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WENDY E CHIHIRO: AS JORNADAS HEÓRICAS E FEMININAS RUMO

AO AMADURECIMENTO SOB DUAS PERSPECTIVAS DIFERENTES

Na terça-feira (muito tempo antes de redigir este texto), assistir ao filme “Peter Pan”
na Netflix pela segunda vez e diferentes inquietações e questões, que passaram despercebidos
na primeira experiência com ele, recaíram sobre mim nesse ‘reencontro”. Naquele momento,
eu estava frente a frente com um retrato fictício e magistralmente fantasioso do que para nós
mulheres é bem real e palpável: um amadurecimento precoce acrescido de uma
responsabilização exaustiva que excede nossos limites e autonomia.
Wendy é uma das protagonistas do filme junto a Peter Pan, o menino que nunca
cresce, encerrado na Terra do Nunca (Neverland). Logo de cara, os telespectadores são
apresentados a essa figura feminina de lábios estrategicamente carnudos, sorriso grande e
olhos azuis brilhantes, que encena uma história para seus irmãos menores. A encenação
consiste em ameaças e embates, mimetizando comportamentos típicos de outros seres
fantásticos, constantemente provocadores de conflitos com Peter e sua turma: os piratas.
Em meio a essas brincadeiras, chega a tia Millicent na casa dos Darling, uma senhora
de meia idade que olha com espanto o comportamento arruaceiro das crianças. No entanto,
seu olhar tenso e inquisitório parece demorar-se mais tempo em Wendy e na sua predileção
pelas estórias de marinheiros criminosos. Nesse momento entre piratas, bruxas e inquisições
silenciosas, a menina confidencia para todos os presentes na sala que deseja viver grandes
aventuras e ser uma escritora.
Logo seus sonhos são tolhidos e descredibilizados pela senhora Millicent que lhe
impõe um destino um tanto precoce para uma criança: o casamento. Wendy é jogada pela
primeira vez ao mundo dos adultos e, principalmente das mulheres, enquanto seus irmãos
menores olham com espanto essa constatação, afinal, a eles é permitido vivenciar todas as
peripécias da infância sem os olhares tortos de julgamentos cortantes. É inadmissível que
Wendy, uma mulher segundo Millicent e seus pais, comporte-se como uma criança, ou
melhor, como um menino, correndo pelos cantos da grande casa.
Mas as exigências de adequação aos estereótipos de gênero não param por aí. Quando
conhece Peter, Wendy demonstra estar totalmente seduzida por ele e pela possibilidade de
vivenciar a aventura que sempre buscava na ficção. No entanto, ao chegar na famosa Terra do
Nunca, a menina recebe uma proposta “inesperada” dos meninos perdidos. Ora, é
relativamente fácil adivinhar esse pedido: um bando de crianças sujas e carentes de figuras
afetivas em suas vidas e uma menina – mulher – que aparece num passe de mágica no céu de
Neverland. Eles a querem como mãe. Um ser humano totalmente desconhecido por todos é
incumbido dessa tarefa. Uma menina. Só isso.
Depois de todas as confusões que precedem esse episódio, Peter Pan e Wendy
começam a performar os papéis de mãe e pai assim como os meninos perdidos querem. E não
é pouco o que sabem sobre isso. É deveras revelador esse entendimento, inclusive. A
paternidade que Peter mimetiza é violenta e um tanto displicente e a maternidade encenada
por Wendy é amorosa, mas deveras assertiva. Em outro momento, ainda relacionado às
performances de gênero ligadas a configuração familiar, Wendy recebe uma proposta do
temido Capitão Gancho, arquirrival número um de Pan. Como a menina confessou que
sempre quis ser uma pirata, mais especificamente ser a bucaneira Jill, nome dado pela
própria, Hook lhe oferece a chance de fazer parte do bando.
Wendy quer contar a Peter as novidades, mas ele parece saber, de antemão, sobre a
Bucaneira Jill e desdenha totalmente dela, destacando que uma mulher nunca saberia
empunhar uma espada ou ser pirata. Ela prontamente releva ser a bucaneira e todos se
sobressaltam com o anúncio, parecendo temer a possibilidade de perca materna. Outra
questão é que, num determinado momento do filme, Wendy também precisa escolher entre
viver eternamente na Terra do Nunca ou voltar para a casa dos pais. Ao afirmar o desejo de
terminar com aquela viagem mágica, Pan praticamente lhe vira as costas. Mulheres estão
sempre imersas nessa necessidade de escolha; ou o amor ou os sonhos; ou o trabalho ou os
filhos; algumas dessas batalhas estão previamente perdidas e historicamente definidas. Temos
que renunciar inevitavelmente.
No entanto, sinto que algo passa despercebido aos olhos dos que desdenham da
capacidade crítica e filosófica dos contos de fada clássicos ou de suas releituras, como é o
caso desse filme. Peter foge do amor o tempo todo, só quer diversão e abster-se das
responsabilidades, enquanto isso, Wendy é praticamente obrigada a crescer, é sexualizada o
tempo inteiro e empurrada para a maternidade, mesmo que em nenhum momento tenha
confidenciado, nem com os pais ou telespectadores, o desejo de ser uma mãe.
Coincidentemente, ou não, Pan é um menino e Wendy, uma menina. Homens que não são
responsabilizados e mulheres responsabilizadas até demais. Ele pode não crescer, apesar de
em algum momento desejar; ela precisa crescer e renunciar.
Existem até “síndromes” associadas aos personagens principais do filme. Nomeadas
de síndrome de Peter Pan e síndrome de Wendy, elas estão relacionadas respectivamente com
uma recusa em crescer e com o cuidado excessivo sobre o outro, chegando as vias da
infantilização. Particularmente, desprezo, em partes, essas abordagens que visam patologizar
comportamentos frutos unicamente da socialização a partir de uma educação pautada no
machismo e em questões sociais, ideológicas e econômicas. Quer dizer, numa rápida pesquisa
no Google, as matérias sobre a síndrome de Peter Pan são quase integralmente compostas por
imagens de homens, ao passo de que as matérias sobre síndrome de Wendy são ilustradas por
mulheres em posição de cuidadoras, geralmente dos Peter fora da ficção.
É válido destacar que o filme problematiza justamente as questões postas. Essa
intencionalidade releva-se nas entrelinhas das falas e das imagens da película, constituindo-se
enquanto subtexto para a trama de Peter e Wendy. Não é uma vil coincidência que um
menino impossibilitado de crescer e uma menina compelida a casar desde cedo convivam e se
apaixonam ao mesmo tempo. Um irá suprir as demandas e faltas do outro. E, claro, a falta
que constitui o sujeito-mulher-menina, nesse sentido, é o casamento, a aprovação masculina.
É assim que entendo a jornada de amadurecimento feminino no filme. Todavia, vejamos
outra perspectiva sobre o assunto.
Nesse momento da viagem que iniciamos em Neverland, partimos para o outro lado
do mundo, onde uma menina percebia com desespero seus próprios pais serem transformados
em porcos. Ela vivia essa situação inusitada numa outra terra completamente desconhecida e
invisível para o resto da humanidade. Ela é Chihiro, a protagonista do filme vencedor do
Oscar de melhor animação de 2003, A viagem de Chihiro. Se a tia Millicent achava que a
maior aventura que uma mulher poderia ter era o casamento, Hayao Miyazaki estava disposto
a empurrar, literalmente, Chihiro pela escada que lhe proporcionaria uma viagem
“aventuresca”, cheia de percalços e confusões, que definiria os rumos da construção
identitária e do amadurecimento dessa personagem.
A trama de Chihiro se inicia num entediante percurso de mudança de cidade. Digo
entediante, porque a própria menina encontra-se extremamente aborrecida no banco de trás
do carro da família. Porém, essa “birra’ não duraria muito tempo. Os pais de Chihiro e a
própria param em frente a um túnel no meio do caminho. Pela necessidade com que eles
querem explorá-lo, parece que algo dentro daquela escuridão os atraem de uma forma
estranha. No final do túnel, um parque abandonado é encontrado e, ao inspecionarem mais os
arredores, eles se deparam com locais que servem comida. Chihiro encara com estranheza e
resistência essas iguarias expostas em pleno ar livre, no entanto, seus pais atacam tudo e no
final acabam se transformando em porcos.
Sozinha naquela terra desconhecida, o medo e a angústia da pequena garota são quase
palpáveis. A partir desse momento, ela sabia que não precisava apenas crescer, mas
principalmente lutar pela sua vida e pela sobrevivência de sua família. Durante todo esse
processo, Chihiro encontra pessoas dispostas a ajudá-la na concretização dos objetivos e na
resolução dos desafios que se impõem nesse caminho de autodescobertas. E mais do que
qualquer coisa, na narrativa, não há armas para manusear ou monstros horripilantes para
enfrentar. Para ela, os problemas dizem respeito a capacidade de adaptação, a necessidade de
tomar decisões, de lutar pelo que acredita e de manter-se firme aos seus valores e ideais. Essa
menina também transborda sentimentos e isso não é motivo de vergonha ou diminuição, nem
de fragilidade.
Quer dizer, a jornada da heroína do filme é bem diferente da jornada do herói no que
diz respeito ao amadurecimento e enfretamento das situações. Mais do que lutar contra
outros, Chihiro precisa transpor barreiras impostas por seus próprios medos e limitações
físicas. Mesmo com a ajuda de Haku, Lin e Kamaji, a menina desengonçada, como a própria
Lin pontua algumas vezes, tem que “terminar o que começou”, segundo o velho de seis
braços, Kamaji. Não que ela não use a força física para enfrentar ou conter alguém; ela faz
isso com o próprio Haku, quando este encontra-se totalmente machucado e perturbado depois
de ser exposto a um feitiço da Zeniba, irmã de Yubaba. No entanto, uma decisão que toma,
uma atitude que escandaliza ou um gesto de bondade e autenticidade que sensibiliza, tem, na
história, o poder de levá-la a lugares inimagináveis.
Em sua dissertação de mestrado intitulada “Mulheres e memória em Miyazaki: o
consumo da estética híbrida e transgressora do cinema de animação de Hayao Miyazaki”,
Horta (2017) pontua que o diretor atribui características positivas às mulheres. Por exemplo,
uma mulher vai até o final quando se propõe a realizar alguma tarefa, pois há definitivamente
uma vontade interior que a impulsiona. O diretor também acredita que as mulheres são mais
sábias, pois elas compreendem os inimigos e, por isso, são levadas a tomarem atitudes mais
racionais para enfrentá-los. Numa sociedade patriarcal como a japonesa, na qual as mulheres
são caracterizadas enquanto frágeis, submissas e possuidoras de vocação para o lar, Miyazaki
subverte essas noções, construindo uma memória diferente para elas.
A viagem de Chihiro é uma história sobre a aventura que mudou a vida dessa menina
e a ajudou na transição para a adolescência. Em Peter Pan, Wendy é amadurecida e
sexualizada pela socialização, pela repetição de um discurso que lhe (nos) impõe certos
papéis e expectativas mais rígidas em comparação com as atribuições dos meninos. Chihiro é
retirada do convívio com os pais e de sua mediação para viver uma experiência que mudaria
sua vida para sempre. É brusco, mas é só dela. O “amadurecimento” de Wendy é um evento
coletivo. Todos olham para essa menina, reparam em seus comportamentos, no seu corpo e
na sua vida. A conclusão mais óbvia é: definitivamente, Neverland não é um lugar para
mulheres. Mas confesso: gostaria de me perder e lutar nas terras de Miyazaki.

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