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IJUÍ – RS
2021
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IJUÍ – RS
2021
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
This dissertation discusses the relationship between education and vita activa in
responsibility for the world. The concepts of birth and the insertion of new people in
the world are reflected in arendtian thought in the works “The Education Crisis” and
“The Human Condition”. This makes it possible to set in motion an investigation with
more precision regarding the topic addressed: “What are we doing?” education and
its interface with vita activa in the light of Hannah Arendt's thought. Although Arendt
does not provide direct elements about the theme, there are, in her writings, several
notes that agree with the responsibility of education in caring for the common world,
which is manifested in the interface with the vita activa. Arendt, considering that
education is located in the pre-political field, opens paths to support, in this research,
that, in addition to an essential relationship that permeates his writings on education
and the elementary activities of the vita activa, education it fulfills a fundamental task
in maintaining the world for future generations while at the same time fulfilling the role
of awakening us by educating reflective thinking. Therefore, this research is
bibliographical in nature guided by a hermeneutic/analytical procedure of arendtian
texts. Thus, this work is structured in three chapters: the first analyzes the arendtian
concept of education in the text “The crisis in education”, which concerns
conservation and responsibility towards newcomers; in the second, the vita activa
and its work, work (manufacturing) action interfaces are analyzed, based on the work
“The Human Condition”, in order to understand the concept of the world as the
ultimate meaning for the formation of new ones; in the third chapter, the human
condition and its relevance to education are addressed, by which it is considered that
a good pedagogue is above all a good connoisseur of the human condition, and thus
reflects on the question that Arendt poses in movement: what are we doing?
RÉSUMÉ
Cette thèse se concentre sur la relation entre l'éducation et la vie active dans la
responsabilité du monde. Le fait que les concepts de naissance et l'insertion du
nouveau dans le monde arendtian la pensée dans les œuvres, la crise de l'éducation
et de la condition humaine, nous met en mouvement pour enquêter plus précisément
sur le sujet abordé. Malgré Arendt, ne fournissent pas d'éléments droits thématiques,
il y a plusieurs notes dans ses écrits qu'il partage avec la responsabilité de
l'éducation, dans le soin du monde commun, se manifestant dans l'interface avec la
vie active. Arendt quand considérant l'éducation comme appartenant au domaine
prépolitique, il ouvre la voie à soutenir dans cette recherche qu'en plus de l'existence
d'une relation essentielle qui imprègne ses écrits sur l'éducation et les activités
élémentaires de la vie active, l'éducation remplit un tâche fondamentale dans le
maintien du monde pour les générations futures. Cette recherche est de nature
bibliographique guidée par une procédure herméneutique/analytique des textes
arendtiens. Ce travail est structuré en trois chapitres: le premier analyse le concept
d'éducation arendtienne dans le texte «La crise de l'éducation» analysant l'éducation
comme conservation et responsabilité comme les nouveaux arrivants; dans le
second, il analyse la vie et ses interfaces, à partir de l'œuvre “La condition humaine”,
analysant les activités de l'action de travail (fabrication) et analysant le concept du
monde comme sens ultime de la formation du les nouvelles; Dans le troisième
chapitre, il discute du concept anthropologique d'Arendt en partant du principe qu'un
bon éducateur est avant tout un bon anthropologue et réfléchissant ainsi à la
question qui met Arendt en mouvement, que faisons-nous?
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 12
REFERÊNCIAS ............................................................................................. 80
12
INTRODUÇÃO
1A primeira publicação da obra A Condição Humana foi realizada no ano de 1958, no idioma inglês H.
Arendt, The Human Condition, Chicago, University of Chicago Press, 1958. Segundo Arendt, o título
foi cunhado pelo editor, pois modestamente a autora queria “Investigação acerca de a vita activa”. A
versão da obra que usamos aqui é de tradução realizada por Rodrigo Raposo, publicada em 2016.
2As obras de Hannah Arendt, serão citadas conforme o glossário das obras, seguidos pelo ano de
5Em uma análise Teológica, as instituições de ensino investem sobre si, a perspectiva da Teologia da
Prosperidade, que consequentemente se opõe à Teologia da Cruz. Essa constatação, apesar de
aparentemente ser insignificante, permite compreender e analisar, a partir de uma análise mais
precisa, a educação e as manifestações das relações humanas no mundo atualmente. Isso porque a
Teologia da Prosperidade tem como princípio o bem-estar-social, já a Teologia da Cruz busca a
libertação da realidade de opressão. Essas compreensões desencadearam nas últimas décadas, no
confronto de compreensão da teologia da libertação e da teologia tradicional. Pleyers (2020), em seu
artigo, publicado pela University of Louvain – Louvain-la-Neuve, Bélgica, com o título A “guerra dos
deuses no Brasil: da teologia da libertação à eleição de Bolsonaro”, faz uma análise de como a
política nacional é movida por brigas teológicas e como a abrangência das transformações no campo
religioso tem-se transformado rapidamente. Segundo Pleyers (2020), “A religião desempenha um
papel na política na maioria dos países da América do Sul. O espaço político do continente tem sido a
longo prazo, um dos espaços privilegiados de ação de grupos e atores religiosos em suas estratégias
de construção de identidade e posicionamento institucional” [...]. Ainda assim, chamam a atenção, no
Brasil, a dimensão e a velocidade da evolução do panorama político-religioso, bem como a amplitude
do protagonismo político de um determinado setor dos evangélicos, em particular entre os fiéis das
igrejas Neopentecostais (PLEYERS, 2020, p. 2). Para Pleyers (2020, p. 11), na América Latina, o
Brasil é um dos principais campos de batalha de uma “guerra dos deuses”. Segundo ele essa batalha
é entre um conjunto de visões progressistas do cristianismo, realizadas por católicos e protestantes
que colocam as questões sociais no âmago de seu compromisso, e visões conservadoras, para as
quais os assuntos morais, principalmente relacionados à sexualidade (homossexualidade, aborto,
divórcio) estão no centro do compromisso cristão. Essas duas correntes têm visões de mundo e
convicções religiosas radicalmente opostas. Os primeiros apelam a uma vida humilde e são críticos
do capitalismo e de certas dimensões da modernidade [...]. Ao contrário, a Teologia da Prosperidade,
defendida pelos segundos, apoia o capitalismo neoliberal e convida a ver no sucesso econômico uma
recompensa divina pela probidade moral e pela devoção a Deus e à sua igreja, incluindo orações e
pagamento do dízimo.
14
pautado na concepção errônea de que não oferecem aos jovens uma carreira
profissional. São pouquíssimos os cursos que ainda mantêm forças para resistir à
avalanche de desprezo contra a referida área. Não à toa, no Brasil 6, não é mais
obrigatório o ensino da Filosofia e da Sociologia nas instituições escolares da
Educação Básica, visto que se enfatiza a presença curricular de disciplinas mais
adequadas ao mercado de trabalho7.
Outro fator importante a ser discutido junto às obras de Arendt, e em que, se
situa a educação, refere-se ao fato de que na contemporaneidade os interesses
particulares assumem caráter e predominância pública. Resultado dessa situação é
que a discussão política não rege a sociedade, ao contrário, a política se subordina à
economia, regida pelo capital. A sociedade contemporânea ao subordinar a política à
economia parte para a relação de meio e fim, reduz o homem em coisas, como
mercadorias, e em objetos substituíveis, reduzidos aos valores de troca. Assim, para
pensar a sociedade e as relações sociais, a economia é o fator absoluto, o qual
6O debate sobre o ensino das ciências humanas no ensino médio acontece desde a Lei nº 4.024, de
20 de dezembro de 1961 que retira a obrigatoriedade do ensino da filosofia no Brasil, mas diante do
movimento e dos debates causados no âmbito acadêmico, foi retornado à obrigatoriedade do ensino
da filosofia. Contudo, esse debate veio à tona novamente com a Lei nº 13.415 de 2017 que retirou a
obrigatoriedade da disciplina de Filosofia no ensino médio das escolas brasileiras.
7Os grandes defensores da escola pública Masschelein e Simons (2013) apresentam diversas críticas
que a escola sofre constantemente por parte da sociedade. Eles realizam todos os esforços salutares
em defesa da escola. Traremos diante da pesquisa a contribuição desses autores. Apresentando as
críticas eles expõem: “A alienação é uma acusação recorrente dirigida contra a escola. Essa
acusação existiu e continua a existir em diversas variáveis. As matérias ensinadas na escola não são
‘mundanas’ o suficiente. Os temas são ‘artificiais’. A escola não prepara seus alunos para a ‘vida real’.
Para alguns, isso significa que a escola não leva suficientemente em conta as necessidades reais do
mercado de trabalho. Para outros, isso significa que a escola coloca ênfase demais na ligação entre a
escola e o mercado de trabalho ou entre a escola e as exigências do sistema de ensino superior.
Essas preocupações, assim dizem os críticos, tornam a escola incapaz de proporcionar aos jovens
uma ampla educação geral que os prepare para a vida como um adulto. O foco no currículo escolar
não permite, de modo algum, uma conexão real com o mundo, tal como este é experimentado pelos
alunos. A escola, portanto, não só se fecha para a sociedade, mas também se fecha às necessidades
dos jovens. Presa em seu próprio senso de autojustiça, a escola é acusada de ser uma ilha que não
faz nada (e não pode fazer nada), mas aliena os jovens de si mesmos ou do seu entorno social.
Enquanto os moderados acreditam que a própria escola é capaz de mudar e, desse modo, pedir
maior abertura e pragmatismo, as vozes radicais insistem que essa alienação e desconexão são
características de todas as formas de educação escolar. Assim defendem o fim da escola. De
qualquer modo, todas essas críticas partem da premissa de que a educação e a aprendizagem
devem ter ligações claras e visíveis com o mundo, do modo como este é experienciado pelos jovens,
e com a sociedade como um todo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 5). Portanto, nosso problema
de investigação deve-se à lacuna deixada na educação. Os apontamentos elaborados por Arendt a
respeito da crise da educação ainda não foram solucionados. O esforço nesta pesquisa é apontar o
entrelaçamento do processo educativo com a vita activa manifestada nas atividades da condição
humana; trabalho, obra e ação. Precisa-se compreender que os problemas da educação estão além
da compreensão dos problemas escolares, pois se a escola é criação humana cultural, a educação,
ao contrário, faz parte da condição humana. Embora, ainda se tenha essa criação humana “escola”
como o meio mais eficaz da educação. No entanto, acreditamos que nossa reflexão está além dos
apontamentos apresentados por Masschelein e Simons.
15
8Como veremos adiante, para Arendt, a educação é conservadora no sentido de objetivar preservar o
mundo das “interfaces” momentâneas e do modismo.
16
humana básica” (EPF, 2014, p. 243). Assim, para “preservar o mundo contra a
mortalidade de seus criadores e habitantes, ele deve ser, continuamente, posto em
ordem” (EPF, 2014, p. 243).
Apesar de Arendt não se considerar como filósofa, mas como pensadora
política, sua maior preocupação em A Condição Humana era de combater a cultura
do descarte. Após viver a Segunda Guerra Mundial, passou a se preocupar em
como os humanos estavam se tornando cada vez mais insignificantes. Essa
insignificância é fruto do mundo que foi criado, portanto, suscetível à reconstrução
de novas possibilidades de mundo comum.
Diante disso, na referida obra, o objetivo de Arendt é propor uma
reconsideração da condição humana considerando “nossas mais novas experiências
e nossos temores mais recentes presentes em nosso tempo” (CH, 2016, p. 6). Ela
propõe “refletir sobre o que estamos fazendo” (CH, 2016, p. 6), e esse é o
questionamento que conduz sua investigação, tema central do livro, o qual aborda
as manifestações elementares da condição humana. Para a autora, os homens são
condicionados a sua própria condição de humano e às três atividades que fazem
parte dessa condição são: trabalho, obra/fabricação e a ação9.
9Há aqui um problema de linguagem no qual se expressa o limite de tradução. Há um debate entre os
estudiosos do pensamento arendtiano e uma forte crítica sobre a tradução da obra, realizada por
Roberto Raposo, para o idioma de Língua Portuguesa. Em nota técnica na obra traduzida (ARENDT,
2016), Adriano Correia apresenta os limites da tradução, principalmente quando se trata do conceito
de labor e work. Theresa Calvet de Magalhães, em ensaio publicado pela revista Ética & Filosofia
Política (2006), intitulado como A atividade humana do trabalho [labor] em Hannah Arendt, diz que: “a
distinção entre trabalho [labor], obra [work] e ação [action] deveria ser examinada acentuando o ponto
de vista temporal da durabilidade dessas diferentes atividades humanas. Esta sugestão de Ricoeur,
esta sua escolha de leitura, não elimina todo um questionamento quanto à coerência e plena validez
da tríade trabalho-obra ação. Infelizmente, a tradução de Roberto Raposo não nos ajuda, mas apenas
dificulta, confunde e até impede a compreensão desta distinção” (MAGALHÃES, 2006, p. 2). Mais
adiante no ensaio, Magalhães é categórico ao afirmar que ao traduzir por labor e trabalho (?) a
distinção proposta por Arendt entre trabalho [labor; Arbeit] e obra ou fabricação [work; Werk ou das
Herstellen], Roberto Raposo (mas também Celso Lafer, na Introdução da obra de Arendt, cujo título é
“A Política e a Condição Humana”, p. V) deturpa o sentido dessa distinção, dizendo que o leitor
inevitavelmente ficará confuso ao abordar em particular o terceiro e o quarto capítulos de A Condição
Humana. Fica difícil compreender toda a polêmica antimoderna de Arendt, sua crítica ao conceito de
trabalho [Arbeit] em Marx e à importância atribuída, na era moderna, ao conceito de trabalho
produtivo [productive labor]. No original inglês não há a expressão “productive work” quando Arendt
se refere a Adam Smith e a Karl Marx, mas “productive labor”. Ao traduzir “labor” ou “Arbeit” por labor,
e “work” ou “Werk” por trabalho – uma tradução não apenas infeliz, mas incorreta – Roberto Raposo
ficou sem saber como traduzir a expressão “productive labor” e preferiu traduzi-la por trabalho
produtivo, mas, uma vez que ele próprio convencionou traduzir “work” por trabalho (quando deveria
ter traduzido esse termo por obra ou fabricação), o leitor fica aqui sem saber se Hannah Arendt, ao
usar essa expressão, está se referindo à sua própria concepção do trabalho [labor ou Arbeit] ou à sua
concepção da obra [work ou Werk]. Do mesmo modo, em nenhum momento Arendt traduz a noção
de “processo de trabalho” [Arbeits-Prozess] em Marx por work-process, mas sempre por labor-
process. O tradutor, que decidiu traduzir “labor” por labor, não ousou traduzir “labor-process” por
processo de labor e preferiu (sua escolha está correta) a expressão “processo de trabalho”. Tendo
17
intitulado o terceiro capítulo [Labor, na versão original] “Labor”, o leitor fica sem saber o que todas
estas referências a trabalho (que significa para o tradutor o que Arendt chamou de obra ou
fabricação) querem dizer neste capítulo. Tanto a segunda divisão do terceiro capítulo, “The Thing-
Character of the World”, como também a primeira divisão do quarto capítulo [Work, na edição
original], “The Durability of the World”, e a segunda divisão deste mesmo capítulo, “Reification”, ficam
bastante prejudicadas com a tradução e suas constantes confusões entre duas atividades que estão
claramente definidas e separadas na edição original da referida obra. A última divisão do quarto
capítulo intitula-se “The Permanence of the World and the Work of Art” (a tradução de Raposo: “A
permanência do mundo e a obra de arte”). Ora, Raposo traduziu “work of art” por obra de arte e não
por “trabalho de arte”, e o leitor inevitavelmente ficará perplexo ao encontrar essa divisão em um
capítulo intitulado pelo próprio tradutor “Trabalho”. Caso queira compreender e até mesmo
simplesmente ler essa obra de Hannah Arendt, o leitor terá de consultar o original inglês ou a versão
alemã (MAGALHÃES, 2006). A tradução da obra A Condição Humana realizada por Roberto Raposo
é originária do inglês, embora a obra tenha sido publicada posteriormente em alemão.
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10Na referida obra se encontram oito textos que foram escritos em momentos diversos por Hannah
Arendt, a saber: A tradição e a Época Moderna; O conceito de História-Antigo e Moderno; Que é
Autoridade?; Que é liberdade; A Crise na Educação; A Crise na cultura: sua importância social e
Política; Verdade e Política; A Conquista do Espaço e a Estatura Humana.
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pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua
educação” (EPF, 2014, p. 239).
A educação em si, pressupõe responsabilidade com o mundo e “ao contrário
da aprendizagem, precisa ter um final previsível” (EPF, 2014, p. 246). É sobre este
final previsível que se propõe o diálogo com Arendt, para compreender a educação
pela ótica da responsabilidade social. Com isso, compreende-se que a educação
pode contribuir no diálogo da tradição e trazer à luz a responsabilidade com o mundo
comum. Ela não se limita ao processo vital, por isso, busca-se uma compreensão
sobre o processo educativo como meio transformador e reflexivo e não para
reprodução do desejo de uma cultura capitalista.
Sendo assim, como ressaltado anteriormente, que Arendt entende o mundo
como artifício humano, de um lar imortal construído pela obra humana para abrigar
sua existência mortal. Lugar onde se manifestam as aparências humanas; instâncias
onde se abriga o conhecimento, instituições, significados, costumes, virtudes de uma
sociedade. Nesse sentido, distingue-se de Terra como espaço vital, em que a
espécie humana luta por sobrevivência e reprodução. Mundo é o espaço que
abrange a esfera pública dos negócios humanos, onde se dão as ações políticas, é o
lugar onde a visibilidade da singularidade do outro aparece. O mundo abriga, pois, o
legado que herdamos do passado e que fornecemos ao futuro.
Assim, para garantir a manutenção do “mundo”, é necessário repensar o
contexto atual do “homo” faber e a sua contribuição na construção do mundo.
Também, é preciso refletir sobre a ação política com o processo educativo. As
reflexões de Arendt sobre o problema da educação e a condição humana poderão
auxiliar a compreender e a elucidar, sob novas interpretações, os mecanismos de
exclusão e autodestruição da contemporaneidade.
Nesse contexto, os questionamentos que norteiam o movimento desta
pesquisa são: é possível conceber uma educação que se constitua como elo
dialético entre a vita activa na preservação do mundo comum? Em que consiste o
sentido de inserir os novos humanos em um mundo que se encontra fora dos eixos,
embora salvaguardada a concepção de que do novo sempre emerge a força para
renovar o mundo comum? Qual a contribuição da educação para a preservação do
mundo comum ou em que consiste a responsabilidade da educação com o mundo?
De que forma a educação poderá contribuir na preservação do mundo e qual é a sua
relação com as atividades da condição humana? Diante de um mundo em
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decadência e tomado pela esfera social, é possível conceber uma educação como
ponto de referência de aproximação entre o velho e o novo, os jovens e o mundo?
Ademais, o fato de buscar compreender a concepção de educação e da condição
humana implica a pergunta: quem é o homem? Desses questionamentos decorre o
objetivo de compreender como educar os recém-chegados em um mundo onde a
preocupação consiste tão somente no bem-estar na manutenção da vida,
acentuando somente a dimensão dos animais laborans.
Uma vez delineada a intenção desta pesquisa, sublinhamos a concepção de
ser humano, à medida que se analisa a condição humana nos escritos de Arendt.
Apesar de quase impossível, não é nossa intenção partir de pressupostos
hermenêuticos, visto que a crise educacional “só se torna um desastre quando lhe
respondemos com juízos pré-formados, isto é, preconceitos. Uma atitude dessas
não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da
oportunidade por ela proporcionada à reflexão” (EPF, 2014, p. 223).
A partir disso, importa ressaltar que esta pesquisa é de cunho bibliográfico,
orientado por um procedimento analítico reconstrutivo de textos arendtianos com
contribuições de outros estudiosos que pensam a educação e que são
investigadores do pensamento arendtiano. Valemo-nos, nesta pesquisa, do método
hermenêutico, não no sentido de uma interpretação fiel do texto arendtianos, mas de
uma interpretação que possa ressignificar os textos no contexto atual, na tentativa
de construção de sentidos, sem mera pretensão de deturpar ou esgotar a rica
polissemia das obras arendtianas.
Para atingir o objetivo proposto, esta pesquisa se divide em três capítulos. O
primeiro capítulo, em uma análise prévia, discorre sobre o conceito de educação no
pensamento de Arendt, interligando-o com o mundo comum. O segundo capítulo
apresenta uma análise do termo vita activa e sua divisão entre o trabalho, obra
(fabricação) e ação, interligando-o com o termo vita contemplativa, ao buscar
compreender, no pensamento arendtiano, o fio condutor da educação que interliga
às duas práticas. Por fim, no terceiro capítulo, analisaremos o conceito de ser
humano no pensamento de Arendt, a partir do qual pressupomos que as pessoas
que assumem a responsabilidade de inserir os novos seres no mundo necessitam
ter um conhecimento minimamente sobre a condição humana.
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11Para Kneller (1972), a compreensão de educação na acepção lata diz respeito a qualquer ato ou
experiência que tenha um efeito formativo sobre a mente, o caráter ou a capacidade física de um
indivíduo. Para o mesmo, a educação é um permanente aprender. Todas as experiências na verdade
é um momento educativo, segundo Kneller. “Todas as experiências podem ser educativas – desde a
leitura de um livro até uma viagem ao estrangeiro, desde as opiniões das pessoas nossas conhecidas
até a possibilidade de surpreendermos um comentário, no burburinho de um bar. Na sua acepção,
técnica, a educação é o processo pelo qual a sociedade, por intermédio de escolas, ginásios,
colégios universidades e outras instituições, deliberadamente transmite sua herança cultural – seus
conhecimentos, valores e dotes acumulados – de uma geração para outra. Devemos igualmente
distinguir entre educação como um produto e como um processo. Como um produto, a educação é o
que recebemos através da instrução ou aprendizagem – os conhecimentos, ideias e técnicas que nos
ensinam. Como processo, a educação é o ato de educar ou de nos educarmos” (KNELLER, 1972, p.
35).
12Desde já, salientamos que esta pesquisa não é contrária a educação profissionalizante, visto que,
uma das tarefas possível da educação é formar competências no educando, portanto, buscamos
apontar que em sua dimensão formativa e de transmissão de conhecimento a educação precisa
despertar nos educando a responsabilidade com o mundo comum. Acredita-se na responsabilidade
da educação sobre formação humana, justamente para que o processo formativo não se limite a
formação de Eichmanns sonâmbulos hábeis, mas de homens reflexivos.
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Para muitos estudiosos, Hannah Arendt era uma pensadora política – como
a própria se denominava. Entretanto, nesta dissertação, compreendemos Arendt
como filósofa e antropóloga – embora não seja possível desvincular a política da
filosofia e da antropologia, posto que pensa a existência humana e sua atuação no
mundo. Vê-se a compreensão antropológica implícita e explicitamente em suas
obras, principalmente no texto que ela escreveu sobre a personalidade de Waldemar
Gurian e no discurso que ela realizou durante a homenagem pública prestada pela
Universidade da Basileia a Karl Jaspers. Nesses textos se manifesta, de certa forma,
a magnitude e a finitude humana, à medida que Arendt relata a liberdade e a
contribuição desses homens diante do mundo e à medida que se nota em seus
relatos que a liberdade é a razão de ser da política. Ao afirmar que os “seres
humanos terrenos necessitam de corporeidade” (LSL, 2018, p. 67), Arendt, além de
pressupor a dimensão biológica, pressupõe a relação que o homem pode construir
entre liberdade, razão e comunicação. De fato, a existência do humano, para a
autora, ocorre a partir da natalidade – que, como já visto anteriormente, é um
conceito fundamental para ela. Portanto, só é possível pensar o humano quando ele
se insere no mundo e se relaciona com o mundo por meio da ação.
No texto “A Crise na Educação” (EPF, 2014), Arendt opera um procedimento
de distinção entre educação e política. Embora aborde outros temas, têm como base
o pensamento político em sua reflexão. Nesse contexto, a educação é para a autora
um campo pré-político, pois, ainda que seja distinta e independente da política, é
preciso pensar politicamente a educação. Ao compreender a educação como pré-
político, Arendt, compreende a particularidade da mesma no âmbito familiar e, em
simultâneo, a abertura para o mundo, ou seja, para a ação, para a política.
Arendt, ao refletir os aspectos da educação, parte do pressuposto de que há
uma crise na educação. Para compreender a dimensão da crise, Fensterseifer
(2020), no livro A tarefa educacional na especificidade da escola, usa a imagem do
barco para elucidar a crise a respeito da educação. Segundo Fensterseifer (2020, p.
15), “uma época em que adquire centralidade a discussão a respeito da direção a
ser seguida é uma época de crise, pois, em períodos ‘normais’, basta ‘remar’; a
direção do ‘barco’ está determinada por uma tradição segura, ao menos
aparentemente, de seus propósitos e destinos”.
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13Um dos aspectos da condição humana é justamente a certeza de que não sabemos o que é bom
para a humanidade. Apesar de todos terem o conceito ideal de bom, mas quando esse conceito se
eleva a dimensão pública do mundo dos adultos sempre passam por empecilhos e acabam muitas
vezes caindo por terra. Por isso, é da condição humana, a dimensão política. É na política que os
homens tomam um rumo e um caminho a seguir.
14Vale ressaltar aqui que Arendt em seus escritos não têm intenção de apresentar soluções ou
em “aldeia global”, enquanto com os avanços tecnológicos, pautado pela política de globalização,
incide nos demais recantos do mundo.
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entrelaçados entre si, mas não são evidentes por si mesmos porque ora estão no
relacionamento com o mundo, ora no relacionamento com a vida.
Arendt não se limita à questão da educação pelos pais, dado que a mesma
extrapola o âmbito familiar se situando no campo pré-político, cuja tarefa consiste
em inserir os novos no mundo. No livro, Entre o passado e o futuro, a filósofa não
reflete somente sobre a crise na educação, posto que também analisa a crise
política que atingiu os campos pré-políticos, além da educação, o âmbito da
autoridade e da cultura. No texto “O que é autoridade?” (EPF, 2014), Arendt
relaciona essa crise estritamente com o campo educacional. Ela parte do
entendimento de que não é possível saber o que é a autoridade, já que há
controvérsias e confusões a respeito do termo, mas de que é possível indagar o que
foi. A autora é categórica ao afirmar que a crise de autoridade no mundo moderno,
também, é oriunda de natureza política: é uma crise “política em sua origem e
natureza” (EPF, 2014, p. 128).
O problema maior dessa crise, segundo Arendt, é que ela atingiu as áreas
pré-políticas, como, por exemplo, a criação dos filhos no âmbito da educação e da
família, visto que nesses espaços a autoridade sempre fora aceita como uma
necessidade natural por um lado, e como uma necessidade política de outro.
Conforme a autora:
16No texto A autoridade Sennett (2016) investiga o medo moderno a respeito da autoridade
destacando as personalidades ou autoridades que despertam esse medo na era moderna, na
tentativa de apontar algumas imagens que deveriam existir em nossa mente a respeito da autoridade.
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perante o mundo que está aí e que se manifesta em suas múltiplas facetas, sem
nenhuma orientação, somente com a responsabilidade perante os recém-chegados.
A instituição escola e a família são as “guardiãs” da tradição e
consequentemente da autoridade. São elas capazes de repassar para as novas
gerações o “tesouro perdido” que foi encontrado, e, onde, não se sabe a
procedência nem quem são os verdadeiros herdeiros, e nem como nomeá-lo, como
diria Arendt (EPF, 2014, p. 31). A escola e a família são transmissoras herdeiras de
“padrões e condutas sem se saber, se conheça ou se esclareça sua gênese, sua
origem ou sua função” como diria Endo (2011, p. 75). Portanto, a escola e a família
estão para a cultura, assim como a cultura está para ambas. Desta forma a
autoridade que requer ambas só pode ser exercida dentro de um tempo, em que,
encontram-se elementos para legitimá-la. “A autoridade é a própria tradição
delegada a um referente que tem, a tarefa de zelar por ela e salvaguardá-la” (ENDO,
2011, p. 76)17.
Endo (2011) compreende que a autoridade é a legítima herdeira de uma
tradição, e, em simultâneo, potência transmissora no reatamento entre o passado e
o futuro. A ela, deve-se todo respeito e toda credibilidade mesmo na divergência que
ela venha a exercer na história da tradição, pois, segundo ele, como já havia sido
dito por Freud e Arendt, a autoridade é uma imposição. Deste modo, a “autoridade
não deve e não pode convencer nada nem ninguém, já que ela seria dotada de
assentimento prévio advindo de sua correção no trato da tradição” (ENDO, 2011, p.
79). Sendo assim, a autoridade “paterna social” consegue impor e transmitir “desde
o exterior” aquilo que protegerá a comunidade dos “desejos mais intensos do
homem” (ENDO, 2011, p. 79)18.
17Paulo Endo é psicanalista e investigador do pensamento arendtiano, embora seu estudo se volta à
área da psicanálise, tem contribuído com o debate a respeito da crise de autoridade e a perda da
tradição. Segundo ele, com a crise de autoridade nas instituições abre-se um grande leque para a
violência. O desprezo pela história é o que causa a crise da autoridade, ou esvazia a autoridade nas
instituições, portanto, a “violência surge no declínio da autoridade e é a força violenta que destrói
obras, desfaz poderes portadores de autoridade política (executivos, legislativos e judiciários),
extermina oponentes e zomba da experiência temporal sustentada por uma coletividade. Como se
tudo pudesse começar a partir de agora e quanto a origem, a tradição e o passado devem ser
jogados na lata do lixo da história” (ENDO, 2011, p. 77).
18Quanto ao aspecto da obediência Endo (2011, p. 79), compreende que “a obediência que resulta do
Temo que esse papel não possa ser decidido por sorteio nem por votação
em assembleia. O pai que só quer figurar como “melhor amigo de seus
filhos”, algo parecido com um enrugado companheiro de brincadeiras, tem
pouca serventia; a mãe cuja única vaidade profissional é que a tomem por
irmã um pouco mais velha da filha também não serve para muito mais.
Isso significa que, por um lado, a conversa já é milenar e, por outro, que a
todo instante novas possibilidades são introduzidas por meio da chegada
dos novos. Essa presença inesperada dos recém-chegados requer dos mais
velhos a inserção dos novos na dinâmica milenar e, ao mesmo tempo,
espaço para que possam instaurar novos discursos, novas formas de vida,
novas palavras e ações imprevistas pelas gerações mais velhas. Muitas
vezes, contudo, a conversa milenar é considerada velha e até obsoleta para
os novos, mas é por meio dela que estes podem ser introduzidos no mundo
velho e não apenas na vida. Já a novidade que os recém-chegados
introduzem nesta conversa histórica, tão logo será velha para as gerações
subsequentes.
coletiva. Nesse caso, o passado e o futuro esgotam-se na história pessoal e privada do sujeito,
projetado para fora da história comum e de seus iguais: narcisismo das pequenas diferenças”.
32
19Na contemporaneidade o aspecto da fama passa pelo sistema de televisão, ou seja, a televisão
ainda é o principal canal dos grupos dominante dos meios de comunicação, embora haja um número
crescente de pessoas que se fazem visíveis através de aplicativos e sites sociais e são as crianças os
maiores consumidores. Portanto, ainda é grande o número de famílias, em que a televisão, como
canal de verdade, ou seja, tudo que é transmitido é verdadeiro. Segundo Savater (apud
FENSTERSEIFER, 2020, p. 84), a televisão “educa demais e com força irresistível”. Na sequência,
Fensterseifer (2020, p. 84) escreve que a televisão, “nos tira o controle pedagógico do acesso das
crianças no mundo dos adultos, promovendo a desinstalação precoce da ‘obscuridade aconchegante’
em que se encontra a criança, promovendo a ‘perda da inocência’ [...]. Este conjunto de informações,
posto à disposição pela televisão, servirão de contraponto aos ensinamentos dos pais e professores,
sem os desprazeres da ‘vida real’”.
20Sennett (1988), na obra, O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, narra a história do
e iluministas que faz jus à racionalidade crítica buscando romper com todo tipo de dogmatismo tendo
como centralidade as ciências para gerarem conhecimentos, chamados por Arendt como era
moderna, embora com essa nomenclatura não coincidia com o mundo moderno. Arendt compreende
que o mundo moderno, teve seu ponta pé inicial a partir das primeiras explosões atômicas (CH, 2016,
p. 7).
34
de emergir. Tal ato poderá agravar a crise na educação, assim como a crise da
autoridade, entre outros fatores sociais que poderão ser afetados. Dessa forma, se
compreende o fato da educação ser entendida por Arendt como conservadora, pois
resguarda justamente a responsabilidade do agente perante o mundo. No entanto, a
crise na educação e a crise da autoridade está estritamente relacionada ao modo
como os adultos lidam com a tradição.
Contribuindo com o debate sobre a educação conservadora, Everling (2018,
p. 87) dialogando e concordando com Fensterseifer, aponta que:
22Janusz Korczak é de origem judaica nascido na Polônia, contemporâneo de Arendt, era pedagogo,
escritor e médico, fundador e cuidado de orfanato.
23Não sabemos a tal ponto veracidade desta carta, mas, independentemente, o que nos chama a
burocrata, legalista, que era eficiente em seu ofício, porém, não se utilizava da
capacidade humana reflexiva. A ausência da reflexão faz-nos perder a sensibilidade
para o absurdo. Nos tiram a sensibilidade de ver o absurdo das nossas ações. Leva-
nos a cometer e a justificar barbárie por barbárie. Nos coloca em situação de
sonambulismo.
A educação reflexiva é o caminho mais eficiente e seguro para combater o
sonambulismo, como exporemos no terceiro capítulo. Parafraseando Freire (2000, p.
67) que acreditava em uma educação transformadora, no qual dizia que, “se a
educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade
muda”, se a educação tem essa dimensão transformadora deve-se ao fato de que
ela tem a capacidade de fazer emergir uma nova realidade e simultaneamente
resguardar o elo com as gerações passadas por intermédio ao acumulo do
conhecimento e mediante a responsabilidade por um mundo comum. A força
transformadora da educação deve-se ao fato dela trabalhar diretamente com a
capacidade do pensamento reflexivo e dela surgir a esperança e a confiança em
uma educação que torne as crianças mais humanas.
A partir dessas considerações, apresentamos neste capítulo a compreensão
da educação para Hannah Arendt, além de realizar tal reflexão pela ótica da
contemporaneidade. No capítulo seguinte refletiremos sobre a “interfaces” da vita
activa, buscando elementos para compreender, no nosso contexto mundano, a
educação como tal. Para tanto, questionamos: como compreender o papel da
educação no contexto das atividades humanas e que relação encontramos entre
educação e vida activa?
41
Deste modo, Aristóteles deixa de lado a vida dos escravos – coagidos pela
necessidade de permanecer vivo e no qual está a mando do seu senhor – a vida da
fabricação dos artesãos livres e a vida do aquisitivo do mercador (CH, 2016, p. 16).
Partindo da compreensão aristotélica, os gregos para Arendt têm uma compreensão
muito especial a respeito da vida da pólis, já que a organização política grega
sempre teve como pressuposto a liberdade, visto que a vida sob a ótica de alguma
necessidade não pode ser considerada no bios politikos. Bem que, com o
desaparecimento da organização grega, ou da antiga cidade-estado, “a expressão
vita activa perdeu o seu significado especificamente político e denotou todo tipo de
engajamento ativo nas coisas deste mundo” (CH, 2016, p. 17).
Se o trabalho e a obra não eram compreendidos como dignos para construir
um bios, com essa perda de significância a “ação passara a ser vista como uma das
necessidades da vida terrena, de modo que a contemplação (bios theõretikos
traduzido como vita contemplativa) era agora o único modo realmente livre” (CH,
2016, p. 17). Mais adiante, ainda abordando a definição do termo vita activa Arendt
ressalta que:
42
24Os três modos de vida referem-se as três atividades da condição humana: trabalho, (manutenção
da vida) obra/fabricação (fabricação dos artefatos da mundaneidade) e ação (que envolve a
pluralidade humana).
43
a ação e ao criticar a era moderna e a importância que foi atribuída nessa época ao
trabalho, colocando-o acima de todas as outras atividades, Arendt resgata o que
seria um verdadeiro espaço público, plural e autônomo, de deliberação e de
iniciativa” (MAGALHÃES, 2006, p. 2).
25Ao mesmo tempo que a humanidade evolui desenvolvendo ciência e criando tecnologias cada vez
mais aprimoradas, as quais nos trouxeram muitas vantagens e facilidades na vida cotidiana,
percebemos a nossa pequenez e fragilidade frente a natureza. Esse desejo de se livrar dos limites
naturais pressupõe livrar os humanos da condição de mortais. Quando a humanidade se depara com
uma catástrofe, semelhante ao causado pelo Covid-19, expressa mais ainda o desejo da humanidade
de se sobrepor à natureza. Portanto, no cenário atual da pandemia ocasionada pela Covid-19, se
coloca em dúvida essa afirmação, pois esta capacidade humana de destruição se limita diante da luta
pela sobrevivência perante ao vírus do grupo Coronavírus (SARS-CoV-2), causador da pandemia.
44
Arendt, com seus artifícios, os humanos conseguem destruir e substituir toda vida
orgânica na Terra. É sobre essa ambiguidade das condições humanas, que
constituem uma realidade paradoxal, que Arendt vai refletir: de um lado,
compreende-se um mundo fascinante, de outro, o mundo nos coloca perante
contradições assustadoras.
Diante do advento tecnológico em que a modernidade se encontra, Arendt
faz referência à busca incessante dos seres humanos em superarem a si próprios,
por meio da tentativa de criar vidas de proveta para produzirem seres superiores.
Como salienta a própria autora, “esse homem futuro, que os cientistas nos dizem
que produzirão em menos de um século, parece imbuído por uma rebelião contra a
existência humana tal como ela tem sido dada – um dom gratuito vindo de lugar
nenhum” (CH, 2016, p. 3). Não encontrando razões para duvidar da capacidade
humana dessa conquista, Arendt diz:
26Livro:ARENDT, H. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Lisboa: Instituto Piaget, 2011.
27Para Correia (apud ARENDT, 2016, p. XXIV), “a versão definitiva de A condição humana, mais que
uma resposta à pergunta sobre como e, porque foi possível o totalitarismo, e mais que um exame da
relação entre totalitarismo e tradição, converteu-se em uma fenomenologia das atividades humana
fundamentais no âmbito da vida ativa – o trabalho, a obra ou fabricação e a ação. Arendt principia sua
investigação com o exame da relação entre condição humana e vita activa, definida em contraposição
à vita contemplativa, mas visa antes de tudo a transcender a caracterização tradicional das atividades
e da relação entre elas com vistas a uma indagação sobre o significado das próprias atividades e das
transformações em seu caráter na era moderna”.
46
28Arendt,
como pensadora política e, ao mesmo tempo historiadora, tem sempre um olhar especial ao
mundo greco-romano, ao mundo da antiguidade. Corriqueiramente, em seus escritos, ela se volta a
essas duas culturas, analisa como eram e as compara com a era moderna.
47
29ARENDT, H. Trabalho, obra, ação. Trad. Adriano Correia e Theresa C. de Magalhães. Cadernos de
Ética e Filosofia Política, n. 7, p. 175-201, 2º/2005.
48
Vale ressaltar que a ação, o discurso e o pensamento são fúteis à vida, dado
que eles por si próprios não produzem nem geram coisa alguma. A atividade do
pensar, embora, relacionada ao mundo exterior, nem sempre se manifesta ou
precisa ser ouvida, vista, utilizada ou consumida para ser real. Nesse contexto, para
se tornarem mundanos, esses três elementos precisam ser vistos, auscultados e
lembrados, e, então, transformados em alguma forma de registro, como na arte, nos
livros, nas escritas, entre outros. Por isso, os produtos da obra garantem a
permanência e a durabilidade das coisas que formam o mundo.
Quanto ao trabalho, é a atividade em que o homem não está junto ao
mundo, nem convive com os outros – ele se encontra sozinho, apenas com seu
corpo diante da necessidade de manter-se vivo. O estar só é constitutivo do
trabalho, mesmo que os indivíduos trabalhem em grupos ou em escalas, pois o
fazem como se fossem um só, jamais carregam consigo a pluralidade. Desse modo,
o trabalho não é reconhecido como político; é apolítico, pois visa vencer o imperativo
da necessidade que está relacionado e indissociável ao fato do está vivo.
Arendt apropria-se do conceito aristotélico de trabalhadores, cuja função é
atender às necessidades da vida. Com isso, a atividade do trabalho ocorre
paralelamente à vida e se move na mesma direção prescrita pelo caráter biológico.
Dessa maneira, somente tem um fim em si mediante a durabilidade da vida.
Diferente da atividade da obra ou da fabricação, que tem o seu fim atingido quando
um objeto está concluído e pronto para ser adicionado no mundo das coisas e dos
objetos. Para Toa (2005, p. 181):
mundano, ao contrário do homo faber, que se torna senhor e mestre de sua própria
natureza enquanto extrapola o círculo biológico e o que a natureza lhe dá. O homo
faber por meio da obra de suas mãos fabrica a diversidade das coisas e objetos,
constituindo o artifício humano do mundo em que vivemos. Esses objetos e
elementos produzidos “dão ao mundo a estabilidade e a solidez sem as quais não se
poderia contar com ele para abrigar a criatura mortal e instável que é o homem”
(TOA, 2005, p. 183).
O homo faber é, portanto, capaz de construir e habitar domínio público
próprio, mudando, embora não possa ser considerado como domínio político. O
domínio público do mesmo consiste no mercado de trocas, no qual ele pode expor
os produtos, fruto de suas mãos, e receber o valor que merece. Segundo Arendt, o
homo faber tem a inclinação para a habilidade na exibição pública; ela comunga com
a ideia de Adam Smith30, de que essa inclinação é intimamente conectada com a
propensão de barganhar, permutar e trocar uma coisa por outra, pois é essa
habilidade que distingue o homem dos animais. Como destaca Arendt, “ninguém
jamais viu um cão fazer uma troca equitativa e deliberada de um osso por outro com
outro cão” (CH, 2016, p. 199). Dessa forma, a relação do homo faber se concretiza
na relação de trocas dos seus produtos com outras pessoas.
As variedades infinitas das coisas que constituem o artifício humano do
mundo são produzidas pelo homo faber, sendo que, a partir do uso adequado, têm
uma durabilidade, dado que não se consome o produto por ele produzido e sim
utiliza-se, serve-se de tal produto.
Na compreensão da “interface” da educação com a vita activa traz-se a
reflexão de Johann (2009, p. 77) que abordando o pensamento de Arendt na
perspectiva ética relata que:
A vita activa e a forma como que o ser humano a exercer será fruto de uma
aprendizagem. Portanto, a educação implicará uma dimensão ética a
imprimir as suas condições de construção ou de destruição. O ser humano
aprenderá a prática do cuidado para com tudo e todos os que o rodeiam.
Sempre de acordo com Arendt, a natalidade se constituirá no valor
predominante e não a mortalidade, em que pese ser esta última uma
contingência de finalização temporal. O fato primordial da natalidade haverá
de se apresentar como uma acolhida amorosa. O recém-chegado será
recebido com as boas vindas de quem é introduzido num mundo em que ele
tudo terá que aprender. Todas as tarefas necessárias para sua
30Adam Smith foi um pensador britânico, filósofo e economista que nasceu na Escócia sendo
considerado o pai da economia moderna, e o mais importante teórico do liberalismo econômico.
51
sobrevivência lhe serão ensinadas para que sua travessia seja feliz e
realizadora. Desde o labor até a ação contemplativa serão frutos de sua
aprendizagem.
A inversão tinha a ver somente com a atividade de pensar, que, daí por
diante, passou a ser serva do agir, como havia sido a ancilla theologiae a
serva da contemplação da verdade divina na filosofia medieval e a serva da
contemplação da verdade do Ser na filosofia antiga. A contemplação
mesma tornou-se completamente sem sentido. (CH, 2016, p. 362, grifo do
autor).
Chama-se “mundo”, com efeito, não apenas a esta criação de Deus, o céu e
a terra [...] mas também todos os habitantes do mundo são chamados
“mundo” [...] Todos aqueles que amam o mundo são chamados “mundo”. O
mundo, portanto, são aqueles que amam o mundo (dilectores mundi). O
conceito de mundo é duplo: por um lado, o mundo é a criação de Deus – o
céu e a terra – dada antecipadamente a toda a dilectio mundi, por outro
lado, ele é o mundo humano a constituir através do fato de o habitar e de o
amar (diligere). (CASA, 1997, p. 79).
32Na obra Origens do Totalitarismo (OT, 2012), Arendt chama a atenção, pois, justamente é a
pluralidade e a diferença entre os homens que os regimes totalitários procuram eliminar. Diz a autora:
“o domínio total, que procura sintetizar infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos como
se toda a humanidade fosse apenas um indivíduo, só é possível quando toda e qualquer pessoa seja
reduzida à mesma identidade de reações” (OT, 2012, p. 582). O fato dos regimes totalitários tentarem
reduzir a pluralidade humana numa só identidade pressupõe, para Arendt, a tentativa de criar uma
espécie humana igualando as espécies animais e eliminado, desse modo, a liberdade que é típica de
cada homem, substituindo-a pelo instinto de preservação da espécie. Na sequência, Arendt ressalta
que “[...] o domínio totalitário procura atingir esse objetivo através da doutrinação ideológica das
formações de elite e do terror absoluto nos campos; e as atrocidades para as quais as formações de
elite são impiedosamente usadas constituem a aplicação prática da doutrina ideológica – o campo de
testes em que a última deve colocar-se à prova –, enquanto o terrível espetáculo dos campos deve
fornecer a verificação ‘teórica’ da ideologia” (OT, 2012, p. 582). Somos seres plurais e é diante da
pluralidade que a ação tem seu real significado e valor. Ao olhar por esse ponto de vista e elevá-lo ao
patamar da educação nos regimes totalitários, compreende-se que a educação sempre correu o risco
de ser transformada em doutrinação. Esse risco é inerente aos totalitarismos dos partidos e grupos
políticos em vista de suas ideologias e crenças. Sendo a educação um campo pré-político, todos têm
que assumir a responsabilidade por ela, e os que não o fizerem não podem tomar parte sobre ela. Ao
assumir a educação, o professor teria que ter um mínimo de conhecimentos antropológicos em sua
totalidade, pois alguns elementos dessa área são necessários para que não sejam cometidos os
mesmos erros do passado. Quando a educação é tomada pelos regimes totalitários, os recém-
chegados são privados de espontaneidade face ao mundo.
57
A ação está estritamente ligada ao discurso. Caso ela seja muda deixa de
ser ação, pois não haveria um ator que para ser considerado realizador de feitos só
o é mediante o discurso. Na ação e no discurso, os homens mostram quem são e
revela sua identidade, dessa forma, se expõem diante do mundo das aparências
humanas. A ação necessita do discurso para ser ação, diferente de outras atividades
em que o discurso aparece como secundário, nela é primordial. Quando não há o
desvelamento do ator, a ação acaba perdendo o seu caráter específico, o que a
torna em um ato como outro qualquer. Isso se converte, para Arendt, em “apenas
um meio para atingir um fim, tal como a fabricação é um meio de produzir um objeto”
(CH, 2016, p. 223).
A ação e o discurso ocorrem entre os homens, uma vez que a eles são
dirigidos, e conservam sua capacidade de revelar o agente [agent-revealing]
mesmo quando o seu conteúdo é exclusivamente “objetivo”, dizendo
respeito a questão do mundo das coisas no qual os homens se movem,
mundo este que se interpõe fisicamente entre eles e do qual procedem seus
interesses específicos, objetivos e mundanos. Esses interesses constituem,
na acepção mais literal da palavra, algo que inter-essa [inter-est], que se
situa entre as pessoas e que, portanto, é capaz de relacioná-las e mantê-las
juntas. A maior parte da ação e do discurso diz respeito a esse espaço-entre
[in-between], que varia de grupo para grupo de pessoas, de sorte que a
58
33Novamente, referimo-nos aqui às disciplinas e matérias da área das Ciências Humanas, que estão
postas sob escanteio no processo de formação dos novos.
34Diferente dos regimes totalitários que partem da doutrinação, atualmente percebe-se uma sutil
dominação da mão invisível do capital, de Adam Smith, que usa a carapuça do sistema.
59
35Utilizamos aqui nesse capítulo o conceito de antropologia como sinônimo do termo da condição
humana.
36A frase foi reelaborada, mas tem como ideia central a reflexão realizada pelo professor Doutor Paulo
ou “o que se entende por bom”. Os conceitos de bom e de mau sempre tomaram espaço nos debates
filosóficos, porém, cabe evidenciar que tal afirmação diz respeito ao fato de que o professor
60
sobre o que estamos fazendo” (CH, 2016, p. 6)38. Embora a autora se limite à
reflexão sobre as três atividades, que estão sobre o alcance de todo ser humano,
anteriormente mencionadas, ela constata que a mais pura e mais elevada
capacidade do homem consiste na capacidade de pensar39.
Quando Arendt expressa o objetivo da obra, apresenta aí um princípio
antropológico de sua compreensão de homem: compreende a autora que somos
todos seres pensantes. Porém, a composição da frase “pensar sobre o que estamos
fazendo” permite-nos a compreender como, “refletir sobre o que estamos fazendo”.
Assim, o termo pensar, nos escritos da autora, pode ser constantemente
compreendido como refletir40.
A compreensão de homem pensante está expressa com mais precisão na
obra A vida do Espírito (2011), pela qual Arendt literalmente debruça-se sobre a
temática, e o faz em diálogo com a tradição filosófica até então estabelecida. Nessa
obra41, a autora trabalha propriamente com três conceitos, a saber: o conceito de
pensar, de querer e o de julgar. O motivo que leva Arendt a mergulhar nesse
assunto, segundo ela, deve-se ao julgamento de Eichmann em Jerusalém42 (EJ,
1999). Nesse livro, ela faz um relato do procedimento do julgamento de Eichmann e
chega à conclusão que há uma banalização do mal. Ela observa que Eichmann foi
38O conceito antropológico de Hannah Arendt está manifestado em todas as suas obras. Assim, será
referenciado também em outros livros neste capítulo.
39Essa capacidade humana é abordada por Arendt na obra A Vida do Espírito (2011).
40Devido a amplitude e a colocação do conceito de pensar, utilizaremos esse conceito como sinônimo
de refletir, isto é, de reflexão, visto que o conceito pensar acaba sendo confundido com as
capacidades humana cognitivas. Como diz a Arendt, “com a ascensão da era moderna, o
pensamento tornou-se principalmente servo da ciência, do conhecimento organizado; e ainda que o
pensamento se tenha então tornado extremamente ativo” (VE I, 2011, p. 17), embora a autora realize
uma distinção singular da capacidade humana cognitiva e o pensar.
41Hannah Arendt não conseguiu terminar este escrito, pois veio a falecer.
42Adolf Eichmann foi o responsável pela deportação dos judeus para os guetos e campo de
concentração. Ele era chefe da Seção de Assuntos Judeus no Departamento de Segurança de Hitler.
Quando Eichmann foi capturado na Argentina e foi levado ao tribunal em Jerusalém, o mundo
esperava ver um monstro, um antissemita brutal, um nazista fanático. O réu, por sua vez, passou a
imagem de um homem comum, um burocrata que teria apenas assinado documentos. Ele insistia que
apenas cumpriu ordens e jamais se preocupou em questioná-las. Em certo momento do julgamento,
segundo Arendt, ele cita que cumpriu somente com o imperativo categórico do filósofo Kant.
Interrogado pelo júri, Eichmann diz “O que eu quis dizer com minha menção a Kant foi que o princípio
da minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais” (EJ,
1999, p. 153). Ele cumpria seu dever. Mas, em defesa de Kant, Arendt diz, “Kant, sem dúvida, jamais
pretendeu dizer nada desse tipo; ao contrário, para ele todo homem é um legislador no momento em
que começa a agir: usando essa ‘razão prática’ o homem encontra os princípios que deveriam ser os
princípios da lei. Mas é verdade que a distorção inconsciente de Eichmann está de acordo com aquilo
que ele próprio chamou de versão de Kant ‘para uso doméstico do homem comum’” (EJ, 1999, p.
153).
62
preciso na deportação dos judeus para o campo de concentração, mas era incapaz
de refletir sobre o significado de suas ações.
A própria autora disse que ficou espantada no julgamento, com a
manifestação da superficialidade de Eichmann que impossibilitava seguir o mal
incontestável dos seus atos até qualquer nível mais profundo de raízes e motivos.
Segundo a autora:
Os atos eram monstruosos, mas o agente – pelo menos aquele mesmo que
agora estava a ser julgado – era absolutamente vulgar, nem demoníaco,
nem monstruoso. Não havia nele nenhum sinal de convicções ideológicas
firmes ou de motivos maldosos específicos, e a única característica notável
que se podia detectar no seu comportamento durante o julgamento era algo
de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão. (VE I, 2011, p.
14, grifo do autor).
43Nesse diálogo que ela estabelece com a tradição filosófica, ela chega à conclusão de que quando
se trata a atividade do pensamento, os filósofos são todos pensadores profissionais, exceto,
Sócrates. Este é o único despojado de si mesmo. Dentre os pensadores, Sócrates foi o único capaz
de permanecer sempre homem entre os homens, não evitou a praça pública, permanecendo um
cidadão entre cidadãos, não fazendo nada, não pretendendo nada exceto o que na sua opinião cada
cidadão deve ser e a que tem direito.
63
44O ideal seria que essa atitude de despertar dos novos o pensamento reflexivo ocorresse, por parte
dos educadores, considerando a neutralidade no que se refere a adesão de ideologias de quaisquer
âmbitos.
65
temos condições para isso e ao tentarmos compreendê-la, “seria como pular sobre
nossas próprias sombras” (CH, 2016, p. 13).
Nesse contexto, é possível compreender que o homem não tem uma
natureza ou uma essência semelhante às outras coisas, como diz Arendt, “se temos
uma natureza ou essência, então certamente só um deus poderia conhecê-la e
defini-la, e a primeira precondição é que ele pudesse falar de um ‘quem’ como se
fosse um ‘que’” (CH, 2016, p. 13). As categorias da cognição humana que se
aplicam às coisas naturais não conseguem responder à pergunta sobre a natureza
humana (quem somos nós?), isto porque não temos condições de defini-la, mas, ao
insistir em fazê-lo, reflete-se sobre a construção de uma deidade, que gera uma
ideia do “sobre-humano” (superhuman), identificando-o com o divino. Por isso é que
para a autora pode-se lançar suspeitas sobre o conceito de “natureza humana”.
Segundo Arendt, “as condições da existência humana – a vida, a natalidade
e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e a Terra – jamais podem explicar o
que somos ou responder à pergunta sobre quem somos” (CH, 2016, p. 14). Isso
porque jamais o homem se condiciona absolutamente. Com isso, pressupõe-se que
os seres humanos não são meras criaturas terrenas, embora vivam em condições
terrenas. Entretanto, já que não podemos conhecer a natureza humana, nos resta
então partir para análise do conceito, pensar e pesquisar na teoria de Arendt, de que
modo contribuem seus estudos para o campo educacional.
A constatação de Arendt de que somos seres pensantes pode influenciar
diretamente a área da educação, pois remete ao conhecer e pensar o mundo, logo,
pressupõe-se a responsabilidade com o (Todo) universo. No entanto, constata-se na
contemporaneidade que a educação está intencionada puramente a conhecer e
menosprezar o pensamento para buscar sentido. Assim, por ser considerado quase
inútil, por não obter resultados sólidos e por não propiciar um recurso econômico, o
“refletir” é colocado em segundo plano.
Diante disso, não se nega a importância do conhecer, pois, o mundo é um
espaço construído pelas ações humanas e pelo pensamento sobre o mesmo. Temos
a necessidade da manutenção da vida, mas somos capazes de estabelecer relações
e criar formas de convivência que não se limitam aos fins utilitários. Portanto, a
criança nasce sendo inserida em um mundo que é espaço de trabalho e lugar de
fabricação, assim como também é um ambiente de convivência e de histórias
66
como o mito de Penélope. Todos os dias Penélope tece sua teia e, à noite,
desfaz-se a teia. No dia seguinte, Penélope reinicia a sua tarefa.
45O termo “Aldeia Global” foi cunhado pelo sociólogo canadense Marshall McLuhan, no qual, refere-se
ao progresso tecnológico que avassaladoramente atinge qualquer recanto do planeta globalizando
qualquer aldeia, ou seja, por meios da internet e da televisão os meios de comunicação fariam com
que o mundo se tornasse uma grande aldeia, quebrando fronteiras geográficas, culturais, sociais e de
outros tipos. Utilizamos esse conceito também na perspectiva de Morin de que qualquer ação por
mais insignificante e particular, que seja, ela causará uma reação universal ou planetária.
Exemplificando, uma árvore cortada no fundo do quintal de uma casa, contribui-se com o
desmatamento e com o efeito estufa.
46Inclui-se aqui o pensamento do filósofo Morin para ajudar a compreender a importância de uma
educação reflexiva. O filósofo Morin, apesar da sua idade (100 anos), encontra-se lúcido ao falar dos
problemas educacionais e dos problemas da contemporaneidade.
69
Contribuindo com o debate, Souza (1999, p. 89) nos alerta do fato de que,
“se o que se quer é construir a democracia, a paz, a tolerância e a solidariedade,
então deve-se ir além, deve-se buscar o significado do mundo e não apenas as suas
verdades”. Por conseguinte, o fracasso moral diante da sociedade, como no caso de
Eichmann, e dos cientistas entre outros, não pode ser entendido como falta de
conhecimentos. “Sabemos que o problema não é esse. O mal não se entende com
os critérios do conhecimento e da verdade. A banalidade do mal está
71
47Atualmente,em diversas parte da terra existem várias vozes de pensadores que buscam despertar
a consciência coletiva para o cuidado com as questões ambientais. Pressupõem eles que se a
sociedade não repensar a ecologia e o meio ambiente estaremos caminho para o fim do mundo
humano.
72
48Assim como o conto do Flautista de Hamelin narrado pelos irmãos Grimm, o capitalismo conseguiu
seduzir e hipnotizar boa parte da sociedade, à medida, que os clichês e o acumulo de capital é o que
move as pessoas nas suas relações. A valorização do homem faber na contemporaneidade se limita
ao mercado de troca. Tudo é uma troca. Como sonâmbulos caminham de lado a outro sem exercer a
atividade do pensamento.
49No ano de 2020 fui entrevistado por um jornal regional – cidade de Santo Ângelo – em data alusiva
ao dia do trabalhador para falar a respeito dos desafios impostos a classe dos Trabalhadores da
Alimentação, e na entrevista, além dos aspectos econômicos refletia, apontando para a necessidade
e o desafio em repensar as estruturas e organizações laborais que possam oportunizar aos
trabalhadores um tempo para o ócio. O interessante é que, as questões econômicas o jornal publicou
na íntegra, mas quanto a parte que refletia sobre a importância do tempo de ócio para os
trabalhadores foi literalmente ignorada, não sendo publicado nada a este respeito. A reflexão partia
da perspectiva do ócio enquanto tempo para pensar o inútil; que seria as manifestações culturais, a
arte, a literatura entre outros. A não publicação da reflexão sobre a importância do tempo de ócio para
os trabalhadores da Categoria a Alimentação, a meu ver, deve-se ao fato que no sistema capitalista,
o tempo de ócio é tido como inimigo do trabalho, embora os meios de comunicação social são
capitalistas e estão a serviço do capital, no qual, jamais, publicaria algo a esse respeito. Além disso,
para a lógica capitalista o “ócio seria coisa de preguiçoso e vagabundo”. Proporcionar momento de
ócio aos trabalhadores seria como colocar em suas mãos um arsenal que poderá ser usado na luta
de classe. Como Arendt alerta sobre a atividade do pensar; “o próprio pensar é perigoso” (VE I, 2011,
p. 195). O sistema capitalista só existe porque tem uma grande demanda de trabalhadores na
condição de animal laborans. O sistema capitalista, jamais irá oportunizar condições para que os
trabalhadores tenham tempo para a reflexão.
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2011, p. 207). Esse hábito de atualizar a consciência pode ser proporcionado pelos
adultos através do processo educativo, no qual, os novos e os jovens estão
inseridos. Segundo a autora, no debate apresentado por Platão sobre Sócrates e
Hípias, ao ir para casa, Hípias “permanece, um, porque, embora viva sozinho, não
procura fazer companhia a si mesmo” (VE I, 2011, p. 207). Diferentemente é o caso
de Sócrates, que quando vai para casa não está sozinho, está em companhia de si
mesmo, “entregue a si mesmo” (VE I, 2011, p. 207).
Dresch (2018, p. 101) é conciso quando refere a escola, como espaço de
ócio. Para ele, a escola é aquele lugar no qual os recém-chegados e os novos são
inseridos “sem precisar se preocupar com questões de ordem política ou em prover
seu sustento”. A escola é o ambiente que “oferece tempo e liberdade para as
crianças aprenderem coisas que, não obrigatoriamente, servirão para alguma
finalidade biológica, empregatícia ou política; e possibilita a abertura ao mundo e aos
outros, o espaço-tempo do entre” (DRESCH, 2018, p. 101, grifo do autor).
A instituição escola, pode muito bem saciar a sede de conhecimento dos
educandos, que poderão vir usar o conhecimento para outros fins. Portanto, o
pensamento não é uma atividade que traz resultados objetivos para a sociedade
semelhante aos do conhecimento. Por conseguinte, politicamente o pensador fica à
margem. Por outro lado, o pensamento se converte em ação, quando incide no
âmbito moral, conforme exemplo da própria autora:
Nesse momento mágico algo de repente deixa de ser uma ferramenta ou um recurso
e se torna uma coisa real, uma coisa que nos faz pensar, mas também nos faz
estudar e praticar (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 26, grifo do autor).
O ócio enquanto tempo livre é compreendido por Dresch (2018) a partir da
distinção entre tempo Chronos e kairós. É salutar essa distinção que ele faz entres
os conceitos e a relação com o pensamento arendtiano, no âmbito da educação
escolar. Para Dresch (2018, p. 105-106), chronos e kairós:
[...] são compreensões distintas que perpassam toda a vida humana. Existe
um tempo cronológico no qual todos estão inseridos e que orienta a
convivência diária. Ele diz respeito ao nosso calendário, horário, regime de
trabalho, dias letivos, etc. Em meio ao chronos, há o kairós, o momento
oportuno para a realização de propósitos, ações e experiências únicas; é o
“tempo” inaugural possível dentro do próprio “tempo”. Ambos coexistem e
são concebidos, aqui, em sua correspondência.
Brayner (2008) defende a escola na ótica arendtiana, uma escola que possa
ser espaço em que falar, pensar e julgar seja possibilidade para que o estudante
“torna-se alguém”. Em que o tornar-se alguém venha acontecer no espaço público.
Uma escola que permita a cada um aparecer com “sua palavra e com sua
possibilidade de ação” (BRAYNER, 2008, p. 31). É sobre esse “torna-se alguém” que
compreendemos a escola enquanto lugar de formação e lugar do ócio, como diria
Dresch (2018).
Quando pressupõe a escola como “lugar para tornar-se alguém” não se
refere a partir da lógica do capital, nem mesmo do mercado de trabalho – onde a
escola se reduz a um laboratório de reprodução em massa de profissionais – aporta-
se na perspectiva de arendtiana onde a escola possa fazer surgir o novo em um
mundo construído pelos mais velhos. Portanto, uma escola que seja como um berço
para o pensamento reflexivo, partindo da compreensão de que “o pensar pode ser
estimulado” (VE I, 2011, p. 190).
Ousamos aqui transferir a analogia, direcionada a Sócrates como moscardo,
a parteira e raia-elétrica, em que, Arendt resgata e se vale destas comparações,
para aplicarmos a educação. Assim como Sócrates, a educação precisa ser igual a
um moscardo (inseto) que “sabe como picar os cidadãos que, sem ele,
adormeceriam imperturbados para o resto das suas vidas” (VE I, 2011, p. 190).
Sócrates é quem desperta os cidadãos do sonambulismo da irreflexão. Desperta os
cidadãos com um único objetivo, simplesmente parar para pensar. Assim como no
caso de Eichmman, o não pensar pode ser um perigo para a vida. A educação
precisa ser esse moscardo para os educandos.
O segundo exemplo refere-se à parteira. Sócrates se denomina como estéril,
mas, sabe como ajudar o parto dos pensamentos dos outros. É graças à sua
esterilidade, Sócrates “tem o conhecimento técnico de uma parteira e pode decidir
se a criança é uma verdadeira criança ou um mero ovo não fecundado de que é
preciso limpar o portador” (VE I, 2011, p. 190). Geralmente no nosso imaginário a
parteira apresenta-se como uma senhora de idade. A instituição escola, é essa
parteira, que há séculos tem sido instituída pela sociedade. Como chamamos a
atenção no decorrer do texto sobre a responsabilidade da escola, a mesma deveria
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ter a habilidade técnica para reconhecer onde se encontra a vida. Os projetos que
são contra a vida devem ser apartados da escola e da sociedade. A educação
poderá trazer à luz os pensamentos alheios, os pensamentos obscuros, ajudando a
sociedade a se livrar desse mal. Pensar e refletir, é um modo que a escola tem de
transformar a lacuna entre o passado e futuro num espaço e tempo de encontro e de
continuidade, é um espaço de “torna-se alguém”, de serem visíveis.
O exemplo da raia talvez é o mais adequado para relacionar com a
educação à medida que a raia-elétrica, deixa todos paralisados. O estado de
perplexidade diante da eletricidade é semelhante ao coçar de cabeça que
Masschelein e Simons (2014) chamam de momento “mágico”. A escola precisa ser
para os estudantes um momento em que os faz pensar, os convida a pensar ou os
faz coçar a cabeça diante da perplexidade do pensamento. Em meio às dificuldades
que temos em indignar-nos com as coisas mais vis e de admirar-nos das coisas
mais simples, “ser como uma arraia-elétrica é buscar, coerentemente, tanto a
indignação como a admiração. Nossos sentimentos parecem buscar sempre novas
emoções para o êxtase enquanto ficamos impassíveis diante de escândalos e
monstruosidades” (SOUZA, 1999, p. 96). Contudo, diante dos exemplos,
acreditamos e apostamos em uma escola que seja um espaço para o pensamento
reflexivo.
Por fim, diante do exposto até aqui, compreendemos a escola como aquele
“lugar sagrado”, berço e fomentação do despertar para o pensamento reflexivo.
Embora, cientes do limite e da incerteza do resultado, sendo que, “a incerteza do
futuro torna miserável a vida humana”, e mesmo que “o perigo é inerente a todas as
obras e feitos, ninguém sabe como resultará uma coisa começada” (VE I, 2011, p.
183), vale apenas continuar na aposta de uma escola como estimuladora do
pensamento reflexivo, embora haja sempre a possibilidade do fracasso. Apesar que
do ponto de vista histórica, a sociedade e a vida em si do homem é uma narrativa e
só o fim da narrativa, quando tudo está acabado, pode dizer-nos tudo sobre o que
ela foi. A vida humana, porque é marcada por um começo e, por um fim, só se torna
completa a uma entidade em si mesma que pode ser sujeita a um juízo, quando
acabou na morte; a morte não se limita a terminar a vida, também lhe confere uma
plenitude silenciosa, arrebatada do fluxo incerto a que todas as coisas humanas
estão sujeitas (VE I, 2011, p. 183).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
ele quem orienta e apresenta o mundo aos infantes. Deste modo, a instituição
escolar tem a função de ensinar às crianças como o mundo é, como ele foi
constituído e, não as instruís na arte de viver e/ou inseri-las na cultura do bem-estar.
Foi sobre está perspectiva que trabalhamos no terceiro capítulo, quando
buscamos junto ao pensamento arendtiano e com a contribuição de outros autores
uma educação que estimule a atividade do pensar/reflexivo. Investir em uma
educação reflexiva pode ser, um risco, mas pode ser o melhor caminho para quem
aposta em uma educação gratuita, republicana e democrática. Nesse capítulo,
responderemos as seguintes questões; qual a utilidade do pensamento? Para que
serve o pensar? Em que e onde incide o pensamento? Com a finalidade de refletir
sobre o que estamos fazendo e, principalmente, pensar o processo educativo atual.
Por fim, diante do processo de pesquisa, desenvolvido até aqui, creio ter
contribuído com o debate educativo, tendo a certeza que o debate continua.
Contudo, ao finalizar esta dissertação, compartilho com o leitor a possibilidade de
investigação sobre o conceito de pensamento (atividade do pensar) de Arendt, e
relacionar com o conceito de Santo Agostinho, a partir da seguinte frase que
trouxemos no decorrer do texto: “ninguém conhece o que se passa num homem,
senão o seu espírito, que nele reside. Há, porém, coisas no homem que nem sequer
o espírito que nele habita conhece” (AGOSTINHO, 1984, X, 5.7V). Acredito que esse
tema seria desafiante para compreendermos melhor a condição humana.
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REFERÊNCIAS
ARENDT, H. Liberdade para ser livre. Trad. Pedro Duarte. Rio de Janeiro: Bazar
do Tempo, 2018.
SENNETT, R. Autoridade. Trad. Vera Ribeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2016.