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Donald A. Carson
Nesta Introdução tem sido visto rapidamente o padrão como estes ou outros Pais citam os
vários livros do Novo Testamento como Escritura; mas esse padrão não estabelece quando
houve o reconhecimento do cânon do Novo Testamento como uma lista encerrada. Quanto
a isso, a fonte mais importante provavelmente é Eusébio de Cesareia (e. 260-340), cujos
pontos de vista são baseados em grande parte nos pais alexandrinos Clemente e Orígenes.
Ao tratar do cânon do Novo Testamento, Eusébio elabora uma classificação tripartite: os
livros reconhecidos (homologoumena), os livros questionados (antilegomena) e os livros
introduzidos pelos hereges em nome dos apóstolos, mas rejeitados por aqueles que Eusébio
considera ortodoxos. Na primeira categoria Eusébio inclui os quatro evangelhos, Atos, 14
epístolas paulinas (Eusébio inclui Hebreus, embora tenha consciência de que a igreja em
1
Esse é, acertadamente, o entendimento de F.F. Bruce, em”New light on the origens of the New Testament
canon” (em New dimensions in New Testament study, editado por Richard N. Longenecker e Merril C.
Tenney, p. 12), em opoisção à obra magistral de H. von Campenhausen, The formation of the Christian Bible
(p.148).
2
Roma não considerava que Hebreus tivesse sido escrita por Paulo), 1 Pedro, 1 João e,
aparentemente (ainda que com certas reservas), Apocalipse. Eusébio subdivide os livros
questionados entre aqueles geralmente aceitos (Tiago, Judas, 2 Pedro, e 2 e 3 João) e os
que não são autênticos (Atos de Paulo, Pastor de Hermas, Apocalipse de Pedro, Epístola
de Barnabé, o Didaquê e, talvez, o Apocalipse).2 A terceira categoria, que abrange escritos
claramente heréticos, inclui evangelhos como os de Pedro e Tomé, atos de André e João, e
escritos semelhantes (H.E. 3.25).
A igreja oriental, pelo menos como é representada pela Peshitta Siríaca, omitiu 2 Pedro, 2 e
3 João, Judas e o Apocalipse, que é seguido hoje em dia pela igreja síria que usa a língua
local (em contraste com a igreja síria de fala grega). Por outro lado é importante reconhecer
que não é pequeno o número de pais da igreja oriental que reconheciam exatamente os 27
livros que formam nosso cânon hoje em dia.4 No outro extremo, a igreja etíope reconhece
não apenas os 27 livros aceitos como padrão, mas acrescenta outros oito, dos quais a
maioria trata da ordem eclesiástica.5 Apesar disso Dunbar está certo em sua conclusão:
Assim mesmo é correto dizer que sempre que cristãos em locais específicos
têm se preocupado em conhecer a extensão do Novo Testamento e têm
procurado esse conhecimento num espírito de comunicação aberta com a
igreja em sua dimensão mais ampla, em geral o resultado tem sido uma
unanimidade de opinião. De sorte que é significativo que a reabertura das
questões de canonicidade por parte dos líderes da Reforma protestante levou
a um encolhimento do cânon do Antigo Testamento em contraste com o uso
católico romano, mas não provocou nenhuma mudança parecida na extensão
do cânon do Novo Testamento.6
2
A incerteza quanto ao lugar dado por Eusébio a Apocalipse é resultado de sua própria maneira confusa de se
expressar. Embora o livro de Apocalipse fosse quase universalmente reconhecido como Escritura no século
II, tornou-se objeto de suspeita na igreja oriental. A posição de Eusébio parece variar entre uma aceitação
inicial de Apocalipse como obra do apóstolo João, uma posterior e total rejeição do livro por considerá-lo
falsificação feita pelo herege Cerinto e uma aceitação da condição canônica do livro com uma simultânea
negação de sua autoria apostólica. Veja a anãlise feita por Robert M. Grant, em Eusebiu as church historian
(p. 126-37).
3
Veja Metzger, Canon (p. 210),
4
Veja Westcott, History of the canon (p. 445-8).
5
Veja R.W. Cowley, em “The Biblical canon of the Ethiopian Orthodox Church today” (ÖstK 23, p. 318-23).
6
Dunbar, Biblical canon (p. 317-8). Numa nota de rodapé Dunbar assinala que isso vale até mesmo para
Martinho Lutero, que levantou as indagações mais incisivas sobre os antilegomena (p. 432, nota 117). Com
frequência se afirma que no sumário da tradução da Bílbia por Lutero este separa Hebreus, Tiago, Judas e
3
Aliás, é importante observar que, embora não houvesse nenhum poder eclesiástico como o
papado medieval para impor decisões, assim mesmo a igreja em todo o mundo veio quase
universalmente a aceitar os mesmos 27 livros. A questão não foi tanto a de a igreja ter feito
a seleção do cânon, mas de o cânon ter feito a seleção de si próprio. Frequentemente tem-se
feito essa colocação, e ela merece ser repetida aqui:
Quaisquer que tenham sido as pressões que estimularam a igreja a publicar listas canônicas
- perseguição, distância do Jesus histórico, a pressão dos montanistas, o surgimento do
gnosticismo e de outros movimentos que tinham escrituras que deviam ser rejeitadas -
foram basicamente três os critérios que a igreja empregou nos debates para determinar
quais livros eram canônicos:8
1) Uma exigência básica para determinar a canonicidade era a conformidade à "regra de fé”
[ho kanõn tes pisteõs; em latim, regula fidei), conformidade entre o documento e a
ortodoxia, ou seja, a verdade cristã reconhecida como normativa nas igrejas. Embora
muitos estudiosos tenham negado a existência de uma distinção clara entre "ortodoxia" e
"heresia" na época imediatamente posterior aos apóstolos e muito menos no período do
Novo Testamento, é difícil deixar de identificar as raízes dessa distinção em textos tais
como Gálatas 1.8-9; Colossenses 2.8 e ss.; 1 Timóteo 6.3 e ss. e 1 e 2 João. E já em Inácio
ocorre uma considerável preocupação em distinguir o verdadeiro do falso. Essa
preocupação cresceu rapidamente com o tempo.
2) Nos Pais o critério mais comumente mencionado é talvez a apostolicidade, que, como
critério, veio a incluir aqueles que estiveram em contato direto com os apóstolos. Nesse
sentido o evangelho de Marcos era entendido como ligado a Pedro; o de Lucas estava
ligado a Paulo. Quando o Fragmento Muratoriano rejeita a leitura pública do Pastor de
Hermas, assim o faz com a justificativa de que tinha sido escrito muito recentemente e, por
isso, não podia achar um espaço “entre os profetas, cujo número está completo, nem entre
os apóstolos" (aqui "os profetas" é referência aos livros do Antigo Testamento, e "os
apóstolos", aos do Novo). Pelo mesmo motivo, sempre que suspeitam pseudonímia, os Pais
rejeitam a obra.
Apocalipse dos demais livros e deixa de contá-los entre os canônicos (e.g. Meye, em Canon, p. 605); nem
sempre se destaca que esse arranjo dos livros apareceu na edição de 1522 mas, junto com os mais incisivos
juízos negativos sobre esses livros (expressos nos prefácio que ele escreveu), foi abandonado em edições
subsequentes. Apenas sua apreciação negativa de Tiago permaneceu até o fim da sua vida. Veja Paul Althaus,
em Theology of Martin Luther (p. 83-5).
7
Barker/Lane/Micahels (p. 29).
8
Veja Metzer, em Canon (p, 251-4)
4
Por essa razão, como já vimos (cap. 15), o próprio Novo Testamento revela, por princípio,
uma rejeição de cartas pseudônimas (esp. 2 Ts 2.2; 3.17); agora observamos que os Pais
rejeitam universalmente a pseudonímia como categoria literária aceitável para documentos
com a autoridade de Escrituras. Isso deixa quase nenhum espaço para a afirmação
contemporânea bastante comum de que a pseudonímia era uma prática amplamente aceita
no mundo antigo. Que apocalipses pseudônimos eram bastante comuns é demonstrável;
que cartas pseudônimas eram bastante comuns é inteiramente desprovido de prova; que
algum pseudônimo foi conscientemente aceito no cânon do Novo Testamento é
negado pelas evidências.9
"nestes últimos dias", nos quais Deus se revelou por meio de seu Filho (Hb 1.1-3). O centro
e a fonte de toda revelação da nova aliança, reconhecida como oficial, repousa, em última
instância, no Filho. Os apóstolos, no sentido mais restrito do termo,14 eram vistos como
aqueles que mediaram essa revelação para o restante da igreja; mas, exatamente porque
essa revelação estava vinculada ao Jesus que apareceu na história real, um encerramento
implícito foi incorporado nessa afirmação. Não poderia haver uma sequência interminável
de "revelações" sobre Jesus, uma vez que aquelas revelações estavam se distanciando do
Jesus que se apresentou na história real e que foi confessado pelas primeiras testemunhas
oculares e pelos apóstolos.
Se, então, investigamos a questão de quando e como os vários livros do Novo Testamento
eram interpretados como testemunhas do evangelho com autoridade, em vez de
investigarmos quando e como o cânon foi encerrado, somos forçados a remontar não às
listas encerradas preparadas pelos pais, que tendem a ser posteriores, mas ao uso dos livros
do Novo Testamento (em comparação com outras fontes) nos pais primitivos. Descobrimos
então que até mesmo a maioria dos antilegomena são amplamente citados. Hebreus, por
exemplo, é citado extensamente em 1 Clemente (provavelmente 90-110 d.C.); Tiago é
atestado em 1 Clemente e Hermas (meados do século II). Aliás, mesmo dentro do Novo
Testamento, um texto do Antigo Testamento e uma citação evangélica podem estar lado a
lado e serem introduzidas pela expressão "a Escritura declara" (1 Tm 5.18). Mesmo que
essa citação evangélica não seja de um evangelho escrito, o trecho pelo menos comprova
que um ensino do Senhor Jesus desfruta o mesmo grau de autoridade das Escrituras do
Antigo Testamento. Em 2 Pedro 3.16 as epístolas de Paulo são reconhecidas como
Escrituras.
14
Veja D.A. Carson, em Showing the spirit (Grand Rapids, Baker, 1987, p. 88-91).
15
Veja Donald Robinson, em Faith´s framework: The structure of New Tesament theology,
16
Veja especialmente F.F. Bruce, em “Scripture in relation to tradition and reason” (em Scripture, tradition,
and reason:A study in the criteria of Christian doctrine, Fs. Richard P.C. Hanson, editado por Richard
Bauckham e Benjamim Drewery, p. 35-64)
6
2) Isso, contudo, não significa que a tradição oral fosse geralmente vista como
intrinsecamente superior aos documentos escritos que logo começaram a circular. A única
passagem que todos citam para justificar a noção de que a tradição oral era tida num grau
mais elevado de estima é uma afirmação de Papias registrada por Eusébio (H.E. 3.39.4),
que, na tradução de Campenhausen, diz: "Parece-me que aquilo que procede de livros não é
tão útil quanto aquilo que começa como uma fala viva e assim continua" .17 Tem-se
alegado convincentemente que Papias acentua a importância da tradição oral para
privilegiar seu comentário sobre as palavras do Senhor, não o conteúdo em si dessas
palavras .18 A menção desdenhosa a livros é provavelmente referência aos escritos de
hereges que, a essa altura, estavam fazendo o mesmo que Papias: comentando as palavras
recebidas do Senhor, mas com base em sua própria perspectiva teológica. A reação de
Papias é, na verdade, de que prefere reter as interpretações tradicionais (orais) das palavras
do Senhor. Afinal, em outro lugar Papias se apressa em negar a existência de qualquer erro
no evangelho de Marcos, muito embora aquele evangelho não seja uma apresentação
cronológica: essa atitude com certeza seria estranha caso Papias tivesse uma opinião
negativa de todos os registros escritos.
3) Se indagarmos quando e como foram feitas as primeiras coleções de pelo menos alguns
dos livros do Novo Testamento, a resposta direta é que não sabemos. Sabemos
seguramente que no máximo até meados do século II os quatro evangelhos canônicos
estavam circulando juntos na forma do evangelho quádruplo "segundo Mateus", "segundo
Marcos" e assim por diante. Provavelmente ainda antes as epístolas paulinas estavam em
ampla circulação. O processo de promover a circulação desses materiais recebeu, sem
dúvida alguma, o impulso do amplo uso, pelos cristãos, de livros na forma de códices. Até
aquele tempo escritos de valor eram normalmente publicados em rolos; a adoção do códice
(algo mais ou menos parecido com os livros de hoje, em que folhas avulsas são costuradas
ou coladas numa borda) não somente tornou os livros mais fáceis de serem usados, mas
também tornou mais fácil publicar vários e diferentes livros juntos num só volume.19
É certo que Paulo escreveu outras cartas que não chegaram até nós (veja 1 Co 5.9; CI 4.16),
mas os princípios de seleção e o grupo ou grupos de pessoas que fez a coleção não foram
identificados em nenhuma de nossas fontes. Apesar disso, com base em algumas
inferências cuidadosamente estabelecidas, é plenamente plausível supor que a coleção foi
reunida por pessoas ligadas a Paulo, tais como Timóteo, logo após o martírio de Paulo.20
1) Alguns (e.g., Koester) têm sustentado que se deve abolir a noção de um cânon. Dizem
que não há diferenças qualitativas entre os livros do Novo Testamento e outros textos
cristãos antigos; todas as fontes que derramem luz sobre o movimento cristão primitivo
devem ser tratadas de igual maneira, de forma que, digamos, Tiago, não deve ser tratado
como uma fonte que merece mais respeito ou tem mais autoridade do que, digamos,
Clemente de Roma.
17
Veja a análise que Campenhausen faz em”Formation” (p. 130 e ss.) Semelhantemente, veja Bruce, em
“Scripture” )p. 37-38).
18
Essa linha de interpretação parece ter tido origem em J.B. Lightfoot, em Essays on the work entitled
Supernatural religion (p. 156 e ss.).
19
Veja Moule (p. 239-41)
20
Veja Guthrie (p. 986-1000).
7
Fica claro que essa teoria só se torna viável caso se rejeite não somente a noção de cânon
como uma lista encerrada de livros oficialmente reconhecidos, mas também a noção de
Escrituras. Essa teoria também é reforçada pela prontidão em abandonar rapidamente a
herança estabelecida da igreja e, especialmente, de ideias críticas que consideram diversos
livros canônicos como escritos tardios e pseudônimos, concluídos depois de várias outras
fontes cristãs primitivas que chegaram até nós.
Alguns dos debates resultantes desses pontos de vista estão-se dissipando hoje em dia, pois
tanto o protestantismo quanto o catolicismo romano se encontram numa situação de imensa
mutação. Mas alguns dos problemas ligados à posição protestante são, em grande parte,
diminuídos caso se mantenha cuidadosamente a distinção aqui defendida entre Escritura e
cânon. O papel da igreja não é estabelecer quais livros constituem Escrituras. Em vez disso,
os livros bíblicos impõem-se por si mediante amplo uso e autoridade, e o papel da igreja é
reconhecer que somente certos livros - e não outros - exigem a lealdade e obediência da
igreja, e isso tem o resultado de constituir um cânon, uma lista encerrada de Escrituras
reconhecidas oficialmente.
21
Esse é o entendimento de C.K. Barret, em “The centre of the New testament and the canon” (em Die Mitte
des Neuen Testaments: Einheit und Vielfalt neutestamentlicher Theologie, Fs. Eduard Schweizer, editado por
Ulrich Luz e Hans Weder, p. 5-21).
22
E.G., Childs; James A. Sanders, From sacred story to sacred text.
8
estabelecidas por conexões intrabíblicas, e estas devem ser aceitas como normativas para a
igreja.
Há muitas coisas proveitosas nesse movimento. Ele representa um esforço de ler a Bíblia
como um todo e de ler livros bíblicos como produtos acabados. Na prática, contudo, alguns
defensores da crítica do cânon tendem a defender verdades abstratas que podem ser
inferidas do texto como um todo, mas rejeitam numerosas afirmações bíblicas que têm
referentes históricos. Essa inconsistência cria a impressão negativa de certo tipo de
fideísmo cru: aceitar o cânon onde ele não pode ser testado e reservar o direito de julgá-lo
onde pode ser testado. Essa forma de fideísmo faz com que a crítica do cânon, como é
frequentemente praticada (pelo menos em alguns círculos), seja intrinsecamente instável.
Em suma, o fato de que Deus é um Deus que se revela, fala e é fiel à aliança, tendo se
revelado de modo supremo num personagem histórico, o Messias Jesus, estabelece a
necessidade do cânon e, implicitamente, o seu encerramento. A noção de cânon proíbe
todas as tentativas conscientes de escolher apenas uma parte do cânon como o padrão de
governo da igreja cristã: isso seria descanonizar o cânon, uma contradição de termos. Pelo
fato de o cânon ser constituído de livros cuja autoridade, em última instância, brota da
graciosa auto-revelação de Deus, é melhor falar em reconhecer o cânon do que em
estabelecê-lo. E a teologia canônica não pode ao mesmo tempo ser correta e estar
divorciada de questões difíceis que vinculam a revelação de Deus à história concreta.