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Análise psicanalítica do filme A Monster Calls (“Sete minutos depois

da meia noite”), sob a ótica da teoria kleiniana.

Vera Lúcia Belisário Baroni, Ma

O filme “Sete Minutos Depois da Meia Noite” (A Monster Calls/EUA, Espanha, 2016),
conta a história de um garoto inglês de 12 anos, Connor, filho de pais separados e que
mora com a mãe em uma casa de subúrbio e de cujo quarto ele visualiza uma árvore
gigante ao lado de uma igreja no cemitério. O filme começa retratando sua rotina
doméstica junto da mãe, que está perdendo a batalha contra um câncer, o que obriga o
garoto a assumir responsabilidades de um adulto. Seu pai vive nos Estados Unidos com
outra esposa e filha e é ausente da vida do menino. Além dessa situação já bastante
problemática, a doença de sua mãe o obriga a uma convivência forçada com a avó materna
que, por se mostrar uma pessoa muito austera, não demonstra afetuosidade para com
Connor, dificultando o relacionamento entre ambos. Na escola a situação também se
mostra difícil, pois além do isolamento dos colegas, ele ainda sobre bullyng por parte de
alguns meninos, sendo constantemente surrado por eles.

Guardando dentro de si uma grande dor que não compartilha com ninguém, Connor sofre
com um pesadelo recorrente, no qual tenta sem sucesso salvar a mãe que está caindo em
um abismo, acordando em agonia após sua queda. A partir desse pesadelo, Connor passa
a ter um tipo de sonho/alucinação em que é “visitado” por um monstro que se formou a
partir da transformação da árvore do cemitério em um gigantesco homem de madeira,
sempre sete minutos depois da meia noite. O Monstro afirma saber tudo sobre Connor e
que virá visitá-lo outras vezes, para contar-lhe três histórias e, ao final dessas histórias,
Connor deverá contar a ele uma quarta história. À princípio intimidador, o Monstro
provoca a revolta de Connor ao afirmar que não veio para salvar sua mãe, mas, sim, para
salvar a ele, Connor. Porém, ao longo dos encontros o Monstro se mostra amigo de
Connor, ajudando-o a enfrentar os problemas que o afligem.

Essa é uma breve apresentação do contexto geral do filme, que será analisado sob a ótica
das teorias de Melanie Klein, buscando compreender a ambivalência que impacta o
comportamento de Connor. Essa análise será realizada a partir dos conceitos de “mundo
interno”, “fantasia inconsciente”, “posição esquizopanóide”, “posição depressiva”.

Mundo interno e Fantasia Inconsciente

Para Melanie Klein, o mundo interno se constitui a partir das relações do bebê com seus
objetos, a princípio, parciais. Em sua etapa mais primitiva esse mundo interno é marcado
pela não diferenciação entre o “eu” e o “não eu” do bebê, uma vez que ele se percebe
fundido aos seus objetos parciais. Com o desenvolvimento do bebê, vai ocorrendo a
diferenciação gradual entre o “eu” e o “não eu”, entre objetos internos e externos. Além
dos objetos introjetados, o mundo interno também é constituído pelas pulsões, instintos,
representações mentais de ideias, sonhos e fantasias inconscientes. São essas
representações, em conjunto com as relações com objetos introjetados, que constituem
a estrutura psíquica do mundo interno kleiniano. “Assim, se constrói um mundo interior
na mente inconsciente da criança, mundo que corresponde às suas experiências reais e
às impressões que recebe das pessoas e do mundo externo...”. (Klein, 1940, pg. 388)

Dentro dessa estrutura psíquica, as fantasias inconscientes configuram-se para Klein


como as representações mais significativas e seu conceito foi aprofundado por ela, a
partir do conceito de fantasias inconscientes desenvolvido por Freud. Para Klein, as
fantasias inconscientes estão subjacentes aos sonhos, pensamentos e atividades, tanto
criativos quanto destrutivos. Elas vêm de instintos que estão no limiar entre as atividades
físicas e psíquicas, assim sendo, são experimentadas tanto física quanto mentalmente
(Segal,1975). Para Isaacs (1952), essas fantasias inconscientes influenciarão o indivíduo
ao longo de toda sua vida, seja ele normal ou neurótico.

Por um lado, as fantasias inconscientes influenciam a percepção dos eventos externos,


investindo-os com significado. Por outro lado, os eventos externos são experimentados
e incorporados, influenciando a própria fantasia inconsciente. Tal inter-relacionamento
tem grande relevância ao se avaliar a importância do ambiente no desenvolvimento da
criança. (Segal, 1975)

No filme, podemos observar a importância do ambiente no desenvolvimento de Connor


e de suas fantasias inconscientes, quando vemos o ambiente de estímulo à arte criado pela
sua mãe, ao vê-la ensinar o pequeno Connor a desenhar personagens fantásticos de contos
de fadas, tais como monstros, príncipes e princesas. Connor incorporou a arte de sua mãe,
elegendo-a como forma de expressar seu mundo interno, suas fantasias inconscientes,
bem como de fugir de sua realidade externa de privações. Tanto em casa quanto na escola,
vemos Connor refugiado em seu mundo interno, através dos desenhos e pinturas que
realiza e que remetem aos momentos bons vivenciados ao lado da mãe, totalmente alheio
a realidade que o cerca. Na última cena do filme, descobrimos que todos os personagens
das “histórias” contadas a Connor pelo Monstro, tinham sido desenhados por sua mãe.
Esses dois momentos do filme, no início, Connor pequeno aprendendo a desenhar com
sua mãe e, no final, Connor adolescente redescobrindo os desenhos de sua mãe, ilustram
a via de mão dupla entre a influência dos eventos externos nas fantasias inconscientes e
a influência destas, na percepção da realidade externa.

Voltando ainda a atenção aos desenhos de Connor, fixados na parede em frente à sua
escrivaninha, nota-se muitos desenhos de monstros com olhos intimidadores e suas bocas
abertas, ameaçadoramente cheias de dentes. A recorrência desse tipo de desenho sugere
uma agressividade reprimida, não verbalizada, presente em suas fantasias inconscientes
e a qual Connor externaliza nos episódios delirantes com o Monstro, quando vandaliza
uma lata de lixo, depois quando bate no colega de escola que o intimidava e quando
destrói a sala de visitas da casa da avó.

Posição Esquizoparanóide e Posição Depressiva

Ao desenvolver a teoria do desenvolvimento psicossexual, Freud a divide em fases


sucessivas, a saber: fase oral, fase anal, fase fálica, fase de latência e fase genital. Sendo
que, uma vez que o bebê alcança uma fase posterior, ele não regride à uma fase anterior.
Diferindo de Freud, Klein desenvolve uma teoria do desenvolvimento baseada em
posições, que embora surjam de maneira sucessiva ao longo do desenvolvimento, podem
ser regredidas. Ou seja, o indivíduo poderá transitar entre as diferentes posições, em
função das diferentes dificuldades que estiver enfrentando.

Segundo Klein (1946), a posição esquizoparanóide é a primeira posição vivenciada pelo


bebê em seus primeiros meses de vida e pode ser vivenciada, posteriormente, tanto na
infância quanto na vida adulta, especialmente nos estados paranoico e esquizofrênico.
Nessa posição, o bebê vê a mãe como um objeto parcial e clivado em dois, o “seio bom”
e o “seio mau”. Simultaneamente ao surgimento dessa clivagem, instalam-se os
mecanismos de introjeção e projeção (Nasio,1995).
O “seio bom”, fonte de prazer e de vida, o bebê introjeta dirigindo a ele seus impulsos
amorosos. O “seio mau”, que se ausenta e frustra e que também foi introjetado, provoca
fantasias de ataques sádicos, através das quais o bebê projeta sua destrutividade, sua raiva.
Porém, em virtude desses ataques sádicos, o bebê desenvolve o temor de ser perseguido
e devorado por seus objetos internos, desenvolvendo uma angústia persecutória
relacionada a possibilidade de aniquilamento do ego.

À medida que o desenvolvimento do bebê evolui de maneira normal, a cisão entre o seio
bom e o seio mau vai se tornando menos acentuada, até chegar o momento de sua
integração, quando o bebê passa a ver a mãe como um objeto inteiro. Nesse momento, se
dá uma espécie de síntese entre o amor e o ódio direcionados aos objetos significativos
da vida do bebê, originando a posição depressiva. Essa posição é marcada pelo medo do
bebê de que seu ódio antes direcionado aos objetos parciais maus, possa agora destruir o
objeto total amado, o que leva ao surgimento de uma angústia depressiva, mobilizada
pelo sentimento de culpa e pelo desejo de reparar os objetos danificados (Klein, 1948).

A posição depressiva institui-se por volta dos quatro meses de idade e vai sendo superada
ao longo do primeiro ano, embora possa ser reativada no adulto, particularmente nos
processos de luto, separações ou nos estados depressivos.

No filme, vemos Connor vivenciando as posições esquizoparanóide e depressiva


alternadamente, em diferentes momentos. Na posição esquizoparanóide, vemos Connor
sempre alheio em sala de aula ou em casa, distraído com seus desenhos, em “um estado
persistente de isolamento e retraimento em relação ao seu ambiente” (Cintra e Figueiredo,
2010, p. 104). Outra situação característica da posição esquizoparanóide, pode ser
observada durante as histórias contadas pelo Monstro, quando vemos Connor
vivenciando a clivagem entre objetos parciais bons e maus. Nas histórias, a dualidade
entre o bem e o mal presente nas personalidades e nas atitudes dos personagens confunde
Connor, que não consegue conceber essa dualidade, vendo-os apenas como objetos
parciais bons ou maus e encontrando prazer em descarregar suas pulsões destrutivas
contra aqueles considerados merecedores de punição. Ao final de cada história, com a
ajuda do Monstro, Connor pode compreender e integrar a dualidade na personalidade dos
personagens, o que permitiu que ele pudesse compreender a maneira parcial, clivada,
como percebia a avó e o pai, ambos vistos até então apenas como “objetos maus”.

Na posição depressiva, Connor vive uma ambivalência nos seus sentimentos, pois ao
mesmo tempo em que sente profundo amor pela mãe e teme perdê-la, “as experiências
desagradáveis e a falta de contato íntimo e feliz” com ela em virtude de sua doença,
“diminuem sua confiança e esperança” (Klein, 1940, p. 390), fazendo com que deseje em
seu íntimo que tudo acabe logo, o que gera uma ansiedade depressiva e um sentimento de
culpa por sua morte eminente. Como explica Klein (1940), a ansiedade depressiva leva o
ego a criar fantasias onipotentes e violentas, com o intuito tanto de controlar os objetos
“maus” e perigosos, quanto para salvar e restaurar os objetos “amados”. E são justamente
essas fantasias onipotentes e violentas que Connor vivencia em suas interações com o
Monstro. Nas histórias narradas, a onipotência está presente na figura poderosa do próprio
Monstro, que decide quem deve ser salvo e quem deve ser punido em suas histórias, as
quais sempre envolvem destruições violentas contra os que devem ser punidos. Ao
mesmo tempo, a interação fantasiosa com o Monstro expressa a esperança de Connor de
que o Monstro salve seu objeto bom, sua mãe.

BIBLIOGRAFIA:

Cintra, E.M.U. e Figueiredo, L.C. (2010). A década de 40 e a posição esquizoparanóide.


In: Melanie Klein, estilo e pensamento (pp. 102-124). São Paulo: Escuta.
Isaacs, S. (1952). A natureza e a função da fantasia. In: Os progressos da psicanálise. Rio
de Janeiro: Zahar
Klein, Melanie (1991). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides (1946). In Inveja e
gratidão e outros trabalhos (1946 – 1963). Rio de Janeiro: Imago.
Klein, Melanie (1940/1996). O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos.
In: Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (pp.385-413). Rio de Janeiro: Imago
Klein, Melanie (1991). Sobre a Teoria da Ansiedade e da Culpa (1948). In Inveja e
gratidão e outros trabalhos (1946 – 1963). Rio de Janeiro: Imago.
Klein, Melanie (1935/1996). Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-
depressivos. In: Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago.
Nasio, J. D. (1995). Introdução às Obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott,
Dolto, Lacan. Rio de Janeiro: Zahar.
Segal, H. (1975). Fantasia. In: Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.

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