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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO


ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PPGEC – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO
SENSU EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

ALEX DURÃES BARBOSA

“O QUE ESTAMOS FAZENDO?”


A EDUCAÇÃO E SUA INTERFACE COM A VITA ACTIVA À
LUZ DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

IJUÍ – RS
2021
1

ALEX DURÃES BARBOSA

“O QUE ESTAMOS FAZENDO?”


A EDUCAÇÃO E SUA INTERFACE COM A VITA ACTIVA À
LUZ DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Educação nas Ciências, da
Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ),
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação nas
Ciências.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Evaldo


Fensterseifer

IJUÍ – RS
2021
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4

Dedico essa pesquisa aos vocacionados à


educação; aos peregrinos e sedentos de
conhecimento sobre a condição humana.
5

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha família pela compreensão e apoio


diante do processo de pesquisa e escrita. Também
agradecer aos professores Celso Martinazzo e ao
Professor Paulo Evaldo Fensterseifer que com
maestria orientou esse procedimento de pesquisa e
aos meus colegas, trabalhadores da categoria da
alimentação. Estendo com carinho, meus
agradecimentos a todos os professores da UNIJUÍ,
por ter a honra de conhecê-los e de contar com suas
contribuições nessa pesquisa, em especial, a Paulo
Evaldo Fensterseifer, José Pedro Boufleuer, Walter
Frantz, Vânia Cossetin e Sidnei Pithan da Silva, pois
ao ministrarem suas disciplinas levavam-nos a
“coçar” a cabeça numa atitude reflexiva e
inquietante. Ao prof. Domingues Benedetti que junto
a José Pedro Boufleuer, com sabedoria ajudou muito
nesse debate apontando algumas direções no
percurso de escrita e reflexão desta pesquisa.
6

Parece-me que aqueles que se assustam demasiadamente


com os nossos progressos técnicos confundem os fins com
os meios. Com efeito, quem quer que lute, unicamente
esperançado nos bens materiais, não recolhe nada por que
valha a pena viver. Mas a máquina não é um fim, é um meio,
como a charrua. Se pensamos que a máquina estraga o
homem, é talvez porque nos falta a distância necessária
para conhecermos efeitos de transformação tão rápido como
os que temos sofrido. Que representam os cem anos de
história da máquina, comparados com cem mil de história do
homem? Há muito pouco tempo ainda que estamos
instalados nesta paisagem de minas e centrais elétricas. Há
muito pouco tempo que começávamos a habitar esta nova
casa que ainda nem sequer acabamos de construir. Tudo
mudou tão rapidamente à nossa volta: as relações entre os
homens, as condições de trabalho, os costumes... cada
progresso nos afasta um pouco mais dos hábitos que
tínhamos adquirido e somos verdadeiramente emigrantes
que ainda não fundaram a sua pátria. No entusiasmo dos
nossos progressos, obrigamos os homens a servir para a
montagem de linhas férreas, a construção de fábricas, a
perfuração de poços de petróleo. E esquecemo-nos um
pouco de que essas construções se destinavam a servir o
homem. Precisamos tornar viva esta nova casa que ainda
não tem rosto. Se a missão de uns foi construir, a de outro é
habitar. Sem dúvida que a nossa casa se tornará, a pouco e
pouco mais humana.

[SAINT-EXUPÈRY – Terra dos Homens]


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GLOSSÁRIO DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CASA O Conceito de Amor em Santo Agostinho


CH Condição Humana
DP Dignidade da Política
EJ Eichmann em Jerusalém
EPF Entre o Passado e o Futuro
HTS Homens em Tempos Sombrios
LFPK Lições sobre a Filosofia Política de Kant
LSL Liberdade para Ser Livre
OT Origens do Totalitarismo
SV Sobre a Violência
TOA Trabalho Obra Ação
VE I A Vida do Espírito
VE II A Vida do Espírito
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RESUMO

Esta dissertação tematiza a relação da educação com a vita activa na


responsabilidade pelo mundo. Os conceitos de nascimento e a inserção dos novos
no mundo transcorrem o pensamento arendtiano nas obras “A Crise da Educação” e
“A Condição Humana”. Isso coloca-nos em movimento para investigar com mais
precisão a respeito do tema abordado: “O que estamos fazendo?” Educação e sua
interface com a vita activa à luz do pensamento de Hannah Arendt. Apesar de
Arendt não fornecer elementos diretos a respeito da temática, encontram-se em
seus escritos vários apontamentos que indicam para a responsabilidade da
educação no cuidado do mundo comum, que manifesta-se na interface com a vita
activa. Arendt, ao considerar que a educação se situa no campo pré-político, abre
caminhos para sustentar, nesta pesquisa, que, além de existir uma relação essencial
que perpassa os seus escritos a respeito da educação e as atividades elementares
da vita activa, a educação cumpre uma tarefa fundamental na manutenção do
mundo para posteriores gerações, ao mesmo tempo em que cumpre o papel de
despertar no educando o pensamento reflexivo. Esta pesquisa é de natureza
bibliográfica, orientada por um procedimento hermenêutico/analítico dos textos
arendtianos. O trabalho estrutura-se em três capítulos: o primeiro analisa o conceito
de educação arendtiano no texto “A crise na educação”, que diz respeito à
conservação e responsabilidade com os recém-chegados; no segundo, analisa-se a
vita activa e suas interfaces com as categorias de trabalho, obra (fabricação) e ação,
explicitadas no texto “A Condição Humana”, em que se busca compreender o
conceito de mundo como sentido último para a formação dos novos; no terceiro e
último capítulo é abordada a noção de condição humana e sua relevância para a
educação, do que resulta a indicação de que um bom pedagogo é antes de tudo um
bom conhecedor da condição humana, e que nos leva a refletir acerca da pergunta
posta em movimento a partir de Arendt: o que estamos fazendo?

Palavras-chave: Educação. Recém-chegados. Pensamento reflexivo. Vita activa.


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ABSTRACT

This dissertation discusses the relationship between education and vita activa in
responsibility for the world. The concepts of birth and the insertion of new people in
the world are reflected in arendtian thought in the works “The Education Crisis” and
“The Human Condition”. This makes it possible to set in motion an investigation with
more precision regarding the topic addressed: “What are we doing?” education and
its interface with vita activa in the light of Hannah Arendt's thought. Although Arendt
does not provide direct elements about the theme, there are, in her writings, several
notes that agree with the responsibility of education in caring for the common world,
which is manifested in the interface with the vita activa. Arendt, considering that
education is located in the pre-political field, opens paths to support, in this research,
that, in addition to an essential relationship that permeates his writings on education
and the elementary activities of the vita activa, education it fulfills a fundamental task
in maintaining the world for future generations while at the same time fulfilling the role
of awakening us by educating reflective thinking. Therefore, this research is
bibliographical in nature guided by a hermeneutic/analytical procedure of arendtian
texts. Thus, this work is structured in three chapters: the first analyzes the arendtian
concept of education in the text “The crisis in education”, which concerns
conservation and responsibility towards newcomers; in the second, the vita activa
and its work, work (manufacturing) action interfaces are analyzed, based on the work
“The Human Condition”, in order to understand the concept of the world as the
ultimate meaning for the formation of new ones; in the third chapter, the human
condition and its relevance to education are addressed, by which it is considered that
a good pedagogue is above all a good connoisseur of the human condition, and thus
reflects on the question that Arendt poses in movement: what are we doing?

Keywords: Education. World. New arrivals. Vita active.


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RÉSUMÉ

Cette thèse se concentre sur la relation entre l'éducation et la vie active dans la
responsabilité du monde. Le fait que les concepts de naissance et l'insertion du
nouveau dans le monde arendtian la pensée dans les œuvres, la crise de l'éducation
et de la condition humaine, nous met en mouvement pour enquêter plus précisément
sur le sujet abordé. Malgré Arendt, ne fournissent pas d'éléments droits thématiques,
il y a plusieurs notes dans ses écrits qu'il partage avec la responsabilité de
l'éducation, dans le soin du monde commun, se manifestant dans l'interface avec la
vie active. Arendt quand considérant l'éducation comme appartenant au domaine
prépolitique, il ouvre la voie à soutenir dans cette recherche qu'en plus de l'existence
d'une relation essentielle qui imprègne ses écrits sur l'éducation et les activités
élémentaires de la vie active, l'éducation remplit un tâche fondamentale dans le
maintien du monde pour les générations futures. Cette recherche est de nature
bibliographique guidée par une procédure herméneutique/analytique des textes
arendtiens. Ce travail est structuré en trois chapitres: le premier analyse le concept
d'éducation arendtienne dans le texte «La crise de l'éducation» analysant l'éducation
comme conservation et responsabilité comme les nouveaux arrivants; dans le
second, il analyse la vie et ses interfaces, à partir de l'œuvre “La condition humaine”,
analysant les activités de l'action de travail (fabrication) et analysant le concept du
monde comme sens ultime de la formation du les nouvelles; Dans le troisième
chapitre, il discute du concept anthropologique d'Arendt en partant du principe qu'un
bon éducateur est avant tout un bon anthropologue et réfléchissant ainsi à la
question qui met Arendt en mouvement, que faisons-nous?

Mots Clés: Éducation. Vie active. Nouveaux arrivants. Monde.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................. 12

1 EDUCAÇÃO E MUNDO COMUM ................................................................. 21


1.1 DISTINÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E POLÍTICA ............................................ 22
1.2 A RESPONSABILIDADE DOS PAIS NA EDUCAÇÃO .................................. 28
1.3 ESCOLA: LUGAR DE INSERÇÃO AO MUNDO............................................ 35

2 AS INTERFACES DA VITA ACTIVA ............................................................ 41


2.1 AS INTERFACES DO TRABALHO E DA OBRA ........................................... 43
2.2 INVERSÃO DA VITA CONTEMPLATIVA E VITA ACTIVA ............................ 51
2.3 A AÇÃO E SUAS INTERFACES: AMOR MUNDI .......................................... 54

3 CONDIÇÃO HUMANA E EDUCAÇÃO ......................................................... 59


3.1 COMPREENSÃO DO HOMEM COMO SER PENSANTE............................. 60
3.2 A AUSÊNCIA DE PENSAMENTO E A GERAÇÃO DE SONÂMBULOS ....... 64
3.3 ESCOLA: LUGAR DO ÓCIO E DO PENSAMENTO REFLEXIVO................. 71

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 77

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 80
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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa consiste em pensar a educação com base no


pensamento da filósofa Hannah Arendt, e, em simultâneo, pensar na perspectiva da
vita activa e relacioná-la posteriormente com a vita contemplativa, partindo do
pressuposto de refletir sobre “o que estamos fazendo?”. Considera-se que o que
está em pauta neste trabalho é uma pesquisa bibliográfica e dissertativa acerca do
pensamento de Hannah Arendt, focando numa dimensão específica de suas obras,
ou seja, a reflexão sobre educação e a vita activa. O objetivo é analisar de que forma
essa tematização permite refletir sobre a educação, especialmente no que se refere
à responsabilidade pelo mundo.
Portanto, esta pesquisa deve-se ao fato de que após o término do curso de
bacharel em Teologia, com a intenção de não permanecer na inércia intelectual, e
querendo aprofundar mais no conhecimento sobre a condição humana senti-me
obrigado a realizar novas leituras no campo das ciências humanas como na filosofia,
antropologia e teologia. Ao retornar aos estudos esporádicos de filosofia, com o
intuito de compreender como ocorre a relação de trabalho na contemporaneidade,
encontrei na obra A Condição Humana (2016)1, da autora Hannah Arendt2,
elementos distintos daqueles que havia estudado até então. Isto porque, ela analisa
a condição humana a partir da perspectiva política e consegue delinear com
precisão o conceito de vita activa. Não obstante, é uma obra que aponta elementos
teóricos fundamentais que permitem compreender a condição humana na
contemporaneidade.
No processo de estudo das obras de Hannah Arendt pude perceber haver
um fio condutor em seu pensamento que interliga a compreensão de educação, no
texto A Crise da Educação, do livro Entre o Passado e o Futuro (2014), com a vita
activa3, na obra A Condição Humana (CH)4. A partir disso, diante da necessidade de

1A primeira publicação da obra A Condição Humana foi realizada no ano de 1958, no idioma inglês H.
Arendt, The Human Condition, Chicago, University of Chicago Press, 1958. Segundo Arendt, o título
foi cunhado pelo editor, pois modestamente a autora queria “Investigação acerca de a vita activa”. A
versão da obra que usamos aqui é de tradução realizada por Rodrigo Raposo, publicada em 2016.
2As obras de Hannah Arendt, serão citadas conforme o glossário das obras, seguidos pelo ano de

publicação, seguida pela paginação.


3Para Arendt (2016), o termo refere-se a três atividades fundamentais da condição humana do

homem: trabalho, obra e ação.


4As obras de Hannah Arendt serão citadas e referenciadas conforme lista de abreviatura, em vista de

facilitar a conferência dos textos citados.


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colocar ao crivo da ciência os estudos até então desenvolvidos e de contribuir com o


debate “travado” ao longo da tradição sobre a condição humana, matriculei-me no
curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências. O
desafio enfrentado é imenso, posto que é necessário empregar esforço na
compreensão e ordenação dos conceitos e escritos da autora, visto que não são
óbvias as suas linhas de pensamento impressas em diversas obras.
Ao partir do pressuposto que há uma estreita relação entre educação e as
manifestações elementares da condição humana, trabalho, obra/fabricação e ação,
compreende-se a existência de um novo paradigma da compreensão de mundo.
Para o qual o homem conhece e cria o mundo e há interação e transformação entre
ambos.
Nesse contexto, o processo educativo na contemporaneidade, proposto pelo
estado republicano e as instituições de ensino particulares, estão direcionando à
formação ou à preparação da criança e do jovem para o mercado de trabalho. Não é
de se estranhar que os lemas das instituições5 de ensino, das faculdades e das
universidades estejam, implícita ou explicitamente, voltados ao mercado de trabalho.
Diante desse cenário, compreende-se o motivo que está ocasionando a
devastadora extinção dos cursos universitários denominados Ciências Humanas,

5Em uma análise Teológica, as instituições de ensino investem sobre si, a perspectiva da Teologia da
Prosperidade, que consequentemente se opõe à Teologia da Cruz. Essa constatação, apesar de
aparentemente ser insignificante, permite compreender e analisar, a partir de uma análise mais
precisa, a educação e as manifestações das relações humanas no mundo atualmente. Isso porque a
Teologia da Prosperidade tem como princípio o bem-estar-social, já a Teologia da Cruz busca a
libertação da realidade de opressão. Essas compreensões desencadearam nas últimas décadas, no
confronto de compreensão da teologia da libertação e da teologia tradicional. Pleyers (2020), em seu
artigo, publicado pela University of Louvain – Louvain-la-Neuve, Bélgica, com o título A “guerra dos
deuses no Brasil: da teologia da libertação à eleição de Bolsonaro”, faz uma análise de como a
política nacional é movida por brigas teológicas e como a abrangência das transformações no campo
religioso tem-se transformado rapidamente. Segundo Pleyers (2020), “A religião desempenha um
papel na política na maioria dos países da América do Sul. O espaço político do continente tem sido a
longo prazo, um dos espaços privilegiados de ação de grupos e atores religiosos em suas estratégias
de construção de identidade e posicionamento institucional” [...]. Ainda assim, chamam a atenção, no
Brasil, a dimensão e a velocidade da evolução do panorama político-religioso, bem como a amplitude
do protagonismo político de um determinado setor dos evangélicos, em particular entre os fiéis das
igrejas Neopentecostais (PLEYERS, 2020, p. 2). Para Pleyers (2020, p. 11), na América Latina, o
Brasil é um dos principais campos de batalha de uma “guerra dos deuses”. Segundo ele essa batalha
é entre um conjunto de visões progressistas do cristianismo, realizadas por católicos e protestantes
que colocam as questões sociais no âmago de seu compromisso, e visões conservadoras, para as
quais os assuntos morais, principalmente relacionados à sexualidade (homossexualidade, aborto,
divórcio) estão no centro do compromisso cristão. Essas duas correntes têm visões de mundo e
convicções religiosas radicalmente opostas. Os primeiros apelam a uma vida humilde e são críticos
do capitalismo e de certas dimensões da modernidade [...]. Ao contrário, a Teologia da Prosperidade,
defendida pelos segundos, apoia o capitalismo neoliberal e convida a ver no sucesso econômico uma
recompensa divina pela probidade moral e pela devoção a Deus e à sua igreja, incluindo orações e
pagamento do dízimo.
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pautado na concepção errônea de que não oferecem aos jovens uma carreira
profissional. São pouquíssimos os cursos que ainda mantêm forças para resistir à
avalanche de desprezo contra a referida área. Não à toa, no Brasil 6, não é mais
obrigatório o ensino da Filosofia e da Sociologia nas instituições escolares da
Educação Básica, visto que se enfatiza a presença curricular de disciplinas mais
adequadas ao mercado de trabalho7.
Outro fator importante a ser discutido junto às obras de Arendt, e em que, se
situa a educação, refere-se ao fato de que na contemporaneidade os interesses
particulares assumem caráter e predominância pública. Resultado dessa situação é
que a discussão política não rege a sociedade, ao contrário, a política se subordina à
economia, regida pelo capital. A sociedade contemporânea ao subordinar a política à
economia parte para a relação de meio e fim, reduz o homem em coisas, como
mercadorias, e em objetos substituíveis, reduzidos aos valores de troca. Assim, para
pensar a sociedade e as relações sociais, a economia é o fator absoluto, o qual

6O debate sobre o ensino das ciências humanas no ensino médio acontece desde a Lei nº 4.024, de
20 de dezembro de 1961 que retira a obrigatoriedade do ensino da filosofia no Brasil, mas diante do
movimento e dos debates causados no âmbito acadêmico, foi retornado à obrigatoriedade do ensino
da filosofia. Contudo, esse debate veio à tona novamente com a Lei nº 13.415 de 2017 que retirou a
obrigatoriedade da disciplina de Filosofia no ensino médio das escolas brasileiras.
7Os grandes defensores da escola pública Masschelein e Simons (2013) apresentam diversas críticas

que a escola sofre constantemente por parte da sociedade. Eles realizam todos os esforços salutares
em defesa da escola. Traremos diante da pesquisa a contribuição desses autores. Apresentando as
críticas eles expõem: “A alienação é uma acusação recorrente dirigida contra a escola. Essa
acusação existiu e continua a existir em diversas variáveis. As matérias ensinadas na escola não são
‘mundanas’ o suficiente. Os temas são ‘artificiais’. A escola não prepara seus alunos para a ‘vida real’.
Para alguns, isso significa que a escola não leva suficientemente em conta as necessidades reais do
mercado de trabalho. Para outros, isso significa que a escola coloca ênfase demais na ligação entre a
escola e o mercado de trabalho ou entre a escola e as exigências do sistema de ensino superior.
Essas preocupações, assim dizem os críticos, tornam a escola incapaz de proporcionar aos jovens
uma ampla educação geral que os prepare para a vida como um adulto. O foco no currículo escolar
não permite, de modo algum, uma conexão real com o mundo, tal como este é experimentado pelos
alunos. A escola, portanto, não só se fecha para a sociedade, mas também se fecha às necessidades
dos jovens. Presa em seu próprio senso de autojustiça, a escola é acusada de ser uma ilha que não
faz nada (e não pode fazer nada), mas aliena os jovens de si mesmos ou do seu entorno social.
Enquanto os moderados acreditam que a própria escola é capaz de mudar e, desse modo, pedir
maior abertura e pragmatismo, as vozes radicais insistem que essa alienação e desconexão são
características de todas as formas de educação escolar. Assim defendem o fim da escola. De
qualquer modo, todas essas críticas partem da premissa de que a educação e a aprendizagem
devem ter ligações claras e visíveis com o mundo, do modo como este é experienciado pelos jovens,
e com a sociedade como um todo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 5). Portanto, nosso problema
de investigação deve-se à lacuna deixada na educação. Os apontamentos elaborados por Arendt a
respeito da crise da educação ainda não foram solucionados. O esforço nesta pesquisa é apontar o
entrelaçamento do processo educativo com a vita activa manifestada nas atividades da condição
humana; trabalho, obra e ação. Precisa-se compreender que os problemas da educação estão além
da compreensão dos problemas escolares, pois se a escola é criação humana cultural, a educação,
ao contrário, faz parte da condição humana. Embora, ainda se tenha essa criação humana “escola”
como o meio mais eficaz da educação. No entanto, acreditamos que nossa reflexão está além dos
apontamentos apresentados por Masschelein e Simons.
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substitui a ação política da palavra instituidora da pluralidade humana pelo


comportamento homogêneo e conformista, guiado por interesse único e pela opinião
predominante. A ação que prima pela relação entre homens e que resguarda a
diferença da individualidade e que é tão valiosa no pensamento arendtiano parece
não encontrar lugar na contemporaneidade.
No ano de 2020 celebrou-se 45 anos do falecimento de Hannah Arendt.
Apesar de ter partido do mundo dos vivos, suas ideias permanecem bem presentes
e suas palavras ecoam cada vez mais através de estudiosos e pesquisadores que
procuram entender a condição humana. Desse modo, na busca por compreender a
teoria dessa grande pensadora, será realizado um processo analítico e seguido por
um processo hermenêutico, com a finalidade de contribuir para o debate sobre a
importância da educação na responsabilidade pelo mundo comum. Para tanto, será
analisado desde o processo do nascimento à vida ativa.
A tarefa que se encontra aqui é desafiante, pois pretendemos
hermeneuticamente analisar a concepção de mundo de Arendt. Para a autora, o
mundo é como um artificialismo humano, que se torna palco das aparências e abriga
o cabedal de conhecimentos, significados, virtudes, linguagens, instituições histórias
e costumes, e que abrange, de tal forma, a esfera pública da relação humana.
A preocupação de Arendt consiste no cuidado com o mundo, contudo, cuidar
do mundo não significa cuidar dos homens em si, seres no e do mundo. Para a
autora, o mundo é um espaço construído pelos seres humanos por intermédio de
sua ação e seu trabalho, por isso a educação é o ponto culminante para Arendt. É a
partir da educação que os homens decidem se amam o mundo, se conseguem
assumir responsabilidade por ele e se conseguem salvá-lo das ruínas que são
inevitáveis a cada nova geração.
Igualmente, é por meio da educação que se decide se os adultos amam as
crianças, os recém-chegados ao mundo, suficientemente para não expulsá-las e/ou
abandoná-las “[...] a seus próprios recursos. Tampouco arrancar de suas mãos a
oportunidade de empreender algo novo e imprevisto para nós, preparando-as em
vez disso com a antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum” (EPF,
2014, p. 247)8. No entanto, diz Arendt que “estamos sempre educando para um
mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha, pois, é essa a situação

8Como veremos adiante, para Arendt, a educação é conservadora no sentido de objetivar preservar o
mundo das “interfaces” momentâneas e do modismo.
16

humana básica” (EPF, 2014, p. 243). Assim, para “preservar o mundo contra a
mortalidade de seus criadores e habitantes, ele deve ser, continuamente, posto em
ordem” (EPF, 2014, p. 243).
Apesar de Arendt não se considerar como filósofa, mas como pensadora
política, sua maior preocupação em A Condição Humana era de combater a cultura
do descarte. Após viver a Segunda Guerra Mundial, passou a se preocupar em
como os humanos estavam se tornando cada vez mais insignificantes. Essa
insignificância é fruto do mundo que foi criado, portanto, suscetível à reconstrução
de novas possibilidades de mundo comum.
Diante disso, na referida obra, o objetivo de Arendt é propor uma
reconsideração da condição humana considerando “nossas mais novas experiências
e nossos temores mais recentes presentes em nosso tempo” (CH, 2016, p. 6). Ela
propõe “refletir sobre o que estamos fazendo” (CH, 2016, p. 6), e esse é o
questionamento que conduz sua investigação, tema central do livro, o qual aborda
as manifestações elementares da condição humana. Para a autora, os homens são
condicionados a sua própria condição de humano e às três atividades que fazem
parte dessa condição são: trabalho, obra/fabricação e a ação9.

9Há aqui um problema de linguagem no qual se expressa o limite de tradução. Há um debate entre os
estudiosos do pensamento arendtiano e uma forte crítica sobre a tradução da obra, realizada por
Roberto Raposo, para o idioma de Língua Portuguesa. Em nota técnica na obra traduzida (ARENDT,
2016), Adriano Correia apresenta os limites da tradução, principalmente quando se trata do conceito
de labor e work. Theresa Calvet de Magalhães, em ensaio publicado pela revista Ética & Filosofia
Política (2006), intitulado como A atividade humana do trabalho [labor] em Hannah Arendt, diz que: “a
distinção entre trabalho [labor], obra [work] e ação [action] deveria ser examinada acentuando o ponto
de vista temporal da durabilidade dessas diferentes atividades humanas. Esta sugestão de Ricoeur,
esta sua escolha de leitura, não elimina todo um questionamento quanto à coerência e plena validez
da tríade trabalho-obra ação. Infelizmente, a tradução de Roberto Raposo não nos ajuda, mas apenas
dificulta, confunde e até impede a compreensão desta distinção” (MAGALHÃES, 2006, p. 2). Mais
adiante no ensaio, Magalhães é categórico ao afirmar que ao traduzir por labor e trabalho (?) a
distinção proposta por Arendt entre trabalho [labor; Arbeit] e obra ou fabricação [work; Werk ou das
Herstellen], Roberto Raposo (mas também Celso Lafer, na Introdução da obra de Arendt, cujo título é
“A Política e a Condição Humana”, p. V) deturpa o sentido dessa distinção, dizendo que o leitor
inevitavelmente ficará confuso ao abordar em particular o terceiro e o quarto capítulos de A Condição
Humana. Fica difícil compreender toda a polêmica antimoderna de Arendt, sua crítica ao conceito de
trabalho [Arbeit] em Marx e à importância atribuída, na era moderna, ao conceito de trabalho
produtivo [productive labor]. No original inglês não há a expressão “productive work” quando Arendt
se refere a Adam Smith e a Karl Marx, mas “productive labor”. Ao traduzir “labor” ou “Arbeit” por labor,
e “work” ou “Werk” por trabalho – uma tradução não apenas infeliz, mas incorreta – Roberto Raposo
ficou sem saber como traduzir a expressão “productive labor” e preferiu traduzi-la por trabalho
produtivo, mas, uma vez que ele próprio convencionou traduzir “work” por trabalho (quando deveria
ter traduzido esse termo por obra ou fabricação), o leitor fica aqui sem saber se Hannah Arendt, ao
usar essa expressão, está se referindo à sua própria concepção do trabalho [labor ou Arbeit] ou à sua
concepção da obra [work ou Werk]. Do mesmo modo, em nenhum momento Arendt traduz a noção
de “processo de trabalho” [Arbeits-Prozess] em Marx por work-process, mas sempre por labor-
process. O tradutor, que decidiu traduzir “labor” por labor, não ousou traduzir “labor-process” por
processo de labor e preferiu (sua escolha está correta) a expressão “processo de trabalho”. Tendo
17

O trabalho diz respeito àquelas atividades necessárias para a manutenção


da vida, como, por exemplo, cozinhar, cultivar seus próprios alimentos: “o trabalho é
a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano [...] a condição
humana do trabalho é a própria vida” (CH, 2016, p. 10). Já “a obra é a atividade
correspondente à não naturalidade da existência humana [...] a condição humana da
obra é a mundanidade” (CH, 2016, p. 10). Ou seja, trata-se da fabricação de
utensílios que fazem parte do cotidiano dos humanos e que são parte da sua
existência, como, por exemplo, “internet”, aplicativos, utensílios que são diariamente
utilizados, etc. No que lhe concerne, a ação, para Arendt, é a “única atividade que
ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria,
corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens e não o
Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” (CH, 2016, p. 10); logo, localiza-se
estritamente no campo político, pois pressupõem sempre a participação do outro.
Essas três atividades humanas destacadas pela filósofa estão intimamente
ligadas ao nascimento, ou seja, à natalidade. Trabalho e Obra se preocupam por
preservar a subsistência humana, e implicam cuidado consigo e com o mundo.
Todavia, é a ação que apresenta a perfeição do nascimento, já que permite a
participação na vida pública e a relação entre os homens. Nesse sentido, a
natalidade se apresenta como centro de tudo, é uma abertura ao diálogo e à
pluralidade, e está ligada intrinsecamente à ação. A natalidade é a essência da
política, pois é a partir daí que os sujeitos podem ser e agir no mundo. Assim, a
atenção com o agir dos novos sujeitos é o que possibilita as transformações na
sociedade, e a preocupação da humanidade com a natalidade é o que gera um
espaço onde todos podem participar com responsabilidade e com sentido de
pertença no mundo.

intitulado o terceiro capítulo [Labor, na versão original] “Labor”, o leitor fica sem saber o que todas
estas referências a trabalho (que significa para o tradutor o que Arendt chamou de obra ou
fabricação) querem dizer neste capítulo. Tanto a segunda divisão do terceiro capítulo, “The Thing-
Character of the World”, como também a primeira divisão do quarto capítulo [Work, na edição
original], “The Durability of the World”, e a segunda divisão deste mesmo capítulo, “Reification”, ficam
bastante prejudicadas com a tradução e suas constantes confusões entre duas atividades que estão
claramente definidas e separadas na edição original da referida obra. A última divisão do quarto
capítulo intitula-se “The Permanence of the World and the Work of Art” (a tradução de Raposo: “A
permanência do mundo e a obra de arte”). Ora, Raposo traduziu “work of art” por obra de arte e não
por “trabalho de arte”, e o leitor inevitavelmente ficará perplexo ao encontrar essa divisão em um
capítulo intitulado pelo próprio tradutor “Trabalho”. Caso queira compreender e até mesmo
simplesmente ler essa obra de Hannah Arendt, o leitor terá de consultar o original inglês ou a versão
alemã (MAGALHÃES, 2006). A tradução da obra A Condição Humana realizada por Roberto Raposo
é originária do inglês, embora a obra tenha sido publicada posteriormente em alemão.
18

Hipoteticamente, na cultura do descarte ou na cultura do inútil, o trabalho no


mundo contemporâneo definiu a identidade e a razão de ser do homem. Isso nos
leva a crer que somos uma sociedade de empregados e não de trabalhadores. Não
obstante, a educação se particularizou na arte do sucesso e os educadores, em
muitas situações, acabam sendo mercenários da cultura do capitalismo e das
instituições, sendo que não conseguem escapar dessa lógica capitalista em que se
encontram. Nesse sentido, “uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e
exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos” (EPF,
2014, p. 223). Por isso a intenção de buscar elementos em Arendt para
compreender a contemporaneidade, porque há a necessidade de refletir sobre essa
realidade quanto antes, dado que a condição humana que se apresenta é de
autodestruição; o mundo que criamos está “fora do eixo” (EPF, 2014, p. 223).
Após a publicação de A Condição Humana, Arendt publicou um conjunto de
textos, no livro Entre o Passado e o Futuro (EPF, 2014)10, que apresentam o enlace
da tradição entre o passado e o futuro. A obra traz uma experiência narrativa ao
dialogar intensamente com a tradição e criar possibilidades de se relacionar com o
passado. Arendt narra experiências humanas de acontecimentos advindos da
história e elucubra como gerações do passado pensaram e agiram publicamente no
mundo comum. Ela apresenta a tradição como o fio condutor que cria um sentimento
de pertencimento e de vínculo com as gerações que no mundo passaram, isto é, o
fio condutor que liga as novas gerações com a compreensão de mundo e de suas
próprias experiências.
No referido livro, Arendt apresenta artigos que abordam vários problemas
que estariam sendo abandonados pelos sujeitos da modernidade, que, apesar de
tentarem resolvê-los, estariam agindo superficialmente sem chegar a sua raiz.
Dentro dessas constatações se encontra o artigo que trata da crise da educação.
Nesse texto, a autora demonstra que a educação não conseguiu escapar da função
de “inculcar habilidades” e permanece acorrentada ao “utilitarismo”. A autora é
categórica ao afirmar que quem se “recusa a assumir a responsabilidade coletiva

10Na referida obra se encontram oito textos que foram escritos em momentos diversos por Hannah
Arendt, a saber: A tradição e a Época Moderna; O conceito de História-Antigo e Moderno; Que é
Autoridade?; Que é liberdade; A Crise na Educação; A Crise na cultura: sua importância social e
Política; Verdade e Política; A Conquista do Espaço e a Estatura Humana.
19

pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua
educação” (EPF, 2014, p. 239).
A educação em si, pressupõe responsabilidade com o mundo e “ao contrário
da aprendizagem, precisa ter um final previsível” (EPF, 2014, p. 246). É sobre este
final previsível que se propõe o diálogo com Arendt, para compreender a educação
pela ótica da responsabilidade social. Com isso, compreende-se que a educação
pode contribuir no diálogo da tradição e trazer à luz a responsabilidade com o mundo
comum. Ela não se limita ao processo vital, por isso, busca-se uma compreensão
sobre o processo educativo como meio transformador e reflexivo e não para
reprodução do desejo de uma cultura capitalista.
Sendo assim, como ressaltado anteriormente, que Arendt entende o mundo
como artifício humano, de um lar imortal construído pela obra humana para abrigar
sua existência mortal. Lugar onde se manifestam as aparências humanas; instâncias
onde se abriga o conhecimento, instituições, significados, costumes, virtudes de uma
sociedade. Nesse sentido, distingue-se de Terra como espaço vital, em que a
espécie humana luta por sobrevivência e reprodução. Mundo é o espaço que
abrange a esfera pública dos negócios humanos, onde se dão as ações políticas, é o
lugar onde a visibilidade da singularidade do outro aparece. O mundo abriga, pois, o
legado que herdamos do passado e que fornecemos ao futuro.
Assim, para garantir a manutenção do “mundo”, é necessário repensar o
contexto atual do “homo” faber e a sua contribuição na construção do mundo.
Também, é preciso refletir sobre a ação política com o processo educativo. As
reflexões de Arendt sobre o problema da educação e a condição humana poderão
auxiliar a compreender e a elucidar, sob novas interpretações, os mecanismos de
exclusão e autodestruição da contemporaneidade.
Nesse contexto, os questionamentos que norteiam o movimento desta
pesquisa são: é possível conceber uma educação que se constitua como elo
dialético entre a vita activa na preservação do mundo comum? Em que consiste o
sentido de inserir os novos humanos em um mundo que se encontra fora dos eixos,
embora salvaguardada a concepção de que do novo sempre emerge a força para
renovar o mundo comum? Qual a contribuição da educação para a preservação do
mundo comum ou em que consiste a responsabilidade da educação com o mundo?
De que forma a educação poderá contribuir na preservação do mundo e qual é a sua
relação com as atividades da condição humana? Diante de um mundo em
20

decadência e tomado pela esfera social, é possível conceber uma educação como
ponto de referência de aproximação entre o velho e o novo, os jovens e o mundo?
Ademais, o fato de buscar compreender a concepção de educação e da condição
humana implica a pergunta: quem é o homem? Desses questionamentos decorre o
objetivo de compreender como educar os recém-chegados em um mundo onde a
preocupação consiste tão somente no bem-estar na manutenção da vida,
acentuando somente a dimensão dos animais laborans.
Uma vez delineada a intenção desta pesquisa, sublinhamos a concepção de
ser humano, à medida que se analisa a condição humana nos escritos de Arendt.
Apesar de quase impossível, não é nossa intenção partir de pressupostos
hermenêuticos, visto que a crise educacional “só se torna um desastre quando lhe
respondemos com juízos pré-formados, isto é, preconceitos. Uma atitude dessas
não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da
oportunidade por ela proporcionada à reflexão” (EPF, 2014, p. 223).
A partir disso, importa ressaltar que esta pesquisa é de cunho bibliográfico,
orientado por um procedimento analítico reconstrutivo de textos arendtianos com
contribuições de outros estudiosos que pensam a educação e que são
investigadores do pensamento arendtiano. Valemo-nos, nesta pesquisa, do método
hermenêutico, não no sentido de uma interpretação fiel do texto arendtianos, mas de
uma interpretação que possa ressignificar os textos no contexto atual, na tentativa
de construção de sentidos, sem mera pretensão de deturpar ou esgotar a rica
polissemia das obras arendtianas.
Para atingir o objetivo proposto, esta pesquisa se divide em três capítulos. O
primeiro capítulo, em uma análise prévia, discorre sobre o conceito de educação no
pensamento de Arendt, interligando-o com o mundo comum. O segundo capítulo
apresenta uma análise do termo vita activa e sua divisão entre o trabalho, obra
(fabricação) e ação, interligando-o com o termo vita contemplativa, ao buscar
compreender, no pensamento arendtiano, o fio condutor da educação que interliga
às duas práticas. Por fim, no terceiro capítulo, analisaremos o conceito de ser
humano no pensamento de Arendt, a partir do qual pressupomos que as pessoas
que assumem a responsabilidade de inserir os novos seres no mundo necessitam
ter um conhecimento minimamente sobre a condição humana.
21

1 EDUCAÇÃO E MUNDO COMUM

A partir de uma breve análise sobre o conceito de educação, é possível


encontrar algumas compreensões interessantes referentes ao tema. O conceito de
educação é oriundo do grego παιδεία (Paidéia), que significa, em geral, a
transmissão e o aprendizado das técnicas culturais11.
Nas pesquisas elaboradas atualmente existem várias concepções e
interpretações acerca do termo, que podem ser enquadradas em duas grandes
concepções de educação que se manifestam no âmbito social, seja através de
conflitos ou dialeticamente. A primeira consiste simplesmente em transmitir as
técnicas de trabalho e de comportamento que já estão em poder do grupo social e
garantir a sua relativa imutabilidade, ou seja, uma educação conservadora e
fundamentalista. Essa compreensão incorre no risco de tornar o ensino intransigente
e negar a possibilidade de o novo emergir. A segunda concepção parte da
organicidade da própria cultura e propõe a transmissão de técnicas e a formação
dos indivíduos para a capacidade de alterar e aperfeiçoar as próprias técnicas. Essa
sofre o perigo do negacionismo do conhecimento como construto humano, posto que
é particularizada aos interesses próprios.
Diante dessas constatações, considerando a perspectiva teórica arendtiana,
busca-se elucidar uma investigação híbrida que auxilie a melhor entender os
aspectos educacionais12.

11Para Kneller (1972), a compreensão de educação na acepção lata diz respeito a qualquer ato ou
experiência que tenha um efeito formativo sobre a mente, o caráter ou a capacidade física de um
indivíduo. Para o mesmo, a educação é um permanente aprender. Todas as experiências na verdade
é um momento educativo, segundo Kneller. “Todas as experiências podem ser educativas – desde a
leitura de um livro até uma viagem ao estrangeiro, desde as opiniões das pessoas nossas conhecidas
até a possibilidade de surpreendermos um comentário, no burburinho de um bar. Na sua acepção,
técnica, a educação é o processo pelo qual a sociedade, por intermédio de escolas, ginásios,
colégios universidades e outras instituições, deliberadamente transmite sua herança cultural – seus
conhecimentos, valores e dotes acumulados – de uma geração para outra. Devemos igualmente
distinguir entre educação como um produto e como um processo. Como um produto, a educação é o
que recebemos através da instrução ou aprendizagem – os conhecimentos, ideias e técnicas que nos
ensinam. Como processo, a educação é o ato de educar ou de nos educarmos” (KNELLER, 1972, p.
35).
12Desde já, salientamos que esta pesquisa não é contrária a educação profissionalizante, visto que,

uma das tarefas possível da educação é formar competências no educando, portanto, buscamos
apontar que em sua dimensão formativa e de transmissão de conhecimento a educação precisa
despertar nos educando a responsabilidade com o mundo comum. Acredita-se na responsabilidade
da educação sobre formação humana, justamente para que o processo formativo não se limite a
formação de Eichmanns sonâmbulos hábeis, mas de homens reflexivos.
22

1.1 DISTINÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E POLÍTICA

Para muitos estudiosos, Hannah Arendt era uma pensadora política – como
a própria se denominava. Entretanto, nesta dissertação, compreendemos Arendt
como filósofa e antropóloga – embora não seja possível desvincular a política da
filosofia e da antropologia, posto que pensa a existência humana e sua atuação no
mundo. Vê-se a compreensão antropológica implícita e explicitamente em suas
obras, principalmente no texto que ela escreveu sobre a personalidade de Waldemar
Gurian e no discurso que ela realizou durante a homenagem pública prestada pela
Universidade da Basileia a Karl Jaspers. Nesses textos se manifesta, de certa forma,
a magnitude e a finitude humana, à medida que Arendt relata a liberdade e a
contribuição desses homens diante do mundo e à medida que se nota em seus
relatos que a liberdade é a razão de ser da política. Ao afirmar que os “seres
humanos terrenos necessitam de corporeidade” (LSL, 2018, p. 67), Arendt, além de
pressupor a dimensão biológica, pressupõe a relação que o homem pode construir
entre liberdade, razão e comunicação. De fato, a existência do humano, para a
autora, ocorre a partir da natalidade – que, como já visto anteriormente, é um
conceito fundamental para ela. Portanto, só é possível pensar o humano quando ele
se insere no mundo e se relaciona com o mundo por meio da ação.
No texto “A Crise na Educação” (EPF, 2014), Arendt opera um procedimento
de distinção entre educação e política. Embora aborde outros temas, têm como base
o pensamento político em sua reflexão. Nesse contexto, a educação é para a autora
um campo pré-político, pois, ainda que seja distinta e independente da política, é
preciso pensar politicamente a educação. Ao compreender a educação como pré-
político, Arendt, compreende a particularidade da mesma no âmbito familiar e, em
simultâneo, a abertura para o mundo, ou seja, para a ação, para a política.
Arendt, ao refletir os aspectos da educação, parte do pressuposto de que há
uma crise na educação. Para compreender a dimensão da crise, Fensterseifer
(2020), no livro A tarefa educacional na especificidade da escola, usa a imagem do
barco para elucidar a crise a respeito da educação. Segundo Fensterseifer (2020, p.
15), “uma época em que adquire centralidade a discussão a respeito da direção a
ser seguida é uma época de crise, pois, em períodos ‘normais’, basta ‘remar’; a
direção do ‘barco’ está determinada por uma tradição segura, ao menos
aparentemente, de seus propósitos e destinos”.
23

Utilizando esse exemplo apresentado por Fensterseifer (2020), compreende-


se que a crise que se manifesta é própria da condição humana, pelo fato de sermos
humanos13. Por isso, pensar em alternativas diante de uma crise torna-se complexo
e um tanto paradoxal, à medida que, ao pensar as alternativas sempre se pensa a
partir do horizonte que se apresenta aos olhos, em outras palavras, se pensa a partir
dos contextos históricos e culturais, portanto, existe a necessidade de pensar em
alternativas, considerando as dimensões do passado, presente e futuro.
Parafraseando Fensterseifer (2020, p. 16), se as alternativas ou projetos “estão com
seus prazos de validade vencidos, estamos em crise”. É preciso ter o cuidado para
que:

Na busca de alternativa muitos voltam seus olhos e ações para o porto


seguro de um passado idealizado (os “bons tempos”), os quais designamos,
costumeiramente, de conservadores ou reacionários. Estes vivem como que
em “caixas pretas”, nas quais a única janela transparente está voltada para
o passado. É neste passado, supostamente ordenado e hierarquizado, que
residiria na saída possível da crise. (FENSTERSEIFER, 2020, p. 15).

A tarefa de apresentar alternativas pode se comungar com o pensamento de


Arendt14 e também com o do filósofo italiano Nuccio Ordine (2016), a medida em que
cada projeto poderá considerar a contribuição do inútil. O inútil entendido como
aqueles saberes que não tem como fim último a finalidade do mercado capital (o
lucro). Para Ordine (2016, p. 8) há saberes inúteis que têm um fim em si mesmos, à
medida que “exatamente graças à sua natureza gratuita e livre de interesses,
distante de qualquer vínculo prático e comercial – podem desempenhar um papel
fundamental no cultivo do espírito e no crescimento civil e cultural da humanidade”.
No entanto, como “a crise na educação afeta todo o mundo” (EPF, 2014, p. 223), é
preciso pensar em alternativas universais, pois não se trata de “problemas
específicos confinados a fronteiras históricas e nacionais” (EPF, 2014, p. 222) 15.

13Um dos aspectos da condição humana é justamente a certeza de que não sabemos o que é bom
para a humanidade. Apesar de todos terem o conceito ideal de bom, mas quando esse conceito se
eleva a dimensão pública do mundo dos adultos sempre passam por empecilhos e acabam muitas
vezes caindo por terra. Por isso, é da condição humana, a dimensão política. É na política que os
homens tomam um rumo e um caminho a seguir.
14Vale ressaltar aqui que Arendt em seus escritos não têm intenção de apresentar soluções ou

respostas a determinadas situações, ou constatações. Ela parte sempre do aspecto histórico


analítico.
15A crise na educação, que venha atingir uma pequena aldeia – nos recantos da terra – torna-se essa

em “aldeia global”, enquanto com os avanços tecnológicos, pautado pela política de globalização,
incide nos demais recantos do mundo.
24

Arendt aponta dois pressupostos básicos que nos ajudam a identificar


quando a sociedade se depara com crise política. O primeiro pressuposto está no
fracasso e na renúncia do “são juízos humanos” (EPF, 2014, p. 227), na tentativa de
fornecer respostas a determinadas situações. Já o segundo pressuposto se
manifesta com “o desaparecimento do senso comum” (EPF, 2014, p. 227), o que
torna mais confiável a conjuntura da crise. Para a autora, “em toda crise, é destruída
uma parte do mundo, algo comum a todos nós. A falência do bom senso aponta,
como uma vara mágica, o lugar em que ocorreu esse desmoronamento” (EPF, 2014,
p. 227).
Morello (2014), em sua dissertação de mestrado, realiza uma distinção
salutar das expressões crise na educação e crise da educação. A compreensão
dessas expressões é significativa quando se expressa a compreensão e qual olhar
se dirige à educação. Embora essas expressões sejam compreendidas como
sinônimas, elas revelam, à medida do possível, uma compreensão de mundo. Para o
autor, quando se fundamenta na expressão “crise da educação”, “a tendência é
aludir ao fato de que ela se origina no seio da esfera educacional, sem correlação
direta com acontecimentos e outros domínios, como o domínio público (política), o
domínio social e/ou domínio privado da família” (MORELLO, 2014, p. 8). Portanto,
essa crise, em última análise, é tomada na educação. No entanto, quando se parte
da expressão “crise na educação”, alude-se à exterioridade da esfera educacional,
ou seja, é uma crise que, devido à sua amplitude, se alastrou para outras esferas
sociais, inclusive a da própria educação: “A crise, nesse sentido, é tomada desde
fora da educação” (MORELLO, 2014, p. 8). Dessa forma, “embora as duas
expressões possam divergir entre si em seus significados, elas convergem para o
fato inegável de que a educação encontra-se em crise” (MORELLO, 2014, p. 8).
Tendo isso em mente, entende-se que é considerando essa última
perspectiva que Arendt realiza sua reflexão, a partir da crise geral que acometeu o
mundo moderno. Assim, no referido texto, “A Crise na Educação”, a autora constata
que na América a crise na educação tem marcado amiúde o século XX, essa mesma
tornou-se para a sociedade um problema político de prioridade, o qual necessita de
uma seriedade devida por parte das autoridades. Tal crise deve-se ao seu
temperamento político, “que peleja espontaneamente para igualar ou apagar tanto
quanto possível as diferenças entre jovens e velhos, entre dotados e pouco dotados,
25

entre crianças e adultos e, particularmente, entre alunos e professores” (EPF, 2014,


p. 225).
O conceito político de igualdade adotado pelos americanos é um dos
princípios que aprofunda a crise na educação. Dessa maneira:

O sintoma mais significativo da crise, a indicar sua profundeza e seriedade,


é ter ela se espalhando em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos
e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita
como uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por
necessidades naturais, o desamparo da criança, como por necessidade
política, a continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode
ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados
através de um mundo preestabelecido onde nasceram como estrangeiros.
(EPF, 2014, p. 128).

A crise na educação, para Arendt, está interligada e conectada com as


questões principais da contemporaneidade; crise política, não limitada tão somente
aos Estado Unidos, mas às demais partes do mundo, ou seja, ela é global. O fato
das autoridades educacionais não conseguirem lidar com a crise educacional que
assolou o século XX, a mesma acabou tornando-se um problema de natureza
política. Portanto, conforme a autora, para tratar da crise na educação com toda
atenção e seriedade devida é preciso olhar além-fronteiras históricas e nacionais.
Três são os pressupostos básicos que precipitaram a crise na educação. O
primeiro trata-se da compreensão do mundo da criança como “uma sociedade
formada entre crianças, autônomos e que se deve, na medida do possível, permitir
que elas governem” (EPF, 2014, p. 230). Nessa perspectiva, o adulto cumpre um
papel meramente de um auxiliador da vontade e necessidade da criança, permitindo-
lhe que faça tudo que lhe agrade. Consequência dessa compreensão é a não
libertação da criança das tiranias do seu próprio grupo. Há, portanto, o banimento da
criança do mundo dos adultos e, com isso, ela fica restrita ao seu próprio mundo, em
que ela não pode rebelar-se.
O segundo princípio trata-se da crise no ensino, que coloca em dúvida a
autoridade do professor, no sentido do conhecimento e da formação. Como
resultado da psicologia moderna e do pragmatismo, que colocou a pedagogia como
ciência do ensino geral, considerava-se que o professor não precisava conhecer a
fundo sua própria matéria, bastava-se estar à frente da classe. Resultado dessa
compreensão é o abandono dos estudantes a seus próprios recursos.
26

Por fim, o terceiro princípio desencadeador da crise, e talvez o mais


pernicioso para Arendt, trata-se da teoria moderna sobre a aprendizagem. “Esse
pressuposto básico é o de que só é possível conhecer e compreender aquilo que
nós mesmo fizemos, e sua aplicação à educação é tão primária quanto óbvia:
consiste em substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer” (EPF, 2014,
p. 232).
A transmissão do conhecimento não tinha mais sentido, o importante
consistia em como o saber é produzido. Desde então, a educação para de ensinar e
passa a transmitir conhecimento e inculcar habilidades. O resultado dessa
compreensão foi a transformação de institutos de ensino “em instituições
vocacionais que tiveram tanto êxito em ensinar a dirigir automóvel ou a utilizar uma
máquina de escrever, ou, o que é mais importante para a ‘arte de viver’ como ter
êxito com outras pessoas e ser popular” (EPF, 2014, p. 232).
O surgimento das alocuções pedagógicas que negam a relevância do
passado e se ocupam com a arte de viver se dá no contexto da perda de tradição no
mundo moderno. Arendt constata haver na sociedade americana um certo
entusiasmo, até extraordinário, pelo que é novo e a confiança na perfectibilidade, o
que resulta na atenção e importância maiores em relação aos recém-chegados ao
mundo, no caso as crianças. O sentimento para com o novo se desenvolve
conceitual e politicamente no século XVII. Do fato de que os seres nascem para o
mundo resulta um ideal de educação, influenciado por uma interpretação do
pensamento rousseauniano, para a qual “a educação tornou-se um instrumento da
política, e a própria atividade política foi concebida como uma forma de educação”
(EPF, 2014, p. 225).
Por mais que a educação tenha desenvolvido papéis utópicos na sociedade,
os homens sempre pretendem, como algo natural, iniciar um novo mundo com
aqueles que são por natureza e por nascimento novos. Assim:

O que toca à política, isso implica obviamente um grave equívoco: ao invés


de juntar-se aos seus iguais, assumindo o esforço de persuasão e correndo
o risco do fracasso, há intervenção ditatorial, baseada na absoluta
superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como um fait
accompli, isto é, como se o novo já existisse. (EPF, 2014, p. 225).

A consequência dessa crença, de que o novo deve começar das crianças,


não produz novas condições, mas pode acabar sendo objeto de monopólio de
27

grupos tirânicos, que, ao chegar no poder, subtraem as crianças de seus pais e


simplesmente as doutrinam. Por isso, compreende Arendt que a educação não pode
desempenhar nenhum papel na política, pois nessa esfera lidamos com aqueles que
já estão educados, ou doutrinados. A tentativa de educar adultos seria uma postura
de guardião – o que os impede de exercer atividades políticas. Por isso:

Como não se pode educar adultos, a palavra “educação” soa mal em


política; o que há é um simulacro de educação, enquanto o objetivo real é a
coerção sem o uso da força. Quem desejar seriamente criar uma nova
ordem política mediante a educação, isto é, nem através de força e coação,
nem através da persuasão, se verá obrigado à pavorosa conclusão
platônica: o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado a ser
fundado. (EPF, 2014, p. 225).

Portanto, educar os novos para um novo mundo diz respeito a apresentar ou


colocar diante deles algo não “novo”, ou seja, aquilo que é velho. Destarte, o que os
adultos podem propor para os novos é mais velho do que eles mesmos. Em um
duplo sentido, os adultos são “velhos” em relação aos novos: “mais velhos” no
sentido de que são “legatários” das gerações passadas; e “velhos” no sentido de que
no presente são “testemunhas” das gerações precedentes.
O mundo onde introduzimos as crianças é um mundo construído pelos vivos
e pelos mortos; ele é um preexistente. “O fato de que cada geração se transforma
em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo
novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua
própria oportunidade face ao novo” (EPF, 2014, p. 226). Vale ressaltar que isto é
pertencente à condição humana.
A educação é uma atividade elementar e necessária da sociedade humana,
e não é estagnada. Ao contrário, ela se renova continuamente através do
nascimento, ou seja, partir da vinda de novos seres humanos. Para Arendt, a criança
como objeto da educação possui para o educador uma dupla atenção: em primeiro
lugar, ela é inserida em um mundo que lhe é totalmente estranho, em que se
encontra em processo de formação, por isso necessita de responsabilidade e
cuidado por parte do educador; em segundo lugar, a criança é um novo ser humano
e é um ser em formação, ou seja, não nascemos humanos, mas nos tornamos
humanos a partir do processo constitutivo (EPF, 2014, p. 235). Esses aspectos estão
28

entrelaçados entre si, mas não são evidentes por si mesmos porque ora estão no
relacionamento com o mundo, ora no relacionamento com a vida.

1.2 A RESPONSABILIDADE DOS PAIS NA EDUCAÇÃO

Arendt não se limita à questão da educação pelos pais, dado que a mesma
extrapola o âmbito familiar se situando no campo pré-político, cuja tarefa consiste
em inserir os novos no mundo. No livro, Entre o passado e o futuro, a filósofa não
reflete somente sobre a crise na educação, posto que também analisa a crise
política que atingiu os campos pré-políticos, além da educação, o âmbito da
autoridade e da cultura. No texto “O que é autoridade?” (EPF, 2014), Arendt
relaciona essa crise estritamente com o campo educacional. Ela parte do
entendimento de que não é possível saber o que é a autoridade, já que há
controvérsias e confusões a respeito do termo, mas de que é possível indagar o que
foi. A autora é categórica ao afirmar que a crise de autoridade no mundo moderno,
também, é oriunda de natureza política: é uma crise “política em sua origem e
natureza” (EPF, 2014, p. 128).
O problema maior dessa crise, segundo Arendt, é que ela atingiu as áreas
pré-políticas, como, por exemplo, a criação dos filhos no âmbito da educação e da
família, visto que nesses espaços a autoridade sempre fora aceita como uma
necessidade natural por um lado, e como uma necessidade política de outro.
Conforme a autora:

A autoridade, assentando-se sobre um alicerce no passado como sua


inabalada pedra angular, deu ao mundo a permanência e a durabilidade de
que os seres humanos necessitam precisamente por serem mortais – os
mais instáveis e fúteis seres de que temos conhecimento. (EPF, 2014, p.
131).

Refletindo sobre a temática da crise de autoridade, Sennett (2016) 16, aluno


de Hannah Arendt, repensa o conceito de autoridade vinculando-a com o medo. Ele
parte do pressuposto que a criança necessita da autoridade e a mesma é
fundamental para que as crianças sejam orientadas e tranquilizadas. Por sua vez, ao

16No texto A autoridade Sennett (2016) investiga o medo moderno a respeito da autoridade
destacando as personalidades ou autoridades que despertam esse medo na era moderna, na
tentativa de apontar algumas imagens que deveriam existir em nossa mente a respeito da autoridade.
29

serem autoridades, os adultos assumem a responsabilidade por outrem, em


simultâneo, em que se realiza enquanto pessoa, também encontram-se diante do
medo de perderem o poder diante dos jovens, outrossim, na era moderna os adultos
têm medo quando ela existe. Segundo Sennett (2016, p. 28), além do
enfraquecimento e da destruição da autoridade:

Passamos a temer a influência da autoridade como uma ameaça a nossa


liberdade, na família e na sociedade em geral. A própria precisão da
autoridade acentua esse medo moderno: vamos abrir mão da nossa
liberdade, e nos tornar abjetamente dependentes, por querermos tanto que
alguém cuide de nós? Há muitos ingredientes nesse medo moderno. Em
parte, é um temor das autoridades como sedutores. Em parte, é o medo do
ato da sedução, de que a liberdade se renda à segurança. E em parte, um
medo dos seduzidos – das massas que poderia não ter força de vontade.
Além disso, a maioria das figuras de autoridade não desperta grande
entusiasmo, porque não o merece. As pessoas inteligentes mantêm-se
sadias ao rejeitar as colagens infantis de força e compaixão que as
autoridades apresentam como imagens delas mesmas. Contudo, nossa
rejeição não está ligada ao fato de termos uma imagem interna melhor da
autoridade. E nossa carência de autoridade como tal persiste. Os desejos
de orientação, segurança e estabilidade não desaparecem pelo fato de não
serem satisfeitos.

Arendt é categórica em afirmar que a autoridade tem “desaparecido do


mundo moderno” (EPF, 2014, p. 127), portanto, não existe mais sentido em
perguntar o que é a autoridade, porém caberia perguntar sobre “o que foi a
autoridade” (EPF, 2014, p. 127). Ambos os pensadores Sennett e Arendt,
concordam que a autoridade é sempre confundida com o uso da força ou da
coerção. No entanto, a mesma tampouco parte da persuasão que pressupõe relação
de igualdade, visto que ela exige o grau de hierarquização, como do uso da força,
“onde a força é usada a autoridade em si mesmo fracassou” (EPF, 2014, p. 129).
Arendt, fundamentada no pensamento Platônico, a respeito da autoridade diz que,
“se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em
contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos” (EPF,
2014, p. 129).
No entendimento de Arendt, a crise da autoridade que assola a educação e
o âmbito familiar se equipara com a perda do fundamento do mundo. A crise da
autoridade surgiu com a perda da tradição, que rompeu, assim, com o fio que guiava
gerações com segurança por meio dos vastos domínios do passado. Sem o fio da
tradição, os pais se encontram perante os filhos, de um lado, e, de outro lado,
30

perante o mundo que está aí e que se manifesta em suas múltiplas facetas, sem
nenhuma orientação, somente com a responsabilidade perante os recém-chegados.
A instituição escola e a família são as “guardiãs” da tradição e
consequentemente da autoridade. São elas capazes de repassar para as novas
gerações o “tesouro perdido” que foi encontrado, e, onde, não se sabe a
procedência nem quem são os verdadeiros herdeiros, e nem como nomeá-lo, como
diria Arendt (EPF, 2014, p. 31). A escola e a família são transmissoras herdeiras de
“padrões e condutas sem se saber, se conheça ou se esclareça sua gênese, sua
origem ou sua função” como diria Endo (2011, p. 75). Portanto, a escola e a família
estão para a cultura, assim como a cultura está para ambas. Desta forma a
autoridade que requer ambas só pode ser exercida dentro de um tempo, em que,
encontram-se elementos para legitimá-la. “A autoridade é a própria tradição
delegada a um referente que tem, a tarefa de zelar por ela e salvaguardá-la” (ENDO,
2011, p. 76)17.
Endo (2011) compreende que a autoridade é a legítima herdeira de uma
tradição, e, em simultâneo, potência transmissora no reatamento entre o passado e
o futuro. A ela, deve-se todo respeito e toda credibilidade mesmo na divergência que
ela venha a exercer na história da tradição, pois, segundo ele, como já havia sido
dito por Freud e Arendt, a autoridade é uma imposição. Deste modo, a “autoridade
não deve e não pode convencer nada nem ninguém, já que ela seria dotada de
assentimento prévio advindo de sua correção no trato da tradição” (ENDO, 2011, p.
79). Sendo assim, a autoridade “paterna social” consegue impor e transmitir “desde
o exterior” aquilo que protegerá a comunidade dos “desejos mais intensos do
homem” (ENDO, 2011, p. 79)18.

17Paulo Endo é psicanalista e investigador do pensamento arendtiano, embora seu estudo se volta à
área da psicanálise, tem contribuído com o debate a respeito da crise de autoridade e a perda da
tradição. Segundo ele, com a crise de autoridade nas instituições abre-se um grande leque para a
violência. O desprezo pela história é o que causa a crise da autoridade, ou esvazia a autoridade nas
instituições, portanto, a “violência surge no declínio da autoridade e é a força violenta que destrói
obras, desfaz poderes portadores de autoridade política (executivos, legislativos e judiciários),
extermina oponentes e zomba da experiência temporal sustentada por uma coletividade. Como se
tudo pudesse começar a partir de agora e quanto a origem, a tradição e o passado devem ser
jogados na lata do lixo da história” (ENDO, 2011, p. 77).
18Quanto ao aspecto da obediência Endo (2011, p. 79), compreende que “a obediência que resulta do

respeito à autoridade advém de um desejo de obediência, oriundo do sentido que a autoridade


empresta ao reconhecimento da singularidade. Isso é o que a autoridade deve fazer, explicando o
sentido do que ela deve, sucessivamente, transmitir para as gerações vindouras, cuja origem remonta
à história dos homens. Essa história, por sua vez, nunca pode ser uma história pessoal, privada e
individual. Aliás, histórias assim concebidas são as que atentam contra toda e qualquer autoridade e
jamais a reconhecem, porque não se reconhecem como filiadas a nenhuma tradição histórica
31

Fensterseifer (2020) refletindo sobre algumas Considerações em torno da


Educação, Família e Escola, em diálogo com Arendt e Savater, alerta-nos sobre
alguns aspectos salutares que se referem quando os adultos se negam em assumir
sua condição e responsabilidade, “o que dificulta (ou inviabiliza) a função educativa
da família”. Pelo menos se entendermos com Savater (apud FENSTERSEIFER,
2020, p. 83) que “para que uma família funcione educacionalmente é imprescindível
que alguém nela se resigne a ser adulto” e concordando com Savater (apud
FENSTERSEIFER, 2020, p. 83) cita-se:

Temo que esse papel não possa ser decidido por sorteio nem por votação
em assembleia. O pai que só quer figurar como “melhor amigo de seus
filhos”, algo parecido com um enrugado companheiro de brincadeiras, tem
pouca serventia; a mãe cuja única vaidade profissional é que a tomem por
irmã um pouco mais velha da filha também não serve para muito mais.

Everling (2018) ao abordar o tema da inserção da criança no mundo e


colocando-se em diálogo com Arendt e Walter Benjamin, relata que, ao vir ao
mundo, a criança adentra em uma conversar milenar conduzida pelas palavras e
ações de atores do presente, acompanhadas dos ecos de vozes que emudeceram.
Nessa perspectiva, a cada criança que nasce acende-se a chama do diálogo. Não
obstante, os pais cumprem uma tarefa significativa na manutenção da ascensão
desse diálogo. Segundo Everling (2018, p. 38-39):

Isso significa que, por um lado, a conversa já é milenar e, por outro, que a
todo instante novas possibilidades são introduzidas por meio da chegada
dos novos. Essa presença inesperada dos recém-chegados requer dos mais
velhos a inserção dos novos na dinâmica milenar e, ao mesmo tempo,
espaço para que possam instaurar novos discursos, novas formas de vida,
novas palavras e ações imprevistas pelas gerações mais velhas. Muitas
vezes, contudo, a conversa milenar é considerada velha e até obsoleta para
os novos, mas é por meio dela que estes podem ser introduzidos no mundo
velho e não apenas na vida. Já a novidade que os recém-chegados
introduzem nesta conversa histórica, tão logo será velha para as gerações
subsequentes.

O ser, ao se inserir no mundo pelo nascimento, ingressa em um local que


está aí, ele chega como se estivesse atrasado e se insere na dinâmica e construção
desse espaço, embora, diante da finitude da vida humana, tenha que deixá-lo com

coletiva. Nesse caso, o passado e o futuro esgotam-se na história pessoal e privada do sujeito,
projetado para fora da história comum e de seus iguais: narcisismo das pequenas diferenças”.
32

antecedência. Correia (2010, p. 813) propõe uma distinção salutar a respeito da


diferença entre natalidade e nascimento:

A natalidade não é idêntica ao nascimento, que consiste na condição


inaugural fundamental da natalidade. Enquanto o nascimento é um
acontecimento, um evento por meio do qual somos recebidos na Terra em
condições em geral adequadas ao nosso crescimento enquanto membros
da espécie, a natalidade é uma possibilidade sempre presente de
atualizarmos, por meio da ação, a singularidade da qual o nascimento de
cada indivíduo é uma promessa; a possibilidade de assumirmos a
responsabilidade por termos nascido e de nascermos, assim também, para
o mundo; de que sejamos acolhidos no mundo por meio da revelação de
quem somos mediante palavras e atos; de que nasçamos sempre de novo e
nos afirmemos natais, não mortais; a possibilidade, enfim, de que nos
tornemos mundanos, amantes do mundo.

Conforme Arendt (EPF, 2014), a educação não se resume à perspectiva da


conservação da vida, ela está além. O fato de a educação se limitar à preservação
da vida se assemelha ao que ocorre com a vida animal, em que as espécies têm o
instinto de proteger os seus filhotes. No entanto, a criança partilha o estado natural
como todo vir a ser das coisas vivas, isso é, participar do estado da animalidade. Na
perspectiva biológica, a criança é “um humano em processo de formação, do mesmo
modo que um gatinho é um gato em processo de formação. Mas a criança só é nova
em relação a um mundo que existia antes dela, que continuará após sua morte e no
qual transcorre sua vida” (EPF, 2014, p. 235).
Ao “dar à luz” aos filhos, os pais simultaneamente os introduzem no mundo.
Dessa forma, assumem a responsabilidade pela educação, pela vida e
desenvolvimento da criança, assim como pela continuidade da espécie humana. A
responsabilidade pela vida e desenvolvimento da criança é muitas vezes conflituosa
com o mundo, visto que a criança necessita de cuidados especiais e proteção contra
os malefícios que podem surgir por parte do mundo. No entanto, o mundo também
necessita de “proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do
novo que irrompe sobre ele a cada nova geração” (EPF, 2014, p. 235). O ambiente
familiar é o espaço onde os pais, entre quatro paredes do seu lar, protegem as
crianças. Com isso, a vida privada familiar constitui-se como um escudo contra o
mundo, principalmente contra o aspecto público dele.
Além do aspecto de proteção à criança, os pais se encontram também
diante do aspecto educativo. Educar as crianças por amor às próximas gerações não
é somente prerrogativa dos professores, os pais também têm o dever de prepará-los
33

e educá-los, pois tal prerrogativa é o cerne de toda a educação. Contudo, ao assumir


a responsabilidade pela educação dos filhos na perspectiva do amor às próximas
gerações, não significa que os pais terão que ignorar as adversidades do mundo. Ao
contrário, além do caráter responsável, protetivo e afetuoso para o bem da formação
da personalidade da criança, existe ainda a dimensão social para a qual a criança
precisa ser preparada.
Arendt energicamente defende o espaço privado da criança. Quando o
mundo das crianças é invadido pelas facetas do mundo dos adultos, pode haver
uma má formação da criança e ocasionar, desse modo, a formação de
delinquentes19. A fama, por exemplo, é um dos vilões que penetra às quatro paredes
e invade o seu espaço privado. A invasão do espaço da criança, por parte do âmbito
social, é uma dimensão que incomoda Arendt, pois, para a autora, o sujeito precisa
da proteção de seu espaço20.
O século XX, nominado por Arendt como “o século da criança21” (EPF, 2014,
p. 237), destrói as condições necessárias vitais ao desenvolvimento e crescimento

19Na contemporaneidade o aspecto da fama passa pelo sistema de televisão, ou seja, a televisão
ainda é o principal canal dos grupos dominante dos meios de comunicação, embora haja um número
crescente de pessoas que se fazem visíveis através de aplicativos e sites sociais e são as crianças os
maiores consumidores. Portanto, ainda é grande o número de famílias, em que a televisão, como
canal de verdade, ou seja, tudo que é transmitido é verdadeiro. Segundo Savater (apud
FENSTERSEIFER, 2020, p. 84), a televisão “educa demais e com força irresistível”. Na sequência,
Fensterseifer (2020, p. 84) escreve que a televisão, “nos tira o controle pedagógico do acesso das
crianças no mundo dos adultos, promovendo a desinstalação precoce da ‘obscuridade aconchegante’
em que se encontra a criança, promovendo a ‘perda da inocência’ [...]. Este conjunto de informações,
posto à disposição pela televisão, servirão de contraponto aos ensinamentos dos pais e professores,
sem os desprazeres da ‘vida real’”.
20Sennett (1988), na obra, O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, narra a história do

surgimento e a transformação que houve entre o espaço público e o privado, acentuando a


metamorfose que esses conceitos tiveram no decorrer histórico, até o início do século XIX a partir da
manifestação do capitalismo, no qual, as pessoas sentiam-se em necessidade de controlar e de
moldar a ordem pública que foi se desgastando e no qual as pessoas enfatizaram mais o aspecto
privado para se protegerem da pública. Ele constata que o capitalismo industrial com sua produção
em massa conseguiu esvaziar o espaço público. Segundo Sennett (1988, p. 35), “durante o século
XIX, a família vai se revelando cada vez menos o centro de uma região particular, não pública, e cada
vez mais como um refúgio idealizado, um mundo exclusivo, com um valor moral mais elevado do que
o domínio público [...]. Enquanto a família se tornou um refúgio contra os terrores da sociedade,
também se tornou gradativamente um parâmetro moral para se medir o domínio público das cidades
mais importantes. Usando as relações familiares como padrão, as pessoas percebiam o domínio
público não como um conjunto ilimitado de relações sociais, como no iluminismo, mas consideravam
antes a vida pública como moralmente inferior. A privacidade e a estabilidade pareciam estar unidas
na família; é em face dessa ordem ideal que a legitimidade da ordem pública será posta em questão”.
21O século XVII ao século XX com o desperta do movimento intelectual dos pensadores renascentista

e iluministas que faz jus à racionalidade crítica buscando romper com todo tipo de dogmatismo tendo
como centralidade as ciências para gerarem conhecimentos, chamados por Arendt como era
moderna, embora com essa nomenclatura não coincidia com o mundo moderno. Arendt compreende
que o mundo moderno, teve seu ponta pé inicial a partir das primeiras explosões atômicas (CH, 2016,
p. 7).
34

desses sujeitos infantis. A modernidade colocou-se a serviço da criança rebelando-


se contra os métodos do passado, que não pareciam ser suficientes para suprimir
suas necessidades. A tentativa de emancipar a criança ignorou e desprezou as mais
elementares condições de vida necessárias ao seu crescimento e desenvolvimento,
ainda que o objetivo da educação moderna tenha sido pensar no bem-estar da
criança. Para Arendt:

Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre


aquilo que é particular e aquilo que é público, entre o que somente pode
vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz
do mundo público, os seja, quanto mais ela introduz entre o privado e o
público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e
vice-versa, mais difícil torna as coisas para suas crianças, que pedem, por
natureza, a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu
amadurecimento. (EPF, 2014, p. 238).

Com base nisso é difícil compreender a educação fora dos acontecimentos


contemporâneos sociais. Na modernidade, a educação também bebeu da fonte da
emancipação que os grupos sociais, como os trabalhadores e as mulheres,
reivindicavam para si. Isso significa que esses grupos buscavam vir ao público e
participar da vida da sociedade, procuravam ver, serem vistos e ouvidos.
Para Arendt, a educação lida diretamente com seres que ainda não estão
em condição de igualdade. Por não serem consideradas pela igualdade, ainda não
são admitidas na política, ou seja, a política acontece entre os adultos em posição
de igualdade.

Nada é mais questionável, então hoje em dia, do que a significação política


de exemplos retirados do campo da educação. No âmbito político tratamos
unicamente com adultos que ultrapassaram a idade da educação
propriamente dita, e a política, ou o direito de participar da condução dos
negócios públicos, começa precisamente onde termina a educação. (A
educação adulta, individual ou comunal, pode ser de grande importância
para a formação da personalidade, para seu pleno desenvolvimento ou
maior enriquecimento, mas politicamente é irrelevante, a menos que seja
seu propósito proporcionar requisitos técnicos, de algum modo não
adquiridos na juventude, necessários à participação nos problemas
públicos). Reciprocamente, em educação lidamos sempre com pessoas que
não podem ainda ser admitidas na política e na igualdade, por estar sendo
preparadas para elas. (EPF, 2014, p. 160).

Segundo a filósofa, os governantes políticos não podem tomar papel na


educação e se colocar como educadores, pois isso poderá trazer consequências
35

desastrosas à humanidade. Nesse contexto, a educação não é um instrumento da


política e a política, tão pouco, pode ser uma forma de educação. Portanto, se
compreende porque no pensamento de Arendt, não cabe à política uma atitude
conservadora, mas sim à educação. Cabe à educação, no seu papel de
conservadora, conservar o mundo e a novidade que cada recém-chegado apresenta
ao nascer. Cabe à educação, também, introduzir as crianças no mundo dos adultos.

1.3 ESCOLA: LUGAR DE INSERÇÃO AO MUNDO

A escola e a família se encontra na dimensão do pré-político, dado que


ainda não é o mundo. A escola geralmente é o primeiro momento de inserção da
criança no mundo dos adultos. Ao serem inseridas no mundo dos vivos, os infantes
nascem como parte de uma família onde recebem um lar, cuidados e proteção. Isso
é, ao nascer, a criança necessita de uma atmosfera de exclusividade que transforme
a casa num ambiente forte e seguro o suficiente para protegê-la contra as
intempéries, contra os infortúnios da natureza, contra as exigências da esfera social
e contra as responsabilidades da esfera do mundo público e político. Ademais, os
pais têm o direito de criar os filhos conforme pensem ser adequado e têm o direito à
privacidade, pertencente ao lar e à família. Contudo, é preciso considerar que os
filhos não devem se tornar refém das projeções dos pais. Conforme Fensterseifer
(2020, p. 85), “se concordarmos que os filhos não são propriedades dos pais,
devemos reconhecer a responsabilidade da escola de pôr as crianças e adolescente
em contato com o saber de sua época, e não para ver confirmadas as opiniões de
sua família”.
O escritor e dramaturgo Eugène Ionesco, em analogia da obra de arte com o
nascimento da criança, afirma que “a criança pede para nascer”, apesar de que “não
nasce para a sociedade”, embora “a sociedade apodere-se da mesma”. “A criança
nasce para nascer” (IONESCO apud ORDINE, 2016, p. 14). Portanto, partindo deste
pressuposto de que “a criança nasce para nascer”, reafirma-se a responsabilidade
dos adultos em relação aos novos, tanto no âmbito familiar como no âmbito da
instituição escola em prol do mundo humano.
De acordo com Arendt, a instituição escola é, pela sociedade, interposta
entre o domínio público e privado “do lar e o mundo com fito de fazer com que seja
possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo” (EPF, 2014, p.
36

238). Apesar da escola representar em certo sentido, o mundo – para as crianças,


ela não é o mundo em si, e seria um desastre se ela fingisse sê-lo.
É por intermédio da instituição escolar que os adultos assumem a
responsabilidade de despertar nas crianças o desenvolvimento de habilidades e de
talentos pessoais, que, em tempo futuro, serão aproveitados no âmbito social e na
relação com o mundo. No processo de formação é onde se realiza e se cria a
singularidade que é própria de cada ser, é onde se constitui, desse modo, a sua
personalidade, a qual, no que lhe concerne, constitui o mundo em si. Nesse sentido,
a figura do professor é essencial ao processo de introdução da criança no mundo,
pois, diante desse sujeito, ele é a autoridade que representa os adultos e é ele quem
orienta e apresenta o mundo aos infantes. Destarte, a instituição escolar tem a
função de ensinar às crianças como o mundo é, como ele foi constituído e não
instrui-las na arte de viver e/ou inseri-las na cultura do bem-estar.
Para Arendt, as crianças devem ser introduzidas gradualmente no mundo,
pois:

Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se


introduzi-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar
para que essa coisa nova chegue a fruição em relação ao mundo como ele
é. Em todo o caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como
representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade,
embora não tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer
que ele fosse diferente do que é. (EPF, 2014, p. 239).

Conforme salienta a autora, o educador tem um ofício formidável na


sociedade, visto que ele se coloca diante dos “novos” como representante de um
mundo em que estão todos inseridos. Sendo assim, o educador necessita conhecer
o mundo e conseguir instruir os novos acerca dele. O professor, ao assumir o ofício,
deve assumir a responsabilidade coletiva por esse mundo. Na excursão de seu
ofício, o educador se coloca como mediador entre o velho e o novo, processo em
que precisa ter “um respeito extraordinário pelo passado” (EPF, 2014, p. 244).
O desenvolvimento de habilidades e de talentos é para a
contemporaneidade um problema gritante da educação. A educação tem-se limitado
ao simples ato de desenvolver as habilidades técnicas e instruir a arte de viver. Nas
instituições de ensino, a formação e a instrução das crianças estão sendo, tão
somente, voltadas para o desenvolvimento de habilidades tecnicistas. E por detrás
37

desse empenho formativo está a compreensão do bem-estar social. Contudo, a


educação deve ir além das barreiras da atualidade, dado que, ao introduzir os jovens
no mundo, está introduzindo-os num mundo em contínua mudança. Nesse contexto,
talvez a contemporaneidade não tenha conseguido, ainda, superar os problemas
que Arendt já havia constatado na educação do mundo moderno.
Há, portanto, uma dialética entre educar e ensinar. Segundo Arendt, a
educação nas escolas e nas faculdades do mundo moderno não visa mais “introduzir
o jovem no mundo como um todo, mas sim em um seguimento limitado e particular
dele” (EPF, 2014, p. 246). Educar e ensinar caminham juntos, são paralelamente
constitutivos na relação educativa. Se de um lado não seria correto educar sem
simultaneamente ensinar, pois “uma educação sem aprendizagem é vazia” (EPF,
2014, p. 247), por outro lado, também não seria a melhor opção ensinar sem educar,
“visto que é possível que os jovens aprendam o dia todo sem, com isso, serem
educados” (EPF, 2014, p. 247).
Para a autora, o limite da educação na modernidade se concentrou no
debate do conservadorismo e do revolucionarismo, o qual gerou uma crise de
autoridade não só no campo educacional, como também no âmbito político. Ao
contrário da política, na educação os “novos” não podem derrubar a autoridade
educacional, pois não se trata de uma autoridade imposta a um grupo de minorias.
Se na política a autoridade pode ser recusada por adultos, na educação esse fato
significa que “os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao
qual trouxeram as crianças” (EPF, 2014, p. 240). Diante disso, pode-se citar que:

O homem moderno, por outro lado, não poderia encontrar nenhuma


expressão mais clara para a sua insatisfação com o mundo, para seu
desgosto com o estado de coisas, que sua recusa a assumir, em relação às
crianças, a responsabilidade por tudo isso. É como se os pais dissessem
todos os dias: – Nesse mundo, mesmo nós não estamos muito salvos em
casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar,
tudo isso também são mistérios para nós. Vocês devem tentar entender isso
do jeito que puderem; em todo caso, vocês não têm o direito de exigir
satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês. (EPF,
2014, p. 241).

A atitude dos adultos de se isentar da responsabilidade de educar os mais


novos é uma atitude acovardada. A criança está sempre se constituindo, por esse
motivo a educação é essencial para sua formação. Se isentar consiste na pura
omissão dessa responsabilidade, o que resultará na impossibilidade do novo que há
38

de emergir. Tal ato poderá agravar a crise na educação, assim como a crise da
autoridade, entre outros fatores sociais que poderão ser afetados. Dessa forma, se
compreende o fato da educação ser entendida por Arendt como conservadora, pois
resguarda justamente a responsabilidade do agente perante o mundo. No entanto, a
crise na educação e a crise da autoridade está estritamente relacionada ao modo
como os adultos lidam com a tradição.
Contribuindo com o debate sobre a educação conservadora, Everling (2018,
p. 87) dialogando e concordando com Fensterseifer, aponta que:

A ideia de educação como conservação é possível de ser encontrada num


ponto que se dá entre o abandonar e o sufocar as novas gerações. Cabe,
fundamentalmente, a cada docente, em cada contexto, encontrar a justeza
deste ponto ou deste lugar, e, uma vez encontrado, jamais será definitivo. O
que se pode apresentar é um indicativo, isto é, de que a justeza entre
abandonar e sufocar se encontra no amor responsável dos docentes pelo
mundo e pelas crianças. Como consequência, a ideia de educação
conservadora se apresenta do seguinte modo: como conservação do mundo
que depende da preservação da novidade que cada geração carrega
consigo.

O ápice de toda a educação é o envolver-se, o ludibriar-se com a educação


pressupõe o envolvimento responsável por parte dos adultos para com os mais
novos, os recém-chegados, os jovens, numa atitude de amor ao mundo, expressado
no amor às gerações vindouras. Assim como, ressalta Everling (2018, p. 77):

Todos os esforços feitos pelas gerações adultas, por meio da educação,


não deveriam ser na intenção de apenas transmitir saberes, mas em educar
as novas gerações para se orientarem neste mundo, a fim de que estes
possam, a partir de si mesmos, instaurar a novidade e renovar o mundo
comum. Tem-se uma dificuldade, em termos educacionais, quando a escola
acaba se eximindo de sua responsabilidade de preservar o novo e o
revolucionário contido em cada criança ou quando o professor perdeu o seu
amor pelo mundo e, por extensão, o seu amor pela novidade presente em
cada criança.

Fensterseifer (2020, p. 78) refletindo sobre a responsabilidade dos


professores, compreende que “a nós professores não nos é permitido descuidar do
conhecimento e nem relaxar com as normas, mesmo sabendo do caráter histórico-
social de ambos”. Além do mais, para Fensterseifer (2020, p. 78), se o professor
somente se preocupasse com o conhecimento poderia facilmente a escola formar
“monstros hábeis” e se limitasse a ensinamentos de normas estar-se-ia promovendo
um “catecismo laico”.
39

Essa preocupação de Fensterseifer, recorda-nos de uma carta que foi


encontrada após o nazismo, embora sem identificar o autor, mas direcionada Janusz
Korczak22 que dizia o seguinte:

Caro professor. Sou um sobrevivente de um campo de concentração. Meus


olhos viram o que nenhum ser humano deveria testemunhar: Câmaras de
gás construídas por engenheiros ilustres; crianças envenenadas por
médicos altamente especializados; recém-nascidos mortos por enfermeiros
diplomados; mulheres e bebês assassinados e queimados por gente
formada em ginásio, colégio e Universidade. Por isso, caro professor, eu
duvido da educação. E eu lhe formulo um pedido: Ajude seus estudantes a
se tornarem humanos. Seu esforço, professor, nunca deve produzir
monstros eruditos e cultos, psicopatas e Eichmanns educados. Ler,
escrever, aritmética são importantes somente se servirem a tornar nossas
crianças mais humanas. (NOVINSKY apud AZEVEDO, 2016, p. 20) 23.

Nota-se nessa carta a preocupação do autor para que a educação não se


limitasse em ser um mero transmissor de conhecimento. Apesar da dúvida manifesta
a respeito da educação, essa carta é simultaneamente uma “espécie de grito” de
quem ainda acredita em uma educação humanizada. É justamente essa
preocupação de a educação não criar monstros que compreendemos o pensamento
Hannah Arendt e apostamos em uma educação que desperte a consciência
humana, para a responsabilidade com o mundo comum.
A carta direcionada a Janusz Korczak apresenta o nazismo como resultado
de uma formação educativa que não levou em consideração a dimensão do
pensamento reflexivo. Nela subentende que as pessoas, passaram por um processo
formativo/educativo – na qual não considerou a dimensão do pensamento reflexivo –
e saíram dele como profissionais eficientes e meticulosos, nos quais, foram capazes
de cometer tamanha atrocidade contra a humanidade no regime nazista e nos
regimes totalitários. Eram bons no que faziam, bons profissionais, bons cientistas,
bons aplicadores de condutas morais, bons legalistas, porém, péssimos
conhecedores da condição humana, justamente por que lhes faltavam algo que é
próprio da condição humana; a capacidade de refletir. Eram bons profissionais,
porém, se encontravam diante da ausência de pensamento. Essa ausência de
pensamento é compreendida por Arendt e apresentada no caso de Eichmann. Um

22Janusz Korczak é de origem judaica nascido na Polônia, contemporâneo de Arendt, era pedagogo,
escritor e médico, fundador e cuidado de orfanato.
23Não sabemos a tal ponto veracidade desta carta, mas, independentemente, o que nos chama a

atenção é o conteúdo e a observação feita pelo escritor.


40

burocrata, legalista, que era eficiente em seu ofício, porém, não se utilizava da
capacidade humana reflexiva. A ausência da reflexão faz-nos perder a sensibilidade
para o absurdo. Nos tiram a sensibilidade de ver o absurdo das nossas ações. Leva-
nos a cometer e a justificar barbárie por barbárie. Nos coloca em situação de
sonambulismo.
A educação reflexiva é o caminho mais eficiente e seguro para combater o
sonambulismo, como exporemos no terceiro capítulo. Parafraseando Freire (2000, p.
67) que acreditava em uma educação transformadora, no qual dizia que, “se a
educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade
muda”, se a educação tem essa dimensão transformadora deve-se ao fato de que
ela tem a capacidade de fazer emergir uma nova realidade e simultaneamente
resguardar o elo com as gerações passadas por intermédio ao acumulo do
conhecimento e mediante a responsabilidade por um mundo comum. A força
transformadora da educação deve-se ao fato dela trabalhar diretamente com a
capacidade do pensamento reflexivo e dela surgir a esperança e a confiança em
uma educação que torne as crianças mais humanas.
A partir dessas considerações, apresentamos neste capítulo a compreensão
da educação para Hannah Arendt, além de realizar tal reflexão pela ótica da
contemporaneidade. No capítulo seguinte refletiremos sobre a “interfaces” da vita
activa, buscando elementos para compreender, no nosso contexto mundano, a
educação como tal. Para tanto, questionamos: como compreender o papel da
educação no contexto das atividades humanas e que relação encontramos entre
educação e vida activa?
41

2 AS INTERFACES DA VITA ACTIVA

Para compreender o conceito arendtiano de mundo, partimos da análise da


obra da Condição Humana (CH). Nesse livro, se percebe que a atenção de Arendt
está voltada para a análise das capacidades humanas gerais, advindas da condição
humana, as quais, embora haja a possibilidade de se modificarem enquanto se
modificaria a própria condição humana, são permanentes.
No esclarecimento do termo vita activa Arendt parte do pressuposto que
esse termo é carregado e sobrecarregado de tradição, ou seja, acompanha o
pensamento político desde sua origem. Portanto, ela parte da análise do
pensamento aristotélico que distinguia três modos de vida (bioi), a saber:

A vida de deleite dos prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal


como é dado; a vida dedicada aos assuntos da pólis, na qual a excelência
produz belos feitos; e a vida do filosofo, dedicado à investigação e à
contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada
pela interferência produtiva do homem nem alterada pelo consumo humano.
(CH, 2016, p. 16).

Deste modo, Aristóteles deixa de lado a vida dos escravos – coagidos pela
necessidade de permanecer vivo e no qual está a mando do seu senhor – a vida da
fabricação dos artesãos livres e a vida do aquisitivo do mercador (CH, 2016, p. 16).
Partindo da compreensão aristotélica, os gregos para Arendt têm uma compreensão
muito especial a respeito da vida da pólis, já que a organização política grega
sempre teve como pressuposto a liberdade, visto que a vida sob a ótica de alguma
necessidade não pode ser considerada no bios politikos. Bem que, com o
desaparecimento da organização grega, ou da antiga cidade-estado, “a expressão
vita activa perdeu o seu significado especificamente político e denotou todo tipo de
engajamento ativo nas coisas deste mundo” (CH, 2016, p. 17).
Se o trabalho e a obra não eram compreendidos como dignos para construir
um bios, com essa perda de significância a “ação passara a ser vista como uma das
necessidades da vida terrena, de modo que a contemplação (bios theõretikos
traduzido como vita contemplativa) era agora o único modo realmente livre” (CH,
2016, p. 17). Mais adiante, ainda abordando a definição do termo vita activa Arendt
ressalta que:
42

A expressão vita activa, compreendendo todas as atividades humanas e


definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação,
corresponde, portanto, mais estritamente à askholia grega (“inquietude”),
com a qual Aristóteles designava toda atividade, que ao bios politikos grego.
Já desde Aristóteles, a distinção entre quietude e inquietude, entre uma
abstenção quase estática de movimento físico externo e qualquer tipo de
atividade, é mais decisiva que a distinção entre os modos de vida político e
teórico, porque afinal pode ocorrer em qualquer um dos três modos de
vida24. É como a diferença entre a guerra e a paz: como a guerra ocorre em
vista da paz, também todo tipo de atividade, mesmo o processo do mero
pensamento, deve culminar na absoluta quietude da contemplação. Todo
movimento, os movimentos do corpo e da alma, bem como do discurso e do
raciocínio devem cessar diante da verdade. (CH, 2016, p. 19, grifo do autor).

Portanto, ao analisar a condição humana, Hannah Arendt, também, se


deparou com a antiga divisão filosófica e teológica dos modos de vida, que
tradicionalmente se divide em vita contemplativa e vita activa. Em uma análise
histórica da relação entre esses dois modos na tradição, a vita activa sempre teve
sua significação do ponto de vista da vida contemplativa, recebendo, desse modo,
uma dignidade muito restrita, dado que se limitaria a servir as exigências da vida
contemplativa. No entanto, a ação ocupava a posição mais elevada no pensamento
pré-filosófico e pré-platônico, posto que estava ligada à esfera política da vida
humana.
Entretanto, quando o próprio Platão em seus diálogos fez sua primeira
inversão do ponto de vista da contemplação, a atividade mais elevada não era a
ação, mas a fabricação, ou seja, a ascensão da atividade do artesão na escala de
valorizações, mesmo assim, a do trabalho permanece no nível mais baixo. Outra
inversão de valores aconteceu na era moderna, quando Karl Marx e a filosofia
precursora a ele faz a elevação do trabalho produtivo. A partir da elevação da
categoria do trabalho – por parte da era moderna –, Arendt chama a atenção para a
dimensão política da ação que está presente na condição humana.
Magalhães (2006), comentando a obra, A Condição Humana, percebe que,
Arendt trata da vita activa sob a ótica das três atividades humanas fundamentais: A)
o trabalho; B) a obra ou a fabricação, C) a ação, que estão entrelaçadas, com as três
condições humanas – A) a vida; B) o pertencer-ao-mundo ou a mundanidade
[worldliness], C) a pluralidade – que correspondem a estas atividades. “Ao privilegiar

24Os três modos de vida referem-se as três atividades da condição humana: trabalho, (manutenção
da vida) obra/fabricação (fabricação dos artefatos da mundaneidade) e ação (que envolve a
pluralidade humana).
43

a ação e ao criticar a era moderna e a importância que foi atribuída nessa época ao
trabalho, colocando-o acima de todas as outras atividades, Arendt resgata o que
seria um verdadeiro espaço público, plural e autônomo, de deliberação e de
iniciativa” (MAGALHÃES, 2006, p. 2).

2.1 AS INTERFACES DO TRABALHO E DA OBRA

A autora inicia seu debate, no prólogo de seu livro, narrando o evento do


lançamento do foguete espacial, em 1957, que levou o homem ao universo. Esse
evento marcou Hannah Arendt, porque para ela esse fato demonstra a real situação
dos humanos e expressa o desejo de se libertar da condição de terrenos; ou seja, de
seus limites naturais25. Tal fato surge a partir da competição insana, que resultou da
guerra fria ocorrida entre as potências hegemônicas mundiais. Essa conquista, fruto
da inteligência e capacidade humana, trouxe consigo ambiguidade ao contexto
político mundial em que se sucedeu.
Diante do ufanismo de tal fato, houve, de um lado, quem se alegrou e vibrou
com tal evento, pois expressava a plenitude do artifício humano; por outro lado,
houve quem via em tal evento um alívio para fugir da terra, em busca de outro
“habitat”. Tal constatação, elaborada pela autora, é ilustrada na frase gravada na
tumba de um cientista russo: “A humanidade não permanecerá para sempre presa à
terra” (CH, 2016, p. 1), para expressar real intenção dos humanos. Diante desse
fato, revelou-se que a humanidade compreende à Terra como prisão para os corpos
e que era preciso conquistar outros espaços. No entanto, conforme Arendt, a Terra é
a quintessência da condição humana, e a única capaz de propiciar aos humanos um
“habitat” no qual se possa viver com menor necessidade de artifício humano.
O artifício humano do mundo é o que caracteriza a existência humana e nos
separa da existência da natureza animal. Apesar dos aspectos biológicos da vida,
compartilhamos a mesma natureza dos demais organismos vivos; porém, para

25Ao mesmo tempo que a humanidade evolui desenvolvendo ciência e criando tecnologias cada vez
mais aprimoradas, as quais nos trouxeram muitas vantagens e facilidades na vida cotidiana,
percebemos a nossa pequenez e fragilidade frente a natureza. Esse desejo de se livrar dos limites
naturais pressupõe livrar os humanos da condição de mortais. Quando a humanidade se depara com
uma catástrofe, semelhante ao causado pelo Covid-19, expressa mais ainda o desejo da humanidade
de se sobrepor à natureza. Portanto, no cenário atual da pandemia ocasionada pela Covid-19, se
coloca em dúvida essa afirmação, pois esta capacidade humana de destruição se limita diante da luta
pela sobrevivência perante ao vírus do grupo Coronavírus (SARS-CoV-2), causador da pandemia.
44

Arendt, com seus artifícios, os humanos conseguem destruir e substituir toda vida
orgânica na Terra. É sobre essa ambiguidade das condições humanas, que
constituem uma realidade paradoxal, que Arendt vai refletir: de um lado,
compreende-se um mundo fascinante, de outro, o mundo nos coloca perante
contradições assustadoras.
Diante do advento tecnológico em que a modernidade se encontra, Arendt
faz referência à busca incessante dos seres humanos em superarem a si próprios,
por meio da tentativa de criar vidas de proveta para produzirem seres superiores.
Como salienta a própria autora, “esse homem futuro, que os cientistas nos dizem
que produzirão em menos de um século, parece imbuído por uma rebelião contra a
existência humana tal como ela tem sido dada – um dom gratuito vindo de lugar
nenhum” (CH, 2016, p. 3). Não encontrando razões para duvidar da capacidade
humana dessa conquista, Arendt diz:

A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo


conhecimento científico e técnico, e essa questão não pode ser decidida por
meios científicos; é uma questão política de primeira grandeza, cuja
decisão, portanto, não pode ser deixada a cientistas profissionais ou a
políticos profissionais. (CH, 2016, p. 3).

Todas essas questões apontam implicitamente para a responsabilidade


social, visto que a autora evidencia uma crise nas ciências, que poderá fugir do
controle dos seres humanos, submetendo-os à condição de escravos de sua própria
obra. Nesse sentido, afirma que o problema está relacionado com o fato de que as
verdades da moderna visão científica do mundo já não se prestam à expressão
normal da fala e do raciocínio. Sendo incapaz de pensar e de falar sobre a própria
ação humana, a modernidade propõe o divórcio entre o conhecimento e o
pensamento, o que nos colocaria na condição de escravos, de “criaturas
desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível,
por mais mortífera que seja” (CH, 2016, p. 4).
Portanto, nascemos em um mundo formado por coisas naturais e artificiais,
vivas e mortas, transitórias e sempiternas, embora todas elas tenham em comum o
facto de aparecerem e, desse modo, de serem feitas para serem vistas, ouvidas,
tocadas saboreadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sencientes
dotadas de órgãos sensoriais apropriados.
45

A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende para o seu


ser, isto é, para a sua dimensão de aparência, da presença de criaturas
vivas. Nada nem ninguém existe neste mundo cujo verdadeiro ser não
pressupunha um espectador. Por outras palavras, nada do que é, na
medida em que aparece, existe no singular; tudo o que é está destinado a
ser percebido por alguém. Não é o Homem, mas sim os homens quem
habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra. (VE I, 2011, p. 29)26.

Inseridos nesse mundo, somos seres que vivem na relação de ser e de


aparência com as coisas do mundo e consigo mesmo. Esse mundo de aparência,
não faria sentido se não existissem os receptores das aparências, isso é, “criaturas
vivas aptas a dar conta de, a reconhecer e a reagir a – em fuga ou em ânsia, pela
aprovação ou desaprovação, pela censura ou pela apreciação – o que não se limita
a estar aí, mas lhes aparece é feito para a sua percepção” (VE I, 2011, p. 29).
Para abordar estritamente a situação em que se encontram os homens,
Arendt parte da análise do termo vita activa27 subdividindo-o em três conceitos, os
quais permitem melhor compreender as atividades fundamentais dos humanos,
sendo: trabalho, obra (fabricação) e ação. Cada atividade corresponde a uma
condição da vida humana. O trabalho se concentra na condição do Animal laborans,
a obra se centra na condição do homo faber e, por sua vez, na condição da ação se
encontra o homem político. Essas atividades estão relacionadas com a condição
mais geral da existência humana, o nascimento e a morte, ou seja, com a natalidade
e a mortalidade.
A atividade do trabalho é o que assegura a sobrevivência e garante a vida
da espécie humana. A obra, através de seu produto – que é o artefato humano –,
confere longevidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo
humano. Dessa forma, ação cria condições para a lembrança, isto é, para a história,
enquanto se empenha em fundar e preservar corpos políticos. Ambas atividades
humanas, trabalho, obra e ação:

26Livro:ARENDT, H. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Lisboa: Instituto Piaget, 2011.
27Para Correia (apud ARENDT, 2016, p. XXIV), “a versão definitiva de A condição humana, mais que
uma resposta à pergunta sobre como e, porque foi possível o totalitarismo, e mais que um exame da
relação entre totalitarismo e tradição, converteu-se em uma fenomenologia das atividades humana
fundamentais no âmbito da vida ativa – o trabalho, a obra ou fabricação e a ação. Arendt principia sua
investigação com o exame da relação entre condição humana e vita activa, definida em contraposição
à vita contemplativa, mas visa antes de tudo a transcender a caracterização tradicional das atividades
e da relação entre elas com vistas a uma indagação sobre o significado das próprias atividades e das
transformações em seu caráter na era moderna”.
46

Estão também enraizados na natalidade, na medida em que têm a tarefa de


prover e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados
que nascem no mundo como estranhos, além de prevê-los e levá-los em
conta. Entretanto, das três atividades, a ação tem relação mais estreita com
a condição humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento
pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a
capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de iniciativa,
a todas as atividades humanas é inerente um elemento de ação, portanto,
de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade política por
excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central
do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico. (CH,
2016, p. 11).

O mundo em que o homem está inserido consiste em coisas produzidas


pelas atividades humanas – coisas produzidas pela mesma geração ou herdadas de
gerações anteriores, mas que provêm sua existência no mundo.
A compreensão da condição humana está além das condições sobre qual
vida é dada ao homem. Os homens são seres condicionados, pois “o que quer que
toque a vida humana ou mantenha uma duradoura relação com ela assume
imediatamente o caráter de condição da existência humana” (CH, 2016, p. 12). Ou
seja, tudo com que o homem entra em contato torna-se condição de sua existência.
No entanto, ao introduzir o termo vita activa, Arendt busca elementos
históricos na filosofia, analisando como, no decorrer da história, esse tema foi
abordado pela tradição. Não se trata de um tema novo, pois é tão velho como a
política, embora tenham passado despercebidos alguns elementos que a autora faz
saltar à vista, como, por exemplo, a inversão de valores das atividades da vita activa
ocorridos no decorrer histórico. Ao ocupar-se na investigação da vita activa, a autora
se dá conta de que esse conceito foi cunhado por homens que se devotaram à
maneira contemplativa, e termina sua investigação encerrando-a com a frase que
Cícero atribui à Catão: “um homem nunca está mais ativo do que quando não faz
nada, nunca está menos só do que quando está desacompanhado” (VE I, 2011, p.
17).
O conceito de vita activa para a história da filosofia, em especial para os
gregos28, foi sempre descrito sob a ótica da vita contemplativa, que tem por
finalidade absoluta a quietude da contemplação. Todavia, desaparecem a ocupação,
a inquietude, o desassossego, visto que o mais importante para contemplação é

28Arendt,
como pensadora política e, ao mesmo tempo historiadora, tem sempre um olhar especial ao
mundo greco-romano, ao mundo da antiguidade. Corriqueiramente, em seus escritos, ela se volta a
essas duas culturas, analisa como eram e as compara com a era moderna.
47

justamente a quietude. Além disso, historicamente a “vita activa recebeu sua


significação da vita contemplativa; foi atribuída a ela uma dignidade muito restrita
porque servia as necessidades e exigências da contemplação em um corpo vivo”
(TOA, 2005, p. 176)29. Entretanto, na antiguidade, o homem só conseguia tornar-se
verdadeiramente humano quando podia se distanciar da vita activa e se aproximar
da vita contemplativa. Sendo assim, Arendt destaca o motivo que levou aos gregos
não considerarem cidadãos as pessoas na condição de escravos, como no caso dos
estrangeiros. A pessoa escravizada, ao ocupar seu tempo com as tarefas que
visavam a sobrevivência dos outros e dela própria, era destituída da vita
contemplativa e do meio da pólis grega por não ter condição para a contemplação e
para reflexão.
Por outro lado, a era moderna se contentou com a cômoda distinção entre
trabalho intelectual e trabalho manual, a partir da antiga distinção entre “artes
liberais” e “arte servis”. Assim, como o primeiro opera com o cérebro e o segundo
opera com as mãos, a diferença está no grau do quociente de inteligência (QI).
Quanto a isso, o critério de distinção deveria ser político.
Em uma investigação da história, Arendt percebe-se que foi somente com a
burocratização do Império Romano que houve uma reavaliação dos serviços
intelectuais. Entretanto, com a era moderna houve uma inversão realizada a partir do
pensamento de Karl Marx, idealizador da concepção de que o trabalho é precursor
do mundo. Para a autora, essa inversão renuncia à ação, que faz parte da condição
humana:

[...] o pensamento e a obra são duas atividades diferentes que nunca


coincidem completamente: o pensador que desejar dar conhecer ao mundo
o “conteúdo” de seus pensamentos deve, antes de tudo, parar de pensar e
lembrar de seus pensamentos. Neste, como em todos os casos, a
lembrança prepara o intangível e o fútil para a materialização final; é o
começo do processo da obra e, como o exame que o artesão do modelo
que lhe guiará a obra, o seu estágio mais imaterial. A obra sempre requer,
em seguida, algum material sobre o qual possa ser realizada e que,
mediante a fabricação, a atividade do homo faber seja transformada em um
objeto mundano. A qualidade específica de obra da obra intelectual deve-se
à “obra de nossas mãos” tanto quanto a de qualquer outro tipo de obra. (CH,
2016, p. 111).

29ARENDT, H. Trabalho, obra, ação. Trad. Adriano Correia e Theresa C. de Magalhães. Cadernos de
Ética e Filosofia Política, n. 7, p. 175-201, 2º/2005.
48

Vale ressaltar que a ação, o discurso e o pensamento são fúteis à vida, dado
que eles por si próprios não produzem nem geram coisa alguma. A atividade do
pensar, embora, relacionada ao mundo exterior, nem sempre se manifesta ou
precisa ser ouvida, vista, utilizada ou consumida para ser real. Nesse contexto, para
se tornarem mundanos, esses três elementos precisam ser vistos, auscultados e
lembrados, e, então, transformados em alguma forma de registro, como na arte, nos
livros, nas escritas, entre outros. Por isso, os produtos da obra garantem a
permanência e a durabilidade das coisas que formam o mundo.
Quanto ao trabalho, é a atividade em que o homem não está junto ao
mundo, nem convive com os outros – ele se encontra sozinho, apenas com seu
corpo diante da necessidade de manter-se vivo. O estar só é constitutivo do
trabalho, mesmo que os indivíduos trabalhem em grupos ou em escalas, pois o
fazem como se fossem um só, jamais carregam consigo a pluralidade. Desse modo,
o trabalho não é reconhecido como político; é apolítico, pois visa vencer o imperativo
da necessidade que está relacionado e indissociável ao fato do está vivo.
Arendt apropria-se do conceito aristotélico de trabalhadores, cuja função é
atender às necessidades da vida. Com isso, a atividade do trabalho ocorre
paralelamente à vida e se move na mesma direção prescrita pelo caráter biológico.
Dessa maneira, somente tem um fim em si mediante a durabilidade da vida.
Diferente da atividade da obra ou da fabricação, que tem o seu fim atingido quando
um objeto está concluído e pronto para ser adicionado no mundo das coisas e dos
objetos. Para Toa (2005, p. 181):

O trabalho produz bens de consumo, e trabalhar e consumir são apenas


dois estágios do sempre-recorrente ciclo da vida biológica. Estes dois
estágios do processo vital seguem-se um ao outro tão intimamente que
quase constituem um mesmo movimento, o qual, mal termina, tem de
começar tudo de novo. O trabalho diferentemente de todas as outras
atividades humanas, permanece sob o signo da necessidade, a
“necessidade de substituir”, como Locke costuma dizer, ou a “eterna
necessidade imposta pela natureza”, nas palavras de Marx.

Para Konrath (2014), quando Arendt fala na condição humana sobre a


possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho está além da
questão do desemprego e liga-se, diretamente, à existência de condições científicas
e tecnológicas, no qual, permitem aos seres humanos alcançar uma vida liberta da
sujeição à necessidade que impõe uma rotina de trabalho exaustiva e limitada
49

basicamente à busca do próprio sustento. E, segundo Konrath (2014, p. 57), a


preocupação arendtiana sobre a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores
sem trabalho:

Faz lembrar a conhecida frase de Nicolas Berdiaeff, referida por Aldous


Huxley em seu Admirável mundo novo: As utopias parecem ser bem mais
realizáveis do que se poderia acreditar antigamente. E nós nos encontramos
atualmente diante de uma questão bastante angustiante: como evitar sua
realização definitiva? O sonho humano habita o mundo da fantasia do que
se quer ver, mas não tocar, mantendo aceso o ânimo de prosseguir adiante.
Por conta disso, a concretização de uma utopia implica um dilema interior,
trazendo à tona uma contradição expressa em um dos refrãos de A
montanha, de Humberto Gessinger: “nem tão longe que eu não possa ver,
nem tão perto que eu possa tocar, nem tão longe que eu não possa crer que
um dia chego lá, nem tão perto que eu possa acreditar que o dia já chegou”.
Mas a inquietação exibida na frase de Nicolas Berdiaeff e o dilema
apresentado por Humberto Gessinger estão contrapostos, no mundo do
trabalho, por uma realidade excludente que impede seja experimentado,
pela generalidade das pessoas, o desfrute desse instante utópico de adeus
ao trabalho enquanto sujeição à necessidade.

Embora seja prerrogativa do trabalho corresponder à condição da própria


vida, Arendt é otimista quando afirma que o homem não participa somente das
fadigas e penas no trabalho, mas também da felicidade, isso porque não é
meramente natural, ele está sempre envolvido com os outros. A recompensa das
fadigas e penas “repousa na fertilidade da natureza, na confiança serena de que
aquele que, nas fadigas e penas, fez sua parte, permanece uma parte da natureza,
no futuro de seus filhos e dos filhos de seus filhos” (TOA, 2005, p. 182). Na
sequência de seus argumentos, Arendt diz:

A bênção da vida como um todo, inerente ao trabalho, nunca pode ser


encontrada na obra e não deve ser confundida com o período de alegria
inevitavelmente breve que segue a realização e acompanha o acabamento.
A bênção do trabalho é o que o esforço e a gratificação seguem um ao outro
tão proximamente quanto a produção e o consumo, de modo que a
felicidade é concomitante ao próprio processo. Não há felicidade nem
contentamentos duradouros para os seres humanos fora do círculo prescrito
de dolorosa exaustão e prazerosas regeneração. Tudo o que lança este
ciclo em desequilíbrio – a miséria, onde a exaustão é seguida pela penúria;
ou uma vida inteiramente sem esforço, onde o tédio toma o lugar da
exaustão; e onde os moinhos da necessidade, do consumo e da digestão
trituram até a morte, inclementes, um corpo humano impotente – arruína a
felicidade elementar que resulta do estar vivo. (TOA, 2005, p. 182-183).

Portanto, diante do pensamento de Arendt pode-se dizer que o homem,


como animal laborans, é incapaz de habitar ou construir um domínio público,
50

mundano, ao contrário do homo faber, que se torna senhor e mestre de sua própria
natureza enquanto extrapola o círculo biológico e o que a natureza lhe dá. O homo
faber por meio da obra de suas mãos fabrica a diversidade das coisas e objetos,
constituindo o artifício humano do mundo em que vivemos. Esses objetos e
elementos produzidos “dão ao mundo a estabilidade e a solidez sem as quais não se
poderia contar com ele para abrigar a criatura mortal e instável que é o homem”
(TOA, 2005, p. 183).
O homo faber é, portanto, capaz de construir e habitar domínio público
próprio, mudando, embora não possa ser considerado como domínio político. O
domínio público do mesmo consiste no mercado de trocas, no qual ele pode expor
os produtos, fruto de suas mãos, e receber o valor que merece. Segundo Arendt, o
homo faber tem a inclinação para a habilidade na exibição pública; ela comunga com
a ideia de Adam Smith30, de que essa inclinação é intimamente conectada com a
propensão de barganhar, permutar e trocar uma coisa por outra, pois é essa
habilidade que distingue o homem dos animais. Como destaca Arendt, “ninguém
jamais viu um cão fazer uma troca equitativa e deliberada de um osso por outro com
outro cão” (CH, 2016, p. 199). Dessa forma, a relação do homo faber se concretiza
na relação de trocas dos seus produtos com outras pessoas.
As variedades infinitas das coisas que constituem o artifício humano do
mundo são produzidas pelo homo faber, sendo que, a partir do uso adequado, têm
uma durabilidade, dado que não se consome o produto por ele produzido e sim
utiliza-se, serve-se de tal produto.
Na compreensão da “interface” da educação com a vita activa traz-se a
reflexão de Johann (2009, p. 77) que abordando o pensamento de Arendt na
perspectiva ética relata que:

A vita activa e a forma como que o ser humano a exercer será fruto de uma
aprendizagem. Portanto, a educação implicará uma dimensão ética a
imprimir as suas condições de construção ou de destruição. O ser humano
aprenderá a prática do cuidado para com tudo e todos os que o rodeiam.
Sempre de acordo com Arendt, a natalidade se constituirá no valor
predominante e não a mortalidade, em que pese ser esta última uma
contingência de finalização temporal. O fato primordial da natalidade haverá
de se apresentar como uma acolhida amorosa. O recém-chegado será
recebido com as boas vindas de quem é introduzido num mundo em que ele
tudo terá que aprender. Todas as tarefas necessárias para sua

30Adam Smith foi um pensador britânico, filósofo e economista que nasceu na Escócia sendo
considerado o pai da economia moderna, e o mais importante teórico do liberalismo econômico.
51

sobrevivência lhe serão ensinadas para que sua travessia seja feliz e
realizadora. Desde o labor até a ação contemplativa serão frutos de sua
aprendizagem.

Assim sendo, doravante, analisa-se com mais precisão a constatação que


de Arendt chegou a respeito da inversão de valores entre as atividades da vita activa
e a vita contemplativa ocorrida em determinados momentos históricos no qual se
chega até a era moderna.

2.2 INVERSÃO DA VITA CONTEMPLATIVA E VITA ACTIVA

Arendt compreende que a mais grave consequência espiritual das


descobertas da era moderna é a inversão da ordem hierárquica entre a vita
contemplativa e a vita activa. Não há, porém, uma compreensão exata sobre os
motivos que geraram essa inversão, a não ser a suspeita da aplicabilidade técnica
da ciência, que gera resultados positivos e apresenta novas verdades. Desde o
momento em que as verdades foram produzidas pelas ciências, abandonaram-se as
verdades produzidas na interioridade dos sujeitos, ou seja, houve um abandono, na
era moderna, da verdade tradicional. Segundo a autora, as motivações que estão
por trás dessa inversão entre contemplação e ação englobam o fato de que a sede
humana de conhecimento só pôde ser amenizada depois que o homem depositou
sua confiança no engenho das próprias mãos.
A criação do telescópio, por exemplo, acelerou esse processo de ruptura,
visto que, por meio dessa invenção realizada à própria mão humana, foi possível
desvelar alguns segredos do universo, o que resultou numa certa desconfiança com
a contemplação. “Não que o conhecimento e a verdade já não fossem importantes,
mas só podiam ser atingidos mediante a ‘ação’ e não pela contemplação” (CH, 2016
p. 359). Essa inversão surge no ponto arquimediano e se concretiza pelo método
cartesiano, isto é, quando se transferiu para o homem o ponto arquimediano, a era
moderna estabeleceu uma ruptura entre as verdades filosóficas e as verdades
científicas. Essa desconfiança por parte dos cientistas se fortaleceu mediante os
resultados das primeiras pesquisas. Desde que:

[...] o ser e a aparência se divorciaram e quando já não se supunha que a


verdade aparecesse, se revelasse e se desvelasse ao olho mental de um
observador, surgiu uma verdadeira necessidade de buscar a verdade por
52

trás de aparências enganosas. Realmente, nada poderia ser menos digno


de confiança para adquirir conhecimento e aproximar-se da verdade que a
observação passiva ou a mera contemplação. Para ter certeza, tinha-se de
assegurar-se e, para conhecer, tinha de agir. A certeza do conhecimento só
podia ser atingida mediante dupla condição: primeiro, que o conhecimento
se referisse apenas àquilo que o próprio homem havia feito – de modo que
seu ideal passou a ser o conhecimento matemático, no qual se lida apenas
com entidades da mente produzidas por ela mesma –, e, segundo, que o
conhecimento fosse de tal natureza que ele só pudesse ser testado
mediante mais agir. (CH, 2016, p. 360, grifo do autor).

A inversão entre a contemplação e a ação, ocorrida na era moderna, situou-


se principalmente no âmbito da atividade do pensar, que passou a ser serva do agir.
Para Arendt, a mudança que ocorreu no século XVII está além da inversão entre o
tradicional da ordem estabelecida e entre a contemplação e a ação (doing). Houve
uma abolição da contemplação. Ou seja, ocorreu o abandono do pensamento.
Embora pensamento e contemplação não sejam a mesma coisa, o primeiro
tradicionalmente era a forma direta para chegar com a verdade da contemplação.
Essa inversão não teve por escopo elevar o agir (doing) ao patamar que
ocupava outrora pelo contemplar, como o mais elevado nível de que os seres
humanos seriam capazes. Nas palavras da própria Arendt:

A inversão tinha a ver somente com a atividade de pensar, que, daí por
diante, passou a ser serva do agir, como havia sido a ancilla theologiae a
serva da contemplação da verdade divina na filosofia medieval e a serva da
contemplação da verdade do Ser na filosofia antiga. A contemplação
mesma tornou-se completamente sem sentido. (CH, 2016, p. 362, grifo do
autor).

Destarte, a filosofia passou para o terceiro plano. Foi justamente na era


moderna, tendo em vista as consequências da fundamentação de Descartes nas
descobertas de Galileu, que a filosofia tornou-se a sombra da ciência, convertendo
os filósofos em meros epistemólogos preocupados com uma teoria global da ciência.
Por conseguinte, de acordo com Arendt:

A filosofia sofreu mais com a modernidade que qualquer outro campo do


esforço humano; e é difícil dizer se sofreu mais em decorrência da quase
automática elevação da atividade a uma dignidade completamente
inesperada e sem precedentes ou da perda da verdade tradicional, ou seja,
do conceito de verdades subjacentes a toda nossa tradição. (CH, 2016, p.
365).
53

Com isso, a era moderna celebrou o divórcio entre a realidade e a razão


humana. A inversão no centro da vita activa ocasionou também uma inversão nas
ocupações das atividades do fazer e fabricar, o que levou à superação do homo
faber. Nesse âmbito:

O homem, o fabricante do artifício humano, de seu próprio mundo, é


realmente um senhor e mestre, não apenas porque se estabeleceu como o
mestre de toda a natureza, mas também porque é senhor de si mesmo e do
que faz. Isto não se aplica nem ao trabalho, onde os homens permanecem
sujeitos à necessidade de sua vida, nem à ação, onde permanecem na
dependência de seus semelhantes. Sozinho com a sua imagem do futuro
produto, o homo faber, é livre para produzir, e sozinho novamente ante a
obra de suas mãos, ele é livre para destruir. (TOA, 2005, p. 186).

Através da elevação do homo faber, diante da produção de parafernália, a


era moderna pressupunha que a verdade somente viria por meio da experimentação
para fins de conhecimento e apostava que o homem só podia conhecer aquilo que
ele mesmo fabricava, as coisas que não eram frutos de suas mãos não seriam
possíveis de conhecimento. Assim, a era moderna trouxe no seu bojo, os princípios
e atitudes do homo faber. Além da instrumentalização do mundo e a confiança
demasiada nas ferramentas e na produtividade em massa dos objetos, houve uma
exorbitante elevação da categoria meios-fim na confiança de que os assuntos e as
motivações humanas poderiam ser resolvidos e reduzidos a partir do princípio da
utilidade. Cabe, dessa maneira, questionar: o que tem isso a ver com a educação?
ou melhor: quais são as consequências dessa inversão para a educação?
É visto que Arendt não deu uma resposta exata sobre esses
questionamentos, mas é possível encontrar elementos em seus escritos que são
fruto dessa guinda entre a relação da vita contemplativa e a vita activa. Talvez a
maior consequência que influenciou o campo educativo refere-se ao momento em
que a educação se volta ao ato de formar os jovens para desenvolver habilidades
práticas e trabalhistas. Como chama a atenção o filósofo Ordine (2016, p. 8), que
nos ajuda a refletir essa temática, a medida em que ele constata que, “a lógica do
lucro solapa as bases das instituições (escolas, universidades, centros de pesquisa,
laboratórios, museus, bibliotecas, arquivos) e disciplinas (humanísticas e científicas)
cujo valor deveria coincidir com o saber em si, independentemente da capacidade de
produzir ganhos imediatos ou benefícios comerciais”.
54

Essa situação de inversão da vita activa e vita contemplativa torna a crise


educacional no século XX, em especial na América, “aguda é o temperamento
político do país, que peleja espontaneamente peleja para igualar ou apagar tanto
quanto possível as diferenças entre jovens e velhos, entre dotados e pouco dotados,
entre crianças e adultos e, particularmente, entre alunos e professores” (EPF, 2014,
p. 229). Essa tentativa de eliminar as diferenças existentes é, entre os campos pré-
políticos, o fator que causou a crise na educação.

2.3 A AÇÃO E SUAS INTERFACES: AMOR MUNDI

Na busca por compreender o conceito de mundo no pensamento arendtiano,


encontramos na tese de doutorado de Arendt – O Conceito de Amor em Agostinho
(CASA, 1997)31 – vários elementos que argumentam a respeito do seu entendimento
de amor ao mundo. Percebe-se que, nesse texto, Arendt encontra na filosofia de
Agostinho elementos sobre a faculdade do querer, que, mais tarde, seria analisada
na obra A Vida do Espírito (VE I). São vários os questionamentos feitos por Arendt,
mas ao refletir: “o que é então este mundo, no qual a criatura é introduzida do
nascimento e que não é, no entanto, aquilo que a determina originalmente?” (CASA,
1997, p. 75), mostra a grande preocupação que perpassa todo seu pensamento.
Diante de formulações como essa, a autora “mergulha” em seus estudos para
encontrar respostas e promover mais reflexões.
Expondo sua compreensão de mundo, Arendt diz:

Chama-se “mundo”, com efeito, não apenas a esta criação de Deus, o céu e
a terra [...] mas também todos os habitantes do mundo são chamados
“mundo” [...] Todos aqueles que amam o mundo são chamados “mundo”. O
mundo, portanto, são aqueles que amam o mundo (dilectores mundi). O
conceito de mundo é duplo: por um lado, o mundo é a criação de Deus – o
céu e a terra – dada antecipadamente a toda a dilectio mundi, por outro
lado, ele é o mundo humano a constituir através do fato de o habitar e de o
amar (diligere). (CASA, 1997, p. 79).

31ARENDT, H. O conceito de amor em Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.


55

Por outro lado, fundamentada no pensamento de Agostinho, ela compreende


que nada chega ao mundo por acaso. Assim, tudo que se manifesta no mundo o faz
pela obra da natureza e é, em parte, a obra da nossa vontade. “Somos por nossa
vontade parte que se apodera daquilo que advém ao mundo” (CASA, 1997, p. 78).
Através de palavras e atos nos inserimos no mundo humano. Logo, quando
assumimos o fato de nossa apresentação ao mundo, é como se ocorresse um
segundo nascimento. Desde que apresentamos ao mundo nosso ser [bieing],
compartilhamos com outros homens a qualidade da alteridade [otherness]. Esse é
um aspecto importante na distinção dos entes, pois, segundo Arendt, somente
podemos dizer sobre o que nosso Ser é à medida que nos distinguimos de outros.
Além disso, possuímos como todo organismo vivo aquele tipo de traços distintivos
que o torna um ente individual. “Entretanto, apenas o homem pode expressar a
alteridade e a individualidade, somente ele pode distinguir-se e comunicar-se a si
mesmo e não meramente comunicar alguma coisa-sede ou fome, afeição,
hostilidade ou medo” (TOA, 2005, p. 190, grifo do autor).
Diante disso, a alteridade e distinção são conceitos importantes no
pensamento de Arendt, posto que se convertem em unicidade quando o homem se
insere no mundo dos humanos com atos e palavras. Mas essa não seria uma
inserção imposta pela necessidade, como quando nos inserimos no trabalho, muito
menos seria motivada pelas carências e desejos, como a fabricação. A inserção no
mundo humano é incondicionada, tem seu impulso desde que nascemos e com ela
contribui com algo novo por nossa própria iniciativa. Nesse caso, significa a ação em
seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa, iniciar, agir, começar, conduzir,
imprimir movimento. Nas palavras da própria Arendt, citando Agostinho e sua
filosofia política:

Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores em


virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativas, são
impelidos a agir. [Initium] erg ut esst, creatus est homo, ante quem mullus
fuit (“para que houvesse um início, o homem foi criado, sem que antes dele
ninguém o fosse”). (CH, 2016, p. 221, grifo do autor).

No texto Trabalho, Obra e Ação, Arendt reafirma essa compreensão a


respeito da ação dizendo:
56

Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato da pluralidade


humana, o fato de que não. Um homem, mas homens, no plural, habitam a
Terra e de uma maneira ou outra vivem juntos. Mas apenas a ação e a fala
se relacionam especificamente com este fato de que viver significa sempre
viver entre os homens, entre aqueles que são meus iguais. Portanto,
quando me insiro no mundo, é em um mundo onde outros já estão
presentes. A ação e a fala são tão estreitamente ligadas porque o ato
primordial e especificamente humano sempre tem de responder também à
questão colocada a todo recém-chegado: “Quem é você?”. A revelação de
“quem alguém é” está implícita no fato de que de certo modo a ação muda
não existe, ou se existe é irrelevante; sem a fala, a ação perde o ator, e o
agente de atos só é possível na medida em que ele é ao mesmo tempo, o
falante de palavras que se identifica como o ator e anuncia o que ele está
fazendo, o que fez e o que pretende fazer. (TOA, 2005, p. 190-191).

Contudo, diante de uma determinada ação se revela a imagem, a identidade


do próprio indivíduo. A pluralidade humana, a condição básica da ação, leva em
consideração a igualdade humana e, ao mesmo tempo, sua distinção. Se todos os
homens fossem iguais haveria a facilidade de entendimento e compreensão, mas
por serem distintos uns dos outros os homens precisam do discurso e da ação para
se fazerem compreensíveis. Nesse sentido, a distinção mencionada também não se
confunde com a alteridade; “a alteridade é, sem dúvida, aspecto importante da
pluralidade, a razão pela qual todas as nossas definições são distinções, pela qual
não podemos dizer o que uma coisa é sem distingui-la de outra” (CH, 2016, p. 220).
Com isso, compreende-se que a pluralidade humana para Arendt é paradoxal, pois
se torna plural de seres únicos32.

32Na obra Origens do Totalitarismo (OT, 2012), Arendt chama a atenção, pois, justamente é a
pluralidade e a diferença entre os homens que os regimes totalitários procuram eliminar. Diz a autora:
“o domínio total, que procura sintetizar infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos como
se toda a humanidade fosse apenas um indivíduo, só é possível quando toda e qualquer pessoa seja
reduzida à mesma identidade de reações” (OT, 2012, p. 582). O fato dos regimes totalitários tentarem
reduzir a pluralidade humana numa só identidade pressupõe, para Arendt, a tentativa de criar uma
espécie humana igualando as espécies animais e eliminado, desse modo, a liberdade que é típica de
cada homem, substituindo-a pelo instinto de preservação da espécie. Na sequência, Arendt ressalta
que “[...] o domínio totalitário procura atingir esse objetivo através da doutrinação ideológica das
formações de elite e do terror absoluto nos campos; e as atrocidades para as quais as formações de
elite são impiedosamente usadas constituem a aplicação prática da doutrina ideológica – o campo de
testes em que a última deve colocar-se à prova –, enquanto o terrível espetáculo dos campos deve
fornecer a verificação ‘teórica’ da ideologia” (OT, 2012, p. 582). Somos seres plurais e é diante da
pluralidade que a ação tem seu real significado e valor. Ao olhar por esse ponto de vista e elevá-lo ao
patamar da educação nos regimes totalitários, compreende-se que a educação sempre correu o risco
de ser transformada em doutrinação. Esse risco é inerente aos totalitarismos dos partidos e grupos
políticos em vista de suas ideologias e crenças. Sendo a educação um campo pré-político, todos têm
que assumir a responsabilidade por ela, e os que não o fizerem não podem tomar parte sobre ela. Ao
assumir a educação, o professor teria que ter um mínimo de conhecimentos antropológicos em sua
totalidade, pois alguns elementos dessa área são necessários para que não sejam cometidos os
mesmos erros do passado. Quando a educação é tomada pelos regimes totalitários, os recém-
chegados são privados de espontaneidade face ao mundo.
57

É no âmbito do discurso e da ação que o homem revela a distinção que é


única. Significa que é por meio do discurso e da ação que eles se distinguem dos
demais, fator que não fica restrito à mera distinção. Somente o homem consegue
demonstrar essa distinção e, ao mesmo tempo, distinguir-se, além de ser o único
capaz de comunicar a si próprio. Os homens aparecem uns para os outros não como
objetos físicos, mas por meio da ação e do discurso. Por meio desses dois
elementos ele rompe com seu estado animalesco e adentra no campo propriamente
humano. Não há como ser humano e abster-se dessa dimensão sem deixar de sê-lo.
Diferente das outras atividades humanas da vita activa, como aponta Arendt:

Os homens podem perfeitamente viver sem trabalhar, obrigando outros a


trabalharem para eles; e podem muito bem decidir simplesmente usar e fruir
do mundo de coisas sem lhe acrescentar um só objeto útil; a vida de um
explorador ou senhor de escravos e a vida de um parasita podem ser
injustas, mas certamente são humanas. Por outro lado, uma vida sem
discurso e sem ação – e esse é o único modo de vida em que há sincera
renúncia de toda aparência e de toda vaidade, na acepção bíblica da
palavra – é literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida
humana, uma vez que já não é vivida entre os homens. (CH, 2016, p. 218-
219).

A ação está estritamente ligada ao discurso. Caso ela seja muda deixa de
ser ação, pois não haveria um ator que para ser considerado realizador de feitos só
o é mediante o discurso. Na ação e no discurso, os homens mostram quem são e
revela sua identidade, dessa forma, se expõem diante do mundo das aparências
humanas. A ação necessita do discurso para ser ação, diferente de outras atividades
em que o discurso aparece como secundário, nela é primordial. Quando não há o
desvelamento do ator, a ação acaba perdendo o seu caráter específico, o que a
torna em um ato como outro qualquer. Isso se converte, para Arendt, em “apenas
um meio para atingir um fim, tal como a fabricação é um meio de produzir um objeto”
(CH, 2016, p. 223).

A ação e o discurso ocorrem entre os homens, uma vez que a eles são
dirigidos, e conservam sua capacidade de revelar o agente [agent-revealing]
mesmo quando o seu conteúdo é exclusivamente “objetivo”, dizendo
respeito a questão do mundo das coisas no qual os homens se movem,
mundo este que se interpõe fisicamente entre eles e do qual procedem seus
interesses específicos, objetivos e mundanos. Esses interesses constituem,
na acepção mais literal da palavra, algo que inter-essa [inter-est], que se
situa entre as pessoas e que, portanto, é capaz de relacioná-las e mantê-las
juntas. A maior parte da ação e do discurso diz respeito a esse espaço-entre
[in-between], que varia de grupo para grupo de pessoas, de sorte que a
58

maior parte das palavras e atos refere-se a alguma realidade objetiva


mundana, além de ser um desvelamento do agente que atua e fala. Como
esse desvelamento do sujeito é parte integrante do todo, até mesmo da
mais “objetiva” interação, o espaço-entre físico e mundano, justamente
como os seus interesses, é recoberto e, por assim dizer sobrelevado por
outro espaço-entre inteiramente diferente, constituído de atos e palavras,
cuja origem se deve unicamente ao agir e ao falar dos homens diretamente
com os outros. Esse segundo espaço-entre subjetivo não é tangível, pois
não há objetos tangíveis nos quais ele possa se solidificar: o processo de
agir e falar não pode deixar atrás de si tais resultados e produtos finais. Mas
a despeito de toda a sua intangibilidade, o espaço-entre é tão real quanto o
mundo das coisas que visivelmente temos em comum. (CH, 2016, p. 226,
grifo da autora).

Neste capítulo, analisamos as “interfaces” e as nuanças da vita activa no seu


entrelace com a vita contemplativa, com o intuito de compreender esse ajuste no
debate milenar sobre a educação. Foi possível notar que, de acordo com Arendt,
houve na história, em especial na era moderna, uma inversão dos elementos da vita
activa, que elevou a exaltação do homo faber.
Diante desse cenário, essa inversão possui bastante vestígio na
contemporaneidade, já que as instituições de ensino, públicas ou privadas,
direcionam a educação para a formação de profissionais – trabalhadores. Nesse
contexto, a atividade do pensamento, tornou-se mera objetivação e coisificação da
produção33. A inteligência artificial tem-se apropriado da educação subordinando-a e
orientando-a. Esses vestígios, sobretudo ao recaírem diretamente no campo
educativo, refletem profundamente o campo da ação, visto que, se o homo faber se
inserir no da educação, corre-se o risco de impedir que os recém-chegados tragam a
novidade ante o mundo34.
No capítulo seguinte analisaremos o pensamento de Arendt buscando
compreender como a educação pode auxiliar os recém-chegados no exercício do
pensamento reflexivo. Para alcançar esse objetivo, parte-se da tentativa da
compreensão da condição humana.

33Novamente, referimo-nos aqui às disciplinas e matérias da área das Ciências Humanas, que estão
postas sob escanteio no processo de formação dos novos.
34Diferente dos regimes totalitários que partem da doutrinação, atualmente percebe-se uma sutil

dominação da mão invisível do capital, de Adam Smith, que usa a carapuça do sistema.
59

3 CONDIÇÃO HUMANA E EDUCAÇÃO

Antes de adentramos propriamente no capítulo, apresentamos a dificuldade


em encontrar um conceito que abrange o ser humano em sua totalidade. Foi-se
pensado em utilizar o conceito antropológico, apesar de percebe que não seria o
mais ideal para abordar a compreensão que Hannah Arendt tem do homem – visto
que é a partir do campo político que ela compreende o ser humano – sendo, de
entendimento comum que o conceito de antropologia se refere à exposição
sistemática dos conhecimentos que se têm a respeito do homem. Esse pode ser
dirigido aos diversos campos das ciências, mas não conseguiria abranger a
condição humana em sua totalidade. Apesar de todo limite o conceito antropológico
é o que mais se aproxima na significação da condição humana. Não obstante, é por
essa razão que ressaltamos a importância de haver um conhecimento antropológico
por parte dos educadores, os quais assumiram a responsabilidade de ensinar os
novos no mundo. Em outras palavras, os educadores necessitam de um prévio
conhecimento da condição humana para assumir a responsabilidade pelo processo
educativo35. Ou nas palavras de Fensterseifer, “dado o fato de que a educação lida
com pessoas, os educadores precisam ter conhecimento de gente”36.
A própria Arendt relata haver uma dificuldade em conhecer o ser humano,
isto é, em conhecer “gente”, a qual frustra diante da intangibilidade de toda tentativa
de expressão verbal inequívoca: “no momento em que queremos dizer quem alguém
é, nosso próprio vocabulário nos induz ao equívoco de dizer o que esse alguém é”
(CH, 2016, p. 224, grifo da autora). Na sequência de seus argumentos, explica que
as frustrações têm a “mais estreita afinidade com a notória impossibilidade filosófica
de se chegar a uma definição do homem, visto que todas as definições são
determinações do que o homem é” (CH, 2016, p. 224, grifo da autora).
Um bom pedagogo é, antes de tudo, um bom conhecedor da condição
humana37. Tendo isso em mente, a intenção deste capítulo é analisar o conceito de

35Utilizamos aqui nesse capítulo o conceito de antropologia como sinônimo do termo da condição
humana.
36A frase foi reelaborada, mas tem como ideia central a reflexão realizada pelo professor Doutor Paulo

Evaldo Fensterseifer na disciplina “Paradigmas do Conhecimento”, ofertada no Programa de Pós-


Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul.
37Essa expressão pode ser filosoficamente perigosa, pois caberia uma reflexão sobre “o que é bom”

ou “o que se entende por bom”. Os conceitos de bom e de mau sempre tomaram espaço nos debates
filosóficos, porém, cabe evidenciar que tal afirmação diz respeito ao fato de que o professor
60

homem e de ser humano no pensamento de Hannah Arendt, partindo do


pressuposto de que quem assume a responsabilidade de educar necessita, antes de
tudo, ter uma boa carga formativa, em especial, uma formação humana, dado que
seu objeto de trabalho é preparar os novos para o mundo.
Ainda que Arendt não tenha sido pedagoga – seu objeto de pesquisa se
volta ao campo político –, ao escrever o texto “A crise na educação”, ela se distancia
do campo educacional para refletir sobre as consequências que geraram a crise
nessa área. A partir de então, Arendt tornou-se um ponto de referência para muitos
pesquisadores e pedagogos que se debruçam sobre a árdua missão de
compreender os problemas educacionais. Diante da influência que o pensamento de
Arendt adquiriu na sociedade contemporânea, nada mais do que justo delinear a
concepção da condição humana que a autora possui, que se encontra em seus
escritos ora a saltar a vista, ora implícita nas entres linhas.
Destarte, refletir sobre a condição humana na contemporaneidade é pensar
sobre qual princípio educativo as instituições de ensino têm como base orientadora.

3.1 COMPREENSÃO DO HOMEM COMO SER PENSANTE

Refletir sobre o que estamos fazendo nos coloca em movimento na


fundamentação de nossas atividades e ações, o mesmo ocorre com o rumo
educacional, isto é, refletir a educação e sua condição atual pressupõe um
movimento e uma fundamentação sobre suas atividades educacionais. Refletir sobre
nossas atitudes não diz respeito tão somente a raciocinar
matematicamente/exatamente, ou, como realizam muitos numa atitude sofista de
viver, a criar argumentos justificativos, como tem sido transmitido há gerações. A
reflexão é a atitude pela qual se busca, sobretudo, o sentido da vida, o que somos e
o que nos é apresentado, o que nos acontece e o que almejamos. Refletir é uma
atitude que nos coloca diante da continuidade do mundo no qual estamos inseridos.
Para a compreensão do conceito condição humana arendtiano, partimos da
análise da obra “A Condição Humana” (2016), visto que a autora aqui estudada
apresenta, no prólogo dessa obra, que seu objetivo consistia em apenas “pensar

necessitará ter no mínimo alguns conhecimentos básicos a respeito da condição humana, ou


condição antropológica, que garantam um bom relacionamento entre educandos e educadores.
61

sobre o que estamos fazendo” (CH, 2016, p. 6)38. Embora a autora se limite à
reflexão sobre as três atividades, que estão sobre o alcance de todo ser humano,
anteriormente mencionadas, ela constata que a mais pura e mais elevada
capacidade do homem consiste na capacidade de pensar39.
Quando Arendt expressa o objetivo da obra, apresenta aí um princípio
antropológico de sua compreensão de homem: compreende a autora que somos
todos seres pensantes. Porém, a composição da frase “pensar sobre o que estamos
fazendo” permite-nos a compreender como, “refletir sobre o que estamos fazendo”.
Assim, o termo pensar, nos escritos da autora, pode ser constantemente
compreendido como refletir40.
A compreensão de homem pensante está expressa com mais precisão na
obra A vida do Espírito (2011), pela qual Arendt literalmente debruça-se sobre a
temática, e o faz em diálogo com a tradição filosófica até então estabelecida. Nessa
obra41, a autora trabalha propriamente com três conceitos, a saber: o conceito de
pensar, de querer e o de julgar. O motivo que leva Arendt a mergulhar nesse
assunto, segundo ela, deve-se ao julgamento de Eichmann em Jerusalém42 (EJ,
1999). Nesse livro, ela faz um relato do procedimento do julgamento de Eichmann e
chega à conclusão que há uma banalização do mal. Ela observa que Eichmann foi

38O conceito antropológico de Hannah Arendt está manifestado em todas as suas obras. Assim, será
referenciado também em outros livros neste capítulo.
39Essa capacidade humana é abordada por Arendt na obra A Vida do Espírito (2011).
40Devido a amplitude e a colocação do conceito de pensar, utilizaremos esse conceito como sinônimo

de refletir, isto é, de reflexão, visto que o conceito pensar acaba sendo confundido com as
capacidades humana cognitivas. Como diz a Arendt, “com a ascensão da era moderna, o
pensamento tornou-se principalmente servo da ciência, do conhecimento organizado; e ainda que o
pensamento se tenha então tornado extremamente ativo” (VE I, 2011, p. 17), embora a autora realize
uma distinção singular da capacidade humana cognitiva e o pensar.
41Hannah Arendt não conseguiu terminar este escrito, pois veio a falecer.
42Adolf Eichmann foi o responsável pela deportação dos judeus para os guetos e campo de

concentração. Ele era chefe da Seção de Assuntos Judeus no Departamento de Segurança de Hitler.
Quando Eichmann foi capturado na Argentina e foi levado ao tribunal em Jerusalém, o mundo
esperava ver um monstro, um antissemita brutal, um nazista fanático. O réu, por sua vez, passou a
imagem de um homem comum, um burocrata que teria apenas assinado documentos. Ele insistia que
apenas cumpriu ordens e jamais se preocupou em questioná-las. Em certo momento do julgamento,
segundo Arendt, ele cita que cumpriu somente com o imperativo categórico do filósofo Kant.
Interrogado pelo júri, Eichmann diz “O que eu quis dizer com minha menção a Kant foi que o princípio
da minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais” (EJ,
1999, p. 153). Ele cumpria seu dever. Mas, em defesa de Kant, Arendt diz, “Kant, sem dúvida, jamais
pretendeu dizer nada desse tipo; ao contrário, para ele todo homem é um legislador no momento em
que começa a agir: usando essa ‘razão prática’ o homem encontra os princípios que deveriam ser os
princípios da lei. Mas é verdade que a distorção inconsciente de Eichmann está de acordo com aquilo
que ele próprio chamou de versão de Kant ‘para uso doméstico do homem comum’” (EJ, 1999, p.
153).
62

preciso na deportação dos judeus para o campo de concentração, mas era incapaz
de refletir sobre o significado de suas ações.
A própria autora disse que ficou espantada no julgamento, com a
manifestação da superficialidade de Eichmann que impossibilitava seguir o mal
incontestável dos seus atos até qualquer nível mais profundo de raízes e motivos.
Segundo a autora:

Os atos eram monstruosos, mas o agente – pelo menos aquele mesmo que
agora estava a ser julgado – era absolutamente vulgar, nem demoníaco,
nem monstruoso. Não havia nele nenhum sinal de convicções ideológicas
firmes ou de motivos maldosos específicos, e a única característica notável
que se podia detectar no seu comportamento durante o julgamento era algo
de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão. (VE I, 2011, p.
14, grifo do autor).

É a ausência de reflexão na sociedade que incomoda Arendt. Como relata a


autora, o que a despertou foi justamente o fato dos homens não terem tempo para
“parar e pensar” (VE I, 2011, p. 15). Segundo Arendt, o “parar para pensar” é uma
experiência vulgar, da qual não nos ocupamos. Contudo, apesar do diálogo 43
estabelecido com a tradição filosófica, ela compreende que tal atitude está presente
no homem, não é mérito somente dos filósofos e pensadores, já que o pensar é a
quinta-essência humana.
A ausência de pensamento, que Arendt percebeu no julgamento de
Eichmann, levou a se questionar como esse homem conseguiu cometer tamanha
atrocidade. Diante disso, ela investiga as causas de tamanho ato, as quais
envolviam a compreensão de bem e de mal. Tal inexistência de reflexão não
emergiu do esquecimento de aspectos ou de maneiras e hábitos morais anteriores e
presumivelmente bons, a ausência de pensamento não brotou da estupidez no
sentido de incapacidade para compreender e de insanidade moral. Isso porque não
tinha nenhuma relação com as chamadas decisões éticas ou questões de
consciência.
Desse modo, a autora questiona-se:

43Nesse diálogo que ela estabelece com a tradição filosófica, ela chega à conclusão de que quando
se trata a atividade do pensamento, os filósofos são todos pensadores profissionais, exceto,
Sócrates. Este é o único despojado de si mesmo. Dentre os pensadores, Sócrates foi o único capaz
de permanecer sempre homem entre os homens, não evitou a praça pública, permanecendo um
cidadão entre cidadãos, não fazendo nada, não pretendendo nada exceto o que na sua opinião cada
cidadão deve ser e a que tem direito.
63

Pode a atividade do pensamento enquanto tal, o hábito de examinar tudo o


que calha acontecer ou despertar atenção, independentemente de
resultados e do conteúdo específico, pode essa atividade estar entre as
condições que fazem com que homens se abstenham de praticar o mal, ou
mesmo que os “condicione” efetivamente contra ele? (A própria palavra
“consciência”, em todo o caso aponta nesta direção na medida em que
significa “conhecer com e por mim”, um gênero de conhecimento que é
atualizado em todos os processos do pensar.) E não é esta hipótese
reforçada por tudo o que sabemos sobre a consciência, nomeadamente,
que uma “boa consciência” é desfrutada em regra apenas por pessoas
realmente más, ao passo que só as “boas pessoas” é que são capazes de
ter uma má consciência? (VE I, 2011, p. 15).

A ausência de pensamento pode ter consequências desastrosas, e o próprio


pensar não está isento dessa mesma sorte. Conforme Arendt, a crise da
modernidade desorientou e desestabilizou a base da reflexão humana com as
afirmações teológicas da morte de “Deus”, com as afirmações filosóficas sobre o fim
da metafísica e com o fim das certezas do conhecimento. Assim, a autora
compreende que essa escassez fez parte das ações realizadas nos campos de
concentração, ainda que tenhamos vivido constantemente as barbáries da ausência
de pensamento manifestadas nos regimes totalitários. Correia (apud CH, 2016, p.
XIV) compreende que:

Os campos de concentração, para Hannah Arendt, operaram como


laboratórios nos quais se experimentou a transformação da própria natureza
humana, mediante a destituição da espontaneidade de cada indivíduo,
tornando intercambiável e supérfluo. Está em questão a dignidade humana,
pois, para ela, o respeito pela dignidade humana implica o reconhecimento
de cada indivíduo humano como edificador de mundos ou coedificador de
um mundo comum.

Apesar de toda a crise ou por mais “seriamente que nossas maneiras de


pensar possam estar envolvidas nesta crise, a nossa capacidade para pensar não
está em causa; somos o que os homens sempre foram – seres pensantes” (VE I,
2011, p. 21, grifo nosso). O pensar, para Arendt, pode ser elevado além das
limitações do conhecer e do fazer. Dessa forma:

A capacidade de distinguir o bem do mal se revela como tendo alguma


coisa a ver com a capacidade de pensar então devemos ser capazes de
“exigir” o seu exercício a todas as pessoas sãs, não importando quanto
possam ser eruditas ou ignorantes, inteligentes ou estúpidas. (VE I, 2011, p.
23).
64

Portanto, diante desta constatação, cabe-nos nesse momento problematizar


a relação do pensamento com a educação, considerando o fato de que Arendt
percebeu no caso de Eichmann que houve um fracasso moral. Estando o mesmo,
relacionado com a incapacidade de pensar, então nos perguntamos: pode a
educação ser auspiciosa ao pensamento? De antemão, se Arendt compreende que
a maneira tradicionalmente de pensamento é o que está em crise e não a
capacidade humana de pensar, então pressupomos verdadeira que uma educação
para o pensamento seja possível. Nesse âmbito, a capacidade de pensamento pode
ser desenvolvida e aperfeiçoada no processo educativo, posto que os educadores
poderão estimular, despertar e incentivar nos educandos essa capacidade
reflexiva44.

3.2 A AUSÊNCIA DE PENSAMENTO E A GERAÇÃO DE SONÂMBULOS

Ousamos continuar com esta investigação a partir do pensamento de Santo


Agostinho, que, com sua sabedoria, conseguiu poeticamente apresentar um dos
enigmas antropológicos que até os dias atuais não foi superado: “ninguém conhece
o que se passa num homem, senão o seu espírito, que nele reside. Há, porém,
coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece”
(AGOSTINHO, 1984, X, 5.7V). Santo Agostinho foi um influenciador do pensamento
de Arendt, tanto que a autora escreveu sua tese de doutorado, publicada em 1929,
com o objetivo de investigar o conceito de amor para esse autor.
Na obra A Condição Humana, Arendt, quando fala sobre o seu objeto de
investigação – a saber, a condição humana –, deixa claro que não é o mesmo que
natureza humana. Segundo ela, o problema da natureza humana se tornou
insolúvel, a partir da compreensão agostiniana sobre “a questão que me tornei para
mim mesmo” (CH, 2016, p. 13), tanto em aspectos psicológicos como filosóficos. “E
que sou eu, ó meu Deus? Qual é minha natureza? Uma vida variada de inumeráveis
formas com amplidão imensa” (AGOSTINHO, 1984, X, 17, 26). Conhecer,
determinar e definir as essências naturais do homem seria impossível, visto que não

44O ideal seria que essa atitude de despertar dos novos o pensamento reflexivo ocorresse, por parte
dos educadores, considerando a neutralidade no que se refere a adesão de ideologias de quaisquer
âmbitos.
65

temos condições para isso e ao tentarmos compreendê-la, “seria como pular sobre
nossas próprias sombras” (CH, 2016, p. 13).
Nesse contexto, é possível compreender que o homem não tem uma
natureza ou uma essência semelhante às outras coisas, como diz Arendt, “se temos
uma natureza ou essência, então certamente só um deus poderia conhecê-la e
defini-la, e a primeira precondição é que ele pudesse falar de um ‘quem’ como se
fosse um ‘que’” (CH, 2016, p. 13). As categorias da cognição humana que se
aplicam às coisas naturais não conseguem responder à pergunta sobre a natureza
humana (quem somos nós?), isto porque não temos condições de defini-la, mas, ao
insistir em fazê-lo, reflete-se sobre a construção de uma deidade, que gera uma
ideia do “sobre-humano” (superhuman), identificando-o com o divino. Por isso é que
para a autora pode-se lançar suspeitas sobre o conceito de “natureza humana”.
Segundo Arendt, “as condições da existência humana – a vida, a natalidade
e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e a Terra – jamais podem explicar o
que somos ou responder à pergunta sobre quem somos” (CH, 2016, p. 14). Isso
porque jamais o homem se condiciona absolutamente. Com isso, pressupõe-se que
os seres humanos não são meras criaturas terrenas, embora vivam em condições
terrenas. Entretanto, já que não podemos conhecer a natureza humana, nos resta
então partir para análise do conceito, pensar e pesquisar na teoria de Arendt, de que
modo contribuem seus estudos para o campo educacional.
A constatação de Arendt de que somos seres pensantes pode influenciar
diretamente a área da educação, pois remete ao conhecer e pensar o mundo, logo,
pressupõe-se a responsabilidade com o (Todo) universo. No entanto, constata-se na
contemporaneidade que a educação está intencionada puramente a conhecer e
menosprezar o pensamento para buscar sentido. Assim, por ser considerado quase
inútil, por não obter resultados sólidos e por não propiciar um recurso econômico, o
“refletir” é colocado em segundo plano.
Diante disso, não se nega a importância do conhecer, pois, o mundo é um
espaço construído pelas ações humanas e pelo pensamento sobre o mesmo. Temos
a necessidade da manutenção da vida, mas somos capazes de estabelecer relações
e criar formas de convivência que não se limitam aos fins utilitários. Portanto, a
criança nasce sendo inserida em um mundo que é espaço de trabalho e lugar de
fabricação, assim como também é um ambiente de convivência e de histórias
66

humanas. Desse modo, cabe à educação familiarizar os novos com os saberes e


pensamentos que foram constitutivos para o mundo.
Arendt se posiciona contra o pensamento do filósofo Kant quando ele dizia
que a “estupidez é causada por um coração iníquo”. Segundo ela, “a ausência de
pensamento não é estupidez; pode ser encontrada em pessoas muito inteligentes, e
um coração iníquo não é a causa; é provavelmente o oposto, que a iniquidade pode
ser causada pela ausência de pensamento” (VE I, 2011, p. 23). Contudo, concorda
com Kant quando faz a distinção de razão (vernunft) e intelecto (verstand), entre a
necessidade de pensar e o desejo de conhecer. A distinção kantiana de razão e
intelecto coincide com a distinção entre duas atividades de espírito inteiramente
diferentes e com preocupações inteiramente distintas: pensar, que envolve a
categoria do sentido, e conhecer, que abrange a categoria da cognição. Assim:

Pensar, no seu sentido não cognitivo, não especializado, como uma


necessidade natural da vida humana, a atualização da diferença dada na
consciência (conciousness) não é uma prerrogativa da minoria, mas uma
faculdade sempre presente em todos; por isso, a incapacidade de pensar
não é um defeito da maioria que falta de capacidade cerebral, mas uma
possibilidade sempre presente para todos – cientistas, eruditos não
excluindo outros especialistas em empreendimento mentais. Toda a gente
pode vir a evitar essa conversação consigo mesmo cuja praticidade e
importância Sócrates foi o primeiro a descobrir. O pensar acompanha a vida
e é ele próprio a quinta-essência desmaterializada do estar vivo; e dado que
a vida é um processo, a sua quinta-essência só pode residir no processo
efetivo do pensar e não em quaisquer resultados sólidos ou pensamentos
específicos. Uma vida sem pensar é absolutamente possível; fracassa então
no desenvolvimento da sua própria essência – não é meramente sem
sentido; não está inteiramente viva. Os homens que não pensam são
comparáveis a sonâmbulos. (VE I, 2011, p. 210, grifo nosso).

Souza (1999), refletindo sobre a temática do educar para o pensamento,


desenreda o pensamento arendtiano no qual, nos ajuda a distinguir o conteúdo do
pensar e do conhecer. Segundo Souza (1999, p. 88):

O conhecimento, em sua busca por aquilo que se constitui verdade, vai


produzindo resultados e deixando-os ao longo do seu caminho, a cognição.
Geralmente, estes resultados são superados, pois, todo conhecer traz em si
a possibilidade do erro. A atividade do pensar, ao contrário, não produz
nada, não deixa nada constituído. O pensador, ao abandonar os seus
pensamentos, não está de posse de nenhum saber, de nenhuma regra de
concepção ou de garantias que lhe sirvam para engendrar alguma ciência.
O pensamento não produz resultados. Sua busca é pelo significado e sua
atividade é livre e desinteressada. Posso pensar algo e dar-lhe um
significado hoje, mas isso não é acumulado. Amanhã precisarei pensá-lo de
novo e dar-lhe, novamente, um significado. Para Arendt, o pensamento é
67

como o mito de Penélope. Todos os dias Penélope tece sua teia e, à noite,
desfaz-se a teia. No dia seguinte, Penélope reinicia a sua tarefa.

O conhecimento é pressuposto por limites, e ao se chegar à verdade do


conhecimento há uma certa satisfação com essa verdade, na qual acontece uma
estagnação cognitiva. Em contrapartida, o pensamento vai além da verdade, ele
busca o significado das coisas. Ao contrário do pensamento, o conhecimento
conhece seu fim. Posto isso, Kant tem toda razão quando diz que não se pode
conhecer a existência de Deus, a imortalidade da alma e a liberdade, pois, ambos
conteúdos estão no âmbito do pensamento e não do conhecimento. “O
conhecimento manipula, experimenta, demonstra, prova e para. O pensamento vai
além, continua no significado, sempre novo e imprevisível. Fiel ao seu caráter
iluminista, a escola continua educando para o conhecimento” (SOUSA, 1999, p. 89).
O pensar é uma atividade solitária. Ao realizar esse ato o homem faz
companhia a si mesmo. Dessa forma, Arendt compreende o conceito de “homem”
como um conceito no plural, porque entende haver dualidade durante a atividade do
pensar. É essa dualidade do “eu que pensa consigo mesmo” que converte esse ato
em uma verdadeira atividade, em que, o “eu” é tanto o que pergunta como o que
responde. Portanto, para a autora afirma que:

O pensar lida com invisíveis, com representações de coisas que estão


ausentes; julgar diz sempre respeito a particulares a coisas que estão à
mão. Mas as duas estão correlacionadas, tal como o estão a consciência
(conciousness) e a consciência (conscience). Se pensar – os dois-em-um
do diálogo silencioso – atualiza a diferença no interior da nossa identidade
tal como é dada na consciência (conciousness) e tem como resultado a
consciência (conscience) como seu produto derivado, então o julgar, o
produto derivado do efeito libertador do pensar realiza o pensar, torna-o
manifesto no mundo das aparências, no qual nunca estou desacompanhado
e estou sempre demasiado ocupado para ser capaz de pensar. A
manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento; é a
capacidade de distinguir o bem do mal, o belo do feio. E isto, nos raros
momentos em que aquilo se joga está em cima da mesa, pode na verdade
impedir catástrofes, pelo menos para o eu (self). (VE I, 2011, p. 212).

O pensamento pressupõe-se um colocar-se fora do mundo para pensar o


mundo, pois pensar é algo metafisico, ou seja, essa atividade pressupõe-se um
afastamento, um rompimento com o mundo. É um eterno retorno no diálogo com o
outro conciousness. Se o pensamento é colocar-se fora do mundo ele não pode
produzir resultados objetivados. Por conseguinte, ele se situa na dimensão do
68

significado, ou seja, sua atividade é livre e desinteressada. A atividade do pensar é a


única, e, não precisa de mais nada além de si mesmo para o seu exercício. Se por
um lado, “um homem generoso” precisa de condições materiais para realizar atos
generosos ou um homem que se domina precisa da oportunidade da tentação, a
atividade do pensar independe de motivações ou condições.
Arendt ao abordar a crise na educação parte da compreensão de que a crise
não se limita simplesmente a uma nação-estado, ela chega a atingir os mais
recantos do mundo. Por isso, compreende-se que a crise na educação não se
limitou ao continente americano, conforme salientamos acima no texto, mas, por ser
uma crise de natureza política ela tomou uma proporção de modo que veio a atingir
os demais países e continentes. Portanto, por mais limitada e particular que seja
uma crise educacional ela pode fazer de uma “aldeia” localizada em qualquer
recanto da terra uma “aldeia global”45. É sobre essa perspectiva que o filósofo Edgar
Morin46 compreende e apresenta alternativa para uma educação no ponto de vista
da era planetária, no qual, contribui com este diálogo sem se perder o foco do
pensamento arendtiano.
Morin (2019, s.p.), analisando a ausência de pensamento da
contemporaneidade, em uma visita ao Brasil no ano de 2019, radicaliza o
pensamento arendtiano afirmando que “seguimos como sonâmbulos e estamos
indo rumo ao desastre”. E ele aponta para o desastre ecológico e o desastre dos
fanatismos. Esse sonambulismo deve-se aos aspectos da educação
contemporânea. A educação contemporânea parte da lógica do pensamento
compartimentado, que nos impede de apreender os principais problemas globais e
fundamentais, e que não permite pensar de uma forma universal – relevando todas
as partes do todo sobre o quê refletimos. Nessa concepção, aprendemos a
conhecer, no sistema educativo atual, separando o conhecimento de acordo com

45O termo “Aldeia Global” foi cunhado pelo sociólogo canadense Marshall McLuhan, no qual, refere-se
ao progresso tecnológico que avassaladoramente atinge qualquer recanto do planeta globalizando
qualquer aldeia, ou seja, por meios da internet e da televisão os meios de comunicação fariam com
que o mundo se tornasse uma grande aldeia, quebrando fronteiras geográficas, culturais, sociais e de
outros tipos. Utilizamos esse conceito também na perspectiva de Morin de que qualquer ação por
mais insignificante e particular, que seja, ela causará uma reação universal ou planetária.
Exemplificando, uma árvore cortada no fundo do quintal de uma casa, contribui-se com o
desmatamento e com o efeito estufa.
46Inclui-se aqui o pensamento do filósofo Morin para ajudar a compreender a importância de uma

educação reflexiva. O filósofo Morin, apesar da sua idade (100 anos), encontra-se lúcido ao falar dos
problemas educacionais e dos problemas da contemporaneidade.
69

disciplinas, sem estabelecer conexão entre elas. A fragmentação do conhecimento


também pode tornar mais seria a crise educacional.
Portanto, Morin (2005, p. 117) parte do pressuposto de que a educação tem
um desafio grande, pois sua missão:

Para a era planetária é fortalecer as condições de possibilidade da


emergência de uma sociedade-mundo composta por cidadãos
protagonistas, conscientes e criticamente comprometido com a construção
de uma civilização planetária. Essa missão deve começar realizando uma
ação institucional que permita incorporar-nos diferentes espaços educativos
e de acordo com os diferentes níveis de aprendizagem seis eixos
estratégicos-diretrizes para uma ação cidadã, articuladora de suas
experiências e conhecimentos, e para uma contextualização permanente de
seus problemas fundamentais no prosseguimento da hominização. A
educação planetária deve propiciar uma mundologia da vida cotidiana.

É necessário inserir nos programas voltados à educação temas que possam


auxiliar jovens e adultos a enfrentar os problemas da vida. Sobretudo, a ter
consciência de que o conhecimento com eles compartilhado pode ser uma chave de
leitura da realidade. É preciso ensiná-los que o conhecimento pode levá-los a algum
erro, cujo resultado pode ser negativo. Contudo, a educação precisa ensinar os
saberes mais importantes que consistem na compreensão do outro, como as
incertezas que envolvem o que é o ser humano.
Ademais, Morin (2019), de acordo com Arendt, diz que vivenciamos uma
crise de reflexão que se manifesta no vazio do pensamento político, na apolítica. Por
isso, o esforço do autor em efetivar esse pensamento partindo de questões
fundamentais: “o que estamos vivendo? O que está acontecendo? Para onde
estamos indo?”. Tais questionamentos vêm ao encontro de nossa preocupação
neste texto, por isso, as acrescentamos junto às reflexões de Hannah Arendt, as
quais, providas de elementos significativos, nos ajudam a refletir: o que estamos
fazendo?
No livro Ciência com consciência, Morin (2005) chama a atenção para a
responsabilidade, apresentada como noção humanista ética que só tem sentido para
o sujeito consciente, atribuindo assim a responsabilidade ao pesquisador perante a
sociedade. No entanto, se para Arendt, as questões de natureza políticas, ou seja,
decisões sobre o caminho e rumo que humanidade deva tomar são sérias
demasiadamente para serem deixados nas mãos de políticos e cientistas
profissionais, essas mesmas questões devem ser pensadas politicamente. Pois
70

trata-se de questões humana de primeira grandeza. Trata-se do seguimento de um


mundo que fora construído por gerações passadas e no qual necessita de
permanência para as gerações futuras. O fato de retirar a responsabilidade das
questões políticas das mãos dos políticos e cientistas profissionais equivale segundo
Morin (2005), repensar os critérios de responsabilidade e de verdade.

[...] a questão da responsabilidade escapa aos critérios científicos mínimos


que pretendem guiar a distinção do verdadeiro e do falso. Está entregue às
opiniões e convicções, e, se cada um pretende e julga ter conduta
“responsável”, não existe fora da ciência nem dentro dela um critério
verdadeiro da “verdadeira” responsabilidade. Assim, Einstein sentiu-se
profundamente responsável perante a humanidade quando, primeiro, lutou
contra todos os preparativos militares. Sentiu-se ainda mais responsável
perante a humanidade quando interveio insistentemente para a fabricação
da bomba atômica. (MORIN, 2005, p. 117).

O ilustrativo exemplo de Einstein serve para refletir sobre os homens que


não dispõem de condições ou critérios de verdade, no sentido de lhes permitir
pensar a respeito do lugar e do papel que a ciência e a educação desempenham na
sociedade. Esse caso particular se assemelha à situação de Eichmann na falta de
reflexão. Então, se não se sabe conceber cientificamente a educação e a ciência,
como pensar a responsabilidade dos adultos no cenário social? Para Morin (2005, p.
118):

O caso de Einstein implica questão sociológica mais geral, a da ecologia


dos atos cujo princípio pode formular do seguinte modo: o ato de um
indivíduo ou de um grupo entra num complexo de inter-retroações que o
fazem derivar, desviar e, por vezes, inverter seu sentido; assim, uma ação
destinada à paz pode, eventualmente, reforçar as probabilidades da guerra;
inversamente, uma ação que reforce os riscos de guerra pode,
eventualmente, proporcionar a paz (intimidação). Portanto, não basta ter
boas intenções para ser verdadeiramente responsável. A responsabilidade
deve enfrentar uma terrível incerteza.

Contribuindo com o debate, Souza (1999, p. 89) nos alerta do fato de que,
“se o que se quer é construir a democracia, a paz, a tolerância e a solidariedade,
então deve-se ir além, deve-se buscar o significado do mundo e não apenas as suas
verdades”. Por conseguinte, o fracasso moral diante da sociedade, como no caso de
Eichmann, e dos cientistas entre outros, não pode ser entendido como falta de
conhecimentos. “Sabemos que o problema não é esse. O mal não se entende com
os critérios do conhecimento e da verdade. A banalidade do mal está
71

intrinsecamente relacionada com a incapacidade de pensar e significar (dar sentido


a) o mundo. É urgente educar para o pensamento” (SOUZA, 1999, p. 89).
Diante do exposto e na tentativa de refletir sobre, a necessidade de uma
educação reflexiva, partimos do pressuposto de que para ser um bom educador é
preciso antes de tudo ser um bom conhecedor da condição humana. Pressupomos
que um bom conhecedor da condição humana é aquele sujeito que se interessa em
compreender, estudar, refletir sobre a humanidade e sobre o caminho que a
sociedade está seguindo. De tal modo, é o indivíduo que toma a responsabilidade e
a ação social como um fim em si mesmas.
Hannah Arendt pensou e compreendeu o ser humano em sua totalidade, o
que é uma de suas virtudes. Por isso, relacionamos a sua compreensão de
educação com o pressuposto do ser pensante. Daí é possível compreender o papel
da educação: dar condições para os educandos compreenderem o mundo no qual
estão inseridos, suas relações e manifestações. É visto que a educação não ensina
ninguém a pensar, mas ela pode despertar e propor elementos que determinem e
estimulem a reflexão dos estudantes. Em outras palavras, poderia dizer que os
novos, as crianças, podem ser estimulados ao pensamento reflexivo à medida que
são inseridas ao âmbito escolar.

3.3 ESCOLA: LUGAR DO ÓCIO E DO PENSAMENTO REFLEXIVO

Conjecturamos que educar pressupõe o despertar (da consciência) para o


pensamento reflexivo. O sistema educativo não pode ser espaço para
sonambulismos. Se os adultos que assumem a responsabilidade pelos mais novos e
pelo mundo, e necessitam estarem despertos para o pensamento reflexivo,
encontram-se em estado de sonambulismos, a humanidade pode se encontrar à
beira do precipício47.
Conforme Dresch (2018), estudioso e pesquisador do pensamento
arendtiano, a escola precisa ser compreendida como um espaço e tempo de
introdução dos alunos no âmbito dos saberes científicos constituídos e/ou em fase

47Atualmente,em diversas parte da terra existem várias vozes de pensadores que buscam despertar
a consciência coletiva para o cuidado com as questões ambientais. Pressupõem eles que se a
sociedade não repensar a ecologia e o meio ambiente estaremos caminho para o fim do mundo
humano.
72

de construção, como também lugar para o desenvolvimento do pensamento


reflexivo. No entanto, a escola precisa “oferecer conhecimentos e métodos teórico-
práticos que permitam aos estudantes compreender melhor a realidade onde estão
inseridos e até mesmo outros contextos, construindo uma postura crítica e autônoma
diante da vida em sociedade” (DRESCH, 2018, p. 97). Por isso, a formação e o
comprometimento por parte do professor são fundamentais no projeto de mundo e
na acolhida dos novos. “O almejado preparo, necessário ao educador, começa pela
seriedade com a qual encara o estudo e o planejamento de suas aulas” (DRESCH,
2018, p. 97).
O sonambulismo é uma “interface” do sistema capitalista48, por isso, a
importância da escola ser uma espécie de guardiã dos saberes e do conhecimento,
numa perspectiva, conservadora para que as novas gerações não venham a
cometer as mesmas atrocidades e erros, e, se amparem em experiências que não
deram certas no passado, entretanto, por outro lado, ser possibilidade para que os
novos tracem seus próprios caminhos. A escola precisa ser espaço do ócio, mas,
este espaço de ócio49 somente vem a se concretizar no espaço do lar, à medida que
os novos no retorno ao seu lar, impõem o diálogo consigo mesmo e sentindo-se
cada vez mais a necessidade de estudar e de conhecer.
Arendt comentando a respeito do diálogo de Sócrates e Hípias Maior, chama
a atenção para a necessidade em adquirir o “hábito de atualizar a consciência” (VE I,

48Assim como o conto do Flautista de Hamelin narrado pelos irmãos Grimm, o capitalismo conseguiu
seduzir e hipnotizar boa parte da sociedade, à medida, que os clichês e o acumulo de capital é o que
move as pessoas nas suas relações. A valorização do homem faber na contemporaneidade se limita
ao mercado de troca. Tudo é uma troca. Como sonâmbulos caminham de lado a outro sem exercer a
atividade do pensamento.
49No ano de 2020 fui entrevistado por um jornal regional – cidade de Santo Ângelo – em data alusiva

ao dia do trabalhador para falar a respeito dos desafios impostos a classe dos Trabalhadores da
Alimentação, e na entrevista, além dos aspectos econômicos refletia, apontando para a necessidade
e o desafio em repensar as estruturas e organizações laborais que possam oportunizar aos
trabalhadores um tempo para o ócio. O interessante é que, as questões econômicas o jornal publicou
na íntegra, mas quanto a parte que refletia sobre a importância do tempo de ócio para os
trabalhadores foi literalmente ignorada, não sendo publicado nada a este respeito. A reflexão partia
da perspectiva do ócio enquanto tempo para pensar o inútil; que seria as manifestações culturais, a
arte, a literatura entre outros. A não publicação da reflexão sobre a importância do tempo de ócio para
os trabalhadores da Categoria a Alimentação, a meu ver, deve-se ao fato que no sistema capitalista,
o tempo de ócio é tido como inimigo do trabalho, embora os meios de comunicação social são
capitalistas e estão a serviço do capital, no qual, jamais, publicaria algo a esse respeito. Além disso,
para a lógica capitalista o “ócio seria coisa de preguiçoso e vagabundo”. Proporcionar momento de
ócio aos trabalhadores seria como colocar em suas mãos um arsenal que poderá ser usado na luta
de classe. Como Arendt alerta sobre a atividade do pensar; “o próprio pensar é perigoso” (VE I, 2011,
p. 195). O sistema capitalista só existe porque tem uma grande demanda de trabalhadores na
condição de animal laborans. O sistema capitalista, jamais irá oportunizar condições para que os
trabalhadores tenham tempo para a reflexão.
73

2011, p. 207). Esse hábito de atualizar a consciência pode ser proporcionado pelos
adultos através do processo educativo, no qual, os novos e os jovens estão
inseridos. Segundo a autora, no debate apresentado por Platão sobre Sócrates e
Hípias, ao ir para casa, Hípias “permanece, um, porque, embora viva sozinho, não
procura fazer companhia a si mesmo” (VE I, 2011, p. 207). Diferentemente é o caso
de Sócrates, que quando vai para casa não está sozinho, está em companhia de si
mesmo, “entregue a si mesmo” (VE I, 2011, p. 207).
Dresch (2018, p. 101) é conciso quando refere a escola, como espaço de
ócio. Para ele, a escola é aquele lugar no qual os recém-chegados e os novos são
inseridos “sem precisar se preocupar com questões de ordem política ou em prover
seu sustento”. A escola é o ambiente que “oferece tempo e liberdade para as
crianças aprenderem coisas que, não obrigatoriamente, servirão para alguma
finalidade biológica, empregatícia ou política; e possibilita a abertura ao mundo e aos
outros, o espaço-tempo do entre” (DRESCH, 2018, p. 101, grifo do autor).
A instituição escola, pode muito bem saciar a sede de conhecimento dos
educandos, que poderão vir usar o conhecimento para outros fins. Portanto, o
pensamento não é uma atividade que traz resultados objetivos para a sociedade
semelhante aos do conhecimento. Por conseguinte, politicamente o pensador fica à
margem. Por outro lado, o pensamento se converte em ação, quando incide no
âmbito moral, conforme exemplo da própria autora:

Quando toda a gente é varrida impensadamente por aquilo que todos os


outros fazem ou em que acreditam, aqueles que pensam são expulsos do
seu esconderijo porque a sua recusa em tomar parte é conspícua, revela-se
que a componente purificadora do pensar (ajuda ao parto socrático, que
exibe as implicações das opiniões não escrutinadas e desse modo as
destrói – valores, doutrinas, teorias, e até convicções) é política por
implicação. Porque essa destruição tem um efeito libertador sobre uma
outra faculdade, a faculdade de julgar, que podemos chamar com alguma
razão a mais política das capacidades mentais do homem. É a faculdade
que ajuíza de particulares sem os subsumir debaixo de regras gerais que
podem ser ensinadas e apreendidas até que se convertam em hábitos que
podem ser substituídos por hábitos a regras. (VE I, 2011, p. 11).

O conhecimento é importante e necessário, mas o mesmo, em si, não cria


valores. Somente o pensamento reflexivo produz valores e significado, por isso a
importância do ócio. O momento de ócio e de reflexão proporcionado pela escola
equivale ao que os autores Masschelein e Simons (2014) chamam momento
“mágico” o que “nos faz pensar”, nos convida a pensar ou nos faz coçar a cabeça.
74

Nesse momento mágico algo de repente deixa de ser uma ferramenta ou um recurso
e se torna uma coisa real, uma coisa que nos faz pensar, mas também nos faz
estudar e praticar (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 26, grifo do autor).
O ócio enquanto tempo livre é compreendido por Dresch (2018) a partir da
distinção entre tempo Chronos e kairós. É salutar essa distinção que ele faz entres
os conceitos e a relação com o pensamento arendtiano, no âmbito da educação
escolar. Para Dresch (2018, p. 105-106), chronos e kairós:

[...] são compreensões distintas que perpassam toda a vida humana. Existe
um tempo cronológico no qual todos estão inseridos e que orienta a
convivência diária. Ele diz respeito ao nosso calendário, horário, regime de
trabalho, dias letivos, etc. Em meio ao chronos, há o kairós, o momento
oportuno para a realização de propósitos, ações e experiências únicas; é o
“tempo” inaugural possível dentro do próprio “tempo”. Ambos coexistem e
são concebidos, aqui, em sua correspondência.

Na sequência relacionando o chronos e kairós com o pensamento de Arendt,


reflete que:

[...] o tempo cronológico pode ser relacionado ao “mundo aparente”. Embora


esta expressão tenha sido interpretada, ao longo da tradição filosófica
ocidental, numa conotação negativa, Arendt reflete o conceito de aparência
ou o verbo aparecer sob outra perspectiva. As aparências, para a autora,
são o campo de manifestação dos seres humanos e a possibilidade de
compreensão das questões a eles relacionadas. A faculdade espiritual
também está vinculada às realidades sensíveis e ordinárias, manifestadas
no dia a dia das pessoas. A tentativa de definir o que é um livro ou
compreender o conceito de liberdade, por exemplo, são atividades
abstratas, porém, inseparáveis das percepções humanas. A definição e o
entendimento das palavras “livro” e “liberdade”, por mais abstratos que
possam ser, só são em relação às aparências percebidas e refletidas.
(DRESCH, 2018, p. 106).

Trazemos novamente a contribuição de Masschelein e Simons (2014) que


se posicionando em defesa da escola, nos ajudam a compreender a relação do
chronos e kairós na sequência do momento mágico escolar.

Esse é o acontecimento mágico da escola, o movere – o movimento real –


que não deve ser rastreado até uma decisão individual, escolha ou
motivação. Enquanto a motivação é uma espécie de caso pessoal, mental, o
interesse é sempre algo fora de nós mesmos, algo que nos toca e nos leva
a estudar, pensar e praticar. Leva-nos para fora de nós mesmos. A escola
se torna um tempo/espaço do interesse – do que é compartilhado entre nós,
o mundo em si. Naquele momento, os alunos não são indivíduos com
necessidades específicas que escolhem onde eles querem investir seu
tempo e energia; eles são expostos ao mundo e convidados a se
75

interessarem por ele; um momento em que a verdadeira comunicação é


possível. Sem um mundo, não há interesse nem atenção. (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2014, p. 26).

Brayner (2008) defende a escola na ótica arendtiana, uma escola que possa
ser espaço em que falar, pensar e julgar seja possibilidade para que o estudante
“torna-se alguém”. Em que o tornar-se alguém venha acontecer no espaço público.
Uma escola que permita a cada um aparecer com “sua palavra e com sua
possibilidade de ação” (BRAYNER, 2008, p. 31). É sobre esse “torna-se alguém” que
compreendemos a escola enquanto lugar de formação e lugar do ócio, como diria
Dresch (2018).
Quando pressupõe a escola como “lugar para tornar-se alguém” não se
refere a partir da lógica do capital, nem mesmo do mercado de trabalho – onde a
escola se reduz a um laboratório de reprodução em massa de profissionais – aporta-
se na perspectiva de arendtiana onde a escola possa fazer surgir o novo em um
mundo construído pelos mais velhos. Portanto, uma escola que seja como um berço
para o pensamento reflexivo, partindo da compreensão de que “o pensar pode ser
estimulado” (VE I, 2011, p. 190).
Ousamos aqui transferir a analogia, direcionada a Sócrates como moscardo,
a parteira e raia-elétrica, em que, Arendt resgata e se vale destas comparações,
para aplicarmos a educação. Assim como Sócrates, a educação precisa ser igual a
um moscardo (inseto) que “sabe como picar os cidadãos que, sem ele,
adormeceriam imperturbados para o resto das suas vidas” (VE I, 2011, p. 190).
Sócrates é quem desperta os cidadãos do sonambulismo da irreflexão. Desperta os
cidadãos com um único objetivo, simplesmente parar para pensar. Assim como no
caso de Eichmman, o não pensar pode ser um perigo para a vida. A educação
precisa ser esse moscardo para os educandos.
O segundo exemplo refere-se à parteira. Sócrates se denomina como estéril,
mas, sabe como ajudar o parto dos pensamentos dos outros. É graças à sua
esterilidade, Sócrates “tem o conhecimento técnico de uma parteira e pode decidir
se a criança é uma verdadeira criança ou um mero ovo não fecundado de que é
preciso limpar o portador” (VE I, 2011, p. 190). Geralmente no nosso imaginário a
parteira apresenta-se como uma senhora de idade. A instituição escola, é essa
parteira, que há séculos tem sido instituída pela sociedade. Como chamamos a
atenção no decorrer do texto sobre a responsabilidade da escola, a mesma deveria
76

ter a habilidade técnica para reconhecer onde se encontra a vida. Os projetos que
são contra a vida devem ser apartados da escola e da sociedade. A educação
poderá trazer à luz os pensamentos alheios, os pensamentos obscuros, ajudando a
sociedade a se livrar desse mal. Pensar e refletir, é um modo que a escola tem de
transformar a lacuna entre o passado e futuro num espaço e tempo de encontro e de
continuidade, é um espaço de “torna-se alguém”, de serem visíveis.
O exemplo da raia talvez é o mais adequado para relacionar com a
educação à medida que a raia-elétrica, deixa todos paralisados. O estado de
perplexidade diante da eletricidade é semelhante ao coçar de cabeça que
Masschelein e Simons (2014) chamam de momento “mágico”. A escola precisa ser
para os estudantes um momento em que os faz pensar, os convida a pensar ou os
faz coçar a cabeça diante da perplexidade do pensamento. Em meio às dificuldades
que temos em indignar-nos com as coisas mais vis e de admirar-nos das coisas
mais simples, “ser como uma arraia-elétrica é buscar, coerentemente, tanto a
indignação como a admiração. Nossos sentimentos parecem buscar sempre novas
emoções para o êxtase enquanto ficamos impassíveis diante de escândalos e
monstruosidades” (SOUZA, 1999, p. 96). Contudo, diante dos exemplos,
acreditamos e apostamos em uma escola que seja um espaço para o pensamento
reflexivo.
Por fim, diante do exposto até aqui, compreendemos a escola como aquele
“lugar sagrado”, berço e fomentação do despertar para o pensamento reflexivo.
Embora, cientes do limite e da incerteza do resultado, sendo que, “a incerteza do
futuro torna miserável a vida humana”, e mesmo que “o perigo é inerente a todas as
obras e feitos, ninguém sabe como resultará uma coisa começada” (VE I, 2011, p.
183), vale apenas continuar na aposta de uma escola como estimuladora do
pensamento reflexivo, embora haja sempre a possibilidade do fracasso. Apesar que
do ponto de vista histórica, a sociedade e a vida em si do homem é uma narrativa e
só o fim da narrativa, quando tudo está acabado, pode dizer-nos tudo sobre o que
ela foi. A vida humana, porque é marcada por um começo e, por um fim, só se torna
completa a uma entidade em si mesma que pode ser sujeita a um juízo, quando
acabou na morte; a morte não se limita a terminar a vida, também lhe confere uma
plenitude silenciosa, arrebatada do fluxo incerto a que todas as coisas humanas
estão sujeitas (VE I, 2011, p. 183).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alcançado os objetivos desta pesquisa bibliográfica – que nos possibilitou a


refletir, e buscar elementos na tentativa de compreender a partir da contribuição do
pensamento arendtiano a relação entre educação e a vita activa, assumindo uma
postura reflexiva, a partir do “horizonte” do pensamento arendtiano em “pensar o que
estamos fazendo?”. O fio condutor que suspeitamos desde o início que perpassa a
teoria arendtiana desde o nascimento à mortalidade refere-se justamente ao
pensamento reflexivo que se encontra diante da responsabilidade de um mundo
comum.
O caminho que nos propusemos trilhar, foi traçado e percorrido nessa
pesquisa, por um procedimento hermenêutico/analítica. Embora, aparentemente à
primeira vista, as abordagens parecem desconexas, mas num olhar atento percebe-
se que estão interligados. A educação que se manifesta na condição humana, na
vita activa e na vita contemplativa.
A crise geral na educação na modernidade atingiu quase todas as áreas da
vida humana, pois trata-se de uma crise de natureza política, como diria Arendt. Ela
se manifesta diferentemente nos vários países, atingido diversos domínios e
manifestando-se de diferentes formas. Esta crise atingiu o âmbito pré-político da
educação e da família.
Essa mesma crise ao atingir o campo pré-político da família incidiu
diretamente na criação dos filhos. Fez com que a mesma, perdesse o horizonte, na
criação dos filhos, ao passo que, em simultâneo, lança sua responsabilidade “aos
braços” das instituições educativas eximindo-se da responsabilidade pelos mais
novos. E assim, concomitantemente sobrecarregando essas intuições. Em outras
palavras, ao se eximirem de suas responsabilidades paternais, os mesmos esperam
que o Estado assuma essa paternidade. A crise moderna, colocou em “xeque”
justamente a autoridade dos adultos com os mais novos. O que antes era, neste
âmbito, uma necessidade natural, tornou-se algo a ser considerado inimiga da
liberdade individual. Portanto, se os pais não assumem diante dos filhos, com sua
autoridade, a responsabilidade perante o seu crescimento e sua formação, o Estado,
representado pelas instituições públicas se verá obrigado a lhes impor o princípio de
realidade, que pode gerar má formação em sua personalidade.
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Diante desse cenário, em que se encontra a educação, a mesma “patina” na


crise, na tentativa de responder às necessidades sociais. Com isso, forças políticas
empurram e puxam de um lado para outro, ora move de um lado, ora move de outro.
Usando a metáfora de Fensterseifer, navegamos sem uma direção, cada um
remando a seu modo. Seguimos sem direção e sem saber onde está o porto seguro.
Só se sabe que não dá para retroceder, no máximo conseguimos com a
reminiscência lembrar do porto onde saímos. Isso equivaleria, na linguagem de
Arendt, que o fio que nos interligava com o porto de partida foi roto.
Quando, no segundo capítulo, explanamos sobre à vita activa manifestada
nas atividades da condição humana mostramos justamente as forças que movem a
educação. A partir da histórica (reviravolta) inversão de valores entre as atividades
da vita activa; trabalho, obra/fabricação e ação, constatamos que a educação na
modernidade, resumiu-se à arte do bem-estar social, e, se resumiu no despertar e
inculcar, nos mais novos, habilidades para o mercado de trabalho. Consequência
desta inversão de valores incide diretamente na identidade do sujeito, que não é
mais reconhecido pelo fato de ser cidadão, mas, pelo fato de ser profissional em
determinada área de conhecimento. Essa reviravolta entre as atividades da vita
activa, atingiu em cheio o professorado, ou seja, até mesmo o entre os professores,
há muitos que, procuram lecionar justamente por aspectos profissionais, seja por
garantia de emprego, ou, por uma estabilidade financeira. No entanto, em meio a
tantos professores profissionais encontram-se tantos outros (vocacionados), que
assumiram a responsabilidade pelos novos e por amor aos novos dedicam sua vida
a formação e ao cuidado dos mesmos. São tantos os exemplos de dedicação
amorosa de professores que ao assumirem a responsabilidade pelo mundo, se
dedicam exaustivamente em prol da comunidade e dos mais novos, embora que na
contemporaneidade esses exemplos estão ficando cada vez mais raros.
Vale ressaltar que é por intermédio da instituição escolar que os adultos
assumem a responsabilidade de despertar nas crianças o desenvolvimento de
habilidades e de talentos pessoais, que, em tempo futuro, serão aproveitados no
âmbito social e na relação com o mundo. Portanto, é no processo de formação que a
criança se realiza e cria a sua singularidade que é própria, é onde se constitui, desse
modo, a sua personalidade, a qual, por sua vez, se relaciona com o mundo. Nesse
sentido, a figura do professor é essencial ao processo de introdução da criança no
mundo, pois, diante desse sujeito, ele é a autoridade que representa os adultos; é
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ele quem orienta e apresenta o mundo aos infantes. Deste modo, a instituição
escolar tem a função de ensinar às crianças como o mundo é, como ele foi
constituído e, não as instruís na arte de viver e/ou inseri-las na cultura do bem-estar.
Foi sobre está perspectiva que trabalhamos no terceiro capítulo, quando
buscamos junto ao pensamento arendtiano e com a contribuição de outros autores
uma educação que estimule a atividade do pensar/reflexivo. Investir em uma
educação reflexiva pode ser, um risco, mas pode ser o melhor caminho para quem
aposta em uma educação gratuita, republicana e democrática. Nesse capítulo,
responderemos as seguintes questões; qual a utilidade do pensamento? Para que
serve o pensar? Em que e onde incide o pensamento? Com a finalidade de refletir
sobre o que estamos fazendo e, principalmente, pensar o processo educativo atual.
Por fim, diante do processo de pesquisa, desenvolvido até aqui, creio ter
contribuído com o debate educativo, tendo a certeza que o debate continua.
Contudo, ao finalizar esta dissertação, compartilho com o leitor a possibilidade de
investigação sobre o conceito de pensamento (atividade do pensar) de Arendt, e
relacionar com o conceito de Santo Agostinho, a partir da seguinte frase que
trouxemos no decorrer do texto: “ninguém conhece o que se passa num homem,
senão o seu espírito, que nele reside. Há, porém, coisas no homem que nem sequer
o espírito que nele habita conhece” (AGOSTINHO, 1984, X, 5.7V). Acredito que esse
tema seria desafiante para compreendermos melhor a condição humana.
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