Uma das principais características da humanidade é a capacidade de
adaptação. Todos precisam se adaptar, seja num bairro violento onde a morte e miséria estão expostas diariamente, seja em países em guerra, seja após tragédias naturais ou pandemias, por exemplo. O que no primeiro momento nos toca, logo dá lugar ao conformismo, afinal o mundo precisa continuar caminhando, mesmo que seja atropelando algo sensível e tocante a todos. E como tornar isso mais aceitável e menos doloroso? Afastando do alcance dos olhos, seja “acomodando” num manicômio, numa prisão, no lixão, desligando o rádio, mudando o programa da TV, ou até fingindo não está vendo, mesmo quando a realidade transborda e chega às cidades, expondo a triste realidade nos sinais das principais avenidas do Brasil. Como muitos trabalhadores brasileiro, Estamira sai de casa cedo e vai para o lixão de Jardim Gramacho, localizado em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Ao chegar, coloca o seu macacão e se transforma, tanto fisicamente como psicologicamente. Uma transformação necessária, como que se ao trocar de roupa ela se transmutasse num personagem inabalável para suportar a situação desumana a que está exposta, ou seja, em meio aos dejetos, sobras, animais mortos e vivos, ao cheiro forte e a todo tipo de doença, que invadem e agridem todos os nossos sentidos. Numa obra documental impactante, o cineasta Marcos Prado nos traz a realidade dolorosa de quem é obrigado a viver das sobras e do que a sociedade quer afastar dos olhos. E é neste lugar, dentre tantos outros reservados aos invisíveis, que nos é apresentada a figura de Estamira, uma senhora de 63 anos, apresentando distúrbios mentais e carregando diversos traumas, porém com uma missão: cobrar e revelar a verdade. Em suas próprias palavras, no documentário Estamira (Prado, Marcos. Documentário Estamira, 2005, 5”01):
“A minha missão, além d‘eu ser Estamira, é revelar a verdade,
somente a verdade. Seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes... não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário que tem, mas inocente não tem não. Vocês é comum, eu não sou comum. Só o formato que é comum. Vou explicar pra vocês tudinho agora, pro mundo inteiro...” Estamira nos releva essa verdade não através de palavras, estas muitas vezes desconexas, mas sim através da exposição da sua vida e a de tantos outros excluídos com o intuito de alertar sobre a vida real. Suas revelações nos fazem refletir sobre temas que transitam entre a religião, saúde mental e o desperdício da cidade grande. Outro tema importante abordado no documentário, é o tratamento dispensado aos pacientes com problemas mentais, o que me fez lembrar do livro “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex. Colônia, Hospital psiquiátrico de Barbacena, Minas Gerais, recebia diariamente não apenas pacientes diagnosticados com doença mental, mas mães solteiras, crianças problemáticas, homossexuais, mulheres grávidas de homens casados, mendigos, ou seja, os excluídos da sociedade. Pessoas abandonadas e maltratadas com o aval do Estado e da sociedade. Não me parece muito diferente do que acontece em tantos outros lixões espalhados pelo Brasil (Arbex. Daniela. Holocausto Brasileiro. 2013, p.27):
“Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais haviam
perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado para um Brasil, à época, dominado por coronéis e latifundiários. Esposas trocadas por amantes acabavam sendo silenciadas pela internação no Colônia. Havia também prostitutas, a maioria vinda de São João Del-rei, enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes após cortarem com gilete os homens que haviam se deitado, mas que se recusaram a pagar pelo programa”. .
Já nos últimos momentos do documentário, Estamira reconhece que a sua
condição psicológica não tem cura e, num jogo de cena, Marcos Prado mostra uma pia aberta, sem o sifão, sem contenção, fazendo uma referência a uma vida descontrolada, o que é retomado logo depois na cena da praia, com as ondas carregando-a sem a sua vontade. Ao fim, cansada depois de uma luta implacável contra a maré e sentada na areia, ela encara a câmera mas não fala nada, porém seus olhos parecem nos dizer: olhem para mim, eu existo. O documentário trouxe algo muito além de um diálogo sem sentido ou cheio de delírios. Indiretamente, tratou de assuntos como preconceito, política, desperdício e exclusão social. Gramacho, um lugar onde, infelizmente, tornou-se a morada de uma nação de excluídos: desempregados, idosos, assim como os loucos e os miseráveis, nos deixando a impressão de ali está fixada mais uma “Colônia” dentre tantas outras no Brasil.