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ESTAMIRA

Marcos Bruno Santana

Uma das principais características da humanidade é a capacidade de


adaptação. Todos precisam se adaptar, seja num bairro violento onde a morte e
miséria estão expostas diariamente, seja em países em guerra, seja após tragédias
naturais ou pandemias, por exemplo. O que no primeiro momento nos toca, logo dá
lugar ao conformismo, afinal o mundo precisa continuar caminhando, mesmo que
seja atropelando algo sensível e tocante a todos. E como tornar isso mais aceitável
e menos doloroso? Afastando do alcance dos olhos, seja “acomodando” num
manicômio, numa prisão, no lixão, desligando o rádio, mudando o programa da TV,
ou até fingindo não está vendo, mesmo quando a realidade transborda e chega às
cidades, expondo a triste realidade nos sinais das principais avenidas do Brasil.
Como muitos trabalhadores brasileiro, Estamira sai de casa cedo e vai para o
lixão de Jardim Gramacho, localizado em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Ao
chegar, coloca o seu macacão e se transforma, tanto fisicamente como
psicologicamente. Uma transformação necessária, como que se ao trocar de roupa
ela se transmutasse num personagem inabalável para suportar a situação
desumana a que está exposta, ou seja, em meio aos dejetos, sobras, animais
mortos e vivos, ao cheiro forte e a todo tipo de doença, que invadem e agridem
todos os nossos sentidos.
Numa obra documental impactante, o cineasta Marcos Prado nos traz a
realidade dolorosa de quem é obrigado a viver das sobras e do que a sociedade
quer afastar dos olhos. E é neste lugar, dentre tantos outros reservados aos
invisíveis, que nos é apresentada a figura de Estamira, uma senhora de 63 anos,
apresentando distúrbios mentais e carregando diversos traumas, porém com uma
missão: cobrar e revelar a verdade. Em suas próprias palavras, no documentário
Estamira (Prado, Marcos. Documentário Estamira, 2005, 5”01):

“A minha missão, além d‘eu ser Estamira, é revelar a verdade,


somente a verdade. Seja capturar a mentira e tacar na cara,
ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os
inocentes... não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao
contrário, esperto ao contrário que tem, mas inocente não tem
não. Vocês é comum, eu não sou comum. Só o formato que é
comum. Vou explicar pra vocês tudinho agora, pro mundo
inteiro...”
Estamira nos releva essa verdade não através de palavras, estas muitas
vezes desconexas, mas sim através da exposição da sua vida e a de tantos outros
excluídos com o intuito de alertar sobre a vida real. Suas revelações nos fazem
refletir sobre temas que transitam entre a religião, saúde mental e o desperdício da
cidade grande. Outro tema importante abordado no documentário, é o tratamento
dispensado aos pacientes com problemas mentais, o que me fez lembrar do livro
“Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex. Colônia, Hospital psiquiátrico de
Barbacena, Minas Gerais, recebia diariamente não apenas pacientes
diagnosticados com doença mental, mas mães solteiras, crianças problemáticas,
homossexuais, mulheres grávidas de homens casados, mendigos, ou seja, os
excluídos da sociedade. Pessoas abandonadas e maltratadas com o aval do Estado
e da sociedade. Não me parece muito diferente do que acontece em tantos outros
lixões espalhados pelo Brasil (Arbex. Daniela. Holocausto Brasileiro. 2013, p.27):

“Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais haviam


perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado
inadequado para um Brasil, à época, dominado por coronéis e
latifundiários. Esposas trocadas por amantes acabavam sendo
silenciadas pela internação no Colônia. Havia também
prostitutas, a maioria vinda de São João Del-rei, enviadas para
o pavilhão feminino Arthur Bernardes após cortarem com gilete
os homens que haviam se deitado, mas que se recusaram a
pagar pelo programa”.
.

Já nos últimos momentos do documentário, Estamira reconhece que a sua


condição psicológica não tem cura e, num jogo de cena, Marcos Prado mostra uma
pia aberta, sem o sifão, sem contenção, fazendo uma referência a uma vida
descontrolada, o que é retomado logo depois na cena da praia, com as ondas
carregando-a sem a sua vontade. Ao fim, cansada depois de uma luta implacável
contra a maré e sentada na areia, ela encara a câmera mas não fala nada, porém
seus olhos parecem nos dizer: olhem para mim, eu existo.
O documentário trouxe algo muito além de um diálogo sem sentido ou cheio
de delírios. Indiretamente, tratou de assuntos como preconceito, política,
desperdício e exclusão social. Gramacho, um lugar onde, infelizmente, tornou-se a
morada de uma nação de excluídos: desempregados, idosos, assim como os loucos
e os miseráveis, nos deixando a impressão de ali está fixada mais uma “Colônia”
dentre tantas outras no Brasil.

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