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Literatura Portuguesa IV

Emilly Almeida

Cegos que, vendo, não veem: como o Ensaio Sobre a Cegueira pode ser tão atual?

Resumo: Este ensaio tem como objetivo estabelecer uma relação entre a obra Ensaio Sobre a
Cegueira (1995) e os nossos dias, analisando as atitudes de toda uma sociedade.

Introdução
O escritor português José Saramago, em 1995, escreveu aquele que se tornaria um dos
maiores sucessos de sua carreira, o livro Ensaio Sobre a Cegueira. Tão grande foi o reconhecimento
de seu trabalho que em 1998, Saramago se tornou o primeiro escritor português a receber um
prêmio Nobel.

A trama se passa em uma cidade sem nome, onde ocorre um surto de cegueira, até então
inexplicável, que assusta toda a população. Um homem, dirigindo tranquilamente em direção a sua
casa, para no meio do trânsito por ter ficado cego. Alguns motoristas impacientes buzinam, gritam e
mandam que ele saia do meio da rua, até que um homem muito prestativo oferece para levá-lo até
sua casa. Mais tarde, esse pobre cego vai perceber que o homem que o ajudou não era tão bom
quanto parecia, pois depois de deixá-lo em casa, roubou seu carro. Quando sua esposa chega em
casa e vê o mal que acometeu o marido, decide levá-lo imediatamente a um oftalmologista. Depois
de muito examiná-lo, o médico percebe que não há nada de errado com os olhos do rapaz, e que a
cegueira, que não é escura como as outras, mas descrita pelo cego como um “mar de leite” não tem
uma razão aparente. Estudando mais a fundo esse caso, o médico de olhos se sente frustrado por
não conseguir achar uma explicação plausível para o que aconteceu ao homem que cegara assim de
repente, e quando menos espera, a surpresa: também está cego. As autoridades são avisadas sobre
um possível surto de cegueira, mas a princípio não se importam, acham que não há com o que se
preocupar.
É interessante ressaltar a falta de nomes próprios no decorrer da trama. A cidade não é a
única a não receber um nome, já que isso também ocorre com todos os personagens. O primeiro
cego, o ladrão, o médico, a mulher do médico, a rapariga de óculos escuros e o rapazinho estrábico
são apenas alguns dos personagens que, sem ter seus nomes revelados, são apresentados ao leitor
por alguma característica marcante. A forma com que Saramago introduz a história ao leitor causa
certo estranhamento, não apenas por sua escrita peculiar, mas porque o leitor sente que aquela
cidade sem nome pode ser qualquer cidade, inclusive a sua própria; aquelas pessoas sem nomes
podem ser ele, seus familiares e amigos.
Hoje enfrentamos um mal muito mais letal mas tão inexplicável quanto a cegueira criada por
Saramago: a Covid-19. Chegamos a um momento crítico em nosso país, onde os mais de 165 mil
mortos por causa dessa doença se tornaram exatamente como os personagens de Saramago: pessoas
sem nome. O autor ao menos as atribui características, sejam físicas ou relacionadas as suas
profissões, enquanto aqui, no mundo real, essas pessoas se tornaram apenas números. Números de
uma triste estatística, que não parece mudar.
No Ensaio Sobre a Cegueira, o governo decide agir quando percebe que muitos outros casos
como o do primeiro cego e o do médico estão surgindo, então coloca todos os cegos numa ala de
um antigo manicômio, enquanto as pessoas que tiveram contato com algum deles ficam em outra
área, esperando pela cegueira. A mulher do médico, por algum motivo, não fica cega, mas mente
que sim para poder ficar junto ao marido. Além de ajudá-lo, tenta fazer o mesmo pelos outros cegos
da ala em que se encontra. É bondosa e se preocupa com todos. É como a calmaria em meio ao caos
do manicômio.
Essa quarentena num local específico e completamente isolado nos remete diretamente ao
início da pandemia no Brasil, quando um grupo de brasileiros trazidos da China ficou “hospedado”
no hotel da Base Aérea de Anápolis, também isolados do resto do mundo.
Diariamente, no manicômio, um anúncio era feito pelos alto-falantes para dar avisos aos
recém-chegados nas camaratas. Certa parte do anúncio dizia:
“O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a quem
esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem de ser. As
responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se encontram
representará. acima de quaisquer outras considerações pessoais, um acto de solidariedade para com o
resto da comunidade nacional.”

O governo promete dar a essas pessoas todo o apoio necessário, mas o que fazem é
desumano. Jogam os cegos lá dentro, a mercê da própria sorte. Se ficarem doentes? Nada de
remédios. Se morrerem? Que enterrem uns aos outros. Até a comida era extremamente racionada a
ponto de não satisfazer a nenhum deles. Uma prova de que aquelas vidas não valiam nada para as
autoridades é que, quando soldados foram deixar as caixas de comida dentro do manicômio, alguns
dos cegos se aproximaram, e sem a menor piedade foram mortos a queima roupa.
“(…) avançaram até ao limiar da porta e despejaram os carregadores. Os cegos começaram a cair uns
sobre os outros, caindo recebiam ainda no corpo balas que já eram um puro desperdício de munição,
foi tudo tão incrivelmente lento, um corpo, outro corpo, parecia que nunca mais acabavam de cair,
como às vezes se vê nos filmes e na televisão.”
Matar os cegos não era algo difícil para os soldados, já que um dos sargentos já tinha
mencionado que “morrendo o bicho, acabava-se a peçonha”, ou seja, viam na morte daquelas
pessoas a cura para o mal branco.
“A vontade dos soldados era apontar as armas e fuzilar deliberadamente, friamente, aqueles imbecis
(…) o problema dos cegos só poderia ser resolvido pela liquidação física de todos eles (…) da mesma
maneira que se corta um membro gangrenado para salvar a vida do corpo.”

Durante a pandemia, os governos por todo o mundo também prometeram apoiar seu povo e
ajudá-lo a passar por essa situação da forma mais tranquila possível, mas sabemos que na prática
não foi bem assim. Era cada um por si.
A maldade no meio de uma comunidade também se fez presente na obra analisada. Todos
passavam pela mesma situação – estavam cegos – mas alguns deles era cruéis a ponto de pegar toda
a comida levada pelo exército e dizer que os outros cegos só a comeriam se pagassem. Eles
tentaram pedir a ajuda dos soldados para resolver a situação, mas de nada adiantou.
“ Ajudem-nos, que estes estão a querer roubar-nos a comida. Os soldados fizeram de conta que não
tinham ouvido, as ordens que o sargento recebera de um capitão eram claríssimas, Se eles se matarem
uns aos outros, melhor, menos ficam.”

É triste notar que mesmo naquela situação difícil onde todos estavam sofrendo, existia uma
pequena parcela da comunidade que se aproveitava dos outros. Por que os outros cegos não agiam?
Por que não se rebelavam contra essa minoria maldosa? Talvez por medo, ou quem sabe por
acreditar que não valeria a pena, não teria resultado. É o que acontece hoje. A população é
constantemente ‘assaltada’ quando chega a um supermercado e vê que o preço dos alimentos
básicos subiu. Por que não fazem nada? Por que não se rebelam contra os responsáveis? Muito
provavelmente o motivo é o mesmo que levava os cegos a concordarem passivamente com tudo.
Aqui, no mundo real, as pessoas são tão cegas quanto as personagens que estavam naquele hospício,
mas diferente delas, são cegas porque preferem não ver o que está diante dos seus olhos.
Aquele grupo de cegos malvados, depois de tirar todos os pertences dos outros cegos em
troca de comida, passaram a pedir mulheres. Assim, com a maior frieza e tranquilidade, como se
aquilo não envolvesse o corpo e sentimentos de outras pessoas, eles queriam que as mulheres se
deitassem com eles em troca de comida para toda a camarata. Todas as mulheres foram violentadas,
física e mentalmente, e uma delas morreu por conta disso.
Infelizmente isso é muito comum em nossos dias. Diariamente, cerca de 180 mulheres são
estupradas no Brasil. Algumas, assim como as mulheres daquele manicômio, encontram como única
‘saída’ trocar seus corpos por dinheiro ou por comida.
Uma das coisas mais chocantes dessa história é que as autoridades os mantém ali até
encontrarem uma cura, mas a verdade é que não estão nem mesmo procurando por ela.
Tempos depois a cidade é totalmente tomada por essa praga. Sem autoridades, sem polícia,
sem leis, um pequeno grupo de cegos consegue escapar do manicômio pensando que a situação fora
dali seria melhor, mas se surpreendem ao encarar a realidade. A mulher do médico, a única que
podia ver, precisava guiar esse grupo em busca de comida, e presenciava situações horríveis como
pessoas mortas no meio das ruas, pessoas brigando por misérias de comida. Por que só ela não teve
a visão afetada pelo mal branco? Pode ser que antes dessa doença se alastrar, enquanto todos apenas
viam, ela era a única que realmente enxergava, ou como dito em uma das frases mais marcantes do
livro “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, poderia ser a mulher do médico a única a reparar
tudo e todos. De fato, a bondade e companheirismo dela fez uma grande diferença na vida dos
cegos, não apenas dentro do manicômio, mas também após a fuga.
Enfrentaram muitas coisas nesse ‘novo mundo’ tomado pela cegueira, mas pouco a pouco
todos os habitantes da cidade voltaram a enxergar. Se alegraram, pareciam não acreditar no que
estava acontecendo; era como se a cegueira fosse algo que ocorreu num passado distante, ou que
nunca ocorreu.
“Vejo, diziam-na os que já tinham recuperado a vista, diziam-na os que de repente a recuperavam,
Vejo, vejo, em verdade começa a parecer uma história doutro mundo aquela em que se disse, Estou
cego.”
Ao fim da obra, o médico e sua esposa conversam sobre o que enfrentaram, e esse último
diálogo representa muito bem, não aquele mundo em que viviam os personagens, mas o nosso
mundo real.
“Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”

Conclusão
Por meio do Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago mostra os dois extremos do ser humano: a
bondade e a maldade. A bondade é representada pela mulher do médico, a abnegação que ela
demonstra não somente com o marido, mas com aquelas pessoas que mal conhecia, e sua luta
constante para fazer o seu melhor e ajudá-las. A maldade, representada principalmente por aquele
grupo de cegos que, ainda no manicômio, criavam um verdadeiro caos, tirando tudo o que os outros
cegos tinham em sentido material e físico; que se aproveitavam das mulheres, que impunham regras
que beneficiassem apenas a eles. Isso nos faz analisar nossa conduta – de toda uma vida – e pensar
em qual dos extremos nos encontramos: somos como a mulher do médico ou como os cegos
malvados?

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

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