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A FORMAÇÃO DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO

Donald A. Carson

Se pensarmos no cânon do Novo Testamento como uma lista "encerrada" de livros


reconhecidos, os principais acontecimentos são bem conhecidos e em geral não são
questionados. A primeira dessas listas encerradas de que temos conhecimento é a de
Marcião. Fortemente influenciado pelo dualismo sírio, ele rejeitou todo o Antigo
Testamento e aceitou apenas um evangelho - uma edição de Lucas bastante editada - mais a
edição que preparou de dez cartas de Paulo, excluídas aí as pastorais. Mas, embora a lista
de Marcião seja a primeira, não se pode dizer que a própria ideia de uma Bíblia cristã seja
obra de Marcião.1 As cartas de Paulo já estavam circulando em forma de coleção, e
provavelmente o mesmo acontecia com os quatro evangelhos canônicos. Mais importante
ainda é o fato de que a ideia de Escritura neotestamentária, certamente bem estabelecida na
primeira parte do século II, pressupõe que, mais cedo ou mais tarde, houve algum tipo de
limite canônico.

É indubitável que a obra de Marcião e as de outros heréticos levaram a igreja a publicar


listas mais abrangentes e menos tendenciosas. Numa situação parecida, o movimento
montanista, que buscava alçar a voz da profecia a um nível de autoridade suprema na igreja
- que ela não desfrutou nem nos dias de Paulo (1 Co 14.37-38) - também serviu para forçar
a igreja a tomar decisões públicas quanto ao padrão de ortodoxia. Por volta do final do
século II, a lista Muratoriana, embora praticamente sem valor como orientação quanto à
origem dos livros do Novo Testamento a que ela se refere, reflete a opinião da igreja
universal que reconhece um cânon do Novo Testamento não muito diferente do nosso.
Faltam pedaços da lista, de modo que Mateus e Marcos não aparecem, mas sem dúvida são
pressupostos, visto que menciona-se Lucas como o terceiro evangelho e João como o
quarto. Lucas também é reconhecido como o autor de “os atos de todos os apóstolos".
Treze cartas são reconhecidas como autenticamente paulinas. A lista exclui uma Epístola
aos Laodicenses e outra aos alexandrinos (que alguns entendem ser a carta aos Hebreus).
Duas epístolas joaninas e Judas são aceitos. Os apocalipses atribuídos a João e a Pedro são
ambos aceitos, mas a lista reconhece que havia alguma oposição à leitura pública desta
última obra. 0 Pastor de Hermas é aceito para leitura particular mas não pública, pelo fato
de ser uma composição bem recente. Todos os escritos gnósticos, marcionitas e
montanistas são rejeitados; um trecho bem estranho reconhece Sabedoria de Salomão como
livro canônico.

Nesta Introdução tem sido visto rapidamente o padrão como estes ou outros Pais citam os
vários livros do Novo Testamento como Escritura; mas esse padrão não estabelece quando
houve o reconhecimento do cânon do Novo Testamento como uma lista encerrada. Quanto
a isso, a fonte mais importante provavelmente é Eusébio de Cesareia (e. 260-340), cujos
pontos de vista são baseados em grande parte nos pais alexandrinos Clemente e Orígenes.
Ao tratar do cânon do Novo Testamento, Eusébio elabora uma classificação tripartite: os
livros reconhecidos (homologoumena), os livros questionados (antilegomena) e os livros
introduzidos pelos hereges em nome dos apóstolos, mas rejeitados por aqueles que Eusébio
considera ortodoxos. Na primeira categoria Eusébio inclui os quatro evangelhos, Atos, 14
epístolas paulinas (Eusébio inclui Hebreus, embora tenha consciência de que a igreja em
1
Esse é, acertadamente, o entendimento de F.F. Bruce, em”New light on the origens of the New Testament
canon” (em New dimensions in New Testament study, editado por Richard N. Longenecker e Merril C.
Tenney, p. 12), em opoisção à obra magistral de H. von Campenhausen, The formation of the Christian Bible
(p.148).
2

Roma não considerava que Hebreus tivesse sido escrita por Paulo), 1 Pedro, 1 João e,
aparentemente (ainda que com certas reservas), Apocalipse. Eusébio subdivide os livros
questionados entre aqueles geralmente aceitos (Tiago, Judas, 2 Pedro, e 2 e 3 João) e os
que não são autênticos (Atos de Paulo, Pastor de Hermas, Apocalipse de Pedro, Epístola
de Barnabé, o Didaquê e, talvez, o Apocalipse).2 A terceira categoria, que abrange escritos
claramente heréticos, inclui evangelhos como os de Pedro e Tomé, atos de André e João, e
escritos semelhantes (H.E. 3.25).

Em outras palavras, os quatro evangelhos, Atos, as 13 epístolas paulinas, 1 Pedro e 1 João


são universalmente aceitos já bem cedo; a maior parte do restante do cânon do Novo
Testamento já está estabelecida à época de Eusébio. O manuscrito Cheltenham, que
acredita-se represente o ponto de vista vigente no norte de África c. 360 d.C., inclui todos
os livros do Novo Testamento, à exceção de Hebreus, Tiago e Judas. A primeira lista que
inclui todos e tão somente os 27 livros do nosso Novo Testamento é a da carta de Páscoa
escrita por Atanásio em 367 à igreja alexandrina - claramente prescritiva e não descritiva.
O sexagésimo cânone do Concílio de Laodiceia (c. 363) inclui todos os 27 livros com
exceção do Apocalipse, mas os indícios do manuscrito sugerem que esse cânone pode ter
sido um acréscimo posterior (embora com toda probabilidade ainda no século V).3 O
Terceiro Concílio de Cartago (397), em que Agostinho esteve presente, reconheceu os 27
livros do Novo Testamento e, depois disso, no Ocidente praticamente não houve quem se
afastasse dessa posição.

A igreja oriental, pelo menos como é representada pela Peshitta Siríaca, omitiu 2 Pedro, 2 e
3 João, Judas e o Apocalipse, que é seguido hoje em dia pela igreja síria que usa a língua
local (em contraste com a igreja síria de fala grega). Por outro lado é importante reconhecer
que não é pequeno o número de pais da igreja oriental que reconheciam exatamente os 27
livros que formam nosso cânon hoje em dia.4 No outro extremo, a igreja etíope reconhece
não apenas os 27 livros aceitos como padrão, mas acrescenta outros oito, dos quais a
maioria trata da ordem eclesiástica.5 Apesar disso Dunbar está certo em sua conclusão:

Assim mesmo é correto dizer que sempre que cristãos em locais específicos
têm se preocupado em conhecer a extensão do Novo Testamento e têm
procurado esse conhecimento num espírito de comunicação aberta com a
igreja em sua dimensão mais ampla, em geral o resultado tem sido uma
unanimidade de opinião. De sorte que é significativo que a reabertura das
questões de canonicidade por parte dos líderes da Reforma protestante levou
a um encolhimento do cânon do Antigo Testamento em contraste com o uso
católico romano, mas não provocou nenhuma mudança parecida na extensão
do cânon do Novo Testamento.6

2
A incerteza quanto ao lugar dado por Eusébio a Apocalipse é resultado de sua própria maneira confusa de se
expressar. Embora o livro de Apocalipse fosse quase universalmente reconhecido como Escritura no século
II, tornou-se objeto de suspeita na igreja oriental. A posição de Eusébio parece variar entre uma aceitação
inicial de Apocalipse como obra do apóstolo João, uma posterior e total rejeição do livro por considerá-lo
falsificação feita pelo herege Cerinto e uma aceitação da condição canônica do livro com uma simultânea
negação de sua autoria apostólica. Veja a anãlise feita por Robert M. Grant, em Eusebiu as church historian
(p. 126-37).
3
Veja Metzger, Canon (p. 210),
4
Veja Westcott, History of the canon (p. 445-8).
5
Veja R.W. Cowley, em “The Biblical canon of the Ethiopian Orthodox Church today” (ÖstK 23, p. 318-23).
6
Dunbar, Biblical canon (p. 317-8). Numa nota de rodapé Dunbar assinala que isso vale até mesmo para
Martinho Lutero, que levantou as indagações mais incisivas sobre os antilegomena (p. 432, nota 117). Com
frequência se afirma que no sumário da tradução da Bílbia por Lutero este separa Hebreus, Tiago, Judas e
3

Aliás, é importante observar que, embora não houvesse nenhum poder eclesiástico como o
papado medieval para impor decisões, assim mesmo a igreja em todo o mundo veio quase
universalmente a aceitar os mesmos 27 livros. A questão não foi tanto a de a igreja ter feito
a seleção do cânon, mas de o cânon ter feito a seleção de si próprio. Frequentemente tem-se
feito essa colocação, e ela merece ser repetida aqui:

O fato de que a igreja como um todo veio substancialmente a reconhecer os


mesmos 27 livros como canônicos é notável quando se lembra que o
resultado não foi imposto. Tudo o que as diversas igrejas espalhadas pelo
Império podiam fazer era darem testemunho de suas próprias experiências
com os documentos e partilharem todo e qualquer conhecimento que
pudessem ter sobre a origem e o caráter desses documentos. Quando se leva
em conta a diversidade de contextos culturais e de orientações quanto aos
aspectos essenciais da fé cristã dentro das igrejas, o fato de terem
concordado quanto a quais livros pertenciam ao Novo Testamento serve
para indicar que essa decisão final não teve origem no nível humano
apenas.7

Quaisquer que tenham sido as pressões que estimularam a igreja a publicar listas canônicas
- perseguição, distância do Jesus histórico, a pressão dos montanistas, o surgimento do
gnosticismo e de outros movimentos que tinham escrituras que deviam ser rejeitadas -
foram basicamente três os critérios que a igreja empregou nos debates para determinar
quais livros eram canônicos:8

1) Uma exigência básica para determinar a canonicidade era a conformidade à "regra de fé”
[ho kanõn tes pisteõs; em latim, regula fidei), conformidade entre o documento e a
ortodoxia, ou seja, a verdade cristã reconhecida como normativa nas igrejas. Embora
muitos estudiosos tenham negado a existência de uma distinção clara entre "ortodoxia" e
"heresia" na época imediatamente posterior aos apóstolos e muito menos no período do
Novo Testamento, é difícil deixar de identificar as raízes dessa distinção em textos tais
como Gálatas 1.8-9; Colossenses 2.8 e ss.; 1 Timóteo 6.3 e ss. e 1 e 2 João. E já em Inácio
ocorre uma considerável preocupação em distinguir o verdadeiro do falso. Essa
preocupação cresceu rapidamente com o tempo.

2) Nos Pais o critério mais comumente mencionado é talvez a apostolicidade, que, como
critério, veio a incluir aqueles que estiveram em contato direto com os apóstolos. Nesse
sentido o evangelho de Marcos era entendido como ligado a Pedro; o de Lucas estava
ligado a Paulo. Quando o Fragmento Muratoriano rejeita a leitura pública do Pastor de
Hermas, assim o faz com a justificativa de que tinha sido escrito muito recentemente e, por
isso, não podia achar um espaço “entre os profetas, cujo número está completo, nem entre
os apóstolos" (aqui "os profetas" é referência aos livros do Antigo Testamento, e "os
apóstolos", aos do Novo). Pelo mesmo motivo, sempre que suspeitam pseudonímia, os Pais
rejeitam a obra.

Apocalipse dos demais livros e deixa de contá-los entre os canônicos (e.g. Meye, em Canon, p. 605); nem
sempre se destaca que esse arranjo dos livros apareceu na edição de 1522 mas, junto com os mais incisivos
juízos negativos sobre esses livros (expressos nos prefácio que ele escreveu), foi abandonado em edições
subsequentes. Apenas sua apreciação negativa de Tiago permaneceu até o fim da sua vida. Veja Paul Althaus,
em Theology of Martin Luther (p. 83-5).
7
Barker/Lane/Micahels (p. 29).
8
Veja Metzer, em Canon (p, 251-4)
4

Por essa razão, como já vimos (cap. 15), o próprio Novo Testamento revela, por princípio,
uma rejeição de cartas pseudônimas (esp. 2 Ts 2.2; 3.17); agora observamos que os Pais
rejeitam universalmente a pseudonímia como categoria literária aceitável para documentos
com a autoridade de Escrituras. Isso deixa quase nenhum espaço para a afirmação
contemporânea bastante comum de que a pseudonímia era uma prática amplamente aceita
no mundo antigo. Que apocalipses pseudônimos eram bastante comuns é demonstrável;
que cartas pseudônimas eram bastante comuns é inteiramente desprovido de prova; que
algum pseudônimo foi conscientemente aceito no cânon do Novo Testamento é
negado pelas evidências.9

3) Um critério quase tão importante é a aceitação disseminada e contínua de um documento


e seu uso por igrejas em toda parte. É assim que Jerônimo insiste em que não importa quem
escreveu Hebreus, pois de qualquer maneira esse livro é a obra de um "escritor da igreja"
(ecclesiastici viri, expressão com que Jerônimo provavelmente quis designar alguém que
escreve de conformidade com a verdade ensinada nas igrejas, uma variação do primeiro
critério) e é de qualquer forma lido constantemente nas igrejas (Epist. 129). Se as igrejas
latinas foram lentas em aceitar Hebreus e as igrejas gregas foram lentas em aceitar
Apocalipse, Jerônimo aceita ambos, em parte porque muitos escritores antigos haviam
aceitado os dois como canônicos.10

A IMPORTÂNCIA DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO


Deve-se reconhecer que esse estudo mais ou menos tradicional do cânon cria o risco de dar
uma impressão falsa, a saber, de que a igreja levou um tempo excessivamente longo para
reconhecer a autoridade dos documentos que constituem o Novo Testamento. Isso é
totalmente falso. O debate sobre o cânon é sobre uma lista encerrada de livros autorizados.
Os próprios livros necessariamente estavam circulando muito antes, sendo que a maioria
deles era oficialmente reconhecida por toda a igreja e todos eles eram aceitos em grandes
segmentos da igreja.11

Desde o princípio houve uma mensagem oficialmente reconhecida. Já no início de sua


pregação Jesus colocou a si próprio como autoridade em pé de igualdade com as Escrituras
do Antigo Testamento, cumprindo-as em certo sentido (Mt 5.17-48, esp. v. 21 e ss.). A
revelação da boa notícia, o evangelho do Filho amado de Deus, esteve tão intimamente
ligada à vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus que os relatos dessa "boa notícia"
vieram a ser denominados evangelhos. Essa boa notícia foi transmitida pelos apóstolos: em
Atos 2 Lucas insiste em que os crentes que constituíam a primeira igreja se dedicavam ao
ensino dos apóstolos. Já em 2 Coríntios 3.14 Paulo escreve que os judeus leem as
Escrituras da antiga aliança.12 Subentendia-se que uma nova aliança havia raiado, a nova
aliança predita por Jeremias (esp. 31.31-34; cf. Hb 8) e anunciada por Jesus nas palavras de
instituição na noite em que foi traído ("este cálice é a nova13 aliança no meu sangue").
Implicitamente Escrituras da nova aliança não estão muito distantes. A epístola aos
Hebreus começa contrastando o período prévio de revelação com aquilo que havia ocorrido
9
Veja ainda a seção “Pseudonímia” (no cap. 15 acima).
10
Talvez deva-se mencionar que os pais não reconhecem uma obra como canônica pelo fato de ser inspirada,
visto que, sem maiores restrições, também aplicam o vocãbulo “isnpiração” e expressões correlatas a livros
não-canônicos (veja Metzger, em Canon [p. 254-7]). No debate teológico contemporâneo “inspiração” é um
construto teológico elaborado a partir de várias estruturas históricas e teológicas importantes e é
costumeiramente objeto de uma definição mais precisa do que no uso bem flexível dos primeiros séculos.
11
Theo Donner, “Some thoughts on the history of the New Testament canon” (Themelios 7, nº 3, p. 23-7).
12
Provavelmente a referência é à Torá e não ao Antigo Testamento como um todo; veja o v. 15.
13
Lucas e Paulo retêm a palavra “nova” (1 Co 11:23-26); Mateus e Marcos omitem-na.
5

"nestes últimos dias", nos quais Deus se revelou por meio de seu Filho (Hb 1.1-3). O centro
e a fonte de toda revelação da nova aliança, reconhecida como oficial, repousa, em última
instância, no Filho. Os apóstolos, no sentido mais restrito do termo,14 eram vistos como
aqueles que mediaram essa revelação para o restante da igreja; mas, exatamente porque
essa revelação estava vinculada ao Jesus que apareceu na história real, um encerramento
implícito foi incorporado nessa afirmação. Não poderia haver uma sequência interminável
de "revelações" sobre Jesus, uma vez que aquelas revelações estavam se distanciando do
Jesus que se apresentou na história real e que foi confessado pelas primeiras testemunhas
oculares e pelos apóstolos.

De maneira que, desde o início, houve a ideia de autoridade extraordinária e de


encerramento implícito. O reconhecimento extracanônico dessa dupla afirmação já ocorria
à época de Inácio. Quando questionado por alguns homens (presumivelmente judeus) que
se recusam a crer em qualquer coisa do evangelho que não se ache em "nossos registros
antigos" (o Antigo Testamento?), Inácio responde: "Mas de minha parte os meus registros
são Jesus Cristo, para mim os registros sagrados são a sua cruz e morte e ressurreição e a fé
que vem por intermédio dele" (Phil. 8.2). Possivelmente a gênese do cânon do Novo
Testamento acha-se no apelo a "evangelho" e "apóstolo",15 sendo que, em última instância,
o próprio Jesus Cristo se encontra por trás de ambos.

Se, então, investigamos a questão de quando e como os vários livros do Novo Testamento
eram interpretados como testemunhas do evangelho com autoridade, em vez de
investigarmos quando e como o cânon foi encerrado, somos forçados a remontar não às
listas encerradas preparadas pelos pais, que tendem a ser posteriores, mas ao uso dos livros
do Novo Testamento (em comparação com outras fontes) nos pais primitivos. Descobrimos
então que até mesmo a maioria dos antilegomena são amplamente citados. Hebreus, por
exemplo, é citado extensamente em 1 Clemente (provavelmente 90-110 d.C.); Tiago é
atestado em 1 Clemente e Hermas (meados do século II). Aliás, mesmo dentro do Novo
Testamento, um texto do Antigo Testamento e uma citação evangélica podem estar lado a
lado e serem introduzidas pela expressão "a Escritura declara" (1 Tm 5.18). Mesmo que
essa citação evangélica não seja de um evangelho escrito, o trecho pelo menos comprova
que um ensino do Senhor Jesus desfruta o mesmo grau de autoridade das Escrituras do
Antigo Testamento. Em 2 Pedro 3.16 as epístolas de Paulo são reconhecidas como
Escrituras.

Três outros elementos de prova são importantes:


1) Nas primeiras etapas da transmissão, antes que se fizessem esforços de oferecer registros
escritos (veja Lc 1. 1-4), a "tradição" era transmitida oralmente. Como frequentemente se
tem admitido,16 no Novo Testamento a palavra "tradição" (paradosis) não traz
necessariamente nuanças negativas. Por exemplo, para Paulo as tradições têm aspectos
negativos quando são meramente humanas ou quando estão totalmente divorciadas do
evangelho (GI 1.14; CI 2.8); deve-se tê-las em alta estima e deve-se ter apego a elas quando
elas são o evangelho transmitido por um mensageiro oficialmente reconhecido (1 Co 11.2;
2 Ts 2.15; 3.6).

14
Veja D.A. Carson, em Showing the spirit (Grand Rapids, Baker, 1987, p. 88-91).
15
Veja Donald Robinson, em Faith´s framework: The structure of New Tesament theology,
16
Veja especialmente F.F. Bruce, em “Scripture in relation to tradition and reason” (em Scripture, tradition,
and reason:A study in the criteria of Christian doctrine, Fs. Richard P.C. Hanson, editado por Richard
Bauckham e Benjamim Drewery, p. 35-64)
6

2) Isso, contudo, não significa que a tradição oral fosse geralmente vista como
intrinsecamente superior aos documentos escritos que logo começaram a circular. A única
passagem que todos citam para justificar a noção de que a tradição oral era tida num grau
mais elevado de estima é uma afirmação de Papias registrada por Eusébio (H.E. 3.39.4),
que, na tradução de Campenhausen, diz: "Parece-me que aquilo que procede de livros não é
tão útil quanto aquilo que começa como uma fala viva e assim continua" .17 Tem-se
alegado convincentemente que Papias acentua a importância da tradição oral para
privilegiar seu comentário sobre as palavras do Senhor, não o conteúdo em si dessas
palavras .18 A menção desdenhosa a livros é provavelmente referência aos escritos de
hereges que, a essa altura, estavam fazendo o mesmo que Papias: comentando as palavras
recebidas do Senhor, mas com base em sua própria perspectiva teológica. A reação de
Papias é, na verdade, de que prefere reter as interpretações tradicionais (orais) das palavras
do Senhor. Afinal, em outro lugar Papias se apressa em negar a existência de qualquer erro
no evangelho de Marcos, muito embora aquele evangelho não seja uma apresentação
cronológica: essa atitude com certeza seria estranha caso Papias tivesse uma opinião
negativa de todos os registros escritos.

3) Se indagarmos quando e como foram feitas as primeiras coleções de pelo menos alguns
dos livros do Novo Testamento, a resposta direta é que não sabemos. Sabemos
seguramente que no máximo até meados do século II os quatro evangelhos canônicos
estavam circulando juntos na forma do evangelho quádruplo "segundo Mateus", "segundo
Marcos" e assim por diante. Provavelmente ainda antes as epístolas paulinas estavam em
ampla circulação. O processo de promover a circulação desses materiais recebeu, sem
dúvida alguma, o impulso do amplo uso, pelos cristãos, de livros na forma de códices. Até
aquele tempo escritos de valor eram normalmente publicados em rolos; a adoção do códice
(algo mais ou menos parecido com os livros de hoje, em que folhas avulsas são costuradas
ou coladas numa borda) não somente tornou os livros mais fáceis de serem usados, mas
também tornou mais fácil publicar vários e diferentes livros juntos num só volume.19

É certo que Paulo escreveu outras cartas que não chegaram até nós (veja 1 Co 5.9; CI 4.16),
mas os princípios de seleção e o grupo ou grupos de pessoas que fez a coleção não foram
identificados em nenhuma de nossas fontes. Apesar disso, com base em algumas
inferências cuidadosamente estabelecidas, é plenamente plausível supor que a coleção foi
reunida por pessoas ligadas a Paulo, tais como Timóteo, logo após o martírio de Paulo.20

Finalmente, deve-se rapidamente assinalar quatro perspectivas contemporâneas da


importância do cânon.

1) Alguns (e.g., Koester) têm sustentado que se deve abolir a noção de um cânon. Dizem
que não há diferenças qualitativas entre os livros do Novo Testamento e outros textos
cristãos antigos; todas as fontes que derramem luz sobre o movimento cristão primitivo
devem ser tratadas de igual maneira, de forma que, digamos, Tiago, não deve ser tratado
como uma fonte que merece mais respeito ou tem mais autoridade do que, digamos,
Clemente de Roma.

17
Veja a análise que Campenhausen faz em”Formation” (p. 130 e ss.) Semelhantemente, veja Bruce, em
“Scripture” )p. 37-38).
18
Essa linha de interpretação parece ter tido origem em J.B. Lightfoot, em Essays on the work entitled
Supernatural religion (p. 156 e ss.).
19
Veja Moule (p. 239-41)
20
Veja Guthrie (p. 986-1000).
7

Fica claro que essa teoria só se torna viável caso se rejeite não somente a noção de cânon
como uma lista encerrada de livros oficialmente reconhecidos, mas também a noção de
Escrituras. Essa teoria também é reforçada pela prontidão em abandonar rapidamente a
herança estabelecida da igreja e, especialmente, de ideias críticas que consideram diversos
livros canônicos como escritos tardios e pseudônimos, concluídos depois de várias outras
fontes cristãs primitivas que chegaram até nós.

2) No momento ocorre um debate complexo sobre um possível "cânon dentro do cânon".


Todos nós tendemos a nos apoiar mais em algumas partes do cânon do que em outras - da
mesma forma como Lutero e Calvino destacaram mais Romanos e Gálatas do que,
digamos, 1 Pedro ou Apocalipse. Então por que não aceitar a realidade dos fatos e
reconhecer que grupos diferentes têm a liberdade, talvez até mesmo a obrigação, de definir
certas partes do cânon como inquestionáveis para eles? Uma forma mais atenuada dessa
teoria propõe que devemos pensar no cânon como uma espiral, na qual os elementos
exteriores (Tiago, 2 Pedro) vão gradualmente abrindo espaço para o núcleo básico, o
âmago do cristianismo autêntico (João, Romanos).21

Certamente, no entanto, as noções de Escritura e de cânon proíbem tais abordagens. É


verdade que pregadores podem acentuar mais uma parte do que outra, julgando-a ter uma
maior relevância imediata aos contextos em que vivem do que outras. Algumas partes do
Novo Testamento podem exercer continuamente uma maior influência porque são mais
longas e abrangentes. Mas deixar que escolhas pastorais pragmáticas e detalhes da
composição impliquem na obrigação de tornar relativo o cânon é negar que existe um
cânon que deve permanecer como o teste de nossas escolhas pastorais.

3) As vezes a teologia católica romana tradicional tem falado do papel da igreja na


formação (ou estabelecimento) do cânon, e isto, por sua vez, tem dado origem a um ponto
de vista sobre a autoridade da igreja bem diferente do encontrado no protestantismo. Este
situa nas Escrituras o depósito do evangelho; o catolicismo conservador situa na igreja o
depósito da fé, do qual as Escrituras são apenas um dos componentes.

Alguns dos debates resultantes desses pontos de vista estão-se dissipando hoje em dia, pois
tanto o protestantismo quanto o catolicismo romano se encontram numa situação de imensa
mutação. Mas alguns dos problemas ligados à posição protestante são, em grande parte,
diminuídos caso se mantenha cuidadosamente a distinção aqui defendida entre Escritura e
cânon. O papel da igreja não é estabelecer quais livros constituem Escrituras. Em vez disso,
os livros bíblicos impõem-se por si mediante amplo uso e autoridade, e o papel da igreja é
reconhecer que somente certos livros - e não outros - exigem a lealdade e obediência da
igreja, e isso tem o resultado de constituir um cânon, uma lista encerrada de Escrituras
reconhecidas oficialmente.

4) Tem havido considerável interesse na denominada crítica do cânon.


Conquanto esse ramo de estudo apresente muitas formas, 22 a sua pressuposição central é
que, não importando quais fontes e pressões tenham estado presentes na elaboração das
Escrituras conforme as conhecemos, o texto na forma em que se encontra representa a
maneira de a igreja lidar com suas próprias tradições, inclusive as interpretações peculiares

21
Esse é o entendimento de C.K. Barret, em “The centre of the New testament and the canon” (em Die Mitte
des Neuen Testaments: Einheit und Vielfalt neutestamentlicher Theologie, Fs. Eduard Schweizer, editado por
Ulrich Luz e Hans Weder, p. 5-21).
22
E.G., Childs; James A. Sanders, From sacred story to sacred text.
8

estabelecidas por conexões intrabíblicas, e estas devem ser aceitas como normativas para a
igreja.

Há muitas coisas proveitosas nesse movimento. Ele representa um esforço de ler a Bíblia
como um todo e de ler livros bíblicos como produtos acabados. Na prática, contudo, alguns
defensores da crítica do cânon tendem a defender verdades abstratas que podem ser
inferidas do texto como um todo, mas rejeitam numerosas afirmações bíblicas que têm
referentes históricos. Essa inconsistência cria a impressão negativa de certo tipo de
fideísmo cru: aceitar o cânon onde ele não pode ser testado e reservar o direito de julgá-lo
onde pode ser testado. Essa forma de fideísmo faz com que a crítica do cânon, como é
frequentemente praticada (pelo menos em alguns círculos), seja intrinsecamente instável.

Em suma, o fato de que Deus é um Deus que se revela, fala e é fiel à aliança, tendo se
revelado de modo supremo num personagem histórico, o Messias Jesus, estabelece a
necessidade do cânon e, implicitamente, o seu encerramento. A noção de cânon proíbe
todas as tentativas conscientes de escolher apenas uma parte do cânon como o padrão de
governo da igreja cristã: isso seria descanonizar o cânon, uma contradição de termos. Pelo
fato de o cânon ser constituído de livros cuja autoridade, em última instância, brota da
graciosa auto-revelação de Deus, é melhor falar em reconhecer o cânon do que em
estabelecê-lo. E a teologia canônica não pode ao mesmo tempo ser correta e estar
divorciada de questões difíceis que vinculam a revelação de Deus à história concreta.

(Extraído do livro Introdução ao Novo Testamento, de Donald Carson, Douglas J. Moo e


Leon Morris, Vida Nova, 1997, pp. 547-556. Para uso interno apenas)

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