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A estória conta como no ápice de sua carreira licenciosa, Don Juan seduz uma mulher de nobre família e
mata seu pai. Mais tarde, vendo uma estátua de pedra no túmulo do comendador, pai de sua ex-amante,
ex -amante,
convida-a a jantar com ele, de forma irônica. A estátua de pedra aparece de forma aterradora ao jantar
do conquistador, que não se arrepende de seus atos anteriores e é levado à danação
d anação eterna em meio a
chamas e grande estrondo.
Através da estória de Tirso de Molina, Don Juan tornou-se um protótipo universal, como Don Quixote,
Hamlet e Fausto. Outras versões do original de Tirso de Molina apresentam variações;
variações; assim El
Convidado de Piedra de Antonio de Zamora, popular no sec. XVIII, reduz a catástrofe final do drama de
Molina.
Algumas versões não-espanholas também se tornaram bastantes conhecidas, como o drama de Molière
Le Festin de Pierre, o poema satírico de Byron Don Juan e o drama de Bernard Shaw Man and Superman.
Qualquer forma de arte, assim como os mitos, são veículos para a expressão do inconsciente coletivo, e
seus conteúdos, os arquétipos, como so definiu Jung. As múltiplas variações literárias de Don Juan, a
partir da versão mais antiga de Molina, apontam para uma necessidade, quase uma urgência, de
expressão dessa curiosa figura, ao mesmo tempo sedutora e perigosa.
Consideramos esta necessidade de expressão na figura mitológica como uma elaboração a nível cultural
de uma problemática essencialmente humana, arquetípica. Seguindo Lévi-Strauss, podemos considerar o
mito como a totalidade de todas as suas variantes, já que todas as variantes do mito são importantes. O
filme de Jeremy Leven pode ser encarado como mais uma variação do mito original de Don Juan,
reatualizado e adaptado a circunstâncias atuais.
É interessante lembrar que em certos trechos do filme diversas versões do mito de Don Juan são
lembradas, como que para assinalar sua importância cultural. Assim, quando o psiquiatra visita a casa
de seu paciente, encontra duas versões da saga de Don Juan, El Burlador de Sevilla, de Molina e Don
Juan, de Byron. Em casa, o terapeuta, que normalmente detesta ópera, escuta o Don Giovanni, de
Mozart.
No tocante ao mito original de Don Juan, sua estória nos fala de sua virilidade e compulsão sexual não
controlada. O assassinato do pai de uma de suas amantes, trazem a idéia de que há uma
incompatibilidade entre o complexo juvenil e o arquétipo do pai, princípio da lei e da ordem. Jung
denominou essa figura arquetípica presente em diversos mitos e na literatura de puer aeternus,- eterna
criança- seguindo Ovídio, que em sua obra Metamorfoses, assim chamou o menino Cupido, filho de
Vênus, portador da aljava de flechas do amor, um puer aeternus avant la lettre. (Aliás, no filme, a ilha
de Eros -ou Cupido- ocupa lugar de destaque).
O homem identificado com o arquétipo do puer aeternus tem uma incapacidade de integrar o princípio
do pai, tão necessári
necessárioo para o desenvolvim
desenvolvimento
ento da consciência. Daí o arquétipo do pai aparecer
petrificado como estátua de pedra. A petrificação do pai indica a impossibilidade da vitalização do ego
por seus conteúdos estruturantes, pertinentes à ética, moral e limites do possível. A condenação final
de Don Juan na estória de Molina aponta para o desfecho trágico, uma psicopatia ou neurose grave sem
resolução.
O filme de Jeremy Leven, entretanto trás uma inversão importante em relação ao mito original; agora é
enfatizada a renovação que o paciente que se julga Don Juan produz em um psiquiatra prestes a se
aposentar, distante de sua mulher e de uma vida amorosa criativa.
Na verdade, o filme aponta para uma dialética em termos ideais dos dois princípios, a criança Don Juan
e o pai- terapeuta. O paciente tem uma estória pessoal estéril e sofrida. Nasceu filho de um pai pouco
presente e em nada significativo. A mãe teve inúmeros envolvimentos amorosos extra-conjugais; quando
o paciente tinha 16 anos, o pai veio a morrer atropelado por automóvel. Sua mãe, possuída pelo
remorso, interna-se em um convento em uma pequena cidade do México.
Esta história pessoal surge no fim do filme, quando o paciente finalmente discorre, em perfeito contato
com o mundo concreto, sua vida. Preferim
Preferimos
os a expressão “mundo concreto”, em vez de realidade, pois
quanto a realidade do mundo concreto, e não menos importante que esta última.
No caso, as imagens simbólicas estruturadas pelo paciente, têm uma função organizadora sobre seu
psiquismo, e não desorganizadora.
desorganizadora. É um quadro histérico típico, podemos dizer. Sim, é verdade, apenas
para nos orientarmos de forma psicodinâmica, dentro de um diagnóstico sindrômico, o qual nos
protegeria do erro fundamental de querer medicar o paciente com drogas anti-psicóticas como se ele
estivesse em surto psicótico, como ocorre no filme.
A realidade da alma do paciente é Don Juan, e muito mais tolerável do que a realidade externa, estéril
e sofrida. Mas percebemos também que a realidade do psiquiatra não é saudável, por sua parte. Nesta
variação mitológica, o puer aeternus interage com seu oposto, o senex, o pai, que como todo símbolo, é
pleno de ambigüidade: dá a noção da realidade e de limites, mas também representa a senilitude, a
decadência e a monotonia da repetição. O senex personifica
personifica o próprio
p róprio pai Saturno, que devora seus
filhos logo após nascerem, impedindo a renovação. A dualidade puer et senex se estrutura no filme
f ilme com
clareza.
Neste aspecto, a escolha de atores não poderia ter sido melhor. Marlon Brando tem, pelo menos à época
desse trabalho, o perfeito phisique du rôle. O corpo enorme, com uma obesidade que se destaca desde
sua primeira aparição, contrasta perfeitamente com o corpo leve, dançarino e esbelto do Johnny Depp.
O peso do saturnino senex
senex em contraste com a leveza mercurial do puer.
Fica claro, logo que penetramos na intimidade da vida do psiquiatra, que ele necessita da leveza de seu
paciente. Mercúrio é leve demais, plaina no alto de edifícios e pode se suicidar, mesmo que essa
tentativa de autodestruição seja muito mais teatral que verdadeira. Saturno, cujo metal é o chumbo,
afunda-se em sua melancólica aposentadori
aposentadoria.
a. Suas defesas obsessivas pelo trabalho não serão mais
A alquimia do chumbo em conjunção com o mercúrio, levando ao equilíbrio, é por demais artificial, é
quase como se fora a fabricação da pedra filosofal por algum alquimista. Podemos vê-la como uma
metáfora, e toda metáfora admite uma leitura
l eitura em vários níveis.
A grande terapia do paciente identificado com o arquétipo de Don Juan não é nenhuma medicação anti-
psicótica possível, mas a transferência, o importante fator de transformação. A transferência, em
sentido amplo, no qual o analista também transfere, e não apenas contra-transfere. Jung, já apontara
na década de ’40 que analista e analisando são como duas substâncias químicas que interagem; isto é, o
Se o mercúrio é leve demais, e precisa do peso e a limitação do chumbo terapêutico, também este
último necessita da imaginação mercurial em seu processo existencial. O analista de Jeremy Leven é
ajudado por seu paciente.
Este processo alquímico refere-se a processos ainda mais profundos do aqueles que Money-Kirley quis
Vários símbolos importantes perpassam o filme e têm importância para uma interpretação simbólica.
simbólica. Em
primeiro lugar, a máscara.
O paciente passou a usar estranho traje do tipo espanhol com máscara. Relata ter passado a usar
máscara aos 16 anos quando se afastou de sua mãe, a quem denomina D. Inez. Fala com curioso sotaque
espanholado. A máscara aparece ainda em fotos de uma mulher de revista pornográfica por quem o
Posteriormente,
Posteriormente, quando em seu riquíssimo mundo de fantasia, Don Juan torna-se náufrago, encontra a
mulher de seus sonhos em uma ilha deserta. Ao lhe contar todas as suas conquistas, perde seu amor, a
mulher desejada foge dele. Desde então, Don Juan promete nunca mais retirar a máscara, pela perda do
objeto amado.
Em todas estas situações a máscara representa o objeto de desejo perdido; ocorre uma identificação
com o objeto sexual desejado. Representa portanto uma situação de perversão e fetichismo; uma
estruturação perversa
perversa de suas defesas psíquicas.
Quando Don Juan é enviado para Cadiz por sua mãe, logo após esta abraçar a vida religiosa, o navio o
leva para um sultanato como escravo. Neste local, veste-se como mulher para ser amante da rainha,
além de conviver no harém com inúmeras outras mulheres, em experiência sexual contínua.
O próprio sultão acaba por escolhê-lo como futura companheira, em sua forma transvestida. Aqui o
transvestismo,, donjuanismo e homossexualismo são mencionados de forma bastante explícita e
transvestismo
interconectados.
interconectados. Estas vivências representam uma profusão de figuras femininas no inconsciente, que
invadem mesmo a consciência, levando a uma identificação com o objeto (transvestismo e perversão).
Perdido o objeto de desejo, quando Don Juan é obrigado a partir de navio, sob ameaça de morte,
novamente veste a máscara. Isto é, a máscara aparece em Don Juan sempre que o objeto desejado é
perdido.
A máscara aparece em outro contexto quando o paciente diz ao Dr. Mickler que este necessitava de seu
mundo imaginal, e pergunta se seu verdadeiro nome não é Don Octavio de Flores, o nome fictício que o
terapeuta usara na abordagem inicial de seu paciente. Dr. Mickler responde que seu nome é Don Octávio
de Flores e que Don Juan penetrara na sua verdadeira identidade, retirando todas as suas máscaras.
Fica claro que o símbolo da máscara adquire um significado inteiramente diferente quando se refere ao
psiquiatra. Em Don Juan é um símbolo de sua intensa e exagerada relação com o inconsciente, a mulher
mascarada da revista pornográfica simboliza o inconsciente
inconsciente deste paciente, seria o que Jung
denominaria figura de anima, quando o paciente usa máscaras ele está sempre se identificando com sua
Quando o dr. Mickler fala que suas máscaras foram retiradas, refere-se a uma identificação com sua
persona profissional de psiquiatra que já pesa demais, já empecilho para um encontro criativo com sua
vida amorosa e com sua identidade.
Na verdade o filme, como já referimos, uma nova variação mitológica da saga de Don Juan, aponta para
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(*) Comunicação em mesa redonda, após a exibição do filme, promovida pelo Instituto de Medicina
Psicossomática do Rio de Janeiro, na Casa de Cultura Lauro Alvim- Rio, abril de 1997.
Fonte: http://www.jung-rj.com.br/artigos/donjuan.htm
http://www.jung-rj.com.br/artigos/donjuan.htm