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05/03/2024 21:31 A freudiana fantasia da vingança contra a "mãe má" no filme 'Boa Noite, Mamãe!

' ~ Cinema Secreto: Cinegnose

A freudiana fantasia da vingança contra a "mãe má" no


filme 'Boa Noite, Mamãe!'
quinta-feira, maio 12, 2022 Wilson Roberto Vieira Ferreira

Uma das características do filme estranho (“Weird Movies”) é aquele que não permite ao
espectador o mecanismo psíquico básico do entretenimento, a identificação: afinal, quem o
mocinho e o bandido? Além de estabelecer uma fina fronteira entre a realidade e o imaginário
através do observador/protagonista não confiável. O filme de terror austríaco “Boa Noite,
Mamãe!” (Ich Se, Ich Se, 2014) é um bom exemplo: como o vínculo universalmente
inquebrável entre mãe e filhos pode ser desconstruído pela freudiana fantasia de vingança da
criança contra a “mãe má”. Gêmeos veem sua mãe retornando para casa após uma cirurgia
facial, com o rosto totalmente enfaixado. Logo, começam a suspeitar que aquela mulher pode
não ser a sua mãe. Incomunicabilidade e a quebra do elo geracional na sociedade, somado à
matriz edipiana, são os elementos do qual o gênero do terror atual se inspira.

Desde que estreou no Festival de Cinema de Veneza, em 2013, o filme


austríaco Boa Noite, Mamãe!(Ich Se, Ich Se, 2014) construiu a reputação de uma produção de
terror baseado nos mais altos conceitos do gênero – um filme capaz de reduzir os mais
resistentes apreciadores do terror no cinema a algo como uma gelatina trêmula que se
contorce na poltrona do cinema.
Dirigido e escrito por Severin Fiala e Veronika Franz, é um daqueles filmes quase
impossível de resenhar sob o risco de entregar um spoiler que frustre a experiência do
leitor. Boa Noite, Mamãe! é um filme ao nível de O Sexto Sentido de Night Shyamalan: com
um violento plot twist final que contorce toda a narrativa. E descobrimos que assistimos a um
filme sob o ponto de vista de um observador não confiável.
Tudo isso apesar do horrível título em português, que acompanha a do
distribuidor norte-americano. O título original “Ich Se, Ich Se” (“Eu Vejo, Eu Vejo”) é muito
mais fiel ao conceito que o plot twist final nos entrega.
Portanto, só resta a esse humilde blogueiro fazer uma análise circunstancial dos
conceitos no qual o filme se baseia e suscita.

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O filme faz uma total desconstrução daquilo que universalmente é considerado o


vínculo mais inquebrantável: a relação entre mãe e seus filhos. Nas entrevistas com a
imprensa especializadas, a dupla de diretores e roteiristas afirma que o filme foi inspirado em
um reality show austríaco que submetia mães (das mais variadas classes sociais) a uma
“repaginada” física e estética – e como os pequenos filhos ficavam entre desanimados e
assustados ao olhar para as suas novas, lindas e quase irreconhecíveis mães.
Nas entrevistas, também os realizadores mencionam como a incomunicabilidade
é o tema principal de Boa Noite, Mamãe! nessa estória contada sob a perspectiva de dois
meninos gêmeos que veem sua mãe retornando para casa após uma cirurgia facial, com o
rosto totalmente enfaixado. Logo, começam a suspeitar que aquela mulher pode não ser a sua
mãe.

Assistir ao filme faz lembrar o conceito do psicanalista inglês Donald Winnicott


(1896-1971) de “mãe suficientemente boa”. O psicanalista explica que a mãe tenta estar
disponível constantemente para responder imediatamente às demandas dos bebês, para que
se sintam seguros e amados. Por outro lado, cria no bebê a sensação de que a mãe é sua
extensão. A “mãe suficientemente boa” seria aquela que mostra ao filho que existe um tempo
de espera e um limite – ela não é sua extensão.
E o processo comunicativo saudável entre mãe e filho é a condição sine qua
no para que se estabeleça essa “negociação” e a criança descubra o limite entre o eu e o
outro – decisivo para a formação do próprio Ego.
Muito antes, Freud já havia colocado em “O Ego e o Id” essa tensão entre criança
e mãe – o impulso de vingança contra a mãe e a dualidade imaginária entre uma mãe má e
uma mãe boa. Descobrir que ambos os lados pertencem à mesma mãe é uma das etapas para
a construção do próprio ego com a percepção de que a mãe não é a extensão do infante.

Boa Noite, Mamãe! Eleva esse drama freudiano ao nível do terror, confirmando a
tese deste Cinegnosede que esse gênero, tanto literário quanto fílmico, estrutura-se sobre
uma matriz edipiana: dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado
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(sadomasoquista), a percepção corpo fragmentada do corpo pelo infante pré-formação do ego


(daí o porquê do fascínio pelos corpos despedaçados, vísceras e sangue no cinema de terror)
etc.

O Filme

Quando o filme começa, os irmãos gêmeos de 10 anos Lukas e Elias


(interpretados pelos gêmeos da vida real Lukas e Elias Schwarz) estão brincando de pega-
pega no milharal do lado de fora de sua casa isolada enquanto esperam o retorno de sua mãe,
Mutter (Susanne Wuest), de uma cirurgia facial.
Em tese, este deveria ser um momento alegre, mas a partir do momento em que
ela volta para casa, com a cabeça completamente envolta em bandagens, rapidamente
percebemos que algo não está certo. Em vez da presença calorosa e alegre que ela
aparentemente era antes de ir para o hospital, agora Mutter está tão fria e remota quanto a
casa que eles compartilham desconfortavelmente - uma residência modernista com uma
atmosfera brutalmente estéril e com grande oferta de cantos, recantos e corredores
inquietantes.

Rispidamente ela exige dos filhos silêncio absoluto e todas as janelas fechadas e
sem luz solar, para ajudar na sua recuperação. Para tornar as coisas ainda mais
desanimadoras, ela começa a favorecer claramente Elias, deixando Lucas de lado. Chegando
ao ponto de se recusar a falar com o último por razões desconhecidas.
Apesar de seus desejos, os irmãos são inseparáveis ​enquanto passam o tempo
juntos fazendo coisas que variam do perfeitamente normal (pular em uma cama elástica na
chuva) ao estranho (explorar um cemitério próximo) ao absolutamente nojento (coletar
besouros gigantes em um tanque de peixes).
À medida que o tempo passa e sua mãe ainda enfaixada continuar a agindo de
forma estranha e cruel, os meninos ficam cada vez mais convencidos de que estão lidando
com alguém que está fingindo ser ela. Como eles não têm mais a quem recorrer (o pai deles é
brevemente mencionado apenas uma vez, mas não há nem uma foto dele na casa; e o padre
local, para quem pedem ajuda, apenas os traz de volta para casa), começam a planejar uma

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conspiração contra Mutter, e, quando as bandagens saem, conseguem amarrar a suposta


intrusa em sua cama. Para usar alguns itens ameaçadores, como tesouras, para convencer, a
intrusa, sob tortura, a revelar onde está a verdadeira mãe.
Aos poucos vamos descobrindo que Mutter foi uma apresentadora de programas
de TV com um relativo sucesso. E a carreira parece ter sido abreviada pelo divórcio e algum
tipo de acidente traumático – o máximo que podemos dizer é que a cirurgia facial nada tem a
ver com o acidente.
É visível o problema de incomunicabilidade entre mãe e filhos – há algum
processo traumático que a corrói, enquanto os filhos (que supostamente fizeram parte dessa
cena traumática) são deixados de lado, tentando encontrar para onde foi a “verdadeira” mãe.

Esse problema da incomunicabilidade nos conduz ao problema da quebra do elo


geracional trazida pelo desenvolvimento do capitalismo no qual a família se esvazia na sua
função simbólica de transmissão cultural (conhecimentos e sabedoria) para se reduzir a célula
de consumo e reprodução da força de trabalho.
Mutter era uma profissional de TV e, aparentemente, esse apego profissional às
imagens faz ela buscar na cirurgia estética uma forma de se recuperar de um trauma familiar
recente como forma de buscar um tipo de reinício. Aliada a ausência paterna, soma-se à
materna. Transformações socioculturais que dificultam ainda mais a resolução da dinâmica da
“mãe suficientemente boa” ou, mais ainda, às fantasias freudianas de vingança da criança
contra a mãe “má”.
Deixando aos filhos o mundo imaginário no qual busca a vingança contra uma
impostora (a mãe má) para buscar a suposta mãe verdadeira – as crianças estão tão imersas
em um mundo imaginário que até ficamos em dúvida se essa mãe gentil e alegre realmente
existiu.
Por essa confusão entre realidade e imaginário (não sabemos quem são os
observadores não confiáveis), Boa Noite, Mamãe! é um filme estranho: o roteiro da dupla
Franz e Fiala é bastante engenhoso na maneira como brinca com a verossimilhança do
público, apresentando-lhes cenas em que nenhuma das partes parece estar agindo
logicamente.
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Tudo parece cruel e, ao mesmo tempo, frio e estranho: por que parece que
ninguém a acompanhou no hospital ou cuidou dos meninos enquanto ela estava fora? Por
outro lado, as duas crianças parecem agressivas demais em suas retaliações contra Mutter.
Como resultado, mesmo quando o filme começa a se dirigir para o seu final
chocante, a maioria dos espectadores ainda achará difícil decidir para quem devem torcer.
Como um bom filme estranho, Boa Noite Mamãe!impede a clássica dinâmica da identificação
do espectador, princípio do entretenimento audiovisual.

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