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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FCH124 – ANTROPOLOGIA I
Semestre 2021-2
Direito
Amanda Bonfim Carvalho

O filme ‘’A Noite do Fogo’’ tem como protagonista a personagem Ana, que vive com
sua mãe e não consegue ter contato com seu pai. Ela se apoia nas suas amigas e suas amigas se
apoiam nela, em meio ao caos e as dúvidas incessantes que existem acerca da realidade que
vivem. Ocorre que a povoação de Ana vive sob os mandos e desmandos dos cartéis criminosos,
o que causa medo, principalmente às mulheres, que são o que restou dessa povoação, tendo em
vista que os homens geralmente abandonam suas famílias. Com isso, as mulheres vivem
sozinhas com seus filhos e filhas, os primeiros são submetidos a trabalhos infantis para
contribuir na renda familiar e as segundas vivem em constante terror, podendo ser raptadas
pelos membros dos cartéis que dominam o local.
Certamente, o destino das mulheres nessa sociedade é fadado a incerteza. A qualquer
momento podem ser levadas e submetidas a tenebrosas situações, como a violação sexual. Em
virtude disso, as crianças, desde cedo, são ensinadas a não seguirem o esteriótipo de
feminilidade, ou seja: cabelos longos, roupas sensuais e maquiagem. Isso não é motivado por
uma mudança na mentalidade social ou por uma saída à heteronormatividade, mas sim, numa
tentativa de deixarem as meninas mais desinteressantes na percepção dos dominadores e para
confundi-los quando buscarem uma jovem e deixar sua família sem notícias. Provavelmente,
levando-as, iriam estuprar essas jovens, agredir elas e submeterem à escravidão doméstica. E,
dependendo, é claro, matá-las.
No capítulo ‘’do etnocídio’’, da obra de Pierre Clastres, é retratada a diferença entre
genocídio e etnocídio. Em dado momento ele diz: ‘’O delito juridicamente definido como
genocídio tem sua raiz, portanto, no racismo, é o produto lógico e, no limite necessário dele:
um racismo que se desenvolve livremente’’. O termo genocídio, segundo o autor, remete à
ideia de raça à vontade de extermínio de uma minoria racial, diferente do etnocídio, que não se
refere a destruição física dos homens, mas a destruição de sua cultura. Então, pontua o autor:
‘’O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos
diferentes daqueles que empreendem essa destruição’’.
Apesar de não ser evidenciado com clareza no filme quem são os membros dos cartéis,
sabemos que o narcotráfico da América Latina compreende diferentes países, diferentes
culturas. Assim, não há como saber se os que ali estão, nos carros altos pretos, causando o
terror naquela povoação é também do México ou de outra região do continente. Fatídico é que
não fazem parte daquela povoação, no alto de uma montanha no México e que antes da sua
dominação, certamente tinha um estilo de vida diferente, sem medo, terror e incertezas. Se o
etnocídio é a supressão, seja feita de uma forma autoritária ou não, das diferenças socio-
culturais, é a morte espiritual de um povo, é a destruição sistemática do modo de vida, será isso
que ocorre naquela região?
Sinceramente, não sei se seria o termo perfeito, mas, com certeza, não seria o termo
etnocídio tão distante da realidade desse povoado. Os carteis pressionam a população, cobram
dinheiro dos professores para permitir que eles trabalhassem (seria essa uma possível forma de
impedir a obtenção de conhecimento, por conseguinte, consciência social e resistências),
realizam ataques armados, sem se importarem se matarão inocentes, apenas para expressar a
sua força e poder. Isso causa medo, pessoas fugindo, outras desaparecem de forma suspeita,
até que resta mais mulheres nessa sociedade. Mulheres essas que parecem carregar um selo de
permissão de violação, tendo em vista que os dominadores se acham no direito de fazer o que
bem entender com elas, invadirem suas casas, estuprá-las e raptarem suas filhas.
Isso tudo não é romper com um modo de vida? Não é matar em espírito os habitantes,
que simplesmente não tem o que fazer, senão a obedecer aos seus opressores? Em especial, as
mulheres?! Se sim, de fato, seja lá a identidade e nacionalidade dos membros dessas
organizações criminosas, eles são etnocidas. Eles destroem a realidade feminina. Eles a fazem
ter que cortar seus amados cabelos para serem menos ‘’sensuais’’, mesmo sendo apenas
crianças. Eles suprimem a autoestima e a vaidade delas e no lugar põe o medo da violência
física e mental. Eles afastam os seus pais, seus tios, seja lá quais membros do sexo masculino
seja importante para as mulheres.
É perfeitamente possível fazer uma relação do que ocorre no filme com as invasões
europeias no continente americano. As mulheres ameríndias deviam sofrer receio semelhante
aos que as mulheres desse filme sofrem. Pierre Clastres diz que na América do Sul, os
matadores dos índios veem o outro como um simples animal. Não seria assim que esses
criminosos veem as jovens do povoado mexicano? Como um animal, ou melhor, um objeto
que tem data para começar a ser utilizado, por isso batem na porta de suas mães pedindo que
entreguem-nas. E se isso as mães não fizerem, devem sair fugidas temendo represálias violentas
no futuro. Resta a esses povos a resistência, a resistência que os indígenas tiveram ao serem
alvos do etnocentrismo disfarçado de missão cristã. A resistência que Ana e as outras mulheres
também possuem, ao serem alvos desses usurpadores retratados no filme.
Nesse sentido, retirar a realidade normal e suprimir os sonhos dos habitantes desse
povoado poderia configurar etnocídio. Eles podem, por enquanto, não matarem todos
(genocídio), mas matam espiritualmente, como vemos o cansaço da mãe de Ana em relação a
tudo que vem ocorrendo. Em certos momentos nós pensamos até se ela não vai se movimentar,
resistir, porque ela parece se contentar, sendo que, na verdade, está cansada, pois, arrancaram
dela o seu modo de viver. Contudo, ela resiste, sim, resiste. Ela resiste quando se coloca na
frente de qualquer pessoa para defender a única pessoa que tem: sua filha. Ela resiste quando
larga tudo para trás para não permitir que façam mal a ela. Ela resiste quando continua
protegendo a menina, ainda que a revolta no seu coração adolescente dificulte a proteção
maternal.
Por fim, o pior de tudo é saber que se podemos chamar o que ocorre no filme ‘’A Noite
do Fogo’’ de etnocídio, isso ocorre bem perto de nós. Especificamente na Amazônia, onde
crianças, adolescentes e mulheres adultas, na tribo Yanomami, vêm sendo violentadas,
assediadas, embriagadas por garimpeiros ilegais, que oferecem comida. Oferecem comida para
um povo que não mais tem porque destroem os seus lares com incêndios e desmatamentos.
Destroem seu alimento e os entregam como moeda de troca para violá-los e explorá-los.
Mulheres estão morrendo contraindo doenças desses garimpeiros. Seria isso genocídio ou
etnocídio, tendo em vista que as sobreviventes podem estar vivas fisicamente, mas mortas
espiritualmente, por serem aliciadas em troca de alimento?

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