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A pele que habito

 Meu objetivo neste post é comentar o filme “A pele que habito” de Pedro
Almodóvar estabelecendo um diálogo entre minhas associações sobre o filme e
a psicanálise.
Não é desnecessário frisar que como se trata de uma obra de arte as
possibilidades interpretativas são várias e dependem do olhar do intérprete.

Para mim, nesta obra (assim como em outros filmes seus) Almodóvar pretende
convidar o espectador a refletir sobre a questão da identidade sexual e / ou de
gênero. Esta é uma discussão sempre espinhosa porque as
categorias homem e mulher são fortemente impregnadas por visões normativas
que foram sendo construídas e sedimentadas por séculos.
O que eu quero dizer é que, no senso comum, as pessoas tomam como óbvia a
ideia de que se um ser humano nasce com pênis, ele é um homem e se nasce com
uma vagina, é mulher. Por outro lado, Freud demonstrou no início do século XX
que a definição do que ser homem e do ser mulher é muito mais complexa no
humano do que julga o senso-comum. Vejamos o que ele descobriu nesse
sentido.

Freud descobriu que:


1. Na primeira infância crianças de ambos os sexos desconhecem completamente o
que é a mulher. O que existe para eles são: criaturas com pênis e criaturas sem
pênis. Traduzindo na linguagem infantil: os castrados e os não castrados.
2. Crianças de ambos os sexos carregam germes de bissexualidade. Isso significa
na prática que meninas sonharão em ter um pênis para poderem dar um bebê à
suas mães e que meninos desejarão utilizarem seus ânus e suas bocas como
vaginas para receberem o pênis do pai. Traduzindo em uma linguagem mais
simples: homens e mulheres carregam desde sempre em seus inconscientes o
desejo de estarem na pele do outro sexo.
Ou você, mulher, nunca se perguntou no momento do ato sexual como é sentir
prazer com um pênis? (É verdade que as mulheres sabem mais ou menos como é
isso porque têm um clitóris que funciona como um pequeno pênis)

E você, homem, nunca se perguntou como é sentir prazer tendo uma vagina (se é
igual ou diferente do prazer com um pênis) ou como é poder gerar um bebê em
seu próprio ventre?

Esta é uma fantasia inconsciente tão viva e presente que há vários filmes que
abordam esta temática, em um tom “leve” e bem humorado, é verdade. Só para
citar um, lembro-me do brasileiro “E se eu fosse você?” que fez enorme sucesso
no Brasil anos atrás.
E aqui chegamos ao ponto central da discussão do filme!
Almodóvar faz junto do telespectador a seguinte indagação:

1. Será possível, em um futuro não tão distante e, graças ao avanço


desmesurado da tecnologia genética, concretizarmos este desejo até hoje
inconsciente e irrealizável: o de um homem se transformar totalmente em
uma mulher e vice-versa?
Com Robert, ele antevê que sim! Que num futuro não tão longínquo a medicina
genética poderá produzir peles transgênicas, resistentes ao fogo e, quem sabe, ao
envelhecimento e à morte.

Que num futuro não tão longínquo a cirurgia plástica terá recursos para
transformar integralmente um homem em uma mulher realizando um desejo
inconsciente atávico no humano: o de poder viver na pele do outro sexo.

E quando isso acontecer?


Pergunto-me que impactos a concretização na realidade do desejo inconsciente
de bissexualidade teria no psiquismo do ser humano.

No filme de Almodóvar, a criatura mata o criador. Haveria um apelo esperançoso


do cineasta nesse sentido? Seria um apelo onde a criatura (o Vicente dentro da
Vera) se rebela e acusa o roubo de sua identidade, já bastante precária de saída, é
verdade? Seria um aceno no sentido de que a tecnologia e o avanço desmesurado
do desejo sem limites (pelo poder de brincar de Deus), representada por Robert
com sua onipotência, não vai se impor sobre nossa já tão fragilizada
subjetividade humana dos tempos atuais?

Gostaria de pensar que sim. Que no final haverá um apelo de vida no sentido de
podermos resgatar um valor fundamental que tem se perdido na atualidade: o de
que não podemos mexer na natureza das coisas. Dito de outro modo: que o
homem não pode querer ser Deus, o que significa que ele não tem controle
sobre a morte nem sobre a natureza.
Entretanto, o que eu vejo na realidade aponta na contramão deste meu sentimento
esperançoso. Vejo a tecnologia reprodutiva trabalhando à serviço do dinheiro e
promovendo arranjos desmesurados como, por exemplo:

1. A inseminação artificial de uma mulher pelo sêmen congelado de seu marido


morto há dez anos!
2. A fertilização de casais que, aferradas a um desejo insaciável de “terem um filho
a qualquer custo” nunca pararam para se questionarem seriamente o que significa
gerar um criança. Ou, porque é que seus corpos não estão conseguindo gerar um
bebê? Não haveria um recado da natureza para ser ouvido aí?
3. Testes genéticos mirabolantes para averiguar chances de desenvolver câncer
(refiro-me ao caso de Angelina Jolie) diante dos quais me pergunto: OK, ela não
vai morrer de câncer, mas não vai morrer de qualquer outra coisa? Todos nós não
morremos um dia?

Identidades precárias
Chama a atenção do telespectador atento alguns fatos sobre o comportamento de
Vicente, o rapaz que estuprou a filha de Robert, o que nos leva a algumas
perguntas:

1. Porque ele /ela não deu um jeito de fugir e de denunciar Robert à polícia?
2. Onde foi parar sua memória a respeito do que fez quando era Vicente?
3. Porque ele / ela dorme com Robert, sai para comprar roupas femininas, etc?
Uma resposta possível é: no seu inconsciente havia um desejo por se tornar
mulher. Dito de outro modo: Vicente vivia um conflito de identidade sexual fruto
que se refletia em um sentimento de identidade bastante precário.

Este senso precário de identidade fica claro no início: Vicente fala várias vezes
que queria deixar aquele lugar, o que significa deixar de ser aquilo que ele era
(quando dizemos que queremos ir para “outro lugar” estamos dizendo que
“queremos ser outros”).

Na cena em que ele aparece vestindo uma manequim na loja de sua mãe o
conflito de identidade sexual transparece: ele veste o manequim de palha (não é
uma bela metáfora para as identidades atuais?) com esmero e dedicação ao
mesmo tempo que lhe aperta os seios inexistentes. Ele quer vestir-se como
mulher e ao mesmo tempo quer apalpar seios de mulher.

A garota lésbica que trabalha na loja de sua mãe capta o seu dilema e, diante do
vestido que ele lhe dá, ela diz: Vista você mesmo; algo que ele / ela realiza no
final do filme, pois quando procura a mãe como Vera está vestindo-o.

Penso que se este conflito identitário não estivesse já instalado dentro dele ele
não teria estuprado a filha de Robert (o que é o estupro senão ódio à mulher?) e
não teria deixado o médico transformá-lo em mulher. Teria arrumado um jeito de
fugir. Se ele ficava, penso que uma fantasia inconsciente sua – a de virar mulher
– estava sendo realizada.

Por outro lado, se você observou atentamente o filme se lembrará que Vicente /
Vera desenhava com frequência uma imagem na parede do seu quarto-prisão:
uma mulher com vagina com uma casa no lugar da cabeça. Esta imagem
concretiza de forma patente o seu conflito entre ser Vicente e ser Vera. Dito de
outro modo: o que dilacerava o identidade de Vicente era que ele estava dividido
entre o seu desejo de ser homem e de ser mulher, entre o desejo de voltar para
casa (como Vicente) e de permanecer com Robert (como Vera).
Robert também tinha uma identidade dilacerada, assim como todos os
personagens do filme. Mas o dilaceramento identitário de Robert se dava por
outro motivo: pela luta entre sua arrogância e sua humanidade. No mais íntimo
de si mesmo, Robert odiava ser humano e não poder salvar sua esposa; ele odiava
ter que suportar a morte e a perda daquilo que se ama; ele odiava ter uma pele
frágil que queima e que perece ao tempo. Este dilaceramento desestruturante vai
estourar, não nele, mas em sua filha que enlouquece e se mata como a mãe.

No fundo, penso que Vicente e Robert eram semelhantes: ambos não estavam em
paz nas peles que habitavam. A mãe-criada de Robert percebe o desajuste de
Robert quando diz que depois do acidente com sua esposa, eles viviam como
vampiros: no escuro e sem espelhos. Viver sem espelhos significa temer se olhar
no espelho e ver refletida a própria imagem dilacerada e disforme.

Mas, voltemos à Vicente que, ao contrário de Robert (que é morto no final)


representa um sopro de esperança frente ao dilaceramento de alma.

No final do filme, diante do seu conflito identitário entre viver uma “nova” vida
como Vera ou ir de encontro ao que deixara pra trás como Vicente, ele faz uma
escolhe: escolhe retornar a sua casa, às suas origens.

O desejo de voltar para casa


Penso que há aí um movimento de esperança: Vicente quer reencontrar a vida
que tanto rejeitara e estragara. Ele quer voltar para a casa e, quem sabe, fazer as
reparações necessárias. O aspecto dramático disso é que ele nunca mais será
Vicente (o que foi feito de sua memória?) e tampouco é Vera. As consequências
do seu desejo de estar na pele de outro foram fatais e inexoráveis. Não há retorno
para o que ele se deixou fazer.

Com isso, penso que o filme nos serve como alerta: não se pode querer ser outro;
não sem consequências sérias para aquilo que somos.

Sou responsável pela pele que habito


Nietzsche diz algo valioso sobre o porque adoecemos na alma. Ele diz que a
doença advém porque nós recusamos, em algum momento de nossas vidas, nos
responsabilizar por aquilo que somos. Por preguiça, covardia ou medo nós damos
às costas aos nossos atos e simplesmente achamos que podemos deixar tudo para
trás e começar de novo!
Ledo engano! Para Nietzsche, o preço que pagamos por este ideal ilusório é a
doença. Viramos vampiros que não podem mais enxergar a luz do sol (porque na
luz do sol a verdade sobre nós mesmos fica escancarada).

Então, o que precisamos considerar como humanos é que não podemos nos
desresponsabilizar por aquilo que somos, nos aspectos positivos e negativos. A
pele que habitamos pode ser uma espécie de santuário sagrado ou uma prisão
terrificante. Tudo dependerá do quanto cada um de nós poderá suportar enxergar
a verdade, por mais dolorosa e terrível que seja.

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