Você está na página 1de 7

11/03/2024 17:35 A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O Cremador" ~ Cinema Secreto: Cinegnose

A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O


Cremador"
domingo, outubro 02, 2016 Wilson Roberto Vieira Ferreira

Um operador de um crematório na antiga Tchecoslováquia, às vésperas da invasão nazista, é um


respeitado e aparentemente equilibrado chefe de família que recita nos jantares teses do Livro
Tibetano dos Mortos, é obcecado em budismo e reencarnação. E também acredita na missão
messiânica da sua profissão: acelerar o trabalho de Deus de fazer o homem retornar ao pó. Essa
mistura de cristianismo e budismo na sua cabeça vai encontrar o esoterismo nazi que começa a se
espalhar pelo país – a pureza da raça ariana cujas origens milenares estariam no Tibete e a
sabedoria guardada pelos lamas. O filme “O Cremador” (Spalovac Mrtvol, 1969) do diretor tcheco
Juraj Herz é um mergulho no psiquismo da chamada “banalizadade do Mal”, motor psicológico do
nazi-fascismo: como um homem aparentemente equilibrado e sem precedentes violentos mistura
cristianismo, budismo e ocultismo nazi para se auto-investir com um propósito sinistro: eliminar a
dor e a impureza desse mundo através das fornalhas do seu crematório.

Antes da II Guerra Mundial, ocultistas alemães acreditavam que a Terra era oca, e
dentro dela habitava uma super raça com poderes telecinéticos, o “vril”. Sociedades ocultistas
como Thule e a Vril na Alemanha contataria esses seres para que os nazistas utilizassem esses
super poderes. Antes da guerra iniciar, a SS promoveu expedições oficiais entre 1931 e 1936 para
visitar os lamas no Tibete em busca de poderes ocultos e uma suposta origem da raça ariana na
Ásia. Em Berlim, os nazis permitiam o ensino do budismo por mestres tibetanos. E a suástica,
símbolo indiano e tibetano da boa sorte imutável, tornou-se o símbolo do Partido Nazista.

Na Europa a febre de interesse por ocultismo começou na segunda metade do século


XIX, prolongando-se no século XX adentro. O modismo dominava salões e círculos intelectuais – e
na Alemanha o Ocultismo encontrou um terreno fértil para se desenvolver em seus aspectos mais

cinegnose.blogspot.com/2016/10/banalidade-do-mal-do-ocultismo-nazi-no.html 1/7
11/03/2024 17:35 A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O Cremador" ~ Cinema Secreto: Cinegnose

sombrios. Pessoas aparentemente sérias e equilibradas passaram a acreditar que poderiam criar
uma nova ordem global a partir de ideias e práticas ocultistas.

O filme eslovaco O Cremador é um verdadeiro estudo do caráter psicológico oculto


por trás dos aspectos mais conhecidos da ascensão do nazi-fascismo. Mas com uma forte carga de
alegoria.

O diretor Juraj Herz ficou conhecido pelo seu interesse nos aspectos góticos,
grotescos, surreais e decadentes por meio de uma estilização gótico-barroca. O seu protagonista,
com um rosto redondo que sugere um Adolph Hitler por meio de referências ao ator Peter Lorre,
domina a tela: é o operador de um crematório na Tchecoslováquia no final dos anos 1930 às
vésperas da invasão nazista ao país.

A narrativa mostra como um típico chefe de família de classe média, aparentemente


equilibrado e respeitado, aos poucos vai adaptando suas convicções sincréticas cristãs e budistas à
ideologia nazista da pureza racial que progressivamente invade o país.

“Ao pó retornarás...”

Obcecado por budismo e a crença na reencarnação, Kopfrkingl (Rudolf Hrusinsky)


também crê no papel sagrado e cristão da sua profissão: “O Senhor disse: ‘Lembre-se, tu és pó e
ao pó retornarás’. Um crematório, queridos amigos, é claramente um instrumento que agrada a
Deus, porque O ajuda a acelerar a transformação das pessoas em pó”, diz o protagonista em uma
linha de diálogo.

Certamente, o leitor já deverá estar imaginando como essa convicção


cristã facilmente vai se amalgamar com o ocultismo tibetano e a ideologia nazi da pureza da raça.

cinegnose.blogspot.com/2016/10/banalidade-do-mal-do-ocultismo-nazi-no.html 2/7
11/03/2024 17:35 A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O Cremador" ~ Cinema Secreto: Cinegnose

O Cremador vai aos poucos mostrando o mecanismo psicológico da conversão de


Kopfrkingl, como ele absorve toda ideia que atravessa a sua mente: a eficiência da cremação,
budismo, reencarnação, a noção nazista da pureza do sangue, ocultismo nazi, tudo se fundindo na
fornalha da sua mente para reforçar um íntimo complexo messiânico.

O Filme

Kopfrkingl é um respeitado chefe de família de classe média em Praga, e o operador


do crematório à espera da sua promoção a diretor do complexo – o chamado “templo da morte”.

Seu livro inseparável é Tibete: Magia e Mistério da escritora espiritualista Alexandra


David-Néel (budista e exploradora na década de 1920, com grandes estadias no Tibete adquirindo
conhecimentos esotéricos dos lamas) que cita e recita nos jantares em família, com sua esposa e
um casal de filhos adolescentes.

Kopfrkingl crê numa função transcendental do seu trabalho: libertar as almas do


corpo para que alcancem o éter e voltem a se reencarnar. A morte é sempre bem-vinda e presta
um serviço inestimável para o mundo.

“O sofrimento é um grande mal e temos que fazer de tudo para aliviá-lo”, diz
insinuando a eutanásia. Também se apresenta como abstêmio, não fuma e nem bebe, e aparenta
um caráter convicto. Porém, apenas esconde dois vícios profundos: o desejo por prostitutas e
bordeis; e a ambição em subir socialmente.

cinegnose.blogspot.com/2016/10/banalidade-do-mal-do-ocultismo-nazi-no.html 3/7
11/03/2024 17:35 A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O Cremador" ~ Cinema Secreto: Cinegnose

A narrativa basicamente consiste em grande monólogos interiores do protagonista,


acompanhado de uma trilha composta por um coro fantasmagórico e planos de câmera inusitados
como deformações em grande angular e cenas a partir do ponto de vista de objetos em
movimento.

Kopfrkingl parece seguro de si, mas aos poucos é influenciado pelas ideias sobre a
pureza do sangue divulgadas pelo partido nazista que aos poucos se infiltra na vida política,
enquanto as tropas alemãs aproximam-se das fronteiras do país.

Budismo funde-se com nazismo

O homem que tem como profissão transformar pessoas em cinzas e um apego


esotérico bizarro pela arte da cremação, começa a justificar a invasão pelos alemães. Afinal, para
ele são tão civilizados quanto os checos – a Alemanha também tem leis de cremação desde os
tempos antigos.

Obcecado por budismo e reencarnação, integrando com crenças cristãs que fala em
seus sermões funerários, Kopfrkingl começa a conciliar budismo com nazismo. Ele conclui
maravilhado que os campos de extermínio, com seus crematórios, irão limpar o mundo do
sofrimento.

Claro que essa conclusão é também motivada pelos seus dois vícios: tornando-se
colaborador dos nazistas, terá acesso às prostitutas exclusivas para os membros do partido, além
de tornar-se o diretor do “templo da morte”.

O Cremador começa a ficar ainda mais sinistro quando o protagonista descobre que
sua esposa tem ascendência judaica e, portanto, seus filhos tem uma parte do sangue judeu da

cinegnose.blogspot.com/2016/10/banalidade-do-mal-do-ocultismo-nazi-no.html 4/7
11/03/2024 17:35 A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O Cremador" ~ Cinema Secreto: Cinegnose

mãe. Sem filhos na Juventude Nazi e com uma esposa judia, jamais Kopfrkingl poderá assumir a
missão messiânica de transformar os sofrimentos do mundo em cinzas.

Kopdfrkingl conclui de forma sombria que também terá que transformar em cinzas a
“dor” de seus familiares... Ele não percebe as contradições que abraça: ama genuinamente seus
familiares mas não mostra nenhum remorso em se prostituir, delatar os “doentes” para os nazis e
arquitetar a morte da mulher e filhos.

Banalização do Mal

O filme é baseado no livro Spalovac Mrtvol (literalmente, “O Incinerador de Corpos”)


do escritor checo Ladislav Fuks, uma história de horror psicológico mostrando como um homem
torna-se um maníaco sob a influência da propaganda nazista e a filosofia oriental.

O apego do protagonista ao livro Tibete: Magia e Mistério e a combinação da lógica


do extermínio com o budismo é o mecanismo psíquico daquilo que certa vez a cientista política
Hannah Arendt chamou de “banalização do Mal”: pessoas medíocres da classe média, burocratas
respeitáveis, sem histórico de violência e aparentemente equilibrados, dadas certas condições
institucionais, podem repentinamente cometer as maiores atrocidades.

cinegnose.blogspot.com/2016/10/banalidade-do-mal-do-ocultismo-nazi-no.html 5/7
11/03/2024 17:35 A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O Cremador" ~ Cinema Secreto: Cinegnose

O misticismo da propaganda nazi encontrou terreno fértil no modismo do esoterismo


nas classes médias naquele momento: de repente, Shamabala, Tibete, reencarnação, budismo e
pureza racial se misturaram. Sem capacidade de reflexão ou juízo crítico não perceberam as
contradições que abraçavam e os efeitos trágicos de tudo isso.

O auge do delírio de Kopdfrkingl no filme é quando ele cria uma espécie de alter ego
em trajes de monge tibetano que lembra sempre para ele sua missão importante nesse planeta –
reduzir às cinzas todas dores e impurezas do mundo.

O estranho fantasma é uma referencia direta à prática budista da criação de um


“tulpa” – um fantasma gerado pela própria mente. Um jogo que pode tornar-se perigoso, como
descreve Alexandra David-Néel no livro Tibete: Magia e Mistério, o livro de cabeceira de
Kopdfrkingl.

Em 1933 morria no Tibete o 13o lama. Em seu delírio o protagonista acredita ser ele
próprio o substituto, incumbido de uma importante missão pelo Partido Nazista, remunerado com
prostitutas e ascensão social. Ascensão que o levará à própria Shambala no topo do mundo.

Em épocas como as atuais onde a onda do conservadorismo emerge com estranhas


combinações entre meritocracia, filosofias de autoajuda combinando taoísmo com neurociências,
cinegnose.blogspot.com/2016/10/banalidade-do-mal-do-ocultismo-nazi-no.html 6/7
11/03/2024 17:35 A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O Cremador" ~ Cinema Secreto: Cinegnose

ódio político, racismo e intolerância, o filme O Cremador de 1968, sobre os anos 1930, mostra-se
perturbadoramente atual.

Os mecanismo psíquicos da banalização do Mal continuam presentes e atuantes.

cinegnose.blogspot.com/2016/10/banalidade-do-mal-do-ocultismo-nazi-no.html 7/7

Você também pode gostar