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ESPIRAL DA INAÇÃO

Meninos de ascendência indígena estão brincando com um cachorro em uma


estrada de terra. Uma mulher da classe média argentina está com seus parentes
conversando sobre assuntos prosaicos de uma vida em família. Ela se despede, liga
seu carro, na rádio toca uma música pop estadunidense, está no caminho para casa.
A câmera acompanha dentro do carro, em plano fechado e de perfil, o trajeto banal.
Silêncio e música na rádio. Ela se abaixa para pegar algo que caiu no chão do carro.
Choque. Ela atropela algo. Cabeça bate no para-brisa. Acidente. Ela tem a opção de
parar, descer do carro e averiguar o que atropelou. Porém, ela opta em seguir seu
caminho.
É assim que Lucrecia Martel, em “A Mulher Sem Cabeça” (2008), apresenta
nas cenas iniciais um evento traumático que permanece latente em toda a obra. Esse
evento se manifesta tanto no corpo da personagem, quanto na forma fílmica - em
seu jogo do dito e o não dito; do audível e inaudível; do ver e não ver; do ambiente
interno do carro e o externo do mundo.
A protagonista Verônica, que por um acontecimento contingente, isto é, um
evento que poderia não ter acontecido, mas aconteceu, se vê diante de um desafio
existencial após ter atropelado, segundo sua memória então turva, um cachorro. Mais
adiante, o trauma provocado se intensifica pela possibilidade de Verônica ter
atropelado e matado não um cachorro, mas um menino de ascendência indígena.
Em torno deste evento traumático, se traça uma irradiação circular cujo centro
é a protagonista pós-trauma. A figura que se cria, até certo ponto filme, é uma espiral.
Uma espiral da inação, na qual a personagem é incapaz de enfrentar o sentido do
evento.

Girando sobre si mesma, Verônica é uma figura atônita rodeada por signos que
ativam uma experiência que ficou incerta no momento anterior, o acidente. Seu
contato com o mundo é oprimido por essa interrogação - que ela quer esquecer e
expulsar da sua consciência, porém tudo aquilo que é negado simbolicamente retorna
simbolicamente, como nos diz a psicanálise.
Um dos exemplos, é a cena que situa o espectador com a possibilidade de
Verônica ter atropelado e matado um menino. A protagonista vai ao clube com sua
família, seus sobrinhos vão jogar futebol enquanto ela caminha na beira do campo
com sua irmã. Ela dá um passo com relação à atmosfera inerte que apresentava até
então, o sol jorra sua luz sobre o corpo de Verônica, que caminha até que. Som.
Choque. Corta para um adolescente de ascendência indígena caído no chão, que se
machucou jogando futebol. Após essa menção imagética do evento, Verônica vai ao
banheiro, chora angustiada. Em outra oportunidade, Verônica oferece carona à uma
amiga da sobrinha. No trajeto, e após receber a notícia de que bombeiros estavam
procurando o corpo de um menino, ela evita passar pelo caminho onde estão sendo
realizadas as buscas e pega um caminho mais longo. É um dos exemplos que
sustentamos aqui na relação entre o evento e a personagem, que recalca.
Neste texto, mencionar a ascendência indígena do menino possivelmente
atropelado e morto não é fortuito. É um marcador social importante para se entender
a relação de classe que se estabelece no filme. Verônica e a classe média argentina
se relacionam com a classe econômica e socialmente inferior do vilarejo ao redor de
Tucumán por meio da exploração do trabalho. São empregados, adolescentes que
fazem bicos carregando vasos de planta e obreiros.
O filme pode ser encarado nessa disparidade entres as classes, que envolve
uma série de fatores, destacamos aqui o privilégio jurídico. Verônica é amparada por
seu primo e seu marido, que utilizam de influências para apagar as provas que
incriminavam Verônica. Nessa altura do filme, a personagem esboça sair da espiral
da inação, buscando os vestígios do evento. Porém, este foi apagado materialmente.

A protagonista, então, retoma sua vida cotidiana - prestando atendimento


odontológico em uma escola, pinta o cabelo, antes loiro, para preto. No final do filme,
o tormento é cessado por ora e Verônica retorna à vida da classe média. A câmera,
mediada por um vidro, filma de forma turva esse ambiente, uma redoma de vidro, na
qual as pessoas presentes vivem uma hipocrisia. Toca uma música pop
estadunidense.
Logo, a espiral da inação, na qual Verônica girava sobre si mesma, toma um
contorno diferente. São reticências subjetivas que permitem a retomada da relação
entre a personagem e o mundo. O recalque foi bem sucedido.

Estudante: João Scarano Guerra


Professor: Pedro Vaz Perez
Matéria: Análise e Crítica de Filmes.

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