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A historia humana pode ser contada pelo modo como cada sociedade, em
diferentes períodos historicos, olhou para a morte e lidou com ela. O trabalho
mais completo sobre esse tema possivelmente ainda seja o do historiador
frances Philippe Aries (1914-1984), primeiro em um livro chamado Historia
da morte no Ocidente e, depois, numa obra maior, intitulada O homem diante
da morte. Nesta analise, o historiador mostra como, no seculo 20, a morte
passou a ser escondida e calada. Nao mais um evento publico, mas uma
especie de nao acontecimento. Na sociedade tecnicista era necessario que a
morte fosse ocultada entre as paredes de um hospital, o mais asseptica
possível, e imediatamente esquecida. Essa mentalidade ajuda a explicar por
que, ate hoje, alguem que perde aqueles que ama tem legalmente um tempo
curtíssimo para se ausentar do trabalho e começar a elaborar o seu luto.
Quando se espera que a ciencia prolongue a vida a qualquer preço e a
juventude torna-se um valor em si, a morte passa a ser um fracasso que deve
ser escamoteado.
No seculo 20, o fim da vida tornou-se algo a ser ignorado e, assim, nao
precisava nem ser superado, ja que o melhor seria fingir que nem mesmo
tinha acontecido. “A morte no hospital, eriçado de tubos, esta prestes a se
tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o
esqueleto das retoricas macabras”, escreveu Philippe Aries. A morte tornara-
se quase contagiosa, e aquele que morria o portador de uma doença/ma
notícia cuja contaminaçao deveria ser evitada a todo custo pelos vivos.
Oliver Sacks nao foi o primeiro a escrever sobre o fim da vida neste seculo.
Longe disso. Em 2005, a jornalista Joan Didion publicou um livro, O ano do
pensamento magico, em que contava sobre a morte do marido e o seu luto.
Logo no início faz uma síntese sobre a condiçao humana: “A vida muda num
instante. Voce se senta para jantar e a vida que voce conhecia acaba de
repente”. Essa mistura de narrativa confessional com investigaçao jornalística
entrou para a lista dos mais vendidos em varios países, inclusive no Brasil.
Mais tarde, em 2011, Didion lançaria Noites Azuis, sobre a morte da unica
filha, seu proprio envelhecimento e sua solidao. Este ultimo livro e a historia
da mulher que restou, a narrativa de quem se descobriu sozinha para
testemunhar o proprio fim. Portanto, um relato ainda mais duro e
perturbador, que parece ter sido mais difícil para os seus leitores. Didion
agora se ve as voltas com formularios de hospital, onde fazem a ela uma
pergunta que nao pode responder: quem chamar numa hora de emergencia?
Ja nao ha.
(…)
–Hello, good evening, hello! Eu tenho cancer. Como vao voces? Todo mundo se
divertindo? Fui diagnosticada com um cancer...
Ainda que possa parecer apenas bizarro, quando aqui reproduzido, assistindo
ao show percebemos que Tig conseguiu fazer algo sofisticado e profundo com
o cancer e o medo de morrer: conseguiu fazer humor. Ela nao negava a dor da
sua condiçao, mas a usava para produzir arte, reflexao e... riso. Sem que
tivesse planejado essa performance, sua carreira deu um salto. Logo Tig
estava na capa de revistas, em talk shows na TV.
Neste ponto, eu temi que ela poderia se tornar uma especie de “celebridade
do cancer” e nunca mais pudesse falar de outra coisa. Mas, se o que fez com a
doença a colocou num outro lugar, e este e um fato, o caminho de Tig parece
ser o de colocar o cancer, o luto pela mae, os fracassos reprodutivos e tambem
o sucesso no contexto de uma vida com um pouco de tudo, as vezes bastante
de alguma coisa, mas nao monotematica.
Essa escolha, pelo menos, e o que aparece num documentario sobre o seu
percurso, lançado em julho deste ano pelo Netflix, chamado apenas “Tig”. A
dela e uma historia em aberto, como qualquer outra, e a vimos fragil e confusa
diante do futuro. Acompanhamos a artista em seu dilema sobre fazer ou nao
um tratamento reprodutivo, na tentativa de ter um filho, e arriscar-se a
aumentar as chances de o cancer voltar por conta dos hormonios;
compartilhamos sua ansiedade para que o embriao vingue numa barriga de
aluguel, assim como o seu amor por uma outra mulher, que num primeiro
momento a rejeita, porque ate entao so tinha tido relacionamentos
heterossexuais. E testemunhamos tambem sua insegurança sobre com que
material trabalhar em seus shows, depois de ter alcançado um nível tao
paradigmatico ao levar o cancer para o palco.
(…)
Hoje, passados menos de dez anos, acredito que nao seria mais acusada de
“morbida”. Nao tanto, pelo menos. Homens e mulheres anonimos começaram
a dizer de si de forma desassombrada. Nao sei o que escutaremos nem o
quanto esses tantos dizeres vao influenciar nossa forma de encarar a finitude
de nossa condiçao. Mas essa possibilidade de falar e de ser escutado tambem
sobre o envelhecimento, a doença, a perda e a morte me encanta. Espero
apenas que continue existindo espaço nao para o silenciamento, esse ato que
nos reprime e aniquila, mas para o silencio daqueles que preferem se recolher
dentro de si e da casa e nada dizer. Que falar e “confessar” nao vire um novo
imperativo ou dogma. Que exista espaço para todas as formas de ser, viver e
morrer.