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Do Autor:

As solas do sol
Um terno de pássaros ao Sul
Terceira sede
Biografia de uma árvore
Cinco Marias
Como no céu & Livro de visitas
Meu filho, Minha filha
O amor esquece de começar
Canalha!
Mulher perdigueira
www.twitter.com/carpinejar
Borralheiro
Ai meu Deus, Ai meu Jesus
Espero alguém
Para onde vai o amor?
Me ajude a chorar
Felicidade incurável
Todas as mulheres
Amizade é também amor
Cuide dos pais antes que seja tarde
Minha esposa tem a senha do meu celular
Família é tudo
Carpinejar
Depois é nunca
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C298m
Carpinejar
Manual do luto [recurso eletrônico] / Carpinejar. - 1. ed. - Rio de Janeiro :
Bertrand Brasil, 2023.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5838-209-6 (recurso eletrônico)
1. Luto - Aspectos psicológicos. 2. Perda (Psicologia). 3. Citações. 4. Livros
eletrônicos. I. Título.
23-85015
CDD: 155.937
CDU: 159.942:393.7

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

Copyright © Fabrício Carpi Nejar, 2023

Revisão: Mariana Carpinejar

Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Todos os direitos reservados.


Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a
prévia autorização por escrito da Editora.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil


adquiridos pela:
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20921-380 — Rio de Janeiro — RJ
Tel.: (21) 2585-2000.

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Apresentação

Lembro que, nas minhas aventuras de criança, adorava subir em


telhados e árvores. Não me escorava na facilidade de uma escada.
Eu me pendurava nas árvores e escalava os galhos para alcançar a
cobertura da minha casa e das residências vizinhas.
Andei a maior parte da minha infância na fragilidade das telhas,
pisando devagar no seu liame, capturando o meu bairro do alto.
Tinha uma técnica de esticar as pernas e os braços como cordas de um
andaime.
Mas havia uma árvore temida na praça. Uma paineira. Com espinhos
espalhados por todo o tronco. Ela era de uma altura inacessível, apesar
de ter em seus galhos delicadas e exuberantes flores rosa que eu gostaria
de tocar e cheirar.
Com sua armadura de poucos amigos e suas pontas de lança apontadas
para mim, ela se mostrava até então intransponível para minha
pequenice.
Tampouco compreendia a função de um espécime que se assemelhava a
uma roseira gigante. Só pensava que estranho destino era não poder
repartir as suas estações, o seu viço, a sua beleza.
Numa tarde, no contraturno da escola, enquanto brincava
distraidamente no balanço, sozinho, buscando o meu voo a partir das
duas correntes de ferro e do impulso da magra tábua, testemunhei uma
menina menor do que eu subindo a paineira de modo ligeiro. Em
minutos, ela estava no cume, rindo e levantando o punho pela vitória
alcançada. Eu não tinha percebido o óbvio: os espinhos poderiam ser
degraus. Funcionavam como bases aos pés, grampos de alpinista.
Não é assim com a nossa existência?
Não tem como evitar adversidades. Viver é assustador. Desde que
nascemos, somos frágeis e dependentes de cuidados.
Mas as dores nos abrem para outro ponto de vista, para enxergarmos
os nossos problemas a partir de um ângulo mais panorâmico, que leva
em conta o conjunto de nossas experiências.
Eu diria até que as dores são degraus para atingirmos a nossa
humanidade, para escutarmos as aflições alheias com respeito, para
reconhecermos fatos importantes e decisivos do passado.
Não temos como ser poupados do sofrimento, mas podemos perguntar:
até onde posso ir com esse sofrimento, até onde posso melhorar com esse
sofrimento? Qual será a utilidade desse sofrimento?
Toda dor é enxergar a sua vida de cima. Antigas amolações se tornam
insignificantes, já perdas assumem a condição de raridades da saudade.
Qualquer um que enfrenta o luto passa a limpo a sua trajetória, relê os
seus rascunhos, percebe o quanto já foi feliz sem saber e o quanto foi
infeliz sem necessidade.
Agora os espinhos fazem parte do nosso corpo. Não adianta arrancá-
los. Não são adornos, enfeites: eles nos protegem.
Formam a escada para o céu, o céu pessoal de cada um, onde mora
aquele que amamos e que não está mais entre nós no baixo do chão.
Nossos pensamentos devem ir de vez em quando ao topo da paineira,
para declarar a nossa falta e aspirar o perfume das flores rosa.
Querido, querida da minha vida,
Sumário

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Você deve estar se sentindo invisível, a morte de alguém
próximo nos torna invisíveis. Atravessamos um portal para uma
dimensão alternativa da rotina. Não somos vistos, não somos
percebidos como antes. É como se a dor fosse um manto mágico
do desaparecimento social.

Você tampouco enxergava os enlutados antes da sua perda. Eles


não tinham destaque, consistência, importância, densidade.
Lembravam seres de um planeta secundário, desencaixados da
normalidade e da perfeição de que até então você desfrutava. E
nem agia por mal, o desinteresse vinha da falta de um ponto de
contato com a realidade do adeus.

Agora, parece que todo luto se evidencia ao seu lado. Se você é


órfão, não para de notar órfãos na sua vizinhança. Eles sempre
estiveram ali, acessíveis. Você só não reparava porque não tinha
nascido o terceiro olho do sofrimento na sua testa.

Viuvez chama viuvez. Desamparo de um filho perdido convoca


quem atravessou igual lacuna.

O fim de uma vida mexe com o nosso jeito de entender os


relacionamentos. Você busca seus semelhantes, quem possa
respeitar o seu silêncio, quem interceda por sua comunicação
falhada. Aproxima-se de uma imensa tribo de pessoas sozinhas
como você. Não é bem um grupo ou uma comunidade, pois em
nenhum momento você se descola da sua solidão. É um estar
junto ainda solitário. Acham-se interligados por uma experiência
em comum, porém cada um pena à sua maneira, com o impacto
particular e intransferível de um falecimento. O idioma da
fragilidade é o mesmo, o sotaque da dor se apresenta diferente.
Ninguém sofre mais do que o outro. Sofre-se com as
particularidades do amor vivido.

A sensação de invisibilidade é decorrente do próprio processo


de aceitação de uma ausência.

Com o luto, é você, enlutado, quem morreu. O falecido continua


em você, você continua se lembrando dele. É você quem morreu
para ele. Você não tem saudade dele, tem saudade do que você
nunca mais será para ele. Você pensa não no abraço que não vai
dar, não no beijo que não vai dar, mas no abraço que não vai mais
receber, no beijo que não vai mais receber. A morte dele é a sua
inexistência.

Você não tem aquela pontada, aquele calafrio: “Nunca mais vou
poder ligar.” Ou: “Nunca mais vou fazer uma visita.” O que
percebe é o contrário: “Eu nunca mais poderei receber aquele
telefonema.” Ou: “Eu nunca mais poderei receber aquela visita.”

A morte desconstrói as nossas crenças, as nossas certezas, as


nossas convicções. Você deixou de existir para alguém. E essa
pessoa continua cada vez mais viva dentro de você.
Toda perda não parece que foi ontem, parece que recém está
acontecendo. Parece que a dor é de hoje.

Não há como condenar a demora na recuperação. Não há como


julgar que o enlutado está por muito tempo preso à despedida,
que já precisa retomar a normalidade.

Não existe maneira de apressar o processo. É a readaptação de


existir a partir de uma ausência.

Quem carrega um morto dentro de si é obrigado a nascer de


novo. Os olhos mudam. A rotina muda. A relação com os
familiares e amigos muda. Não tem como desligar uma chave e
seguir como se nada tivesse acontecido.

Só a indiferença nesse caso é patológica. A partida pressupõe


um amadurecimento que envolva humildade e resiliência.

“O que eu farei com o tempo que sobra quando um afeto vai


embora?” Aquele tempo que era dedicado a quem morreu não
encontra substituto nem modo de ser preenchido.

Trata-se de uma longa reabilitação para fundar um novo lugar


no mundo, pois uma ocupação amorosa virou tempo vago.

É como se aposentar sumariamente de uma pessoa, de um


cuidado, de uma biografia, de uma cadeia de conversas e
encontros.

Tanto que, às vezes, a vontade é parar de se emocionar e até de


amar. Há quem não queira, nos primeiros meses da morte, ter
surpresas, fazer descobertas, nem criar lembranças felizes para
não alterar a ordem da memória, para não apagar a hierarquia da
saudade.

Não acredito que no luto você deva viver um dia de cada vez.
Tal métrica corresponde a uma visão otimista e ingênua sobre o
assunto. A verdade é que se deve enfrentar uma hora de cada
vez.

Os dias da licença médica não traduzem a realidade. O ritmo de


prantear é absolutamente particular. Você pode chorar gritando
ou calado, pode chorar se confessando ou não tocando no
assunto, pode chorar procurando a multidão ou preservando o
isolamento. E, nem por isso, significa que vem sofrendo mais ou
menos.

Ao se quebrar um braço, são exigidas seis semanas de gesso


para recolocá-lo na posição original. E quando se quebra a alma?

Não podemos regular o ciclo do sofrimento alheio pelo nosso


relógio, inclusive porque a dor transporta o enlutado para um
outro fuso horário, para outro continente, para outra cultura da
sensibilidade.

Se você ainda não sabe o que é perder alguém, não condene a


duração de nenhuma saudade.
As pessoas não entendem que a dor da perda é maior do que o
corpo.

Ela apenas diminui com o tempo para se acomodar dentro do


corpo, jamais desaparece.

A dor encolhe depois de passarem vários anos da despedida,


mas não some.

Aprendemos a rir com aquela dor, a se relacionar publicamente


com aquela dor, a trabalhar com aquela dor, a amar com aquela
dor. Ela vira parte da nossa carne, do forro da nossa pele, da
nossa visão de mundo.

Não é um pessimismo, porém um desencanto, uma constatação


de que as coisas não são perfeitas, de que o destino é
imprevisível, de que a rotina não será mais fácil e espontânea
como antes.

É continuar vivendo como se o melhor de nossa história já


tivesse acontecido. Avançar é também agora recuar.

O que virá pela frente pode até ser bom, só que não será mais
pleno, completo, com todos ao nosso redor.

Uma cadeira vaga faz com que a mesa fique manca para
sempre. Tanto que, nos primeiros dias de luto, a sensação é que
estamos longe do nosso corpo. Observando a nossa vida de fora,
como espectadores de nosso comportamento, espectadores de
nossas ações.

Não existe aquela consciência aguda de quem está presente.


Nosso foco é inconstante, dispersivo.

Muitos nem se lembram de como conseguiram fazer o velório e


o enterro, de como foram capazes de exercer a burocracia do
desenlace. Encontram-se no automático, sem pensar muito,
completamente anestesiados de emoção.

Recebem os pêsames, abraçam parentes e amigos, conversam


sobre amenidades, almoçam e jantam, tomam as providências
legais, entram no chuveiro, dormem, mas não recordam nada. É
como se houvesse um clone do sofrimento, um sósia vivendo no
nosso lugar enquanto não desfrutamos de condições de
responder pelos nossos atos.

Na morte de um ente querido, a primeira ausência é a nossa,


não a de quem partiu. Nosso olhar é espaçado, distante e
perdido. Nossas pálpebras são pesadas, com intervalos lentos
para absorver a claridade.

Não estamos inteiramente aqui. Estamos ainda perto do morto,


das lembranças recentes com ele, longe de nós mesmos.
Quando alguém que você ama morre, você se percebe rejeitado.
Não rejeitado por um indivíduo, mas pelo universo, pelo destino.

“Como isso foi acontecer logo comigo? Eu não merecia!” É


natural reagir assim. Ninguém merece ser subtraído de um afeto.
Não há justiça no ciclo natural da existência.

Você se vê excluído da felicidade. Da paz. Da rotina.

Sequer compreende como as pessoas continuam indo ao


trabalho, andando de carro, ocupando as ruas, depois da sua dor.

Você mudou, mais ninguém. É como se o seu sofrimento não


fizesse nenhuma diferença para interromper um pouco as
engrenagens do mundo.

A pressa ofende a sua ferida aberta.

O velório e o enterro são alguns dias para os outros, mas para


você não encerram.

É como se a morte de alguém mandasse você embora da sua


vida. Aquela vida construída com esmero, com disciplina, com
afinco, tem seus alicerces desmoronados de repente.

Um telefone, um endereço, um rosto, um contato do WhatsApp


estarão subitamente inativos. Você pode ouvir áudios do ente
querido e não entenderá como aquilo que foi dito ontem já não
serve para hoje.

Perguntará a si mesmo: como pode alguém estar aqui e não


mais estar?

Não existem mais os fins de semana, as férias, as viagens. O


futuro é passado.

Experimenta um terremoto pelas veias. Está soterrado pela


descrença. A cada semana, tentará remover uma pedra interior
para tomar ar. Leva-se muito tempo para se levantar dos
escombros.

Nem mais respira, suspira. O suspiro é a alma fugindo.

O que você fazia não tem mais graça. Comer e dormir não tem
mais sentido. Sair ou conversar não trazem mais nenhuma
novidade.

Pode manter as aparências por um período, mas a verdade é


que, por dentro, nunca mais será igual. Não haverá a
normalidade costumeira. Amores e amizades não serão mais
iguais. Sua família não será mais igual. Seu emprego não será
mais igual. Não tem como fingir.

Você se acha rejeitado no luto. Profundamente rejeitado.

O universo que você tinha com aquela pessoa sumiu na neblina


da poeira. É fumaça passando pelas suas mãos. Não tem como
agarrar nem impedir a sua subida aos céus.
O universo morre com o falecido.

Você parte para uma segunda dimensão da sua sensibilidade.


Em que tudo dói tanto que você não sente mais nada.
O sofrimento nem sempre gera aprendizado. Você pode ficar
muito pior do que era.

Mediante uma experiência de perda, pode se fechar, isolar-se,


ser egoísta. Pode querer reparação, não acreditar em mais
ninguém. Pode desmerecer qualquer alegria ao seu lado, não
confiar mais na família, ver-se ofendido por Deus, atrasar a sua
vida.

Nem todo sofrimento traz lições. Às vezes, você deixa de


realizar o que vinha dando certo por boicote à sua satisfação,
para conspirar contra o seu prazer. Não admite estar bem por
lealdade a uma ausência. Generaliza o pior.

Mantém uma ideia equivocada da morte, presa aos movimentos


terrenos, como se quem morreu ainda estivesse sofrendo.

O morto não sofre mais. Você não precisa prolongar a purgação


para honrar a partida dele, para se equivaler no desamparo, para
mostrar uma cumplicidade no gemido e no langor. O morto se
encontra livre das suas feridas, seco de lágrimas, já alcançou a
paz.

A morte é um alerta para você melhorar a sua relação com os


afetos que restaram. Tudo que faltou realizar com quem partiu
desperta novos anseios de conexão.
O fim se assemelha a um espelho. O espelho só rebate a
imagem, você não tem como entrar nele. Portanto, o ente querido
e ausente reflete uma urgência nos mais próximos.

Se você for passivo diante do sofrimento, ele vai fazer o que


quiser com você. Vai sugar as suas forças, virar o seu espírito pelo
avesso, desidratá-lo até que sobre um pessimismo mesquinho.

Você deve entender que é seu sofrimento, agora ele lhe


pertence. Como lidará com ele é uma decisão sua.

Não há como impedir a dor de chegar (não dispomos da


onisciência), mas há como impedir que ela seja vazia. Porque
uma dor deserta esvazia toda a nossa emoção, toda a nossa
gratidão, todo o nosso juízo, toda a nossa capacidade de pensar e
reagir.

Não que você irá se curar do luto — o luto não é uma doença
—, apenas não estará exclusivamente à mercê dele. Inverterá a
lógica da submissão e o colocará a favor de um propósito.

É necessário encarar o sofrimento e perguntar a ele: o que farei


com você?

Não existe como bloquear o início da aflição, mas sempre


definimos o destino dela.
Você brigou com alguém, você foi surpreendentemente duro,
você disse palavras ásperas e ingratas, você explodiu de raiva,
você desandou a gritar grosserias, escapou do prumo e do
equilíbrio habituais, falou de cabeça quente, e, em seguida, essa
pessoa morreu num acidente ou por algum problema de saúde
desconhecido.

A tendência é que contraia uma culpa imensa de não ter se


despedido direito, de ter sido injusto, de não ter sido sensível e
emocionado. Parece que seu afeto morreu brigado com você,
pensando o pior de você, levando mágoas na bagagem.

Queria explicar, primeiramente, que jamais vamos nos despedir


direito, pois não temos controle sobre o destino, nunca cogitamos
o fim próximo, nunca prevemos a morte.

O último momento não é determinante como supomos. O que


vale é o conjunto da obra, a soma da amizade, o panorama
integral da cumplicidade, o que vocês fizeram no passado, o que
aprenderam lado a lado, um com o outro.

O desentendimento foi um fragmento irrisório, um instante


passageiro, efêmero, insignificante perto de tudo que já
alcançaram juntos. Não deveria pesar como uma súmula, um
episódio decisivo do seu relacionamento.
Um desfecho confuso não apaga a felicidade anterior.

O medo de ter falhado cresce devido à nossa fragilidade. No


luto, somos suscetíveis a qualquer lembrança, boa ou ruim,
comprometendo a nossa capacidade de julgamento, de valorar o
percurso inteiro de uma existência. Detalhes nos perturbam,
criam ressentimentos, geram suspeitas. Acabamos assumindo,
equivocadamente, uma responsabilidade por aquela partida e
nos cobramos em demasia, sem complacência com as nossas
imperfeições.

Quando perdemos um ente querido, andamos descalços na dor.


E uma agulha extraviada no chão pode nos ferir. Mas é uma
agulha, só uma agulha, nunca deixará de ser uma agulha.

Você não atendeu ao telefonema de quem logo faleceu,


desmarcou um encontro na semana do imprevisível desenlace, e
se mortifica por ter faltado à cena derradeira, por não ter
oferecido atenção.

Não faça isso. Perdoe-se. Não havia como imaginar o que


aconteceria, que não desfrutaria de uma chance de retratação em
seguida.

A pessoa sabia do principal: que você a amava. Antes de


morrer, pôde enxergar a verdade dos seus sentimentos.
A morte gera um vazio. Mas não é o vazio da separação, do
desentendimento, do afastamento provisório, da ruptura de uma
amizade.

É outro vazio, mais faminto. Diferentemente de qualquer adeus


por incompatibilidade, que ainda conserva esperança de
reconciliação, é um vazio irreversível que somente cresce.

Quando discutimos ou brigamos com algum afeto, existe um


vácuo, porém é passageiro. Logo focamos no trabalho ou na
família e seguimos adiante. Conseguimos lidar com o nó no
estômago.

Já com a morte de um amor, vem um deserto que não tem como


ser enganado pelas tarefas cotidianas.

Nasce um lugar dentro de você, um santuário, onde conversará


com quem partiu, pedirá conselhos em silêncio e ouvirá a
resposta pelos sinais da natureza.

Abre-se um majestoso e imenso espaço interior, capaz de roubar


sua atenção e provocar intermitentes suspiros.

Toda despedida é como herdar um terreno. Você deverá


construir a casa no local. Não há nada lá, só mato e entulhos.
Começará a limpeza dos hectares, separando o que é capim e o
que é grama, o que é desespero e o que é verdade, o que é culpa e
o que é juízo, guardando o essencial de uma vida.

Nos primeiros anos, mal vai dormir. Terá, fincado no seu


âmago, o tormento da escavação, dos barulhos da britadeira, das
pancadas dos martelos, das vigas da saudade e da gratidão, das
paredes sendo levantadas.

A impressão é que não suportará o processo, feio, confuso e


desorganizado, um caos de desconforto e de poeira, um esqueleto
de argamassa e pungência.

Pois a realidade operária nunca corresponde à planta dos


sonhos do arquiteto e do engenheiro.

Pensará em desistir, abandonar a construção pela metade, gritar


de raiva, desaforar as lágrimas, aceitar o despejo do passado.

Aos poucos, enxergará o patrimônio surgindo inesperadamente


das suas palavras, do quanto foi amado e amou, do quanto ainda
tem a carícia das lembranças para aninhá-lo nos momentos
difíceis, do quanto uma pessoa jamais desaparece em vão: ela
deixa um legado de inspiração.

Luto é um árduo e lento trabalho pelo interior de nossas


emoções. É encaixar pedra por pedra de nossa perda, até termos
um novo lugar de nossa sensibilidade para habitar, em que
mortos e vivos serão para sempre amigos pacificados.
Quando a pessoa aperta forte a sua mão no leito do hospital,
você sabe que ela vai morrer.

É um código entendido por todos.

Essa mão firme, agarrando os seus dedos, com mais força do


que o habitual, é uma forma de nos avisar da despedida.

O doente usa a soma derradeira da sua energia, busca uma


disposição inexplicável do seu profundo oceano, para um carinho
final, para dizer que chegou o seu momento.

Ele tem consciência de que não tem mais o que fazer, de que os
esforços médicos serão agora paliativos, e pede a você que acate a
provação mais difícil, a mais dolorosa do amor: aceitar a morte!

Você aperta a mão de volta, não querendo deixar quem você


ama para trás.

São duas mãos — uma consentindo em ir embora e a outra


tentando fazer o enfermo ficar — tão entrelaçadas que ninguém
seria capaz de separá-las. É um nó com várias voltas, formado
por duas forças contrárias se desejando.

Você sofre de apego, o ente querido partindo sofre de desapego.


Ninguém está feliz, mas ninguém está sozinho: tudo é necessário,
tudo é importante, tudo é feito lado a lado. A gratidão e o perdão
se abraçam.

Não são mãos dadas, mas mãos ansiosas e aflitas segurando o


tempo que resta, o tempo que lhes resta juntos.

Não se fala mais nada, o “eu te amo” é desnecessário. A


eletricidade inteira de duas pessoas mora nas mãos entrelaçadas.

Qualquer um vai chorar de emoção porque entendeu o recado.

Os rostos sequer se mexem. As lágrimas são as primeiras a


acenar. Só elas correm nas faces imóveis, no mundo parado.

A saudade acumulada é tanta que você não se lembra de nada,


apenas se encontra entregue a um presente absoluto, totalmente
atento aos detalhes, aos movimentos mínimos da cena, capaz de
ouvir, inclusive, uma por uma das gotas caindo do soro.

Não há como abotoar a camisola hospitalar e espantar o frio do


sangue. Camisola não tem botões.

É como a fisgada de uma pescaria em que você, de modo


oposto ao que acontece à beira-mar, pretende libertar o peixe,
desembaraçá-lo do anzol, devolvê-lo para as águas, prolongar a
sua existência.

É o cumprimento do adeus. Depois dele, há apenas o doce e


redentor suspiro. E os olhos se fecham como um livro que foi lido
até o fim. Você leu aquela vida até o fim.
Não existe como subtrair alguém de nossa vida. A faxina tem
limite. Precisamos guardar uma prova física e material de nosso
amor. Nem todas as páginas devem ser viradas. Algumas
resistirão ao tempo com um bonito marcador. Assinalaremos
onde paramos a leitura, destacaremos a numeração da folha em
que os nossos olhos estacionaram.

Há números telefônicos de amigos mortos, por exemplo, que


não tenho coragem de excluir. Às vezes, esbarro em um deles e
choro.

Escuto áudios, reviso nossas fotos, até dou gargalhada de


alguma piada, ou mania excêntrica, ou frase espirituosa.

Jamais descarto os contatos. Longe de mim mandar na saudade.


Não há como eliminar quem permanece vivo em mim. Mesmo
que seja uma recomendação do terapeuta para aceitar o luto.
Aceitar o luto não é e nunca será apagar a pessoa.

Conservo os falecidos no meu WhatsApp como uma forma de


investigar as confissões feitas, de lembrar nossos melhores
momentos lado a lado.

Às vezes, os amigos mortos são mais atuais e sábios do que os


amigos vivos, mais contemporâneos de mim.
Uma conversa antiga ainda pode me servir de conselho e de
incentivo. A amizade não tem data de validade. O que foi dito
muito antes pode me orientar agora.

Os corpos de nossos mortos contam com um lugar certo no


cemitério, com as honras de uma lápide e a decoração de um
vaso de flores, mas a alma é livre e está espalhada pelos gestos do
nosso cotidiano.

A alma do outro jamais perece, jamais desaparece, continua


acontecendo dentro de nós.

Como determinar o fim de um espírito? Ele é sopro muito além


de ossos e terra.

Apague aqueles que lhe fizeram mal em vida, bloqueie quem se


mostrou desleal, mas não bloqueie os seus mortos, porque eles
não merecem a sua indiferença.

Fantasmas foram criados para termos medo dos mortos. São


uma invenção da culpa.

Não têm nada a ver com quem amamos, com quem nos
alegrou, com quem mora eternamente em nosso caráter.

Paz não é esquecimento, paz é gratidão.

Você somente encontrará sossego lembrando, conseguindo


lembrar sem que doa tanto, reconhecendo tudo que viveram
juntos.
Ainda não temos ciência de quanto a morte de quem amamos
nos afeta.

Quando os pais estão vivos, você briga para não ser igual a eles.
Quer ser único, ter um caminho próprio. Fica até ofendido
quando alguém aponta para você: “É a cara da mãe!” Ou: “É a
cara do pai!”

Alvo da comparação a toda hora na infância e na juventude,


você busca se diferenciar ao longo do tempo pintando os cabelos,
usando acessórios, vestindo-se com um estilo oposto, adotando
distintas áreas de atuação profissional.

Sofre da sensação esquisita de duplicidade, de que você não


tem singularidade, de que é uma miniatura dos pais.

Tudo muda com a morte deles. Você arca com uma profunda
falta deles e assume o legado das lições.

Daí você faz questão de ser parecido com eles.

Migra da postura passiva da identificação para o comando


soberano da apropriação. Tem vontade de ser parecido, não
apenas é. Cria aproximações e convergências, descobre interesses
mútuos.
Começa a se lembrar dos seus conselhos sem o tom de
reprimenda, a converter manias antes odiadas em destaques dos
seus temperamentos, a reconhecer o valor das preocupações que
tinham com as suas escolhas.

Você passa a se parecer mais com os pais depois que eles


morrem. Muito mais. Nem quando nasceu se mostrava com
tantas semelhanças físicas. A determinação biológica é irrelevante
perto da completa e irrestrita aceitação espiritual.

As conexões afetivas se multiplicam com o luto. Você se esforça


para que a pessoa não desapareça, incorporando cuidados.

Você se torna, assombrosamente, uma alma gêmea. Quando o


corpo de quem amamos vai embora, procuramos conservar parte
da sua história.

Ocorre uma transposição da experiência em comum. A


transcrição de uma vida por outra vida.

Acontece finalmente o download do caráter deles dentro da sua


personalidade. Você acaba de baixar os arquivos — as fotografias,
as músicas, os vídeos, as conversas, os documentos — de uma só
vez. E chora rindo do que foi vivido junto — não imaginava que
houvesse tanto material para assistir.

Vem um orgulho de ter sido filho deles, uma honra, uma


gratidão inigualáveis.

Sua vontade é ir ao cartório mais próximo e registrá-los


novamente como seus pais, de modo simbólico, retribuindo o que
já realizaram a você no seu nascimento.

Diante da ausência, você se propõe a uma homenagem


consciente, evidenciando o quanto aquela presença significou no
seu amadurecimento.

A saudade muda os nossos traços. Acredite em mim. É o


implacável DNA da saudade.
Todo mundo daria tudo para ter alguns minutos da presença de
alguém amado que morreu.

Mas não precisamos disso. Sonhos são visitas. Sonhar com


quem já partiu é uma extensão das lembranças.

A vida não se esgota com a morte. A vida não acaba com a


morte. Você mantém o vínculo de amizade além do tempo.

A pessoa vem dar um conselho, dizer algo importante,


confortar uma dor, amparar uma decisão. Nunca estaremos
sozinhos. Somos vistos de cima. Somos vistos por dentro. Tanto
que o sonho parece muito real. Você pode acordar emocionado.

A sensação é também corporal. Há quem se sinta abraçado. Há


quem sinta a carícia nos cabelos. Há quem sinta a mão sendo
apertada. Há quem sinta um calor inesperado.

É uma continuação da nossa memória.

Todo sonho é um dia a mais com quem morreu. Um dia


exclusivo, que nos foi dado de presente. Um dia de lucro na
lápide.

O sonho é uma conversa em particular. Uma conversa


reservada a que unicamente você tem direito.
O sonho existe para praticarmos a saudade, para nos
desfazermos da culpa, para termos chance de um reencontro, de
uma palavra a mais, para pedirmos perdão ou apenas
desabafarmos quanto sentimos falta da parceria na rotina.

Não é fantasia, não é loucura. Você terá a certeza de que o ente


querido esteve ali novamente com você.

Logo ao acordar, receberá a confirmação de um sinal externo, de


um hábito entre vocês, de alguma experiência em comum, de um
segredo a dois. Talvez sinta um perfume no ar. Talvez perceba um
pássaro na janela. Talvez surja uma chuva de repente batendo nas
calhas.

A realidade física e a espiritual vão convergir.

Não queira depender do amparo de uma testemunha.

Não precisa cutucar um familiar para ver junto. Será em vão. O


que você sentiu apenas você sentiu. É um sentimento, não um
fato possível de ser dividido.

Não perca tempo da linguagem procurando que os outros


acreditem na visita. Desperdiçamos cansativas horas tentando
provar milagres que são só nossos, só para nós. Ninguém
entenderá o que aconteceu, porque ninguém tem seus olhos de
amor, seus olhos de luto.

Você jamais se desliga da alma, porque o corpo da pessoa não


está mais entre nós.
Não tem como fugir da saudade. Não tem como escondê-la.
A gratidão é a memória do amor.

Se você amou, se você foi grato por uma vida na sua vida, você
simplesmente não tem como virar as costas e seguir em frente.

A pessoa sempre estará na sua frente, mesmo morta, mesmo


não estando mais ali fisicamente.

Você pode esvaziar o guarda-roupa, dar roupa por roupa do seu


ente querido, e ainda vão restar os cabides vazios lembrando a
você da ausência.

Você pode tirar tudo que tem na escrivaninha de porta-retratos,


de livros, de diários, de troféus, de diplomas, e ainda vão
sobreviver as marcas do copo de leite na madeira.

Você pode fechar o quarto para nunca mais entrar, mas o cheiro
ainda repousará nas almofadas do sofá.

Será pego desprevenido pelo ausente. Na geladeira, localizará o


que ele consumia, talvez a geleia de morango, talvez o doce de
leite.

Os produtos, ironicamente, ainda estarão dentro da data de


validade. Seu morto partiu antes deles. “Não é justo”, você vai
pensar um tanto assustado.
Não existe justiça na perda. Qualquer detalhe é um rastro da
convivência.

Por mais que capriche na doação, esquecerá algo.

Haverá a xícara de café do falecido, a garrafinha de água


preferida dele, os talheres entortados pela mania de abrir os potes
com pressa (isso quando ele não usava os dentes).

Você abre o armário e se dá conta de que segue, de modo


inconsciente, levando os Sucrilhos dele. Mantém a lista do
mercado como se ele estivesse presente.

Aquilo que é seu é extensão dele. A própria bicicleta parada no


depósito reconstituirá as trilhas que realizavam entre as árvores
do bairro.

É bem possível que esteja fazendo a mesma porção de comida


para o mesmo número de familiares. Não retirou ninguém da
conta. Vêm sobrando mais refeições do que antes.

Perceberá que não adianta isolar a dor num aposento; por mais
que esvazie a casa, aquela presença se encontrará por toda parte.

Pode até tentar morar num outro lugar, mas não diminuirá o
apego, seu coração continuará repleto de recordações.

Porque não amamos pelo passado, amamos pelo futuro. Amar é


futuro. A memória também tem esperança.

O futuro de quem amamos não acaba com a sua morte.


Levaremos conosco o que não aconteceu e o que poderia ter
acontecido até o fim dos nossos dias.

É uma existência paralela que precisamos aceitar.


No luto, jamais está em questão o amor que você sente pelo
outro que partiu.

A saudade é absoluta. Não deixa dúvidas.

As lágrimas serão derramadas copiosamente. Ou os olhos


afundarão nas olheiras. Alguns choram, todos secam. Ninguém
questiona a soberania da dor. Sua magreza súbita indicará o alto
grau de sofrimento.

Viramos pele e ossos. O espelho não vigora mais.

Este é o ponto. Você tem convicção como nunca da natureza


infinita da sua afeição pelo ente querido. A falta dele por algumas
semanas já revela a lacuna irreparável na sua vida. Dias são anos,
anos são dias.

Quando você está no luto – e poucos falam disso –, é o amor-


próprio que escasseia.

Você não tem mais amor por si mesmo. Você não se sente mais
bonito, você não se sente mais atraente, você não se sente mais
importante, você não se sente mais admirado, você não se sente
mais acolhido.

Perdeu o olhar daquela pessoa que o tornava especial. Perdeu a


referência de quem melhorava o seu ânimo, de quem o
incentivava, de quem ria das suas brincadeiras.

Sua rotina é descascada, e não há mais o escudo da pele


prosaica e cotidiana da alegria. É como se seu coração tivesse sido
arrancado da árvore para não ser comido na hora. É agora uma
fruta à deriva. Até a sua semente se converte em pó.

Além de dispensar as futilidades, os supérfluos, tampouco


sente graça no essencial, no básico, nos regozijos mais
elementares da sobrevivência.

Sua vaidade some a ponto de comprometer a sua saúde.

Não tem mais prazer de comer, prazer de conversar, prazer de


dormir, prazer de sair, prazer de se arrumar.

Você se maltrata pela culpa, pois acha que existe um jeito de


impedir a despedida, de alterar o percurso da morte no dia
fatídico.

Descobrirá, em algum momento, que não errou ao proteger


quem amava, não falhou ao estar presente: são os desígnios
imutáveis do destino. Cada um tem sua duração peculiar, pessoal
e insubstituível entre nós.

Só com o tempo você vai recuperar a confiança em si. Só


doendo o tempo inteiro. Só se acostumando com a ausência.
Só você dorme na dor. Só você sabe o que é dormir na dor. Por
algumas horas, você pensa que tudo não passou de um pesadelo.
E logo se recorda do que aconteceu dentro da sua dormência.
Acorda não querendo mais nem dormir, nem despertar.

Porque, quando a convivência com um amor se encerra, a vida


e os sonhos perdem a graça simultaneamente.

É como ficar acordado dentro de um único dia eternamente. Os


outros dias jamais recuperam o valor e a intensidade do passado.
Os dias novos não são melhores do que os velhos.

Comparo a dor do luto a um colchão. Ninguém enxerga o


colchão, a não ser quem ali descansa com as suas vértebras e
emoções.

Os mais próximos perceberão os lençóis coloridos por cima da


cama, os travesseiros envelopados pelas fronhas, o enxoval dos
acontecimentos e os fatos recentes, atentos unicamente à
decoração do quarto, ao que há por cima da mesinha de
cabeceira.

Vão se ater ao que enxergam do lado de fora, não ao que ocorre


por dentro.

Você pode se comunicar ao longo da rotina, contar histórias,


trabalhar, exercer a educação e a gentileza, mas sempre voltará
sozinho ao seu colchão. Sempre acabará sozinho com o seu
sofrimento de perda. Não terá como dividir a angústia, por mais
que o interlocutor seja um marido ou uma esposa, um filho ou
uma filha, um pai ou uma mãe.

Aquele que morreu gera uma memória diferente para cada um


dos familiares e amigos. Não há uma morte igual, consensual
para todos.

Você se lembrará de um jeito, quem está ao seu lado se lembrará


de outro. Até parece que não se trata da mesma pessoa. Depende
do que fizeram juntos.

Sofre-se quando se esteve muito perto, quando se tem saudade


do que poderia ter sido vivido.

O luto é o escuro intraduzível e individual de uma noite sem


estrelas. É você e as costas pesadas no momento de deitar. É você
e as cólicas do coração. É você e o torcicolo de se fixar num único
rosto. É você e o ente querido nos ombros. Você carrega uma falta
para sempre.

Ainda que modifique a superfície dos seus sentimentos,


mantenha a normalidade das suas tarefas, cubra o sofrimento
com forro colorido de um edredom, o colchão não muda. O
fundo não muda. A ausência nua e despojada segue inteira no
seu interior, impartilhável.
Por que você precisa contar a história de quem partiu a todo
momento?

Talvez pense que seja uma tentativa de acreditar na morte. Para


se convencer de que ela existiu e que aconteceu logo com alguém
que você ama.

Talvez pense que seja para se acostumar com a ideia da


finitude.

Talvez pense que seja um recurso para manter a biografia do


falecido acesa na lembrança dos mais próximos, já que os
conhecidos têm mais pressa de retomar a vida.

Talvez pense que seja um modo terapêutico de falar sobre o


ocorrido até cansar.

Mas você jamais cansa. Você jamais se enjoa de recordar. Você


jamais perde a vontade de buscar episódios e características
daquele que morreu. A memória dentro da carência é
inesgotável.

A grande verdade é que o nome do ente querido não sai da sua


boca porque você tem um terrível medo de esquecê-lo. Não vai
confessar isso a ninguém, para não parecer ingrato. Você se sente
mal com os borrões inesperados nas evocações, nas fotografias
mentais.
Só o enlutado entende o que estou dizendo. É um sentimento
profundo que atinge aqueles que sofreram uma perda drástica.

Depois de alguns meses, o rosto do morto não é mais tão nítido


quanto antes. Ele se torna enevoado. Pois você não tem,
biologicamente, como renová-lo com a presença.

O natural do processo é que os vivos mudem com o


envelhecimento. Transformem seu rosto, assumam rugas,
amadureçam o olhar.

Então, por fantasiar repetidamente como o seu afeto estaria


hoje, numa existência paralela, termina por se confundir sobre
como ele realmente era.

Você fica em dúvida quanto ao formato das sobrancelhas, à


largura do nariz, aos corredores dos dentes na boca, ao volume
dos cabelos: algo escapa.

Enfrenta um baque entre o ser amado que você imagina


crescendo e o ser amado que você viu pela última vez no instante
da despedida.

Não é falta de amor, pelo contrário, é excesso de amor que


embaralha a percepção e cria uma instabilidade.

É como estudar para uma prova e lidar com um apagão na hora


de ler as perguntas. Sofre do nervosismo de acompanhar o tempo
passando rapidamente e a ausência completando sucessivos
aniversários de morte.
É um dispositivo da saudade. Você gostaria tanto de rever a
pessoa que apaga parte dos seus traços como um pedido de
socorro, como um pedido desesperado para um reencontro.
Se, no período inicial pós-morte, você tem medo de extraviar o
rosto do falecido e suas características físicas, em compensação,
você acessa uma memória secreta com a consolidação do luto. É
uma chave que apenas se ganha pela dor do amor.

Convivendo com a pessoa, desfrutando da presença, não teria


acesso a esses arquivos emocionais. Jamais o conteúdo se
revelaria durante a proximidade. Porque você estava muito
ocupado existindo e distraído com o que vinha armazenando.

O fluxo de imagens é liberado só depois de muito tempo da


partida, só depois de muito tempo do adeus, quando você
julgava que já não seria possível achar nada novo entre vocês.

A saudade pungente é que deslacra a porta remota, os


compartimentos internos.

Serão recordações infinitas de instantes que nem pensava ter


vivido com o outro: cenas domésticas, detalhes secundários,
frases corriqueiras, banalidades emocionadas. Os prints da alma
virão em cascata, arrastados pela enxurrada do pranto.

À sua disposição, fatos a serem lembrados pela vida inteira.


Constituem uma reserva extra do calor humano.

Garanto que receberá, dali por diante, uma lembrança nova por
dia do seu morto até o último dos seus dias.
Nunca passará a fome da proximidade. Nunca sentirá tédio.
Nunca repetirá momentos.

Atravessará sensações de deslumbramento, encanto e


descoberta — como se fosse um acervo inédito. E é inédito, pois
você não tinha se dado conta de quanto havia de reminiscências
recônditas, valiosas, incomparáveis.

A impressão é que alguém anotava o que era dito para que,


agora, sozinho, você pudesse ler a transcrição integral, fidedigna.

Mesmo se perdeu um filho de um ano, ele renderá flashbacks


para nutrir as próximas décadas.

Você não tem noção do que a sensibilidade é capaz de registrar


e o que é possível rever após atingir o sofrimento mais profundo.

É algo que acontecerá exclusivamente com você, porque o luto é


um segredo entre duas pessoas. Ninguém mais entenderá.
Ninguém mais testemunhará esse milagre, essa chance de
retornar ao passado dentro de nós. O passado estará vivo — e
desconhecido, até para quem estava nele.

Representa um antídoto produzido pelo nosso organismo para


atravessar o deserto do desconsolo, aceitar os limites, reconhecer
o propósito do destino, respeitar a mortalidade.

Serve para combater a culpa e o arrependimento, para não


amaldiçoar tudo que não foi vivido nem lamentar tudo que não
foi possível de experimentar com o ente querido.
Não ficará mais preso no “se”, mas livre no usufruto desse
legado personalizado.

A ausência não será mais penúria, a invisibilidade não será


mais precariedade. Você vai se abastecer quanto quiser da antiga
presença.

Agradecerá o que aprendeu com aquele nascimento, e não mais


se angustiará pelo tempo que não passarão lado a lado.
Você fica aflito com as contas a pagar, com os trabalhos
pendentes, com aborrecimentos no relacionamento, com
divergências entre amigos, até perder alguém e nada disso mais
fazer sentido.

Um dos primeiros atos da morte do ente querido é acabar com


as tristezas inúteis. Com as tristezas bobas. Com as tristezas
levianas. Com as tristezas provisórias.

Pela primeira vez na vida, você separa a tristeza da dor. Tristeza


é do momento, dor é da existência.

É uma peneira rigorosa das mágoas. Um filtro severo que se


estabelece já no enterro.

Percebemos que éramos contaminados por falsas urgências.


Experimentávamos uma miragem de obrigações inadiáveis numa
teia de contatos rasos.

Aquele tudo ou nada não existia, era uma invenção da


ansiedade.

Você é pego desprevenido por uma ausência irreversível, recua


no tempo e vê que se ocupava inteiramente com bobagens.

Os desconfortos de antigamente tornam-se absolutamente


irrelevantes e circunstanciais depois do baque de um falecimento.
Diante de um sofrimento verdadeiro, sem precedentes, como o
que sente agora, entende que se desesperava sem necessidade,
que a sua rotina não se mostrava tão ruim assim. Vem um exame
de consciência de como somos enganados pela pressa.

É como se a morte do nosso afeto arrancasse as nossas roupas


da alma, e finalmente compreendemos a diferença entre o frio de
dentro e o frio de fora, e reconhecemos que os invernos passados
não eram tão rigorosos, porque tínhamos como nos aquecer com
a proximidade.

Você pode, inclusive, pensar: quantas lágrimas foram gastas à


toa?

Pode se decepcionar retroativamente com o desperdício: no


instante em que realmente pena por um motivo justo, por uma
despedida feroz e lancinante, por não ter mais à disposição uma
alma que tanto apreciava, hoje gostaria de chorar e não consegue.

Isso acontece porque o pesar é fundo e demora para vir à tona.

Na tristeza, choramos. Na dor do luto, nosso grito é mudo. Por


mais que desçamos no poço das lembranças, nunca chegamos ao
seu fundo. Não há balde que traga todo o lamento para a
superfície.

A perda já está misturada à nossa essência.


A grande escritora Lya Luft, que nos deixou em dezembro de
2021, criou uma imagem extremamente simbólica da morte.

Ela dizia que estamos na fila. Morrer é uma longa fila. Cada um
tem o seu posto. Não há como sair dele ou ir para trás. Não há
como voltar para o fim da fila.

É inútil tentar espiar o tumulto na porta da eternidade. A


triagem permanece longe da sua consciência e do seu campo de
visão.

O fluxo de pessoas dobra o quarteirão. Você não enxerga quanto


ainda precisará andar. Nem quanto já percorreu.

Pode ter quarenta anos e estar se aproximando do desenlace.


Pode ter oitenta anos e ainda experimentar um longo tempo de
pé.

A cada dia, você avança mais um pouco para a sua despedida.


Um dia a mais é também um dia a menos.

Não importa quem você é, quanto acumulou de dinheiro e de


posses. Não há como vender o seu lugar ou comprar um mais
distante. A morte é inegociável. Não vai funcionar carteiraço,
muito menos desafiar os fiscais e os anjos perguntando se sabem
com quem estão falando.
Sucesso e fama não garantirão um espaço vip. Milhões de
seguidores nas redes sociais não reduzirão o tamanho da sua
solidão.

Somos todos pobres no fim. Sem malas. Sem bagagens. Sem


documentos. Sem bolsa. Sem passaporte.

O que vale é o que carregamos em nosso coração, nada mais.

Não teremos informação de quantas pessoas estão atrás ou mais


adiante.

Não haverá como sair do nosso ritmo, do nosso andamento, do


nosso destino.

Tampouco desfrutaremos do conhecimento de quantos


familiares estão por chegar lá.

Ninguém dará spoiler ou avisos prévios da nossa duração por


aqui.

Não existe fila preferencial. A idade não traz nenhuma


diferença ou benefício. Seu filho pode estar na sua frente, e você
não conseguirá fazer nada. Não há como ceder o seu lugar para
ele. Quando sua esposa ou seu marido estiverem quase saindo da
fila, você nem desconfiará.

As coisas só acontecem quando têm de acontecer. Portanto, não


menospreze nenhum momento. Esteja preparado para partir a
qualquer instante, para não adiar mais nada da sua vida.
Não guarde mágoas, não procure vingança, não amontoe
fantasias irrealizadas, não esconda seus medos nas gavetas, não
cultive ressentimentos, coloque suas dores ao sol, não fuja de
encontros porque deseja estar cem por cento ou inteiramente
disponível, não se afaste dos amigos leais, não desmereça o seu
corpo, não brigue com a família por ser teimoso ou orgulhoso, já
calejado com a sua dificuldade para perdoar.

Às vezes, o andar na fila é mais apressado quando somos


avarentos conosco, quando nos acreditamos onipotentes. Outras
vezes, é mais lento, principalmente quando somos felizes na
simplicidade, humildes no improviso e esquecemos que estamos
morrendo de tanto que estamos vivendo intensamente cada
minuto.
Talvez devamos aprender mais com a saudade dos cachorros,
que é oposta à nossa.

A nossa saudade é medida pela régua cronológica. De acordo


com a espera, sentimos falta de alguém. Ela não é imediata,
porém cumulativa.

Medimos a saudade pela distância. Quanto mais tempo


distantes, mais saudade.

Somos filhos do adeus, devotos da lonjura.

Cachorro apresenta uma natureza absolutamente diferente.


Mais intensa. Mais pura. Possui um afeto transparente, exemplar,
incondicional.

Ele não controla a sua emoção pelo relógio.

Você sai de casa por quinze minutos; na hora de voltar, o cão irá
recebê-lo como se tivesse desaparecido por uma década. Com um
arfar de completo abandono.

Vai pular no seu colo, fazer festa, abanar o rabo, correr de um


lado para o outro, exibir a sua vitalidade, trazer um brinquedo,
lamber o seu rosto.

Tente repetir a cena, fingir nova saída, fechar a porta por uma
breve lacuna e logo ressurgir. O acolhimento será igual. A
recepção jamais perde sua força. É uma saudade funda e oceânica
de alguns instantes. É saudade fora do esquadro do tempo. É
uma saudade de você, independentemente de quanto esteve fora.

Regulamos o nosso apego pelo alcance visual. Trata-se de um


excesso de confiança nas aparências.

Já o cachorro cria os laços pela essência, pelo agora. Tanto que é


ele que o leva para passear, não o contrário. Você pode supor que
ele está querendo fazer xixi, descer desesperadamente para a rua,
socializar com seus colegas de bairro, gastar a sua energia, mas
não: ele notou que você anda desanimado, triste, cabisbaixo, e
toda a iniciativa é dele de levá-lo para a vida lá fora, para você
sair do confinamento, desfrutar de uma trégua de respiro e paz,
arejar o coração.

Na hora em que perdemos quem amamos, finalmente


incorporamos a saudade canina, a saudade instantânea, a
saudade fora do tempo, a saudade de qualquer minuto.
É uma das tarefas mais complexas de desapego ter de
desocupar um imóvel quando pai ou mãe morrem. Pois é uma
limpeza terceirizada e intrusa.

Você não tem o olhar de quem partiu para selecionar o que é


importante. O que está lá, se não foi descartado em vida, é
fundamental para aquele que morava ali.

É um desmoronamento de objetos, uma avalanche de detalhes,


que você não tem ideia de como dar conta ou onde colocar.

Abre os armários e vêm livros anotados, diários, cadernos de


estudos, diplomas, certificados de cursos, passaporte,
correspondências trocadas entre amigos, postais, fotografias.

Nunca passou pela sua cabeça e pelo seu coração que existia
tanta tralha, tanto acúmulo de vivências. Nunca sofreu assim
com os próprios fretes e mudanças. Neles, poderia jogar algo fora
sem dó nem piedade. Aqui, agora, de modo algum. Não se trata
das suas escolhas: cada item geme ao seu toque, como se, dentro
dele, houvesse dobradiças enferrujadas.

Não percebe que já se encontra sentado no chão durante horas,


analisando folha por folha, tentando se encaixar naquela
biografia, tentando esperar o momento do seu nascimento.
Não pode desovar as gavetas e fazer uma fogueira. Está
mexendo nos sonhos e nas esperanças de uma pessoa predileta. É
o seu pai, é a sua mãe, não é qualquer um.

A triagem exige paciência para não descartar injustamente um


fato marcante, um talismã, uma preciosidade individual.

Existe uma curiosidade para ler tudo e descobrir informações


novas do falecido ou falecida. Ao mesmo tempo, arca com a
pressa característica da dor para não se prender ao passado, para
não se afogar nas lembranças e despertar traumas e medos.

É capaz de reservar dez por cento, vinte por cento do material


encontrado para sua casa, aquilo que combina com o seu gosto
ou com o seu temperamento. Diante do restante, você ficará
desorientado para decidir um destino.

Há um violão, e você não toca; há um teclado, e você não usa;


há aparelhos de medir glicose e pressão de que você não tem
necessidade; há uma decoração de vasos
e cristais do século passado, e você não tem noção do valor.

Para ser fiel ao inventário e definir um fim digno àquele


conjunto infinito de peças, conquistado à base do suor e do
trabalho de alguém, deveria largar o emprego e se transformar
num brechó, pesquisando preços e anunciando na internet.

Essa opção não é viável. Não desfruta de tamanha liberdade de


horários.
E também dói vender uma relíquia emocional. Dói se desfazer
do que já foi essencial a uma existência.

Experimenta uma confusão de sentimentos, um emaranhado de


emoções, um novelo perdido nas patas do caos.

Você separa o radinho de pilha que servia para ouvir futebol e


notícias, separa o gravador retrô, separa o três em um fora de
linha e, de repente, começa a achar que os está roubando do seu
ente querido. É uma sensação estranha, hostil, de pegar o que não
é seu, mesmo que seja seu por direito de herança.

Fogão, geladeira, micro-ondas e sofá, o que forma o mobiliário


comum não lhe provoca constrangimento de passar adiante aos
mais necessitados. A doação elimina a culpa.

O embargo decorre do legado emocional do acervo: da


caligrafia, da devoção por trás da aparência, do amor escondido
na usura.

Como se você estivesse matando seus pais pela segunda vez.

Por isso, as múmias no Antigo Egito eram enterradas com os


seus pertences.
O medo da morte nasce com o filho, no mesmo instante do
parto. Anteriormente, você esnobava a própria finitude, nem
sequer contava com uma perspectiva da sua longevidade.

Você sabia se virar sozinho, não tinha nenhuma


responsabilidade direta com alguma vida, poderia se arriscar e
não dar tanto valor à sua existência, cometia excessos,
aventurava-se no desconhecido, sem prestar satisfação da sua
segurança nem recear a imprevisibilidade.

Sua liberdade se avizinhava da inconsequência. Era adepto da


adrenalina do instante, da intensidade do presente, dos acasos
emendados.

O futuro não assustava. Não dava a mínima para a posteridade


da sobrevivência.

Nasce sua criança, e sua conduta se altera drasticamente. Sua


eventual ausência começa a preocupá-lo.

Você se analisa a partir do filho, não mais pela sua


impetuosidade. Guarda-se mais, preserva-se mais, modera as
suas atitudes passionais.

Quer estar o máximo possível ao lado dele, acompanhar o passo


a passo da sua formação.
Morrer cedo seria o equivalente a sacrificar o tempo precioso de
ser mãe ou de ser pai. Não deseja perder nada, nenhum grande
momento do álbum de fotografias do seu rebento.

Você já estabelece como metas buscá-lo na creche, na escola, na


universidade, formar plateia das colações de grau, acompanhar
os namoros, as amizades, as viagens, as descobertas de cada fase.

O umbigo sai do lugar. Tem uma nova régua para durar.


Importa-se com a sua saúde, cobra-se exames periódicos, volta
cedo para casa, não vira noites pela vaidade de ser visto.

Tanto que nota que está envelhecendo não mais pelo rosto no
espelho, a partir das rugas e dos fios grisalhos, e sim pelo filho
crescendo, pelas roupas cada vez maiores dele.

A metamorfose pode soar como uma covardia para si mesmo, já


que não desfruta da disponibilidade de sair a qualquer hora, e
uma retração aos amigos próximos, já que se afastou do convívio.

Mas, pelo contrário, esse medo traz uma coragem que nunca
conheceu ao longo do seu percurso de autoconhecimento.

Pelo filho, você é capaz de fazer qualquer loucura. Mais do que


faria por você mesmo antes da chegada dele. Não sofre de
nenhuma incerteza, vacilação, de nenhum pudor. Inventa de
realizar tudo que adiou no trabalho e nos relacionamentos para
sustentar o filho e corresponder às expectativas de tutor.

Nem se reconhece, tamanha a convicção decidida de acertar.


Nem acredita que um dia já se achou insuficiente.
Se, por fatalidade, se, por infortúnio, ocorre a inversão da
hierarquia biológica, da sucessão natural dos acontecimentos, e o
filho morre, desaparece o seu medo de morrer, o sentido da
preservação, a lealdade ao cuidado.

O medo passa a ser outro mais terrível: o de viver.


Amor incondicional existe? Existe.
Mas não é o que imaginamos. Trata-se de uma situação
excepcional da existência, quando a ordem natural da sucessão e
da despedida é rompida.

Não é o que você sente com o filho vivo, é o que você continua
sentindo pelo filho morto.

Só quem perdeu um filho sabe o que é amor incondicional. Mais


ninguém. Até Deus provou essa terrível entrega, acima de todos
os pesares, com a crucificação de Cristo.

Amor incondicional não é morrer no lugar do filho, é seguir


vivendo com ele morto.

Porque é fácil amar o filho presente, difícil é amar o filho


quando ele não está mais aqui. É amar o filho ausente pelo resto
dos seus dias.

Amor incondicional é seguir vivendo pelo filho, por mais difícil


que seja. Ajeitar aquela dor incessante e incurável para
permanecer ativo no trabalho, para permanecer convivendo, para
permanecer ouvindo o que não interessa (nada mais interessa),
para permanecer sendo gentil com a família e amigos. É levar a
dor para passear, levar a dor para suas viagens, levar a dor para
as férias. A dor é uma bagagem permanente, usada inclusive
dentro de casa. Às vezes, pesa excessivamente, mal se pode
caminhar segurando a sua alça.

Amor incondicional é suportar a saudade sem abraçar a pessoa,


sem beijar a pessoa, sem ouvir a sua voz, sem aconselhá-la ou
orientá-la, sem recolher as suas roupas pelo chão, sem se
surpreender com as mudanças de seu rosto ou com o acréscimo
vertiginoso de altura, sem ter o direito de falar algo importante
que aprendeu com a rotina.

É não permitir que a memória do filho morra quando todos já o


esqueceram, depois de tanto tempo da despedida.

É rir de alguma história vivida junto para, em seguida, chorar


porque ela não vai se repetir.

A gargalhada e a lágrima são agora amigas. Uma consola a


outra. Acontecem no mesmo instante, não estão mais separadas
como antes. As paredes entre elas ruíram, desaparecendo a
vedação entre o bom e o ruim, entre a felicidade e a tristeza.

Amor incondicional é o maior sofrimento que há na alma.


Ocupa grande parte das sinapses. O sangue das artérias corre
para um nome que sequer é pronunciado.

É uma loucura da mais absoluta normalidade. É uma cama


nunca desarrumada. É uma cadeira estacionada para sempre por
baixo da mesa. É uma roupa pendurada no cabide com cheiro de
guardada.
Não há como demonstrá-lo por alguém que se encontra perto,
tangível. Exige um grau de sacrifício épico para não desistir do
cotidiano, apesar de subtraída uma das mais inspiradoras razões
de viver.

É você não deixar de rezar uma noite por aquele fruto


arrancado, que nasceu do seu coração.

É subir na árvore da solidão enquanto a residência dorme, para


lembrar-se do galho de onde o fruto surgiu.

Amor incondicional não é fazer tudo pelo filho vivo, é ainda


fazer tudo pelo filho mesmo ele estando morto.
Quando você perde um filho, não tem como ocupar o quarto
dele novamente. É diferente da reorganização do espaço com o
luto de um pai, de uma mãe, de um marido ou de uma esposa. A
casa encolhe, o corredor é abruptamente encurtado, o trânsito é
desfeito para um dos aposentos. Uma ponte foi derrubada entre
as duas pontas da construção e dos afetos.

O quarto desaparece. Será um dormitório a menos para sempre


na planta residencial.

Você não consegue transformá-lo em escritório, nem repassá-lo


para um irmão, ou usá-lo como depósito. É uma porta fechada. É
um santuário de uma ausência. É uma capela da amargura.

O pai e a mãe enlutados vão demorar a entrar no seu território.


Para não desabarem em choro, para não serem tragados pela
sucção do soluço.

Não existe preparo algum para visitar a falta de esperança, a


extinção de uma biografia.

Não irão conseguir mexer nas gavetas, tirar qualquer coisa do


lugar. Não apanharão um livro, não ajeitarão a bagunça, não
organizarão os sapatos e tênis debaixo da cama. Pode ter uma
camisa no chão, que ela não será levantada.

A curiosidade não supera o sofrimento.


Ainda que sintam a garganta seca, a sede de saber sobre os
últimos pensamentos, as últimas anotações, as últimas
mensagens, as últimas ações de quem partiu, não terão coragem
de alterar a cena da saudade.

Ela seguirá intacta até o fim dos dias. Porque invadir a


privacidade é aceitar a morte.

Nenhum pai, nenhuma mãe admite os pêsames. Fingirão que o


filho está longe ou viajando. Fingirão que ele está ocupado
demais para mandar notícias.

Se acreditarem na despedida, não suportarão a dor. Enganar-se,


nesse caso exclusivo da existência, é sobreviver. É a única mentira
perdoada por Deus.

Deixarão tudo do jeito que estava, esperando um milagre.


Esperando ganhar tempo. Esperando que tudo tenha sido um
grande e injusto equívoco.

Não abrirão nem as janelas, pois seria tirar um pouco do


perfume do filho de dentro do ambiente.

Todos os quartos dos filhos mortos no mundo têm as cortinas


fechadas. São frascos da presença. Não se permite que o vento
entre e leve o cheiro da pele.

Sequer serão trocados os lençóis ou as fronhas dos travesseiros


— permanece o calor do corpo debaixo da memória, debaixo das
cobertas.
Não peça a eles que ressignifiquem a perda. Ela não pode ser
transformada em algo maior. Não há algo maior do que o amor
interrompido. Aceite a crueldade dos fatos: ninguém aprende
nada com a morte do filho.
Morremos com as nossas esperanças.
Com as nossas esperanças intactas, irresolutas, inéditas.

Morremos tentando não morrer. Aguardando não morrer. Os


dias seguintes desconhecem o nosso fim: estarão cheios de
compromissos, de reuniões, de pessoas a apertar a mão, de afetos
a abraçar, de telefonemas e mensagens a retornar.

Quem morre já comprou passagens para as férias, quem morre


já adquiriu ingressos para um show no fim de semana, quem
morre já reservou um restaurante para sair de casal, quem morre
já confirmou a presença numa festa, morre achando que teria
todo o tempo pela frente.

Não haverá estorno. Não haverá devolução das experiências


pelo não comparecimento.

Ficarão roupas novas com etiqueta no armário, livros parados


ao meio na cabeceira da cama, projetos iniciados, amizades a
perder de vista.

Quanto maior a esperança não usada de uma vida, maior a dor


do luto, o que explica a devastação de perder um filho. É uma
dor inominável carregada de esperanças nos ombros. Cada uma
das esperanças irrealizadas dói.
Como pai, como mãe, você cria uma existência paralela, ano a
ano, do que o filho estaria fazendo.

Trata-se de um equívoco falar que os pais enlutados não


esquecem a morte do filho. Eles esquecem. Fazem questão de
esquecer.

Os pais esquecem a morte, o que eles não esquecem é o


nascimento. É impossível esquecer que ele nasceu mais do que
ele morreu.

Você passa a aniversariar uma ausência.

Todo ano: “Ele estaria com 15 anos, ele estaria com 16 anos, ele
estaria com 17 anos...”

Todo ano: “Ele estaria completando o ensino médio, ele estaria


se preparando para o vestibular, ele estaria entrando na
universidade.”

Todo ano, você sopra velas apagadas. Velas do que poderia ter
sido. Velas que não vão voltar a se acender. Velas com o fogo
extinto.

Todo ano, uma nova vela apagada é acrescentada à sua frente.


Para você fantasiar em cima da falta de memória, em cima da
falta de futuro.

Então, como alguém pode ousar censurar seus atos, repreender


seu excesso de imaginação, dizer-lhe que pare de sofrer? Que não
tem mais nenhum aniversariante ali presente? Que está
alucinando?
Que indiferença é essa? Que avareza é essa? Que carência
extrema de empatia é essa?

Esperanças jamais perecem.


Quando morre alguém com mais de 85 anos, não somos
tocados pelo mesmo pesar, pela mesma compaixão. Não nos afeta
tanto. Não nos escandalizamos com o obituário. Não
mergulhamos no pasmo e no espanto de querermos logo
descobrir como aconteceu o desenlace. Internalizamos a causa
natural.

Costumamos justificar que viveu bem, que viveu muito. A


velhice parece ser um atenuante do fim.

Como se o luto de um ente querido na terceira idade doesse


menos, já que ele teve a sorte de viver por um longo tempo.

É um preconceito, ou talvez uma defesa moral contra o impacto


do luto.

Justamente devido à longevidade de quem ama, você é capaz


de sofrer o dobro. Tem mais lembranças das quais se lembrar, tem
mais momentos juntos dos quais sentir falta, tem mais
experiências em comum.

A figura se mostrava com tamanha pontualidade, com tamanha


assiduidade, no seu dia a dia que você nem acreditará no seu
repentino desaparecimento.

Acabará vítima de uma avalanche emocional, soterrado pelo


vazio. Lágrimas virão aos borbotões, pesadas como cristais.
Quanto mais vive uma pessoa, maior o nosso apego, maior a
fortuna que ela nos deixa de gestos e palavras.

O repertório para a saudade será gigantesco, terá um baú de


cenas inesquecíveis, um testamento imenso de lições, um relicário
de detalhes da convivência, um manancial de conselhos,
passando por manias até registros inteiros de conversas.

Por isso, sentimos tanto a partida de um vô ou de uma vó.


Jamais naturalizamos as suas despedidas. São abruptas e
inconsoláveis, mesmo que eles já tenham um histórico de
doenças e de internações. A razão não sustenta o coração, a
previsibilidade não suaviza o choque.

Apesar da consciência da finitude deles, não estaremos


preparados para enfrentar a profundidade das suas lacunas.

Representam nossas raízes, com seus tentáculos de ternura


espalhados por baixo do chão de nossos princípios.

Não temos noção de até onde as raízes se estenderam dentro de


nós. E se atravessaram, de modo subterrâneo, ruas inteiras da
nossa personalidade?

Só podemos enxergar a árvore, a aparência da árvore, não as


raízes. Elas tornam-se visíveis unicamente após o tombamento do
tronco.

A constância dos laços, portanto, aumenta a tristeza do adeus.


Você se acostumou com aquela presença. Até a julgava eterna. É
difícil admitir que ela não estará mais aqui oferecendo o conforto
de um abraço ou o aconchego quente das mãos dadas.

Na morte, somos sempre crianças, não importando a idade ou o


tamanho do caixão. Sempre terá sido cedo.
Você já imaginou o que seria a sua vida sem seus pais?
Ver aqueles números no celular e não poder mandar
mensagem?

Não mais contar com a possibilidade de visitá-los para roubar


um colo e desabafar as mágoas?

Não mais ouvir seus conselhos na mateada?

Não reclamar que eles estão usando o dedo preguiçosamente


como talher para apanhar o arroz na borda do prato?

Localizar algo de que eles gostam no comércio e não ter mais


sentido comprar um presente?

Sentir vontade de um abraço e se perceber impossibilitado de


comunicar a saudade?

Agora pense nos seus pais envelhecidos de 75 anos, de 80 anos.


Eles não têm mais pai nem mãe. Seus avós morreram faz tempo.

Seus pais sofrem com a despedida dos seus protetores. É como


dormir sem a parte de cima da casa nos dias de tempestade, sem
a bênção dos seus velhos para acalmar as tormentas. É uma dor
destelhada.
Não há quem olhe por eles assim como você é olhado com
tamanho zelo por ambos.

A alma deles é um orfanato.

Não importa a idade avançada, seus lutos são de uma criança


aprendendo a se virar sozinha, assumindo precocemente a
responsabilidade pelos seus atos.

Tanto que eu acredito que só amadurecemos quando perdemos


os pais. Quando a data da partida se consolida como um segundo
aniversário.

É um vazio existencial que se descortina e fica para sempre. A


vida jamais será a mesma. Carecerá de uma cola para ligar as
peças da sua memória. Suas sensações virarão fantasmas, o vento
se transformará numa voz, a chaleira apitando será uma
campainha por dentro do peito. A rotina se abrirá ao sobrenatural
com a materialidade de quem divide uma bergamota.

Tenha em mente que seus pais não têm mais os pais deles
quando repetem uma história.

Tenha noção de que seus pais não têm mais os pais deles
quando esquecem o que havia por dizer.

Tenha consciência de que seus pais não têm mais os pais deles
quando telefonam e você está prestes a recusar a ligação.

Tenha no coração que seus pais não têm mais os pais deles
quando se atrapalham com uma tarefa simples.
Tenha no horizonte de ideias que seus pais não têm mais os pais
deles quando começam a chorar, ou quando acordam
desanimados, ou quando reclamam de tudo.

Não os condene, não os censure, não desapareça. Contenha a


sua ânsia de se afastar para ter menos trabalho e preocupações.

Seja mais paciente, mais compreensivo, mais generoso, mais


amigo dos seus pais.

O silêncio deles é mais profundo do que o seu, a distração deles


é mais violenta do que a sua, o suspiro deles é mais longo do que
o seu.

Todo pesar é, no fundo, um apego. Você não poderá ocupar o


lugar de quem partiu — estará postumamente preenchido —,
mas pode se sentar próximo dos seus pais para diminuir um
pouquinho a falta que faz o passado.
Nem sempre o casal que se ama pode ser enterrado junto. E não
é por falta de amor.

Eu fiquei sabendo recentemente que a minha lápide não poderá


estar ao lado da lápide da minha esposa. Não dividiremos o
jazigo. Por mais que tenhamos um pelo outro irrestrita devoção.

Estávamos falando de seguro de vida no almoço, plenos de


saúde, felizes, rindo, quando, de modo inconsequente e
repentino, comentei com Beatriz o meu desejo de ser enterrado
em Porto Alegre.

Tenho o mapa da capital gaúcha tatuado nas minhas costas, a


primeira cartografia do lugar, datada de 1772.

Em relação à cidade, guardo uma diferença exata de dois


séculos.

A minha escrita inteira se desenvolve pela luz, pelo sotaque,


pelo espaço porto-alegrense, onde criei os meus filhos e fui
criado, onde aprendi a caminhar, a falar, a abraçar, a amar, a
admirar o vento forte nas árvores, o sol espelhado no rio Guaíba,
as golas verdes e capuzes cinza dos morros no inverno e a chuva
absolutamente inclinada que dribla as sombrinhas mais firmes e
retas.
Minha despedida será aqui, para reunir os meus amigos e
celebrar a história de um menino feio, com diagnóstico de
“retardo mental” na infância, alfabetizado pela mãe em casa,
fortemente atraído pela beleza das palavras.

Perguntei à minha esposa, que é mineira:

— Você vem comigo?

Ela se ausentou por um tempo em pensamento, cutucou a


comida e me disse:

— Não me leve a mal, mas não poderei ir com você.

Foi o primeiro não que recebi dela para um destino em comum,


depois de tantos sins: o sim do namoro, o sim do casamento, o
sim de dividir o teto, o sim da família.

Juro que me assustei um pouco com o desvio da minha


idealização, com a encruzilhada surgindo num caminho que
julgava único e natural, com a dissidência no meio das
convicções de repouso derradeiro.

Porque eu me vejo envelhecendo com ela, com o buquê grisalho


dos seus cabelos em meu colo, ambos se ajudando a se levantar
da cama, apoiando-se nas lembranças e sobrepondo as mãos e as
alianças nos corrimões das escadas.

Assim também me enxergava na mesma campa ou parede no


fim dos nossos tempos, repartindo as fotos ovaladas, o
sobrenome, a saudade, as heras e os vasos de flores, trocados
quinzenalmente pelos nossos parentes.
Notando a discrepância entre nós quanto ao testamento do
corpo, questionei onde ela gostaria de ser enterrada.

Ela me respondeu com doçura e me deu um motivo de apego


para amá-la ainda mais:

— Em Belo Horizonte. Não posso deixar a minha mãe sozinha


lá.

Fazia sentido. Ela era agora mãe da memória da sua mãe,


cuidadora do seu legado.

Clara havia falecido anos atrás e não contaria com ninguém por
perto para continuar a Ave-Maria do rosário.

Beatriz rompia com qualquer propósito egoísta. Mesmo depois


da morte materna, ela ainda se preocupava com a solidão da
mãezinha, com o isolamento da mãezinha, em oferecer
companhia.

Eu já me orgulhava da esposa que eu tinha. Passei a


me orgulhar da filha que ela demonstra ser por toda a eternidade.
Jamais abracei a minha sogra. Jamais beijei a minha sogra.
Jamais apertei a sua mão ou pude vê-la frente a frente.

Dizem que Clara era a alegria em pessoa. Fazia amizades no


clube, na igreja e até no ponto de ônibus. Todos a conheciam pela
erudição e simpatia. Foi professora e catequista.

Ela faleceu de fulminante leucemia duas semanas depois do


meu início de namoro com Beatriz.

Eu somente tive a alegria de falar com ela por telefone. Foi meio
de susto. Estávamos no saguão de um teatro em São Paulo.
Beatriz falava com sua mãe ao celular enquanto eu esperava que
terminasse a ligação para procurar nossos assentos, e ela, do
nada, me passou o aparelho:

— Minha mãe quer falar com você!

Eu estranhei, já que o gesto era meio precoce para um


relacionamento que recém havia começado. Parecia uma
oficialização do namoro antes da hora, antes do pedido formal
entre nós.

Fiquei sabendo que a sogra lia meus textos e que meu livro
pousava como predileto na sua cabeceira. Talvez vinha
estudando o temperamento do futuro genro.
A ligação foi profética, nem um pouco comum e banal. Até hoje,
lembro-me exatamente do que ouvi. Ela me encorajou, ela me
incentivou, ela me amparou. Não se restringiu a uma troca
amistosa de palavras entre dois desconhecidos. Existia uma
mensagem poderosa sendo ditada para mim:

— Você é um sonhador, Fabrício. Você enxerga longe. Leve


Beatriz para seus sonhos: ela está precisando de uma nova
realidade.

Pego de surpresa com tamanha intimidade, eu apenas consenti,


apenas aceitei a missão: “Pode deixar!”

Aquilo me mexeu por dentro. Como alguém que não me


conhecia me conhecia tão bem?

Nunca iria imaginar que seria o nosso primeiro e último


diálogo. Mas, possivelmente, eu senti algo de diferente no ar. Um
aviso do destino.

Fiquei transtornado naquela noite. Beatriz questionou meu


olhar perdido. Era um olhar voando.

Na manhã seguinte, eu acordei e logo a chamei para conversar:

— Não sei explicar, mas a sua mãe precisa de você. Volte para
Belo Horizonte hoje.

Beatriz não entendeu a urgência. Ela ficaria em São Paulo por


mais uma semana, de férias. Imaginou que Clara tivesse dito algo
para mim em particular.
— De onde, isso?

Esclareci que se tratava de um pressentimento, não existia


nenhuma confidência.

O mais incrível é que Beatriz acatou o meu conselho. Confiou


em mim. Trocou as passagens e chegou à capital mineira na
mesma noite. Voltei para Porto Alegre, onde morava.

Ao desembarcar, Beatriz descobriu que a mãe não se encontrava


em casa. Havia sido internada no hospital por tontura e fraqueza
naquele dia.

Ela teve a chance de se despedir da mãe, de permanecer ao lado


dela nos seus últimos momentos. Pôde cuidar dela, viver mais
um pouco o seu brilho para se abastecer de saudade e não sofrer
da culpa da distância.

Eu compareci ao enterro, já como namorado de Beatriz.

Coloquei a minha mão no caixão e reafirmei a promessa para


Clara:

— Pode deixar comigo. Vá em paz, minha sogra sonhadora!


Você sempre fica pensando o que poderia ter dito antes de se
despedir de um afeto. Fantasiando frases, declarações de amor.

Você gostaria de ter falado palavras bonitas, tocantes, antes da


partida, que fossem lembranças invencíveis da sua ternura.

Mas a morte rouba as nossas palavras. A morte é o nosso


completo silêncio. Um jejum da linguagem.

Nas vezes em que estive com alguém à beira da morte, eu não


consegui falar nada. Nada. As palavras não saíam. Eu me
afogava no abraço, ou as lágrimas molhavam o meu texto
ensaiado.

Nos momentos de maior emoção, sempre ficaremos mudos.

E não é uma incompetência sentimental, acontece com todos.

Ou porque você não quer que o enfermo se esforce com os


murmúrios, que sofra ainda mais respondendo, ou porque há
tanto o que dizer no fim de uma existência que você não sabe por
onde começar.

O que calamos na despedida, no leito do hospital, vamos


revelar no enterro para os outros.

Morrer é ser admirado pelas costas. Uma covardia frente a


frente no estertor e uma admiração corajosa pelas costas, na
ausência.

Tanto que eu vejo o enterro como a última sessão de cinema de


uma vida.

Cada um que entra no velório é, ao mesmo tempo, personagem


e espectador de uma biografia que não irá se repetir.

Ao redor do caixão, é projetado um filme dentro de cada olhar


de saudade ali presente.

Sentamo-nos nas cadeiras, escorados na parede, e lembramos as


principais cenas de uma trajetória singular.

Assim como não se nasce impunemente, tampouco se morre


sem homenagem, nas lacunas do esquecimento.

Apesar da dor, existe uma urgência de não desperdiçar a chance


de expor o que sabemos a respeito do morto. Ansiamos
acrescentar um capítulo inédito ao roteiro.

Não importa quem conheceu mais ou menos o falecido, quem


era mais próximo ou mais distante. O fim torna qualquer um
íntimo. O pesar não cobra ingresso.

Trata-se de uma expiação fundamental para montar o copião de


uma história.

Ouviremos os relatos dos confidentes e familiares e nos


daremos conta de que não conhecíamos tudo a respeito de quem
se foi. Há fertilidade debaixo da terra.
Entre as conversas e os pêsames, desvelaremos uma nova faceta
do nosso afeto. Vamos até rir de modo impróprio de um “causo”
ou de uma piada inéditos. Por isso, gargalhadas interrompem
choros em solenidades fúnebres.

Talvez descubramos que aquele homem sério no trabalho se


atirava ao chão com o seu cachorro em casa, que aquela mulher
tímida no casamento costumava soltar a voz em karaokês na
universidade.

Não deixe de se despedir de um amigo. Os velórios são salas de


cinema. Será a primeira vez que assistirá a uma vida por inteiro.
Descobri o segredo do abraço: esvaziar-se antes dele. Não
pensar em nada. Não se fixar em um sentimento. Não se lembrar
de coisa alguma. Não ter expectativas, sequer tentar prever a
reação de quem se aproxima. Seguir o momento presente, o
improviso, o destino. Ser somente dois braços, nenhuma ideia,
nenhuma preconcepção, nenhuma certeza.

Assim, qualquer um pode chorar no meu abraço, ou pode rir,


ou pode se emocionar. Porque a pessoa não estará me abraçando,
estará se abraçando.

Abraçando as suas dores, o seu luto, as suas mágoas, as suas


recordações de aconchego, a sua saudade de casa e de alguém.

Uma vez que não há como se abraçar sozinho, eu me ausento


para que o outro se abrace através de mim. Eu desapareço para
que o outro finalmente se reconheça por completo.

Pela primeira vez na vida, ofereço a chance de ele se abraçar. Eu


assisto ao gesto grandioso como um instrumento do afeto.

Meu corpo é como um barco para remar, uma árvore para subir,
uma pedra para sentar-se. O que vem não depende de minha
ação: eu apenas acolho.

Só não posso ter pressa, só não posso impor o meu ritmo. O


abraço será desajeitado se eu não me entregar. O abraço será
nervoso se pensar em mim. O abraço será pela metade se estiver
com a cabeça em diferente lugar.

O abraço é sempre alguém chegando, jamais alguém partindo.

Que ofereça o que for preciso nesse colo de pé: a duração muda
de caso a caso. Alguns exigem intervalos longos, deitam a cabeça
no meu peito para ouvir o seu coração batendo de novo a partir
do meu. Há quem se sinta confortado com o rápido apertão.

O abraço facilita a aceitação. Nada é tão grave mais. Nada é tão


irreversível mais. As palavras param de doer. Os pensamentos se
desembaraçam dos nós górdios das crises. As conversas tensas na
memória têm a pausa de um cafezinho.

Nele, você encontra uma janela para respirar fora do próprio


julgamento, da própria culpa, da própria mortificação. Entra
numa dimensão paralela do tempo, em que é capaz de resolver
um impasse e relevar um desentendimento.

A existência é vista de cima. Torna-se menos pesada, menos


cansativa.

O abraçado reencontra a si mesmo. Ele é capaz de derramar


lágrimas nos meus ombros estranhos, como se fossem o colo
aquecido da mãe. Todos os seus mortos estarão vivos em minha
pele viva. Ele chamará para perto um ente querido distante. A
intimidade vai e volta. A intimidade é eletricidade.

O abraço é a tomada em que você religa a sua sensibilidade.


Com uma carga extra de energia, você retoma o poder de se
libertar do passado.

Todo mundo fica bonito no amparo dos braços cruzados nas


costas. Você se transforma num propósito. Não há propósito feio.

O abraço cura, salva, cicatriza. Pelo menos, até o próximo


abraço.
Com a maturidade, não sei você, mas eu me acostumei com o
valor da bênção. Nem é devido a uma religião, mas por professar
a saudade.

A bênção, para mim, é mais importante do que “eu te amo”.

A bênção é um amor que vai e volta.

A bênção é proteção atemporal, vigília, demonstração de que a


pessoa está sempre com você.

Ela viaja com você em pensamento. Segue você com a


lembrança.

No “eu te amo”, você está falando de si. Na bênção, está


falando do outro, está preocupado com o outro.

Depois que a minha mãe e o meu pai envelheceram, houve uma


mudança na nomenclatura da declaração amorosa dentro da
família. O “eu te amo” estava implícito, não era mais dito.

Em nossos encontros, nunca mais me despedi sem receber a


oração deles no alto da cabeça.

A bênção é um “adeus” preventivo dentro do “tchau”, pois


jamais teremos certeza se estaremos frente a frente novamente.
A bênção é não mais entregar a vida à infalibilidade. O tempo é
hoje, nada mais.

Não há como se valer de véspera para aprontar as malas, ou


para escolher o conteúdo das bagagens e das palavras.

O que acontece naqueles breves e cerimoniosos minutos não


corresponde a uma superstição ou simpatia. Não significa que
acontecerá algo de ruim com a ausência do seu gesto. É tão
somente gratidão de estar por perto, de estar presente.

É um gesto de humildade se agachar, para o corpo diminuir e a


alma crescer.

Repare que o sinal da cruz na testa é recebido de pálpebras


fechadas. Existe, no contato, um beijo úmido dos dedos. Dar a
benção é como beijar com as mãos.

O cumprimento, feito tradicionalmente ao pé da porta, atinge a


estrada se descortinando ao fundo.

Se o “eu te amo” é o equivalente a um “te cuida”, a bênção dá


um passo além, é um inigualável “eu cuido de ti”. Vem de
alguém que cuidará de você mesmo quando não estiver mais
aqui.
O luto é como o amanhecer.
As pessoas dormem, menos você na sua dor. Não testemunham
o céu lilás, avermelhado, vindo à tona antes do sol.

Quem perdeu a mãe fica sempre no breu esperando a luz.


Afinal, ela nos deu à luz.

Qualquer mãe pergunta para o seu filho: “Onde você está?”

É a pergunta do território. É a pergunta da localização. É a


pergunta da presença. É a pergunta do vínculo.

Por que a mãe pergunta onde você está?

Já pensou nisso? É que você veio do ventre dela, do corpo dela.


Ela é o seu lugar. Seu primeiro lugar no mundo. Sua primeira
amizade com o mundo. É natural que vigie os seus passos,
proteja as suas andanças, preocupe-se com o seu destino. Ela nem
diz “alô”, “tudo bem?”, só quer saber logo onde você está.

Quando a mãe parte, você devolve a pergunta: “Mãe, onde você


está?”

Você tem de parir uma ausência. É uma gestação de silêncio e


de estranha esperança. Porque você precisa acreditar em tudo
que fizeram juntos, em tudo que repartiram durante a vida.
Precisa acreditar que tudo que você viveu com ela foi suficiente.
Precisa acreditar que não precisa de mais nada.

Eu sei que o amor é insaciável, e temos apego. E o apego


transforma momentos lindos em tristeza.

Talvez tenhamos que supor que a mãe nos leva para onde ela
estiver. E ela não para de se preocupar com o nosso caminho.
Talvez esteja usando os pássaros para nos cumprimentar, usando
os amigos para nos dar conselhos. Não duvide dos estratagemas
maternos depois da morte.

A mãe está espalhada em todas as cores da madrugada.

Por mais cedo que você desperte, ela sempre acordará primeiro,
para esperá-lo.
Não há maior perigo para a felicidade do que acreditar que
temos todo o tempo pela frente. Porque só adiamos as nossas
aspirações. Adiar é não fazer. Adiar é nunca fazer. Adiar é
abandonar. Adiar é jurar que, em algum momento, poderemos
continuar o que paramos. Como se existisse uma repescagem
imaginária para nossas eventuais falhas e lapsos.

Quem nunca se matriculou em um curso on-line, com acesso ao


conteúdo por um ano, e protelou as aulas até expirar o prazo?

Quem nunca acumulou jornais, livros e apostilas para ler no fim


de semana e jamais teve uma folga redentora?

Quem nunca empurrou uma viagem de férias para depois, e o


depois não veio porque o trabalho sempre exigia novos desafios?

Quem nunca prometeu voltar a correr, ou retomar um esporte, e


os horários encolheram?

Quem nunca teve um dom, um prazer, uma paixão secreta por


uma atividade (música, cozinha, pintura, artesanato, literatura), e
o ofício não foi desenvolvido?

Se você ainda se vê infinito, imortal, onipotente, se não aceitou


que a mortalidade tem data de validade, saiba que já possui a sua
foto de morto. Já existe a sua foto de morto entre os seus
arquivos. A foto que vai estar no seu anúncio fúnebre. A foto que
circulará nas redes sociais como homenagem póstuma dos
amigos e familiares. Já existe essa imagem no seu celular, no seu
computador, nas suas postagens. A foto que será reproduzida no
convite do seu velório e do seu enterro, que talvez saia no jornal.
A foto que não escolheu, que será definida por um ente querido,
capaz de traduzir o seu temperamento, a sua personalidade, o
seu modo de encarar os acontecimentos.

É possível que esteja rindo nela. É possível que esteja com trajes
de banho, à vontade, na praia. É possível que esteja abraçado a
alguém que será cortado da fotografia. Não costuma ser
escolhida uma pose séria, de um ângulo respeitável.

A informalidade indica a injustiça prematura do adeus. Sua


alegria estampada naquele instante contrasta com o tom
cerimonioso dos pêsames, do corte abrupto da sua permanência
entre nós.

Alguma pessoa próxima se decidirá por uma imagem em que


você se encontrar à toa, contente, no meio de uma festa, de uma
celebração, desprovido de qualquer pressentimento,
desprevenido da doença ou da tragédia, representando, com isso,
a imprevisibilidade da despedida, demonstrando que não estava
pronto para partir.

Você já tem essa temida fotografia. Pode ser amanhã, depois de


amanhã, na velhice, mas vai acontecer. A foto será usada.

Analogamente, todo ano, sem perceber, você passa pela data da


sua morte. Pela data que será o seu segundo aniversário,
aniversário da saudade para aqueles que ficarão a prantear a sua
ausência. Todo ano, você atravessa um dos dias mais importantes
da sua trajetória, sem consciência alguma de que será ele o último
dia da sua vida.

Todo ano, pisa na folhinha do calendário, naquele marco


temporal que completará as inscrições da sua lápide. Todo ano,
você é um desavisado do próprio fim.
A memória costuma pregar peças. Você gosta do que odiava,
você sente falta do que anteriormente o irritava.

A dificuldade de convivência potencializa a falta. Quanto maior


o esforço para admitir uma mania ou uma imperfeição de
alguém, maior a saudade. Porque você converteu as divergências
em conexão da intimidade. Tem a saudade como um mérito: só
você, mais ninguém, é capaz de suportar aquela chatice ou
aquele incômodo, ou mesmo compreender certas decisões da
pessoa.

Um exemplo disso são casais há décadas juntos, que vivem se


vangloriando de aguentar o ronco, as compulsões, as
reclamações, os atrasos, a ansiedade, os esquecimentos do seu
parceiro. Os defeitos tolerados formam, no fim, um patrimônio
da cumplicidade.

“Só eu para aguentar você” é usucapião do “não vivo sem


você”.

Seguindo essa lógica, a saudade é provação. Você não tem


nostalgia das virtudes, mas das dificuldades que foram
transpostas do relacionamento.

Eu lembro que me perturbava um hábito dos meus pais.


Quando riscavam fósforos para acender o fogão (não era
automático na minha infância), eles, em vez de pôr o palito usado
no lixo, devolviam-no para a caixinha.

Sempre que eu precisava da chama, pescava um item usado.


Experimentava uma loteria da paciência.

Jamais pegava um fósforo com a ponta vermelha intacta.


Distraído, eu me enganava e friccionava inutilmente o palito com
a ponta queimada. Enervavam-me os minutos perdidos em cada
operação, obrigando-me a visualizar o que tinha dentro da
caixinha para não errar de novo.

Por herança, eu faço questão de botar todos os palitos gastos de


volta na caixinha. Eu me tornei igual aos meus pais.

Porque toda saudade é esforço do amor, é ser um pouco


parecido nas diferenças. É a lembrança do que aprendeu, com
muito custo, a respeitar.

O que necessitamos ter em mente é esse desconto da


convivência, que esquecemos durante o luto.

Somos muito exigentes conosco quando alguém que amamos


morre. Somos implacáveis. Encarecemos nossas cobranças.
Acreditamos que faltamos com atenção, com carinho, que
poderíamos ter estado mais presentes. Que deveríamos ter
aproveitado mais.

Mas você não foi tão ruim assim. Você fez o possível. Você foi
bom, não perfeito. Você amou de acordo com o seu gênio, seu
humor e as suas limitações, na mais natural autenticidade.
Se a pessoa estivesse viva, já o teria desculpado.
Nossos mortos são lembretes de que não temos controle sobre o
futuro.

De que não há como saber quando será a última vez.

De que precisamos dar tudo que queremos já nos rascunhos.

De que vitrais são lindos e feitos de janelas quebradas.

De que não vale guardar roupas nem sentimentos para ocasiões


especiais.

De que aquilo que não usamos não é nosso.

De que as nossas bagagens são as nossas gargalhadas.

De que a coragem começa em não mais chorar escondidos.

De que a sinceridade depende do esforço de expressar as nossas


emoções.

De que as fotos não substituem as presenças.

De que escondemos as recordações mais bonitas no olfato. O


perfume acorda a memória.

De que é melhor passar poucos minutos juntos do que nada, é


melhor uma visita rapidinha do que planejar um fim de semana
perfeito que não acontecerá.
De que a felicidade mora dentro da simplicidade.

De que arrumar a cama ou amarrar os cadarços são cuidados


com a nossa saúde emocional.

De que generosidade é partilhar quem você é, não o que você


tem.

De que é preferível fazer e errar a se arrepender do que não foi


vivido. Errar é ter chance de evoluir. Não fazer é nunca se
aperfeiçoar.

De que o silêncio, se houver afeto, jamais incomodará.

De que a alma se comunica pela pele. Oferecer um colo, um


cafuné, um abraço aquece qualquer dor.

De que as confissões dependem da nossa capacidade de nos


mostrarmos presentes. Ninguém vai pedir ajuda a distância.

De que a saudade é o nosso GPS para não nos afastarmos do


que nos conforta.

De que gavetas não combinam com sonhos, muito menos


esconderijos comportam nossas verdades.

De que perdoar é mais fácil do que imaginamos. Pior é se isolar


no orgulho. A teimosia não tem amigos.

De que nenhum passeio será mais inesquecível do que sentar-se


no sofá ou à mesa ao lado de quem amamos.
Os mortos nos lembram que qualquer dia desses estaremos com
eles, seremos um deles. Portanto, não desperdice a sua vida com
medo de viver.
Temos horror à sensibilidade.
Temos horror à possibilidade de o enlutado se emocionar na
nossa frente e desandar a chorar.

Temos horror a não saber o que comentar perante a abstinência


do amor.

Temos horror à nossa falta de jeito e de propriedade sobre o


assunto.

Evitamos contatos mais densos, profundos, catárticos.


Representaria pararmos tudo que estamos pensando ou sentindo
para consolar.

Gostaríamos que o enlutado derramasse suas lágrimas


higienicamente no banheiro, debaixo do disfarce das águas, sem
ninguém ver, sem fazer barulho, sem incomodar a casa com a sua
incontinência da alma.

Preferimos as conversas amenas, circunstanciais, inofensivas.


Por isso, somos turistas da dor, hóspedes apressados das mágoas,
visitantes rápidos do sofrimento alheio. Passamos e não ficamos,
não queremos nos demorar.

Não mencionamos o nome do falecido para não ter de lidar com


o desmoronamento, para não ter de catar, em seguida, pedra por
pedra da perda.

Por isso, parecemos lunáticos, com uma conversa desorientada


e escapista, desvinculada do realismo de uma tragédia. Por isso,
realizamos os cumprimentos mais inoportunos, fingindo que
nada de grave aconteceu. Por isso, inquirimos do enlutado se
“está tudo bem” ou “como ele vai”, desprezando a sinceridade
interior.

Enquanto a morte prosseguir sendo um tabu, continuaremos


agindo preconceituosamente com quem atravessa um luto.
Continuaremos segregando a sua voz, não garantindo a plena
liberdade do pranto.

Deveríamos nos preocupar em frear aqueles que são


indiferentes e insensíveis, jamais dissuadir a saudade mais
honesta e humana.

Dessa forma passiva, incentivamos o enlutado a não se abrir, a


simular as suas emoções, a sofrer silenciosamente para adoecer
de vez.

Só precisaríamos escutar o seu desabafo, ouvir com atenção e


credulidade, não desprezando o relato, não subestimando a
versão, não prevendo o que será dito.

Nem é essencial falar qualquer coisa inteligente, a inteligência


não faz diferença alguma no deserto de explicações sobre a
morte.
O que podemos ceder é a audição cúmplice, a amizade de
testemunha, até porque a dor do outro é impenetrável.

Para socorrer, não dependemos de quase nada: é pouco esforço,


é estar por perto.

Não haverá uma solução para o pesar, não haverá um conselho


arrebatador.

Que os ouvidos sejam o nosso único idioma.


Eu sempre corto o meu cabelo e ponho uma nova palavra na
cabeça. Você já deve ter visto. É resultado da perícia de Keliston
Breno, que desenhava letras com a navalha.

Ele começou a me atender no Seu Elias, famosa barbearia de


Belo Horizonte. Depois, abriu o próprio salão em Betim, com a
esposa cabeleireira, Sabrina.

Ele foi à minha casa toda semana durante cinco anos. Eu


deixava a porta da cozinha encostada. Ele entrava pedindo
licença, colocava o seu capacete em cima da máquina de lavar,
abria a sua maleta preta de instrumentos e completava sua tarefa
com capricho. No meio das roupas estendidas no varal da
lavanderia, ríamos da nossa amizade de tesoura e ternura,
gargalhávamos fugindo dos pingos das peças lavadas.

Pastor evangélico, sorridente, pai dedicado de quatro filhos,


marido devoto, ele pegava a estrada de Betim a BH, por 37
quilômetros, para permanecer trinta minutos ao meu lado.

Ao meio-dia de 5 de julho, ele morreu num acidente de moto.


Fiquei chocado. Fiquei paralisado. Fiquei chorando desde que me
avisaram da tragédia.

Meu primeiro ímpeto foi ter uma raiva descomunal do destino


pela injustiça da perda, uma vontade de gritar surdamente de
impotência, de desamparo, de descrença. Eu me vi socando
portas e paredes pela frente, numa violência desordenada da
saudade. A saudade veste o susto e o ódio no velório.

Por que Deus leva primeiro os melhores? Como uma pessoa


boa assim desaparece de repente?

Ele tinha apenas 35 anos. Nunca o vi reclamando de nada, ele


vivia agradecendo pela sua vida. Era grato por trabalhar com
aquilo de que gostava, grato por ter um teto para proteger a sua
família.

Era tanta gratidão num único ser que nunca julguei que ele
pudesse morrer.

Em seguida, culpo infantilmente Keliston por não ter se


cuidado. Como se a finitude fosse o seu erro, pois não se
preservou do perigo, não adotou a imensa cautela na estrada,
expôs-se ao risco da pressa andando de moto.

Logo peço desculpas a ele em pensamento. Vejo quanto tudo é


miragem do meu sofrimento. É a ideia distorcida que carregamos
de que a morte é algo que não vai nos acontecer. A morte está
viva dentro de nós desde o nosso nascimento. Um dia, ela emerge
e encerra a nossa missão, o nosso ciclo, por aqui.

Nossa última conversa foi no sábado, 1º de julho, e lhe contei


que estava escrevendo este livro sobre o luto.

Avisei a ele que, na contracapa, colocaria a frase: “Se a vida é


um sopro, assobie.”
Ele parou de cortar o cabelo por um momento e assobiou um
louvor da sua igreja. Preso com o avental até o colo, eu me
esforcei para me virar e olhar nos seus olhos.

Ele estava sério, compenetrado, fora dali.

Eu senti que era uma despedida, não sei como. Um arrepio de


janelas abertas na alma.

Tentei me mostrar íntimo daquela estranheza, daquela dor, para


não assustá-lo ou mesmo me assustar.

Bati palmas e comentei: “Temos que aprender a morrer.”

Ele completou: “Mas antes temos que aprender a viver.”

Keliston soube.

Eu tenho a impressão de que ele ainda está de pé atrás de mim.

Não é impressão, eu tenho certeza.

Amigo que eu amo, meu anjo de cavanhaque: está de pé nas


minhas costas. Para sempre.
Sobre o autor

Carpinejar nasceu em 1972, na cidade de Caxias do Sul (RS).


Publicou cinquenta e um livros entre poesia, crônicas, infanto-
juvenis e reportagem. É detentor de mais de vinte prêmios
literários. Dentre eles, o Jabuti, por duas vezes, o da Associação
Paulista dos Críticos de Arte e o Olavo Bilac, da Academia
Brasileira de Letras. É colunista diário do jornal Zero Hora,
semanal do jornal O Tempo e comentarista da Rádio Gaúcha.

Instagram: @carpinejar
Facebook: /carpinejar
Twitter: @carpinejar
Threads: @carpinejar
YouTube: Vem Carpinejar
E-mail: carpinejar@terra.com.br
Tiktok: @fabriciocarpinejar
Agradecimentos

Meu agradecimento ao Grupo Cortel. Iniciamos um trabalho


lindo de rede de apoio ao luto, com o Clube de Cartas Corações
Solidários. Não temos como impedir a dor, mas podemos
impedir que o enlutado sofra sozinho.

Inscreva-se gratuitamente aqui:


www.cortel.com.br
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
Manual do luto

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arpinejar

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