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03/08/2015, Eliane Brum

Morrendo na primeira pessoa


Depois de se tornar interdita e silenciada no século 20, a morte ganha cada
vez mais espaço em narrativas confessionais de notáveis e de anônimos

Em 24 de julho, Oliver Sacks, escritor, neurologista e um dos pensadores mais


interessantes do nosso tempo, escreveu um novo artigo sobre o seu morrer,
na pagina de Opiniao do The New York Times. Em fevereiro, ele tinha
anunciado que estava com cancer no fígado, sem possibilidade de cura, em um
texto belíssimo sobre a vida, que foi traduzido e publicado no mundo inteiro.
Agora, aos 82 anos, Sacks começa a se sentir nauseado e enfraquecido pela
doença, mas nao menos encantado e curioso com a existencia. Ele segue
esperando com alegria a chegada das revistas científicas, ansioso pelas
descobertas sobre um universo que o fascina. Semanas atras, ele estava no
campo, longe das luzes da cidade, quando se deparou com a inteireza
monumental do ceu “polvilhado de estrelas”. Sacks concluiu: “Esse esplendor
celeste de imediato me fez perceber o quao pouco era o tempo e a vida que
me restava. Minha percepçao da beleza do ceu, da eternidade, era inseparavel
da minha percepçao da transitoriedade – e da morte”. Contou entao seu
sentimentos aos amigos que o acompanhavam, Kate e Allen, dizendo: “Eu
gostaria de ver esse ceu novamente quando estiver morrendo”. E os amigos
garantiram que fariam com que pudesse ver as estrelas uma vez mais.
Ao nos contar sobre o seu morrer, um morrer vivo, no qual a experiencia de
chegar ao fim e mais uma novidade para um homem curioso com o mundo e
com a existencia, Oliver Sacks tornou-se um dos sinalizadores de que algo
fundamental esta mudando na nossa epoca. E de forma bastante rapida, ja que
nosso tempo historico e acelerado. Embora o silencio sobre a morte, a doença
e o luto ainda persista na vida cotidiana – e talvez seja ainda o que se impoe
para a maioria das pessoas –, ja nao vivemos a morte “envergonhada” ou
“clandestina” que se estabeleceu no seculo 20. O doente terminal que finge
que nao esta morrendo, para nao alarmar nem a família nem a equipe medica,
pode estar começando a se tornar um especime em extinçao. A morte começa
a ficar desavergonhada – e especialmente confessional, bem ao tom desse
momento em que se narra tudo nas redes sociais.

A historia humana pode ser contada pelo modo como cada sociedade, em
diferentes períodos historicos, olhou para a morte e lidou com ela. O trabalho
mais completo sobre esse tema possivelmente ainda seja o do historiador
frances Philippe Aries (1914-1984), primeiro em um livro chamado Historia
da morte no Ocidente e, depois, numa obra maior, intitulada O homem diante
da morte. Nesta analise, o historiador mostra como, no seculo 20, a morte
passou a ser escondida e calada. Nao mais um evento publico, mas uma
especie de nao acontecimento. Na sociedade tecnicista era necessario que a
morte fosse ocultada entre as paredes de um hospital, o mais asseptica
possível, e imediatamente esquecida. Essa mentalidade ajuda a explicar por
que, ate hoje, alguem que perde aqueles que ama tem legalmente um tempo
curtíssimo para se ausentar do trabalho e começar a elaborar o seu luto.
Quando se espera que a ciencia prolongue a vida a qualquer preço e a
juventude torna-se um valor em si, a morte passa a ser um fracasso que deve
ser escamoteado.
No seculo 20, o fim da vida tornou-se algo a ser ignorado e, assim, nao
precisava nem ser superado, ja que o melhor seria fingir que nem mesmo
tinha acontecido. “A morte no hospital, eriçado de tubos, esta prestes a se
tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o
esqueleto das retoricas macabras”, escreveu Philippe Aries. A morte tornara-
se quase contagiosa, e aquele que morria o portador de uma doença/ma
notícia cuja contaminaçao deveria ser evitada a todo custo pelos vivos.

“No século 20, a morte se tornou tão obscena quanto o sexo na


era vitoriana; e o luto, tão secreto quanto a masturbação”

Outro pensador, o antropologo britanico Geoffrey Gorer (1905-1985),


escreveu um ensaio sobre o que chamou de Pornografia da Morte. “Hoje a
morte e o luto sao tratados com o mesmo pudor que os impulsos sexuais ha
um seculo”, afirmou. A interdiçao do sexo, na era vitoriana, tinha sido
substituída pela interdiçao da morte, no seculo 20. A morte teria se tornado
obscena e feia e, portanto, deveria ser escondida. E o luto, circunscrito ao
ambito privado, havia se tornado tao secreto e individual como a
masturbaçao.

Como acontece tantas vezes, a arte antecipou a interpretaçao da sua epoca.


Essa mudança no olhar sobre a morte consolidada no seculo 20 ja podia ser
detectada, no final do seculo 19, na pequena obra-prima de Tolstoi: A morte
de Ivan Ilitch. Em um seu livro Educaçao para a morte – Temas e reflexoes, a
psicologa brasileira Maria Julia Kovacs assim analisa a novela do escritor
russo: “Ninguem quer falar sobre o que esta acontecendo com o doente, nem
ele proprio, que sofre, geme, mas nada diz. Os familiares tambem sofrem, nao
sabem o que fazer, mas fingem que esta tudo bem”. Apesar de todos tentarem
banalizar o acontecimento, transformando-o num nao acontecimento, o
doente, embora nada diga, sabe o que vive.

O seculo 21, este que testemunhamos nascer, começa a engendrar um outro


olhar sobre a morte, cujos sinais ja podiam ser percebidos nas ultimas
decadas do anterior. A historia, como se sabe, e movimento e conflito. O
proprio surgimento do conceito de “Hospice” e da pratica dos “cuidados
paliativos”, nos anos 60 do seculo passado, com a ideia de que cuidar e mais
importante do que curar e de que e preciso escutar aquele que vive o seu
morrer, começou a colocar em xeque o silenciamento da morte.

Hoje, nao sao apenas as series de TV e os filmes no cinema que passaram a


abordar a morte, a doença e o envelhecimento com frequencia cada vez maior.
Neste novo olhar sobre o fim da vida, a internet, com as redes sociais, tem
desempenhado um papel central e crescente. Se a literatura nunca deixou de
ter a morte como tema, o morrer vem tornando-se uma narrativa
confessional, de nao ficçao, escrita na primeira pessoa do singular.

Oliver Sacks nao foi o primeiro a escrever sobre o fim da vida neste seculo.
Longe disso. Em 2005, a jornalista Joan Didion publicou um livro, O ano do
pensamento magico, em que contava sobre a morte do marido e o seu luto.
Logo no início faz uma síntese sobre a condiçao humana: “A vida muda num
instante. Voce se senta para jantar e a vida que voce conhecia acaba de
repente”. Essa mistura de narrativa confessional com investigaçao jornalística
entrou para a lista dos mais vendidos em varios países, inclusive no Brasil.
Mais tarde, em 2011, Didion lançaria Noites Azuis, sobre a morte da unica
filha, seu proprio envelhecimento e sua solidao. Este ultimo livro e a historia
da mulher que restou, a narrativa de quem se descobriu sozinha para
testemunhar o proprio fim. Portanto, um relato ainda mais duro e
perturbador, que parece ter sido mais difícil para os seus leitores. Didion
agora se ve as voltas com formularios de hospital, onde fazem a ela uma
pergunta que nao pode responder: quem chamar numa hora de emergencia?
Ja nao ha.

(…)

A morte e lambuzada de vida e de humanidades. Ha tantas formas de pensar


sobre ela quanto vivedores e morredores. A beleza, mesmo quando brutal, e
quando essas narrativas sao capazes de enfrentar a complexidade deste
momento, com todos os sentimentos ambíguos e as contradiçoes que o
povoam. Seria uma pena, afinal, reduzir um momento tao abissal quanto
inescapavel a um manual pobre do “morrer bem”. Como na frase que adoro: “A
morte nao e o contrario da vida, a morte e o contrario do nascimento. A vida
nao tem contrarios”.

“Hello! Eu tenho câncer!”, disse a comediante Tig Notaro em um


stand-up histórico

Minha expectativa de que estamos num novo momento no que se refere ao


olhar sobre a morte aumentou ao acompanhar a historia de Tig Notaro, 44
anos. Comediante de stand-up, a americana Tig pensava em ter um filho, em
2012, quando primeiro foi atingida por uma infecçao que quase a matou. Logo
depois da alta do hospital, perdeu a mae, que nas suas palavras era a pessoa
que mais a enxergava, compreendia e incentivava. Tig descobriu-se sem chao.
Mas nao era tudo. Em seguida, ela soube que tinha cancer no seio.

Tig estava as vesperas de um show. E agora, deveria faze-lo? A humorista


pensou que, afinal, depois de tudo o que acabara de viver, era muito ridículo
ter ainda por cima um cancer. Subiu ao palco e fez um espetaculo considerado
historico.

–Hello, good evening, hello! Eu tenho cancer. Como vao voces? Todo mundo se
divertindo? Fui diagnosticada com um cancer...

Ainda que possa parecer apenas bizarro, quando aqui reproduzido, assistindo
ao show percebemos que Tig conseguiu fazer algo sofisticado e profundo com
o cancer e o medo de morrer: conseguiu fazer humor. Ela nao negava a dor da
sua condiçao, mas a usava para produzir arte, reflexao e... riso. Sem que
tivesse planejado essa performance, sua carreira deu um salto. Logo Tig
estava na capa de revistas, em talk shows na TV.

Neste ponto, eu temi que ela poderia se tornar uma especie de “celebridade
do cancer” e nunca mais pudesse falar de outra coisa. Mas, se o que fez com a
doença a colocou num outro lugar, e este e um fato, o caminho de Tig parece
ser o de colocar o cancer, o luto pela mae, os fracassos reprodutivos e tambem
o sucesso no contexto de uma vida com um pouco de tudo, as vezes bastante
de alguma coisa, mas nao monotematica.

Essa escolha, pelo menos, e o que aparece num documentario sobre o seu
percurso, lançado em julho deste ano pelo Netflix, chamado apenas “Tig”. A
dela e uma historia em aberto, como qualquer outra, e a vimos fragil e confusa
diante do futuro. Acompanhamos a artista em seu dilema sobre fazer ou nao
um tratamento reprodutivo, na tentativa de ter um filho, e arriscar-se a
aumentar as chances de o cancer voltar por conta dos hormonios;
compartilhamos sua ansiedade para que o embriao vingue numa barriga de
aluguel, assim como o seu amor por uma outra mulher, que num primeiro
momento a rejeita, porque ate entao so tinha tido relacionamentos
heterossexuais. E testemunhamos tambem sua insegurança sobre com que
material trabalhar em seus shows, depois de ter alcançado um nível tao
paradigmatico ao levar o cancer para o palco.

Mas talvez o momento-síntese da narrativa de Tig sobre o cancer e a


possibilidade de morrer seja uma cena que nao esta no documentario, apesar
de mencionada. Em novembro de 2014, Tig tirou a camisa no palco,
mostrando a ausencia do que a doença lhe arrancou, numa mastectomia dupla
sem cirurgia de reconstruçao, e as suas cicatrizes. Ate aí, poderia ser apenas
uma especie de “performance de choque”, um truque para ganhar a plateia.
Depois do impacto inicial, porem, o publico acolheu e superou essa nudez
assinalada pela doença e pela condiçao humana, graças ao talento de Tig.

(…)

Ao calarmos sobre o envelhecimento, a doença e a morte, perdíamos uma


oportunidade insubstituível para pensar sobre a vida – e em especial sobre o
tempo. Eu tinha sido transformada para sempre por uma frase de Ailce de
Oliveira Souza, a mulher que me permitiu contar o seu morrer, num enorme
ato de confiança. Logo no nosso primeiro encontro, ela, que acabara de se
aposentar e tinha começado a viver aventuras ate entao adiadas, disse:
“Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Sou
imensamente grata por esta frase, que multiplicou a largura da minha vida.

Hoje, passados menos de dez anos, acredito que nao seria mais acusada de
“morbida”. Nao tanto, pelo menos. Homens e mulheres anonimos começaram
a dizer de si de forma desassombrada. Nao sei o que escutaremos nem o
quanto esses tantos dizeres vao influenciar nossa forma de encarar a finitude
de nossa condiçao. Mas essa possibilidade de falar e de ser escutado tambem
sobre o envelhecimento, a doença, a perda e a morte me encanta. Espero
apenas que continue existindo espaço nao para o silenciamento, esse ato que
nos reprime e aniquila, mas para o silencio daqueles que preferem se recolher
dentro de si e da casa e nada dizer. Que falar e “confessar” nao vire um novo
imperativo ou dogma. Que exista espaço para todas as formas de ser, viver e
morrer.

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