desse texto, ainda não escolhido o assunto a ser tratado e muito menos como iria ser tratado,
encostei, casualmente, em obras que se debruçam sobre um tema comum e universalmente
específico a todos nós: o luto. Luto é um aglomerado de sensibilidades em nossa pele frágil.
Compreender uma ausência, suprir uma perca e perceber um espaço que se fez é a única
certeza, além de nossa finitude, algo aterrador demais para uma vida. Carlos Saura com sua
obra “Cría cuervos” (1976), se demora em retratar e fantasiar sobre os efeitos desse
sentimento. O filme narra o cotidiano de Ana e suas irmãs, que após o falecimento sucessivo
de sua mãe e pai, vão morar com sua tia, o que apresenta novos desafios para a convivência
das meninas, enquanto lidam com a orfandade.
Ana, já madura, relembra o que cercou esse momento conflituoso em sua vida, lidar
com a morte em tenra idade. Um dos feitos impressionantes do filme é mostrar, com essas
lembranças, os abismos incompreensíveis que a perca infere nessas meninas, deixadas sem
entender o fim de um laço primário. Os momentos mais emblemáticos do filme estão nos
devaneios de Ana, em que são engatilhados por algum elemento que espiram em um
momento marcado pela sua mãe, como os momentos em que toca sua música favorita e
vemos ela cantar em desamparo: ¿Porqué te vas? ¿Porqué te vas?
Continuamente, o luto atinge outras qualidades nos efeitos que impactam Ana, aos
poucos desconcertando a criança. Ascende em seu imaginário infantil, a crença em um poder
sobre a dinâmica de vida e morte, com a ocorrência de ideações suicidas disfarçados de um
sútil pensamento, além de tentativas frustradas de envenenar aqueles que ficam em seu
caminho. É nessa alteração em Ana que mora o desafio doloroso do luto. É contornar a
impossibilidade de voltar ao estado antes de perder o objeto e lidar com o que ficou, ou pior,
com o que resta. Em Ana, isso se traduz nos extremos, principalmente, porque lida-se com o
luto na infância em que não se desenvolve os mecanismos para entender a perca e como com
essa perca, as linhas de vida e morte tem seus significados atenuados. Qual o sentido de uma
vida se há a morte? Como viver sob essas fragilidades? São nessas questões em que Ana se
depara, assim como todos nós diante dessa insustentável certeza.
O filme tem uma qualidade em que, ao passo que desenvolve uma narrativa do
microcosmos que cerca Ana, entende-se muito da sociedade macro em que está fadada a se
subjugar a nossas formas e meios. Se passando na Espanha pós-franquista, há um senso de
luto coletivo por tudo que se passou nesse período histórico comprometido com a morte do
coletivo, aniquilação do dissidente, em que não há chance para a justiça, muito menos para o
luto. Convivendo com Ana, há sua avó, uma senhorinha muda que passa os dias melancólica
em sua cadeira de rodas encarando as fotos penduradas nas paredes, rememorando um outro
momento, um estado passado, lembrando em cada rosto e momento registrado pelas fotos o
que há muito passou e que já não há de voltar. Ao passo que Ana se perde na sua ideação
sobre quem vive e quem morre, sua avó se vê diante de um fardo imensurável: a solidão que
é estar vivo e perceber que do que foi vivido sobrou apenas as fotografias. É um sublime
momento sobre o impacto da memória no espectro do luto.