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feminista, uma vez que tal distinção acusações excludentes desta ou daquela
nunca se apresenta clara o suficiente para teoria” (p. 9), Moi, de forma simples e
servir de base a um sistema teórico. Moi precisa, sugere um feminismo que esteja
busca então expor uma teoria do corpo engajado na busca de justiça e igualdade
orientada pela diferença sexual, para as mulheres, “no sentido comum
consciente, contudo, de que nenhuma da palavra” (p. 9).
reelaboração dos conceitos de sexo e de
“O que é uma mulher?”, então, constitui
gênero será capaz de produzir um
questão para a qual existem várias
conjunto teórico consistente acerca do
respostas possíveis, que fogem das
corpo ou da subjetividade, donde a
amarras tanto da distinção sexo/gênero,
irrelevância da distinção, caso o objetivo
quanto da polaridade essência/
seja construir uma compreensão
construção. Assim, ao contrário do que
histórica do que significa ser mulher ou
postulam os teóricos pós-
homem em uma determinada sociedade.
estruturalistas, para os quais a relação
Reconhece a autora, no entanto, que a
entre sexo e gênero é arbitrária, a melhor
distinção entre essas categorias não é de
defesa contra o determinismo biológico
todo irrelevante para o projeto feminista,
é negar que qualquer base biológica
embora ela não se preste à produção de
justifique normas sociais, visto que a
uma teoria da subjetividade.
natureza não pode ser usada para
Em contrapartida, Simone de Beauvoir explicar arranjos sociais particulares. Em
é que forneceria as bases para uma outros termos, de acordo com fatores
compreensão do corpo de natureza não- biológicos o sexo não pode ser negado,
essencialista, concreta, histórica e social. porém sociedades podem ser
Assim, segundo Moi, a investigação produzidas onde os gêneros se
sobre o significado da feminilidade em multipliquem ou mesmo se eliminem,
contextos históricos e teóricos demonstrando-se, desse modo, que a
específicos é indispensável ao projeto biologia não justifica normas sociais.
feminista que queira compreender e
Coerente com tais diretrizes de base, nas
transformar práticas e tradições
pegadas de Beauvoir e Merleau-Ponty –
culturais sexistas.
que mostram que a relação entre corpo
Um dos pontos mais importantes no e subjetividade não é nem necessária,
trabalho de Moi está na observação de nem arbitrária, mas contigente –, a
que ser uma mulher envolve pluralidade autora prossegue chamando a atenção
e descentramento, embora nem isso seja para a compreensão de casos concretos,
passível de generalização, pois pode para que se possa pensar na viabilidade
suscitar outro conceito igualmente de uma teoria do corpo e da
reificado de feminilidade. Desse modo, subjetividade. Uma “teoria feminista”
como qualquer tentativa de definição ideal, nesse caso, seria um tipo de
incorre no risco de uma “proliferação de pensamento que “procurasse desfazer
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complexa em que essas noções estejam é uma realidade fixa, mas está sempre
acopladas a significações históricas e em processo de fazer-se o que é, através
sociais concretas do corpo. Como a de experiências vividas, sedimentadas
distinção entre sexo e gênero é muito através do tempo e de interação com o
pouco adequada quando se trata de mundo. Moi rejeita assim a noção de
pensar o que é uma mulher, pois uma gênero enquanto efeito de uma estrutura
mulher ou um homem constituem mais social de poder opressiva, apoiando-se
que “realidades” cuja explicação se na noção de corpo sugerida por Beauvoir,
esgote em sexo e gênero, Moi assinala segundo a qual nos definimos através
que raça, idade, classe, orientação de nossa experiência, donde a
sexual, nacionalidade e experiência imprevisibilidade do ser humano.
pessoal idiossincrática são outras Conseqüência desse ponto de vista é
categorias que molduram a experiência afirmar que somente a morte nos impede
de ser de um sexo ou de outro. Desssa a possibilidade de mudança, e que o
forma, a autora busca fugir da corpo é uma situação, não um destino.
categorização da mulher como soma de A mulher passa assim a ser concebida
sexo mais gênero, ou nada mais que sexo, mais do que simplesmente como gênero,
ou nada mais que gênero, como forma sendo portanto encarada como ser
de não reduzi-la à diferença sexual. Esse humano completamente embodied, que
reducionismo – ela conclui – é a antítese não pode ser reduzido à diferença
de tudo que o feminismo deveria acatar, sexual, quer esta diferença seja vista
pois o mais importante é a noção clara como decorrência da natureza, quer seja
de que os parâmetros estreitos dessas entendida como efeito da cultura.
noções nunca abarcarão a experiência e
Por conclusão, cabe assinalar que a
o significado da diferença sexual nos
leitura que Moi faz de The Second Sex é
seres humanos.
um belo ponto de partida para futuras
Moi mostra assim que se pode chegar a investigações feministas, por implicar a
uma compreensão concreta e rejeição tanto do determinismo biológico
historicizada do corpo e da quanto da distinção reducionista entre
subjetividade sem depender da sexo e gênero, salvaguardando-se assim
distinção sexo/gênero. A grande a liberdade do ser humano de definir o
contribuição de Beauvoir, segundo a seu sexo da forma que lhe aprouver. Ser
autora, não só para a teoria feminista, uma mulher, então, não significa que
mas também como uma alternativa tipo de mulher eu sou, donde a
poderosa e sofisticada para as teorias incompatibilidade dos estereótipos com
contemporâneas de sexo e gênero, é a de o pensamento de Beauvoir. What is a
que o corpo é uma situação – definível Woman? é, assim, um trabalho que
como algo concreto, experienciado ilumina o “feminismo de liberdade”, por
enquanto significação e situado social e recusar-se a fazer uma teoria
historicamente –, ou seja, a mulher não universalizante, excludente. Reconhece,
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