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FIT-BH 2018 ou sobre um festival que reafirma o teatro como um gesto estético-político

por Soraya Martins e Luciana Romagnolli


curadoras do Festival (com Anderson Feliciano, Grace Passô, Daniele Avila Small e Luciane
Ramos-Silva)

A 14º edição do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte, FIT-BH
2018, a primeira com curadoria coletiva para as mostras nacional e internacional selecionada
por edital público, aconteceu entre os dias 13 a 24 de setembro e 2018. Há exatamente 1 ano.
Desde então, escutamos observações sobre a programação do festival que precisam ser
discutidas publicamente, porque elas explicitam algumas percepções distorcidas muito
significativas da organização social e simbólica em que vivemos.  Qualquer discussão séria
que se faça sobre o festival, suas realizações e limites, tessituras e pensamento, precisa passar,
antes, por uma renegociação de sentidos.

O FIT-BH 2018 foi um festival ideológico ...


...foi um festival de arte negra...

Essa percepção é ancorada no fato de ter tido produções realizadas por artistas negras e
negros, não cisgênero e grupos fora do eixo Rio-São Paulo, por exemplo, acima do número
aceitável ou até então praticada praticado pelo festival. Se racializarmos o corpo branco e não
somente do outro negro, lgbtqi+, nordestino, etc, podemos pensar que as outras edições do
FIT-BH foram também ancoradas em uma ideologia: a da branquitude. É preciso ressaltar
que a falta de “bandeira” ou a “universalidade” não deixa de ser um panfleto político em
nomeencoberto pel da fictícia neutralidade.

Aos dados:
Na Mostra Internacional, dos nove trabalhos que vieram a Belo Horizonte, apenas três tinham
diretorxs negrxs. Isso significa que 66% eram dirigidos por pessoas brancxs. Se olharmos para
os elencos, ainda assim, cinco tinham maioria ou totalidade de corpos brancos em cena e quatro
tinham maioria ou totalidade de corpos negros.
Na Mostra nacional, sete dos 11 trabalhos eram dirigidos por brancxs. Mais de 60%,
novamente. Quanto aos elencos, quatro tinha maioria negra; quatro, maioria branca; e três,
mistos.

Se em nenhum momento a proporção de corpos negros na direção ou em cena ultrapassou a


metade, o que causou em alguns tantos a percepção de ser um festival de arte negra?

A proporção de mulheres e homens ficou na casa de 60%-40%, e apenas dois dos 20 trabalhos
traziam à frente pessoas não cisgêneras (10%). De onde vem, então, a percepção de que os
homens não tiveram vez?

O FIT-BH 2018, na mostra nacional, apresentou a cena nordestina...

A predominância de trabalhos da região nordeste na mostra nacional foi um fato. Cinco


espetáculos nordestinos, quatro sudestinos, um nortista e um sulista. A questão incômoda,
aqui, é outra. Nos inúmeros anos em que o FIT-BH e outros tantos festivais brasileiros
apresentaram programações nacionais com maioria ampla de trabalhos de São Paulo, para não
dizer dos outros estados da região, quantas vezes já foi dito que se tratava de um recorte
temático sudestino?

Por que a maioria branca masculina sudestina é dada como certa? Como o normal, a norma?

Voltamos então à mesma toada: Quem é universal? Quais corpos podem estar em maioria sem
ser notados? Quais corpos podem se aglomerar, mesmo em minoria, sem ser vistos como um
caso incomum, incômodo? Isto quer dizer: sem alertar a percepção a ponto de transgredir a
muralha do automatismo e emergir à consciência?

O FIT-BH 2018 foi um festival temático...

Essa percepção tem a ver diretamente com a concepção de um festival ideológico, no sentido
pejorativo da palavra. O FIT-BH 2018 não foi temático. (Diversidade. NÃO!) O festival teve
um pensamento curatorial, que intentou atender urgências históricas e sociais de indivíduos e
grupos não neutros, recusando a existência de um “sujeito padrão” que possa servir de
exemplo ou determinar a experiência de vida das demais pessoas. Tratar questões de gênero,
raça, geografia e classe como temática é reduzir e simplificar a discussão à moda do
momento, e não inseri-las num debate que tenta mudar padrões estéticos, do saber e do poder.
O pensamento curatorial do FIT-BH 2018 corresponde à compreensão de que não se trata de
dar voz ou espaço a ninguém, mas, sim, de cessar o silenciamento, o apagamento e a exclusão
de quem já existe, já faz, já tem, já é. Isso não é questão de diversidade. É questão de não
segregar.

Sobre o pensamento curatorial:Corpos-Dialetos


Essa proposta- refere-se à busca por variedades linguísticas, ; à ideia de arte como aquilo que,
como linguagem, elabora sistemas potentes e singulares de convívio social -. O projeto foi
composto por trabalhos artísticos produzidos por sujeitos e grupos não neutros (sem pretensão
de ocupar um lugar central e universal), mas sim marcados por seu lugar social (gênero, etnia,
classe, geografia), numa perspectiva decolonial que percorre caminhos à contramão de um
olhar eurocêntrico nas artes cênicas.

Que FIT é esse?...


Sobre o ponto de vista da programação nacional, buscamos expandir a noção de Teatro
Brasileiro, reconhecendo os muitos grupos sociais que formam o país. Mesmo ainda não
abarcando toda a sua amplitude -– encontramos limitações imensas nesse caminho,
especialmente em relação à separação entre a curadoria nacional e a local (não incluída em
edital), às formas de financiamento, às relações institucionais, à educação baseada em
epistemologia colonialistas, aos limites pessoais – -
demos alguns passos em direção a ampliar quais são os corpos e os lugares de enunciação de
quem faz o Teatro Brasileiro. Ao olhar para além do eixo Rio-São Paulo, chegamos a um
conjunto em que o Nordeste está muito presente, ao lado de trabalhos do Norte, Sul e Sudeste.

Em tempo: Está visível a ausência de trabalhos do Centro-Oeste, de maior presença do Norte


e do Sul, de espetáculos de rua, das classes sociais mais exploradas. É imenso o trabalho a ser
feito para que a expressão Teatro Brasileiro ganhe sentido pleno. Sabemos que um festival
não dá conta da transformação social que precisamos, mas é um espaço privilegiado de
viabilidade e legitimação que precisa se colocar em movimento.

Já a partir da programação internacional, refutamos a visão de internacionalização que se


restringisse à produção do continente europeu. Contra essa perspectiva eurocêntrica do
mundo, contra a valorização dos gestos e modelos colonizadores base da nossa
ocidentalidade, buscamos evidenciar as matrizes africanas que estruturam o teatro
contemporâneo, convidando artistas afro-diaspóricas, e traçar trajetos para a América Latina.

Este é o legado que precisa ser defendido: a compreensão de que um festival que se queira
internacional não deva olhar somente para a Europa (sob o risco de ser um festival europeu,
por vezes, francês somente), ainda que todo os caminhos de financiamento retornem aos
colonizadores. E a compreensão de que, assim como a matriz cultural brasileira é indígena e
europeia e africana, um teatro que se queira brasileiro precisa enxergar a produção artística do
seu povo.

Essa perspectiva não desprega a arte do mundo social, tampouco desacredita critérios
estéticos. É na tensão entre estética, ética e política que agimos, entendendo as interconexões
entre esses campos. Alargar o conceito de teatro, para que caiba nele o teatro já feito por todos
os povos que habitam este país, é trilhar para uma maior riqueza estética, no singular e no
plural.

O FIT-BH 2018 foi um festival que reafirmou o teatro como um gesto estético, ético e
político. Dito disso, quais questões se abrem a debate público sobre a edição 2018? E a que se
destinam as próximas?

Mostra Internacional
Eve - branca, trans
Libertação - misto, masculina
Simónel topo - branca, masculina, cuir
Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas - branca, feminina
Black off - negra, feminina
Arde Brilhante en Los bosques de lá Noche - branca, masculina
Ceci n'est pasnoire - negra, feminina
Donde viven Los bárbaros, branca, mista
Unwanted - negra, feminina
Total: 9 trabalhos.
6 brancos, 3 negros,
4 mulheres cis, 1 mulher trans, 3 homens, 1 misto
Elenco 5 brancos, 4 negros

Nacional
Quaseilhas - negra, masculina
Chapeuzinho Vermelho - branca, feminina
A Invenção do Nordeste - branca, feminina
Isto é um negro? - negra, feminina
Batucada - branca, masculina
Looping Bahia Overdub - branca, masculina
Assembleia comum - branca, masculina
MeciBeaucoup, Blanco - negra, feminina
A gente combinamos de não morrer - negra, não binária
Do repente - branca, feminina
Chorar os Filhos - branca, feminina
Total: 11 trabalhos
7 brancos, 4 negros
Elenco 4 branco, 4 negros, 3 mistos
6 femininos, 4 masculinos, 1 não binário

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