NOMEEI ESSA BREVE FALA DE

ENQUANTO ESTAMOS VIVAS.

ESSA É UMA FALA DA HELOÍSA PASSOS, QUE ESCAPA DO FILME.
PODERIA TER UM SUBTÍTULO: DA INCOMPLETUDE OU DO IMPOSSÍVEL

ENEIDA É UM FILME QUE RECOLOCA ALGUMAS QUESTÕES:

A PRIMEIRA, QUE ME É MUITO CARA, E ME LEVOU À PESQUISA DE ARTE E PSICANÁLISE,
É UMA PERGUNTA SOBRE A ESCRITA DA VIDA. O GESTO, A LETRA, A MARCA. COMO A ARTE
PÕE EM EVIDÊNCIA ISSO QUE É A SUBSTÂNCIA MESMO DA VIDA: COMO MANEJAMOS CORPOS
E PALAVRAS NO TEMPO E NO ESPAÇO ANTE OUTROS CORPOS?
ISSO QUE CHAMAMOS DE LINGUAGEM ARTÍSTICA, DE LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA.
UM FAZER COM AS MATÉRIAS DO MUNDO, QUE SE FAZ ENQUANTO ENSAIO, NA
IMPREVISIBILIDADE, NA CONTINGÊNCIA, NO RISCO E NA APOSTA.
OUTRA QUESTÃO:
O QUE É UMA MÃE? ENEIDA É TAMBÉM O NOME DE UM POEMA DE VIRGÍLIO, QUE
TOCA A ANCESTRALIDADE GRECO-ROMANA, UMA IDEIA DE LINHAGEM.
A ENEIDA DO FILME PERCORRE UM RETRAÇAR DE SUA LINHAGEM, UMA TENTATIVA DE
RETECER, DESDE O RETORNO A PORTUGAL ATÉ A BUSCA PELA FILHA QUE DESATOU O FIO
FAMILIAR.
NAS IMAGENS PORTUGUESAS, QUE VEMOS BREVEMENTE, ELA ATUALIZA AS
FOTOGRAFIAS DE INFÂNCIA, RECOLOCANDO O CORPO EM CENÁRIOS QUE UM DIA FORAM
HABITADOS PELOS SEUS PAIS.
NA NARRATIVA DE HELOISA PASSOS, ESTE É O DEFLAGADOR DE UM MOVIMENTO
SEMELHANTE, AGORA EM DIREÇÃO À SUA DESCENDÊNCIA.
O FILME NOS COLOCA DIANTE DA INCOMPLETUDE. MAYSA DESCOMPLETA A FAMÍLIA.
MAS HÁ OUTRAS INCOMPLETUDES NO QUE VEMOS. VOLTAREI A ELAS MAIS TARDE.
A PERGUNTA SOBRE O QUE É UMA MÃE SE INSCREVE NA MARGEM DE UM IDEAL DE
MATERNIDADE QUE É CONSTITUTIVO DO DISCURSO PATRIARCAL.
EM ALGUM MOMENTO DO FILME, ME LEMBREI DA PEÇA DA JANAINA LEITE, QUE VIRÁ
AO FESTIVAL DE CURITIBA: STABAT MATER.
LÁ, ELA E A MÃE ESTÃO JUNTAS NO PALCO.
O TÍTULO É UMA EXPRESSÃO EM LATIM QUE QUER DIZER “ESTAVA A MÃE”, EM
REFERÊNCIA À VIRGEM MARIA.
A PEÇA É A TENTATIVA DE RELANÇAR ESSA PERGUNTA DEPOIS DE PERCEBER QUE, EM
SEU TRABALHO ANTERIOR, SOBRE A RELAÇÃO COM O PAI, JANAINA TINHA PERDIDO DE VISTA
ONDE ESTAVA A MÃE.
EM ENEIDA, ME PERGUNTEI ONDE ESTAVA O PAI NO CONFLITO FAMILIAR. MAS ESTE É
UM FILME DE MULHERES, AS ANTES IGNORADAS, COMO HELOISA AS NOMEIA. O PAI APARECE
TANGENCIALMENTE COMO O PARCEIRO NA SUSTENTAÇÃO DE UMA POSIÇÃO FEMININA. ESTA
DO IDEAL DE MATERNIDADE.
 A MÃE, A VIRGEM, A QUE AMA INCONDICIONALMENTE. É NESSE DISCURSO QUE
TANTAS MULHERES ENCONTRARAM UM DESTINO, ESPECIALMENTE NUM TEMPO ESCASSO EM
OUTROS DESTINOS SOCIALMENTE ACEITOS PARA ELAS.
A CINEASTA-FILHA OLHA PARA ESSA MÃE E NOMEIA O ELEMENTO DA OPRESSÃO
PATRIARCAL.
ENEIDA EXPLICA SUA HISTÓRIA PELA FRAGILIDADE DA MULHER. E RECONHECE,
TAMBÉM, QUE ALGO DELA SE MANTEVE SOB O REGIME DE SUBMISSÃO. EM CASA, QUEM
DECIDE É O HOMEM.
AQUI O FILME POUCO RESPONDE E POR ISSO SE ABRE PARA LEITURAS QUE ABARQUEM
AMBIVALÊNCIAS E CONTRADIÇÕES NAS CONDIÇÕES DESSAS MULHERES,
E NOS PERMITE INDAGAR: QUAL O DESTINO DO SEU DESEJO?
DESSA PERGUNTA, OUTRA SE DERIVA:
QUAL O LUGAR DA FILHA NO DESEJO DA MÃE – QUESTÃO FUNDAMENTAL PARA CADA
UMA SE CONSTITUIR ENQUANTO SUJEITO E LOCALIZAR ALGO DO PRÓPRIO DESEJO.
PARA ALÉM DAS FUNÇÕES FAMILIARES.

PARA MIM, ENEIDA É UM FILME SOBRE A DISTÂNCIA ENTRE OS CORPOS. UMA MÃE É
TAMBÉM UM CORPO QUE GESTOU OUTRO CORPO.
ALGUÉM DE QUEM É PRECISO EM ALGUMA MEDIDA SE SEPARAR PARA GANHAR OS
PRÓPRIOS CONTORNOS, VIR A SER ALGUÉM.
UMA FUNÇÃO COM A QUAL CABE A CADA MULHER NÃO SE CONFUNDIR, NÃO SE
FUNDIR.

ENEIDA TEM VÁRIAS FILHAS, MAS VEMOS DUAS:

UMA – É A PRESENÇA MUITO PRÓXIMA DA FILHA-CINEASTA, QUE ACOMPANHA LADO A
LADO A MÃE, OLHANDO ATRAVÉS DA CÂMERA ESSA QUE SE MANTEVE EM PARTE SOB O
RIGOR PATERNO DO PAI E DO MARIDO; E EM OUTRA PARTE FOI ALÉM DO ROTEIRO PREVISTO
PARA UMA AVÓ, QUE JOGA VÔLEI E DANÇA.
A OUTRA FILHA QUE VEMOS É A AUSÊNCIA DA FILHA-PERDIDA.
É INTERESSANTE QUE ENEIDA É NARRADO POR UMA CINEASTA-FILHA E, NO CAMPO DA
IMAGEM, ASSUME UMA ESPÉCIE DE PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL. UM NÓS, EM QUE ESSAS
DUAS MULHERES OCUPAM O QUADRO E NOS FAZEM OLHAR TAMBÉM PARA O EXTRACAMPO.
HELOÍSA DIZ QUE O CINEMA É SEU MODO DE RELAÇÃO.
ADIANTO AQUI, ENTÃO, JÁ MINHA PERGUNTA PARA VOCÊ: DE ONDE ESSA CINEASTA-
FILHA OLHA A MÃE? DE QUE POSIÇÃO? DE QUE DISTÂNCIA?
E COMO SE POSICIONA EM RELAÇÃO À IRMÃ, PARA ALÉM DA MEDIAÇÃO MATERNA?
 APESAR DA LINHAGEM NARRATIVA, DA LINEARIDADE NARRATIVA, ENEIDA SE FAZ
TANTO DO QUE OUVIMOS E VEMOS QUANTO DOS NÃO VISTOS E NÃO DITOS. O QUE ESTÁ NO
EXTRACAMPO E O QUE NÃO TEM LUGAR.
VEJO UM FILME SOBRE A DISTÂNCIA ENTRE CORPOS PORQUE SE SUSTENTA EM UMA
DEMANDA PARA QUE, ENQUANTO ESTÃO VIVAS, ELAS POSSAM ATRAVESSAR A FALHA ABERTA
ENTRE MÃE E FILHA.
UMA DEMANDA DE AMOR QUE TORNE POSSÍVEL CAMINHAR SOBRE A ESTRADA QUE AS
AFASTOU E ENCURTÁ-LA.
TAMBÉM ME LEMBREI, ENQUANTO VIA O FILME, DE OUTRO DOCUMENTÁRIO FEITO
POR UMA CINEASTA QUE TENTA REATAR ALGO DE SUA HISTÓRIA: OS DIAS COM ELE, DA
MARIA CLARA ESCOBAR. ELA VIAJA TAMBÉM A PORTUGAL, PARA ENCONTRAR O PAI, QUE LHE
RECUSA UMA RELAÇÃO PRÓXIMA.
MARIA CLARA NÃO ENCONTRA O PAI QUE BUSCAVA.
NEM ENEIDA, A FILHA. A QUE LHE RECEBE É UMA MULHER COM QUEM É IMPOSSÍVEL A
CONCILIAÇÃO.
DO CONFLITO FAMILIAR ENTRE ELAS, OUVIMOS SÓ FRAGMENTOS. ESTÁ
DESCOMPLETADO TAMBÉM. NESSES FRAGMENTOS, APARECE A DESPROPORÇÃO ENTRE
DESEJOS, ENTRE IDEAIS, ENTRE O QUE SE CHAMA MÃE, FILHA, E AS MULHERES QUE ASSUMEM
ESSAS FUNÇÕES.
SÃO FILMES SOBRE A PERDA. SOBRE OS LIMITES DO AMOR, SUA
DESPROPORCIONALIDADE E SUA INCOMPLETUDE. SOBRE A DISTÂNCIA ENTRE CORPOS E A
IMPOSSIBILIDADE DE ATRAVESSÁ-LAS.
VEJO ENEIDA TAMBÉM COMO O FILME DO AMOR DE UMA FILHA – A QUE ESTÁ AO
LADO – PELA MÃE.
UMA MÃE QUE APARECE RAPIDAMENTE SOB AS LUZES E SOMBRAS DA CIDADE NA
SEQUÊNCIA FINAL.
O GESTO VIVO DA ARTISTA, DIANTE DO IMPOSSÍVEL DESSA RELAÇÃO, É ESCREVER ALGO
DOS CONTORNOS DESSA INCOMPLETUDE.