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A

ARQUITETURA POPULAR NA CONSTITUIÇÃO E


CONSOLIDAÇÃO DO CAMPO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL
LA ARQUITECTURA POPULAR EN LA FORMACIÓN Y CONSOLIDACIÓN DEL
CAMPO DEL PATRIMONIO EN BRASIL
THE VERNACULAR ARCHITECTURE IN THE FORMATION AND
CONSOLIDATION OF THE HERITAGE FIELD IN BRAZIL

EIXO TEMÁTICO: 3 – História, Memória e Patrimônio

SANT´ANNA, Márcia G. de
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; professora da Faculdade de Arquitetura da UFBA
santanna.m@gmail.com

PAZ, Daniel J. M.
Doutor em Arquitetura e Urbanismo; professor da Faculdade de Arquitetura da UFBA
danielmelladopaz@gmail.com


RESUMO
Este ensaio propõe desvelar como a noção de arquitetura popular foi delimitada (em termos da seleção
dos objetos de interesse), estudada e valorizada como patrimônio ao longo do processo de formação do
“campo do patrimônio no Brasil”, dentro do conceito de campo de Pierre Bourdieu, espaço estruturado de
posições ocupadas por agentes sociais, com lutas e disputas pelo poder simbólico. Entendemos que no
Brasil o campo do patrimônio se configurou e reconfigurou, principalmente, em três momentos: em 1930-
40, marcado pela fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e caracterizado por
profundas transformações políticas e por embates ideológicos que redefiniram a noção e a forma de
expressão da nacionalidade; de 1970 a 1990, com primeira e significativa ampliação do campo do
patrimônio e clara redefinição de suas questões; de 2000 em diante, com o consolidação da nova noção
de patrimônio cultural imaterial, que emergira na década anterior. Neste ensaio, exploraremos como as
transformações ocorridas nesses três momentos impactaram e afetaram a percepção e o reconhecimento
da arquitetura popular como patrimônio.

PALAVRAS-CHAVE: arquitetura vernácula; arquitetura popular; patrimônio; campo do patrimônio,

RESUMEN
Este ensayo propone desvelar cómo la noción de arquitectura popular fue delimitada (en términos de la
selección de objetos de interés), estudiada y valorada como patrimonio a lo largo del proceso de formación
del “campo del patrimonio en Brasil”, dentro del concepto de campo de Pierre Bourdieu, espacio
estructurado de posiciones ocupadas por agentes sociales, con luchas y disputas por el poder simbólico.
Entendemos que el campo del patrimonio en Brasil se configuró y reconfiguró principalmente en tres
momentos: en 1930-40, marcado por la fundación del Servicio de Patrimonio Histórico y Artístico Nacional
y caracterizado por profundas transformaciones políticas y choques ideológicos que redefinieron la noción
y la forma de expresión de la nacionalidad; de 1970 a 1990, con la primera y significativa expansión del
campo del patrimonio y una clara redefinición de sus temas; a partir del 2000, con la consolidación de la
nueva noción de patrimonio cultural inmaterial, surgida en la década anterior. En este ensayo exploraremos
cómo las transformaciones ocurridas en estos tres momentos impactaron y afectaron la percepción y el
reconocimiento de la arquitectura popular como patrimonio.

PALABRAS CLAVE: arquitectura vernácula; arquitectura popular; patrimonio; campo del patrimonio.

ABSTRACT
This essay proposes to unveil how the notion of vernacular architecture was delimited (in terms of the
selection of objects of interest), studied and valued as heritage throughout the process of formation of the
“field of heritage in Brazil”, within Pierre Bordieu´s concept of field, structured space of positions occupied
by social agents, with struggles and disputes for symbolic power. We understand that the field of heritage
in Brazil was mainly configured and reconfigured in three moments: in 1930-40, marked by the foundation
of the Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (National Historical and Artistic Heritage Service)
and characterized by deep political transformations and ideological clashes that redefined the notion and
the form of expression of nationality; from 1970 to 1990, with the first and significant expansion of the field
of heritage and a clear redefinition of its issues; from 2000 onwards, with the consolidation of the new notion
of intangible cultural heritage, which had emerged in the previous decade. In this essay, we will explore how
the transformations that took place in these three moments impacted and affected the perception and
recognition of vernacular architecture as heritage.

KEYWORDS: vernacular architecture; popular architecture; heritage; heritage field.

2
INTRODUÇÃO

Este ensaio busca dar conta de reflexões suscitadas pela disciplina Arquitetura Popular e
Patrimônio, ofertada, pela primeira vez, no Semestre Letivo Suplementar (SLS) da Universidade
Federal da Bahia, realizado no segundo semestre de 2020, sob o impacto da pandemia da Covid
19.1 A proposta geral, inspirada por um estudo, à época ainda em desenvolvimento no Programa
de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU), da UFPE (DANTAS, 2021), propunha
desvelar como a noção de arquitetura popular foi delimitada (em termos da seleção dos objetos
de interesse), estudada e valorizada como patrimônio ao longo do processo de formação do que
chamaremos, d’ora em diante, de “campo do patrimônio no Brasil”. Cabe registrar que estamos
adotando aqui o conceito de campo de Bourdieu (2003), ou seja, como um espaço estruturado
de posições ocupadas por agentes sociais, que se caracteriza também por ser de lutas e disputas
pelo o que este mesmo autor denomina de “poder simbólico”. Em suma, como aponta Peters
(2006), as ideias de “campo” ou “cenário social” em Bourdieu, referem-se ainda a qualquer
ambiente social no qual as posições dos agentes são definidas por montantes desiguais de poder
ou de recursos, como dinheiro, peso político ou autoridade científica. Os campos ou cenários
sociais possuem, assim, interesses em jogo específicos do seu universo, que visam inclusive à
manutenção ou à melhoria das posições, do capital simbólico e do prestígio dos seus agentes.
Por isso, constituem um espaço privilegiado de socialização, mas também de naturalização dos
interesses ou motivações que os estruturam, que surgem ou se afirmam como uma consequência
“natural” da existência do próprio campo.

Abordaremos, então, neste texto, o campo do patrimônio brasileiro como um espaço de produção
simbólica no sentido bourdieusiano do termo. Atualmente, este campo engloba diversos agentes
sociais, como instituições governamentais, universidades, pesquisadores, profissionais da
memória, intelectuais, artistas, grupos de vanguarda, organizações não-governamentais,
proprietários de bens tombados, moradores de sítios patrimonializados, grupos
detentores/produtores de saberes e práticas culturais, além de outros segmentos da sociedade.
Não trataremos, contudo, de todos eles, nem abordaremos os que são objeto de exame neste
artigo a partir de uma perspectiva classista (embora Bourdieu a inclua). Os abordaremos tendo

1
Este ensaio resulta das pesquisas e reflexões realizadas pelos autores, com a colaboração da Profa. Mariely Cabral
de Santana, na disciplina Temas Especiais em Teoria e História da Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo: Arquitetura
Popular e Patrimônio, ministrada entre setembro e dezembro de 2020, no Semestre Letivo Suplementar da
Faculdade de Arquitetura da UFBA

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como fio condutor a valorização da arquitetura popular como patrimônio, a partir das posições
políticas e de produção de saberes especializados que certos agentes detiveram ou conquistaram
neste campo e da possibilidade que tiveram, a partir dessas posições, de constituí-lo e delimitá-
lo, bem como de modifica-lo ou reestruturá-lo com o surgimento de novos interesses e questões.
Focalizaremos então agentes do campo que, muitas vezes simultaneamente, ocuparam posições
de poder (e de saber) nos planos institucional, acadêmico e profissional, de onde selecionaram,
delimitaram e, eventualmente, valorizaram e produziram a arquitetura popular como patrimônio.

Entendemos que no Brasil o campo do patrimônio se configurou e reconfigurou, principalmente,


em três momentos. O primeiro deles, que corresponde à sua formação inicial, localiza-se nas
primeiras décadas do século XX, em plena aceleração da modernização urbana, quando
edificações do passado foram demolidas para dar lugar a vias mais largas e a construções novas.
Assim, corresponde também às reações à sensibilidade estética segundo a qual essa
modernização fora empreendida. Por fim, este período caracteriza-se por profundas
transformações políticas e por embates ideológicos que redefiniram a noção e a forma de
expressão da nacionalidade. No segundo momento, que se desenvolveu dos anos 1970 a 1990,
ocorre uma primeira e significativa ampliação do campo, com clara redefinição de suas questões.
Caracteriza-se pelas disputas entre militares e resistência democrática pelo apoio das camadas
populares, pelo crescimento das instituições estatais na área da cultura e da preservação do
patrimônio, pelo processo de redemocratização do país e pela absorção na academia e nos
movimentos sociais de uma noção de cultura referenciada no multiculturalismo norte americano.
Por fim, o terceiro momento, que se inaugura no ano 2000 com o desgaste da perspectiva
neoliberal praticada nos anos 1990 e com a ascensão ao poder central de forças políticas da
esquerda, quando, ainda numa perspectiva multiculturalista, políticas foram formuladas e
implementadas com foco no apoio à cultura e ao patrimônio das camadas populares. O campo
do patrimônio mais uma vez se ampliou e se reestruturou em resposta a esse processo, o que foi
fortalecido pela nova noção de patrimônio cultural imaterial, que emergira na década anterior.
Neste ensaio, exploraremos como as transformações ocorridas nesses três momentos
impactaram e afetaram a percepção e o reconhecimento da arquitetura popular como patrimônio.

Investigações anteriores já haviam nos mostrado o forte vínculo entre os agentes que inauguram
as políticas de preservação do patrimônio e o desenvolvimento dos primeiros estudos no Brasil
sobre arquitetura popular, tanto como arte e técnica quanto como categoria sociológica (PAZ &
SANT’ANNA, 2017). Os mais de 80 anos transcorridos desde a consolidação de um campo do

4
patrimônio no país, nos fornece agora uma preciosa oportunidade de ensaiar uma visão mais
geral desse processo. É o que tentaremos fazer nas páginas seguintes.

OS ANOS 1930/40

Embora um campo do patrimônio se configure no Brasil já nas décadas de 1910 e 20, quando
uma elite política e intelectualizada brada contra o “bota abaixo” das reformas urbanas então
empreendidas em algumas capitais do país e lamenta o abandono e o desconhecimento de
preciosidades artísticas e arquitetônicas nas suas áreas de ocupação mais antiga,2 a criação do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (doravante denominado IPHAN)3, em 1937,
criou um espaço privilegiado para o debate de vários temas correlatos, inclusive o da arquitetura
popular, capitaneado pela fração da elite modernista então à frente da instituição. Esse espaço,
em grande parte, configurava-se na revista que foi criada e lançada naquele mesmo ano por este
grupo e que logo se tornou o veículo por excelência de registro e propagação das suas ideias e
dos colaboradores que mobilizava. No primeiro número da Revista do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (doravante Revista do Patrimônio), Rodrigo Melo Franco de
Andrade, informa:

A publicação desta revista não é uma iniciativa de propaganda do Serviço do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional, cujas atividades, por serem ainda muito modestas e limitadas,
não justificariam tão cedo a impressão dispendiosa de um volume exclusivamente para
registrá-las. O objetivo visado aqui consiste antes de tudo em divulgar o conhecimento dos
valores de arte e de história que o Brasil possue e contribuir empenhadamente para seu
estudo. (RSPHAN, n° 1, p. 3).

Em busca da implementação desse objetivo, Rodrigo M. F. Andrade convidava intelectuais e


pesquisadores de todo o Brasil interessados na discussão do patrimônio e dispostos a divulgar
seus estudos na Revista do Patrimônio, sob a chancela da recém-criada instituição. O diálogo

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Estamos aqui nos referindo não somente aos escritos e propostas de preservação da vanguarda modernista,
capitaneada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, dentre outros, mas também às
tentativas de criação de instituições e legislações de preservação, como as realizadas pelos deputados Jair Lins, de
Minas Gerais, e Wanderley Pinho, da Bahia (ver a respeito SANT’ANNA, 2017, p. 100-110 e JACQUES & CABRAL,
2018, p. 1-39).
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O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) foi transformado em: Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), em1946; Instituto (IPHAN) em 1970; Secretaria em 1979 e em Subsecretaria
em 1981 (ambas SPHAN); mais uma vez Secretaria (SPHAN), em 1985, instituição que foi substituída pelo Instituto
Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), em 1990. Em 1992, o nome desta última instituição foi mudado para Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), permanecendo assim até os dias atuais.

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entre os colaboradores, contudo, era heterogêneo em seu aporte: de um lado devido aos
constrangimentos colocados pelo próprio tema da identificação e proteção do patrimônio nacional
e, de outro, em decorrência de seus interesses específicos. De todo modo, muitos dos textos
correspondentes aos números publicados entre os anos 1930 e 40 tornaram-se clássicos para
várias áreas, inclusive para os estudos da arquitetura popular. De fato, os primeiros estudos que
focalizaram e, até mesmo, utilizaram a expressão “arquitetura popular” surgiram no âmbito dessa
vanguarda modernista que tomou para si a construção e a preservação do patrimônio nacional,
tanto de modo central como tangencial ou, ainda, a partir de perspectivas distintas (SANT’ANNA,
2013, p. 46). Lucio Costa, Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Paulo Thedim Barreto, Curt
Nimuendaju – a partir de estudos arquitetônicos, construtivos, artísticos, sociológicos e
antropológicos – valorizaram a produção popular na formação de uma tradição artística e
construtiva nacional e como indicadora de status ou expressão de relações sociais, simbólicas e
de modos de vida. É possível então afirmar que este tema ou campo de estudos surge no Brasil,
de modo mais explícito e sistemático, em articulação às questões que animavam o campo do
patrimônio nesse momento, ou seja: o caráter da nossa arte e arquitetura, a formação da nossa
sociedade e suas relações de dominação e submissão, o papel e o peso dos regionalismos na
configuração do que se entendia ser a identidade nacional.

Considerando-se, nas décadas de 1930 e 40, a Revista do Patrimônio e as demais publicações


do IPHAN como espaços privilegiados da articulação estabelecida entre arquitetura popular e
patrimônio, pelo menos quatro textos surgem como fundamentais: Documentação Necessária,
de Lúcio Costa (RPHAN, n° 1, p. 31-40); Mucambos do Nordeste, de Gilberto Freyre (monografia
da série Publicações, publicada pelo IPHAN em 1937); O Piauí e a sua Arquitetura, de Paulo
Thedim Barreto (RPHAN, n° 02, p. 187-224); e Notas sobe a Arquitetura Rural Paulista do
Segundo Século, de Luís Saia (RPHAN, n° 08, p. 211-275). Dessa safra, cabe ainda citar A
Habitação dos Timbira, de Curt Nimuendaju (RPHAN, n° 08, p. 76-101), mas, a despeito de ser
uma obra pioneira e de grande interesse para a Antropologia e de trazer minuciosas descrições
a casa e a aldeia do grupo Ramkokamekrá, não as discute, apresenta ou lhes atribui valor como
patrimônio nacional, embora, aos olhos de hoje, se possa considerar como implícita esta
perspectiva já que, no texto, é claro o vínculo entre esses elementos, a cultura, a organização
social e a visão dos Timbira sobre si e sobre o mundo. Alguns desses textos se comunicam entre
si e constituem diálogos entre algumas dessas pessoas, mas a produção é rarefeita e apresenta
diferenças expressivas de objeto e método.

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A compreensão da importância da contribuição de Lucio Costa na valorização da dimensão
popular da arquitetura brasileira passa pelo entendimento da sua posição nos campos da
arquitetura e do urbanismo, de um modo geral, e no do patrimônio, em particular. No primeiro,
Costa era já, à época, um arquiteto proeminente na cena cultural, em grande parte, como
consequência da sua passagem pela direção da Academia Nacional Belas Artes, entre 1930-31,
quando revolucionou o ensino e as artes plásticas do país, bem como da liderança que exerceu
na proposta criação do prédio do antigo Ministério da Educação e Saúde (MES), “obra fundante”
da arquitetura moderna no Brasil (WISNIK, 2001, p. 7). No campo do patrimônio, então em
formação, ocupava a posição de diretor da antiga Divisão de Estudos e Tombamentos do SPHAN,
coração da política de proteção que se implantava naquele momento. Lucio Costa era, portanto,
alguém proeminente em ambos os campos, inclusive, por já estar dando os passos que o
tornariam, como observa Wisnik (2001, p. 7), “fundador na nossa historiografia arquitetônica”.

No artigo Documentação Necessária, Costa aponta a origem popular da arquitetura civil do Brasil,
examinando-a do período colonial até a primeira década do século XX. Pela primeira vez explicita
a sua tese de que a arquitetura moderna seria a legítima herdeira e o ponto culminante de um
processo de evolução que tem como ponto de partida a tradição construtiva popular portuguesa,
a um só tempo “rude”, “viril” e “acolhedora”, que foi preservada e adaptada no Brasil por mestres
de obras “incultos”. O resultado teria sido o surgimento aqui de uma arquitetura desataviada, com
proporções justas e “saúde plástica perfeita”. Uma arquitetura sem fingimentos, na qual as formas
correspondem às funções e na qual não se falseia o sistema construtivo. Os exemplos de Lúcio
Costa vêm da zona rural e das residências das “velhas cidades mineiras”, descritas em suas
características gerais de implantação, volumetria e coberturas, assinalando o caráter engenhoso
do seu processo de construção, que denomina de “barro armado com madeira”.4 Além de
defender o uso dessa tradição construtiva para casas econômicas, recomenda vivamente o seu
estudo sistemático, estabelecendo as bases de um projeto de pesquisa que não se realizou
enquanto tal, mas a cujos fundamentos permaneceu fiel ao longo da vida.5 Além da crítica ao
mau ensino da arquitetura, com sua confusa bagagem “tecno-decorativa”, ao neocolonial e ao
ecletismo de um modo geral – arquiteturas que, em outros textos, denominou, respectivamente,

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Se assim o concreto armado tornava-se uma continuidade natural de uma técnica antiga, também permitia abordar
o uso da terra com outros olhos. Não era um artifício retórico: Lucio Costa propôs o uso de paredes de pau-a-pique
sobre lajes de concreto armado para o concurso da Vila de Monlevade, de 1934. Essa iniciativa ele mesmo
mencionou no seu artigo Documentação Necessária.
5
Como no projeto que fez para a casa do poeta Tiago de Mello, em Barreirinhas, Amazonas, nos anos 1970.

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de “falsa” e “bastarda” – Costa explicita aqui uma abordagem teleológica da evolução da
arquitetura brasileira, segundo a qual essa tradição luso-brasileira saudável desembocaria na
igualmente sadia arquitetura moderna. E uma expressão dessa trajetória estaria na redução
progressiva do tamanho das paredes, na espessura e presença dos panos de alvenaria, à medida
em que a estrutura portante se aperfeiçoava, até alcançar a fachada-cortina moderna que, longe
de ser algo estranho e exógeno, segundo o raciocínio de Lucio Costa, seria o resultado inevitável
daquela progressão. A arquitetura moderna estaria, assim, dentro do espírito da genuína
arquitetura nacional e de sua evolução.

É importante observar que, neste texto, Lucio Costa, a despeito de sublinhar o caráter popular da
arquitetura civil do período colonial, a descreve e a aborda como “a arquitetura” e não como “uma
espécie de arquitetura”. Como aponta Wisnik (2001, p. 15), segundo ele, a boa arquitetura teria
se reproduzido aqui não por meio de um cânone importado, “mas da conservação de práticas e
costumes ligados a um saber construtivo mais empírico, herdado do período colonial – cuja
propagação difusa e informal foi capaz de mantê-las ao longo dos séculos –, esse saber leigo
seguiu dando a feição da construção popular no Brasil”.

Mucambos do Nordeste é um ensaio publicado em 1937, escrito por Gilberto Freyre a pedido do
IPHAN. Rodrigo M.F. de Andrade, já no prefácio dessa publicação, deixava clara a intenção do
órgão e de sua revista de prestar atenção ao “engenho popular”, neste caso, pelas mãos de uma
indiscutível autoridade nas Ciências Sociais, que tanta atenção estava dedicando à casa
brasileira. O texto é pequeno e desigual, e nele o autor aborda os mucambos em duas escalas
distintas: a dos exemplares de Recife e de suas cercanias, com ilustrações precisas e mesmo
detalhes técnicos e a da identificação de “complexos” regionais, ligados à disponibilidade de
matéria-prima vegetal versátil (a barriguda, o buriti, a carnaúba, o coqueiro-da-índia), a partir da
obra pioneira de Philipp von Luetzelburg, Estudo Botânico do Nordeste (primeiro volume
publicado em 1923). Na continuação do seu clássico Casa-Grande & Senzala, Sobrados &
Mucambos, publicado em 1936, um ano antes do ensaio feito para o IPHAN, Freyre trabalha com
considerações mais gerais, válidas nacionalmente, empregando o termo “mucambo” de maneira
mais elástica. Seguia o seu método de usar um termo específico referente a um tipo de moradia
(casa-grande, senzala, sobrado, quinta) em um sentido mais sociológico, no qual procura
estabelecer uma compreensão da dinâmica da sociedade por meio de oposições que se
complementam (a casa-grande e a senzala, o sobrado e o mucambo, o sobrado e a rua). Ao

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mesmo tempo, dirige o olhar para a residência como abrigo da família e como um meio de
compreender sua vida íntima.

O mucambo, para Freyre, é o símbolo de toda habitação primitiva dos mais pobres a despeito de
seu material construtivo ser vegetal ou industrializado. Em Mucambos do Nordeste algo de
registro e cadastro de exemplares aparece, sem nenhuma pretensão do autor de ser metódico.
A obra avança, no entanto, na defesa desse tipo de arquitetura contra a pecha de monstruosidade
anti-higiênica, no que chamou de “mucambofobia”. Defende seu valor estético – a singeleza de
linhas e a delicadeza do trançado de suas paredes de palha, que o aparentava à arte da renda –
, mas, principalmente, sua adequação higiênica. Para tanto, faz uma importante distinção entre
aspectos sociológicos, os grandes responsáveis pela insalubridade dos mucambos, isolados e
aglomerados, daqueles mais propriamente tipológicos e decorrentes da tecnologia construtiva. O
mucambo seria, como a casa-grande em tempos coloniais, uma verdadeira arquitetura
lusotropical, termo que cunhou para designar os elementos adaptados aos trópicos e suas
exigências. Seria inclusive superior aos sobrados oitocentistas e casas urbanas usuais, na sua
performance em termos de ventilação e iluminação. Os problemas sanitários não seriam,
portanto, intrínsecos nem ao seu material, nem ao seu tipo edilício. O mucambo exigiria apenas
melhorias hidrossanitárias e a solução do contato com o solo, que era problema também de
origem social, pois essas habitações, em especial nas cidades, ocupavam os piores terrenos, os
baixios alagadiços e as áreas de mangue. Com isso, Freyre ensaiava um esquema de distribuição
espacial e procurava aplicar ao caso uma adaptação dos conceitos da Escola Sociológica de
Chicago, da Ecologia Humana, como os de invasão e sucessão.6 Como os mucambos eram
construções mais frágeis, e vistas com desprezo, tinham uma presença efêmera e podiam ser
interpretados à luz de tais processos de transformação, uma vez que eram continuamente
expulsos para zonas mais profundas do país, em uma visão regional, e para as áreas menos
desejadas nas cidades, onde os aterros improvisados pelos mucambeiros pioravam as questões
sanitárias. Equacionados tais problemas e respeitados sua planta e seus materiais, tornava-se o
mucambo uma alternativa habitacional válida, dentro do projeto freyreano de afirmação de uma
outra modernidade brasileira, que incorporasse os avanços técnico-científicos sem desprezar os
valores culturais próprios. O mucambo seria então uma legítima resposta ao meio e uma

6
Tomando como base a Ecologia Natural, e ainda os fitogeógrafos, tais cientistas sociais entendiam como processos
sociológicos fundamentais na Ecologia Humana aqueles ligados à competição de uma espécie com as demais em
uma dada região. Assim, a dominância de uma espécie – no caso de Freyre, de um tipo de casa e seu morador –
seria ameaçado pela invasão de outra e, com a vitória desta, estaria completada a sucessão (PIERSON, 1970.)

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importante síntese cultural, com procedência mestiça: ancestrais portugueses longevos, traços
ameríndios predominando no interior e, nas cidades, os africanos, incorporando ainda inovações
diversas com o passar do tempo.

No artigo O Piauí e a sua Arquitetura, Paulo Thedim Barreto focaliza sua abordagem na “casa
piauiense” do Norte e do Sudeste desse estado. Ele rastreia a procedência de certos traços
arquitetônicos, creditando-os ao processo de colonização do Piauí a partir do Maranhão e do rio
São Francisco, assinalando de modo pioneiro e detalhado na configuração da arquitetura popular
desse estado a dimensão da difusão cultural interna no país. Por isso, a cada momento, coteja
os aspectos dos edifícios do Maranhão com os do Piauí, salientando as transformações, as
adaptações às condições locais, como por exemplo “o clima é seco, quente e debilitante”
(BARRETO, 1938, p 194), uma das causas da particularidade da casa piauiense. Define as casas
dessa região como uma adaptação às circunstâncias locais da “meia morada” e da “morada
inteira” do Maranhão, entretanto, mais “esparramada”, maior e mais baixa. Assinala
explicitamente que essa arquitetura é de “pura expressão popular” (Idem, p. 195). Suas
características gerais e as formas das plantas são minuciosamente descritas, assim como suas
particularidades ou aspectos distintivos, a exemplo das varandas voltadas para os fundos do
terreno, que, no Maranhão, são rotuladas por causa das chuvas constantes e, no Piauí,
totalmente abertas e mais baixas, devido ao sol causticante. Descreve, ainda, o elemento
denominado “correr”, uma circulação aberta que liga a varanda ao puxado lateral e à cozinha,
assinalando que, quando a necessidade de cômodos é ainda maior, este elemento é rebatido
para o outro lado da varanda, formando a planta em “U”. O combate dessa arquitetura ao clima
tórrido é assinalado também na preocupação com a ventilação, nos cômodos amplos, nos pés
direitos muito altos, nas paredes internas a meia altura e na cobertura de telha vã. Os tipos de
telhado, que dão nome às construções – “beira e bica” e “meia água” –, são minuciosamente
descritos, assim como suas estruturas, o armazenamento de água de chuva que propiciam, além
do sistema construtivo em taipa de mão e estrutura de carnaúba, detalhes artísticos e mobiliário,
onde bilheiras, potes e redes são os objetos de maior adorno. Tudo acompanhado de farta
documentação gráfica, em desenhos e fotografias. A arquitetura religiosa também é abordada
por Barreto, que as caracteriza de pobres e pouco dignas de atenção, com exceção das matrizes
de Oeiras e Piracuruca, que, contudo, foram encomendadas e não “concebidas pelo povo” (Idem,
p. 222). Barreto conclui seu artigo com breves notícias sobre a arquitetura funerária do Piauí.

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Ao lado disso, realiza na área estudada a pesquisa concebida, mas jamais concluída por Lúcio
Costa, podendo também ser visto como um daqueles estudos que executa a diretriz geral do
IPHAN, naqueles primeiros tempos, de conhecer para proteger, embora o resultado desses
trabalhos não se expresse nos processos de tombamento da época. O artigo de Paulo Thedim
corresponde, assim, a um primeiro inventário de caráter mais sistemático da arquitetura popular
nordestina com vistas à sua proteção, que, contudo, somente foi realizada muito depois. Assim
como Freyre, o autor explora bastante e dá relevo ao que chamaríamos hoje de caráter ecológico,
ou inserido no ambiente, dessa arquitetura popular do Piauí. Não se percebe a intenção,
entretanto, ao menos tão claramente como em Lucio Costa, de construir um vínculo explícito
entre essa arquitetura e uma identidade nacional. Contudo, a atribuição de valor estético e
funcional à sua simplicidade e honestidade construtiva está clara e a possibilidade de vê-la como
um patrimônio a ser protegido também.

Na edição número 3 da Revista do Patrimônio, datada de 1939, saiu o artigo O Alpendre nas
Capelas Brasileiras, onde Luís Saia apresenta conjecturas sobre dois dispositivos constantes na
arquitetura popular brasileira: a latada e o alpendre (SAIA, 1939). A latada – espécie de jirau ou
caramanchão feito em madeira e coberto com palha para dar sombra – aparece como um
exemplo introdutório de uma tese geral sua: a do amestiçamento de elementos construtivos e
arquitetônicos, mediante o qual, apesar do resultado final ser um híbrido, a parte incorporada
traria, a reboque, soluções técnicas que lhe eram próprias. Via nas latadas empregadas nas
habitações sertanejas nordestinas uma incorporação de origem exterior, talvez de influência
hispano-americana, exigindo que se averiguasse sua presença em zonas intermediárias como
Goiás e Mato Grosso. No caso dos alpendres brasileiros, questiona a tese de Gilberto Freyre
apresentada em Casa-Grande & Senzala, segundo a qual os alpendres das casas-grandes foram
incorporados nas capelas. Saia refutava essa possibilidade considerando que o alpendre não era
incomum nas igrejas europeias, mas uma solução tradicional e que, no Brasil, não era peculiar à
zona de predominância da casa-grande, e sequer era rural, comparecendo também nas cidades.
Identificava duas linhas de tradição independentes no emprego do alpendre na arquitetura
residencial e na religiosa. Embora usando escassos exemplos de todo o país, argumentava haver
uma nítida diferença técnica da solução do alpendre: nas capelas, exceto as romeiras, o piso é
sempre alteado, e os pilares são de alvenaria; nas casas os esteios são de madeira e, sobretudo,
os alpendres são um conjunto quase autônomo. Nas casas-grandes o alpendre é uma extensão
do telhado: nas nordestinas, é um prolongamento da água da fachada; nas do Sul, se encaixa no
retângulo do edifício e se configura como um compartimento da casa, aberto de um dos lados.

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Podemos apontar, nesse momento, que a razão para o nartex, a forma primitiva dos adros
alpendrados das igrejas cristãs, era a separação social e ritual, um espaço de transição para os
fiéis que podiam ou não deviam entrar no corpo da igreja. No Brasil, a razão seria similar e
destinada a abrigar atividades festivas, como as danças populares, e o excesso de pessoas em
tais ocasiões, sobretudo os escravos. Nos anos e textos subsequentes Saia aprofundaria a ideia
de uma “mestiçagem técnica”, assim como a atenção dada a esse espaço de transição coberto
(o alpendre) que serviria ademais para separar estratos sociais.

No número 8 da Revista do Patrimônio, nominalmente do ano de 1944, foi publicado o texto Notas
sobre a Arquitetura Rural Paulista do Segundo Século7, que é mais específico regionalmente,
mas é mais ambicioso nas conjecturas que faz. A partir de 12 exemplares de sedes de fazenda
estudados em profundidade, Saia estabelece uma série de hipóteses para as famosas “casas
bandeiristas”, dos fazendeiros mais abastados do século XVII. Identifica um padrão de
implantação, a meia-altura da paisagem e com fachada principal orientada para o Norte ou
Nordeste, protegendo-se do gélido vento Sul, uma resposta topográfica e de orientação a
aspectos mesológicos. As casas, invariavelmente retangulares e com telhado de quatro águas,
sempre se assentavam em plano único, exigindo plataformas artificiais quando em terrenos
inclinados. A técnica construtiva, a taipa de pilão, com suas espessas paredes autoportantes, e
a solução de planta davam pouca flexibilidade para outros tipos de assentamento. Saia
reconhecia uma faixa na parte dianteira da casa formada pelo alpendre central, onde estava a
entrada da casa, ladeado pela capela e pelo quarto de hóspedes, estes sem passagem para o
interior. Dentro, uma sala no centro articulava os quartos de dormir perimetrais, com divisões que
prolongavam as daquela da faixa frontal. Atrás, um outro alpendre ou compartimentos menores.
Nos exemplares estudados, as plantas apresentavam variedade no interior, mas com a faixa
frontal de configuração mais homogênea. O arquiteto ensaia, provavelmente com inspiração em
Gilberto Freyre, uma explicação sociológica relacionada à família patriarcal da época. A planta
interior, mais variada, corresponderia à esfera íntima e a faixa frontal atenderia a uma
necessidade da relação patriarcal do chefe regional com os demais, incluindo escravaria e
clientela. Esta relação incluía a obrigação de hospedar a visitantes, de atender, na capela, aos
fiéis das redondezas e, no alpendre, receber gente, julgar conflitos e dar ordens. O alpendre era
ligado, portanto, a uma estrutura social, e não destinado somente ao abrigo do calor e da chuva.
Garantia a separação de classes, o que se repetia na capela, pois, aberta para o alpendre, tinha

7
A revista foi publicada em 1947 (RIBEIRO, 2012).

12
aumentada a capacidade do seu público, enquanto a família acompanhava os ofícios a partir do
interior da casa, separada dos demais por tabiques gradeados. Na ausência de um cômodo que
pudesse ser identificado com a cozinha, Saia faz outra conjectura igualmente importante: sua
ausência seria resultante dos costumes indígenas na maneira de cozinhar, que empregavam
tripeças e outros dispositivos ligeiros. Reforça essa ideia apontando que, dentre os escravos
nativos, muitos estariam ligados ao serviço doméstico, incluindo cozinheiras. Por um lado,
apresenta a ideia de que a esfera feminina, fisicamente restrita aos recessos da casa, teria traços
indígenas mais intensos. Com isso, explicava uma particularidade regional, dado que, no
Nordeste, as cozinhas eram presenças ostensivas nas casas-grandes e análogos.

O que, nesses textos, seriam “notas” específicas, depois são ampliadas, abrangendo toda a
região do Estado de São Paulo. Em suas Notas para a Teorização de São Paulo e no Quadro
Geral dos Monumentos Paulistas (SAIA, 1978), o arquiteto paulista organiza suas hipóteses
sobre a casa bandeirista em um conjunto mais abrangente, territorial. A casa bandeirista seria
expressão de uma colonização que não seguiu a “solução pelágica”, isto é, a exploração intensiva
e rentável das áreas litorâneas em uníssono com os entrepostos marítimos, mas o avanço dos
colonos para o interior, sem o mesmo retorno no quadro do mercantilismo. Eles competiram e
venceram os jesuítas, a outra força de ocupação com sua lógica própria de assentamento, e
tomaram para si terras e grupos indígenas. Diante de terras sem grande valor e da constante
atividade de guerra, o número de homens tornou-se fator essencial de poder: daí a importância
do apresamento de indígenas e do vasto número de filhos mestiços. Assim, seria uma sociedade
de perfil mestiço e militar, com traços feudais, distribuída sobre um território extenso e em
expansão. A casa bandeirista seria sua expressão e seu instrumento, com uma planta estável
durante um longo período, de 1611 a 1727, que negava o binômio urbano-rural tão importante na
colonização de outras áreas do país. Ou seja, apesar de atribuir um caráter precário ao material
empregado (taipa de pilão e madeira), Saia nota que o partido arquitetônico de tais casas
senhoriais foi de adoção quase unânime, e sua permanência, em diferentes e sucessivas
estruturas econômico-sociais, por certo revelava uma congruência com a dinâmica econômica,
sociológica, religiosa e doméstica. E além da mestiçagem biológica e cultural nas famílias, Saia
identificava na casa bandeirista um partido que unia soluções de procedências diversas, e uma
artesanatificação da técnica nas condições adversas da colônia, que retrocederia de uma divisão
do trabalho especializado na Europa e de suas soluções individualizadas, para soluções coletivas
e consolidadas de problemas-tipo, expressando-se em formas técnicas mais simples e próximas
de uma especialização meramente muscular.

13
Digno de nota é esse conjunto de hipóteses, nas quais surgem “abaixo” a família e a mestiçagem
e, “acima”, a estrutura social como um todo, o perfil feudal-militar, a importância do braço humano,
em contraposição à propriedade de bens imóveis para dar sentido à arquitetura, animar os
recintos vazios das ruínas remanescentes, explicar a relativa ausência da cozinha, a constância
do conjunto quarto de hóspedes/ alpendre/ capela, o arranjo geral das plantas. Além disso, a
hipótese das condições materiais da produção da arquitetura para explicar a simplificação da
técnica.

Nesse momento, podemos entender que o debate, quando abordava a arquitetura popular, o
fazia no bojo de uma preocupação que tanto apontava, em um nível mais geral, para aspectos
da formação brasileira e sua particularidade de ser uma “civilização brasileira” digna de participar
do concerto das nações; quanto, em aspectos mais específicos, para a caracterização da
arquitetura popular, suas técnicas e elementos. Não raro esse debate apresentava também uma
preocupação prospectiva, concebendo um presente e um futuro que, modernos, seriam ainda
legitimamente nacionais, fiéis àquele legado, e parte da consolidação dessa civilização na
América do Sul.

OS ANOS 1970/80

Tanto no plano internacional quanto no Brasil, o campo do patrimônio se expande nos anos 1970.
Já em 1964, a Carta de Veneza8 estabelece que a noção de monumento histórico se estende “às
obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural” (Art. 1°).
Tipológica e cronologicamente, o objeto de interesse do campo se estende, não somente em
consequência das destruições da Segunda Guerra Mundial, mas também do peso, cada vez
maior, do valor etnológico ou antropológico na configuração do patrimônio.9 No Brasil, a expansão
do campo se processa dentro e fora do Estado. No primeiro caso, mediante a criação de novos
organismos de preservação nas esferas estadual e municipal e, no segundo, por meio do
crescimento do interesse de pesquisadores e profissionais da arquitetura e urbanismo pelo
patrimônio, em consequência da crise e do questionamento das certezas do Movimento Moderno
sobre arquitetura e ambiente humano. Contudo, a despeito disso, o IPHAN manteve uma posição

8
Do II Congresso de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos.
9
Ver definição de patrimônio cultural na Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural da UNESCO (1972).

14
de centralidade e liderança no campo, embora, pela primeira, a sua prática torne-se foco de
pesadas críticas e questionamentos por parte dos novos agentes.

O surgimento, nos anos 1970, de cursos de formação de profissionais especializados em


conservação e restauração de objetos, edificações e núcleos urbanos teve também um papel
importante na ampliação do campo do patrimônio, assim como o resultado dos primeiros
inventários de documentação do patrimônio edificado no país. Revistas especializadas, como a
Projeto, contemplaram este tema e igualmente contribuíram para ampliar as formas de difusão.
No IPHAN, além da retomada da Revista do Patrimônio nos anos 1980,10 com novo formato e
design, a criação da Fundação Nacional Pró-Memória (doravante FNPM)11, em 1979, propiciou o
surgimento do Boletim SPHAN/Pró-Memória, publicado com relativa constância até 1989. A
FNPM, que tinha como missão ser o braço executivo e dar mais agilidade administrativa ao
IPHAN, proporcionou a chegada de técnicos com variados perfis profissionais – historiadores,
sociólogos, antropólogos, educadores, urbanistas, dentre outros – a uma instituição que, em sua
primeira fase (1937-1967), tinha 70% do total de seu corpo de funcionários formados por
arquitetos e engenheiros (ver CHUVA, 2009, p. 198).

O foco nos estudos sobre contextos culturais e socioeconômicos específicos, que assinalam, sob
influência de historiadores marxistas e teóricos do multiculturalismo, uma nova compreensão da
formação social e cultural do Brasil, se amplia já no final dos anos 1970, aprofundando-se na
década de 1980 com o fim da ditadura militar e com o processo de redemocratização do país.
Movimentos sociais que reúnem grupos de origem africana, europeia e asiática emergem como
sujeitos e intérpretes do seu patrimônio e reivindicam lugar nas políticas de preservação, de par
com uma classe média urbana que igualmente reivindica a preservação do patrimônio ambiental
das grandes cidades. O engajamento de intelectuais e o apoio de políticos progressistas às
reivindicações desses grupos e movimentos sociais, juntamente com a crescente atuação de
historiadores e antropólogos como mediadores entre comunidades e agentes do Estado,

10
A primeira sequência da Revista do Patrimônio que tem início em 1937 foi interrompida em 1969, no seu número
17. A publicação foi retomada brevemente em 1978, com a publicação do número 18 ainda no formato antigo, e, de
novo paralisada até 1984, quando, com o número 19, tem início uma nova sequência que vai até 1987, com o
número 22.
11
A Fundação Nacional Pró-Memória, criada para funcionar como braço executivo do IPHAN e para dar a esta
instituição mais flexibilidade administrativa, foi extinta em 1990, durante o governo Collor de Mello.

15
impulsionaram a patrimonialização de bens vinculados às culturas populares e a valorização da
sua arquitetura.

Embora a produção discursiva que toma como objeto a arquitetura popular e a vincula ao
patrimônio tenha aumentado significativamente nesse período, podem ser apontados como
representativos dessa relação, os textos: Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro, de Carlos
Nelson Ferreira dos Santos (1981); A arquitetura do imigrante polonês na região de Curitiba, de
Jussara Valentini (1982); Arquitetura da Imigração Japonesa, de Celina Kuniyoshi, Hugo Segawa
e Walter Pires (1985) e Arquitetura vernacular: Vale do Paraíba, de Antônio Luiz Dias de Andrade
(1986). Um primeiro ponto a se ressaltar sobre esse pequeno conjunto, é que apenas o último
desses textos foi publicado na Revista do Patrimônio. O ensaio de Kuniyoshi, Segawa & Pires
saiu na revista Projeto, um periódico não especializado em patrimônio, mas em arquitetura de um
modo geral. O livro de Santos é resultado de pesquisa acadêmica12 e foi publicado por uma
editora comercial, que se dedicava a publicar trabalhos com este perfil e, por fim, o opúsculo de
Valentini foi publicado pelo Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. Como se vê,
a ampliação e diversificação dos meios de publicação já constituía então uma realidade. Um
segundo ponto digno de nota é que o tema da arquitetura da imigração, que pode ser definida
como uma dimensão da arquitetura popular, é de fato algo muito presente neste período, com
diversos outros autores se debruçando sobre o assunto, a exemplo de Günter Weimer, Paulo
Iroquez Bertussi, dentre outros. O interesse pela arquitetura popular “luso-brasileira” ou “mestiça”,
contudo, continuou, com estudos sobre suas distintas expressões regionais, ainda que, de certa
maneira, em segundo plano. A relativa ausência na Revista do Patrimônio de textos sobre
arquitetura, arte ou assentamento de povos indígenas, diferentemente do momento inicialmente
tratado, seria um último ponto a se destacar, a despeito da publicação de 104 mitos indígenas
compilados por Curt Nimuendaju no seu n° 21, em 1986. Em contrapartida, um conjunto
significativo e importante de obras de antropólogos, e até de arquitetos, que tratam da arquitetura
e do assentamento de diversas culturas indígenas, em sua tradicional relação com as respectivas
organizações sociais, é significativo nesse momento, a despeito da ausência de discussão sobre
o seu possível valor como patrimônio da nação.13

12
O livro corresponde à publicação de dissertação de mestrado defendida pelo autor em 1979 junto ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu da Nacional da UFRJ, com o título de Três Movimentos Sociais
Urbanos no Rio de Janeiro.
13
SÁ, Cristina; CORRÊA, Eduardo. Habitação Indígena no Alto Xingu, de Cristina Sá e /Eduardo Corrêa (1979); A
casa tupi-assurini: significado e construção, de Renato Delarole (1983); Formas e Símbolos em Aldeias Indígenas

16
Em Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro, Santos realiza uma etnografia de três movimentos
dessa natureza ocorridos, entre os anos 1960 e 1970, em consequência da implementação de
programas de erradicação de favelas e de renovação urbana. A obra pode ser considerada um
marco da mudança de perspectiva no pensamento urbanístico brasileiro da erradicação para a
integração desses assentamentos à cidade, assim como pioneira no que toca ao estudo desse
tipo de arquitetura popular. Discute, ainda, um conjunto de questões importantes como: o caráter
transitório e muito vinculado a momentos de crise das chamadas “comunidades faveladas”; sua
integração à lógica capitalista de produção do espaço urbano por ocasião da execução de planos
de reurbanização; as referências arquitetônicas que utilizam na concepção de moradias
consolidadas; a participação de moradores na proposição de projetos e planos e, por fim, as
formas de execução, cada vez menos em mutirão e, cada vez mais, mediante a contratação de
serviços. Analisando três situações dessa natureza na cidade do Rio de Janeiro – as favelas de
Brás de Pina e do Morro Azul, respectivamente na Av. Brasil e no Flamengo, e o bairro central
do Catumbi –, Santos examina, nos dois primeiros casos, a história e formação dessas
ocupações, seus “barracos” iniciais (em termos de implantação, materiais, agenciamento interno,
elementos recorrentes ou ausentes) e o surgimento de uma arquitetura popular em alvenaria, que
se distingue dos barracos pela presença de uma sala e de um corredor. Examina também a forma
dessas favelas, de suas vias e espaços, como consequência da estrutura dos bairros vizinhos,
das características do sítio ocupado e das determinações daqueles que exercem, no início e
também ao longo do tempo, o controle da ocupação.

Nesta obra, Santos não valoriza a favela ou suas construções como patrimônio, mas reconhece
o seu papel como solução arquitetônica e urbanística para o problema de moradia dos segmentos
populares nas grandes cidades. Introduz, em suma, a arquitetura da favela carioca como algo a
ser compreendido e estudado e não simplesmente como objeto de substituição. Será a partir
dessa perspectiva que, mais tarde, o seu reconhecimento como um patrimônio virá.14 Junto com
Movimentos Urbanos, podemos considerar o Quando a Rua Vira Casa (SANTOS e VOGEL,
1985),15 que volta a abordar o Catumbi, um bairro de classe média baixa. Nesta obra, podemos

Brasileiras, de Cristina Sá (1983); Habitações Indígenas, Sylvia Caiuby Novaes (org) (1983), dentre outros que,
juntamente com estes, possuem sínteses elaboradas no site Arquitetura Popular: espaços e saberes
(www.arqpop.arq.ufba.br).
14
Ver nesse sentido JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de
Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, 2ª edição.
15
Este livro foi publicado alguns anos depois e resultou da pesquisa intitulada “Espaço Social e Lazer, Estudo
Antropológico e Arquitetônico do Bairro de Catumbi”.

17
perceber como Santos buscou nas Ciências Sociais as ferramentas para compreender o espaço
urbano geral e o dos bairros e localidades. Dessa maneira podia pensar, sociologicamente, a
relação das favelas com a cidade e, mais antropologicamente, como ocorria a vida em bairros
tradicionais como este.

O trabalho de Valentini, por sua vez, visa ressaltar a contribuição cultural dos imigrantes na
formação do Paraná, no âmbito de um projeto que, além dos poloneses, abarcaria outros volumes
sobre italianos e alemães. Focaliza a arquitetura residencial, que teria preservado suas
características originais, e busca fornecer dela uma visão global, a partir do estudo das antigas
colônias nas quais esses imigrantes se instalaram no final do século XIX. O texto tem um perfil
muito técnico e voltado para a análise e o registro minucioso, fotográfico e gráfico – em plantas,
cortes e detalhes – dos sistemas construtivos, coberturas, programas, agenciamento dos
espaços, fachadas e demais elementos dessa arquitetura. O trabalho tem, portanto, uma clara
perspectiva de documentação arquitetônica, com vistas à preservação desses exemplares como
testemunhos da contribuição dos imigrantes europeus à formação recente da sociedade
brasileira. Não há, contudo, considerações teóricas ou conceituais sobre o caráter popular ou
vernacular dessa arquitetura, mas sua origem rural e vinculada à agricultura praticada pelos
poloneses é enfatizada.

O artigo Kuniyoshi, Segawa & Pires tem o objetivo declarado de preencher uma lacuna dos
estudos sobre a imigração japonesa: a análise do habitat do imigrante. Visa também entender
como o imigrante japonês desenvolveu formas de apropriação espacial em um meio físico e
cultural totalmente desconhecido. Assinalam inicialmente as três principais formas de fixação do
imigrante, ou seja, como mão-de-obra da lavoura cafeeira, como arrendatário ou meeiro e, por
fim, como proprietário – uma condição à qual ascende a partir das duas primeiras. Como, nos
dois primeiros casos, o imigrante vivia em moradias do empregador ou em estruturas provisórias
devido à precariedade da posse da terra, somente no terceiro teria surgido uma arquitetura
específica e articulada às suas tradições culturais. Os autores focalizam o município de Registro,
no Vale do Ribeira em São Paulo, e identificam, no processo de colonização japonesa dessa
região, duas etapas, a cada uma correspondendo um tipo de arquitetura. Na primeira, os edifícios
eram obra da companhia nipônica16 que viera para implantar culturas de café, arroz, cana-de-
açúcar e bicho-da-seda. As moradias, e também escolas, associações, capelas e galpões, eram

16
Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha (KKKK), subsidiária da Companhia Imperial.

18
construídas em taipa de mão, com utilização de madeira dura para a estrutura, tramas de
palmeira juçara e argamassa de barro misturada com palha de arroz. O piso assoalhado era
afastado do chão e a cobertura de palha ou lascas de madeira, substituídas depois por telhas
cerâmicas. Nessas casas, as particularidades propriamente orientais se expressavam nas
sambladuras utilizadas nas peças de madeira – o que permitia desmontagem e eventual
deslocamento da casa –, na estrutura de sustentação do telhado e na sua forma, em estilo
irimoya. Com a introdução da cultura do chá e com a crise do café, os imigrantes foram ganhando
autonomia em relação à companhia, o que inaugurou a segunda fase do processo de
colonização. A prosperidade da cultura do chá trouxe independência aos colonos e fez surgir uma
nova tipologia arquitetônica: a das fábricas de chá, constituídas por galpões com vão livre para
abrigar o maquinário no térreo e área para secagem das folhas no piso superior por ventilação
natural.

Para Kuniyoshi, Segawa & Pires, o estudo do habitat humano é importante, pois a arquitetura
“esconde em si” relações sociais, culturais e antropológicas que não poderiam ser acessadas por
outros meios ou documentos. Ou seja, a arquitetura do imigrante japonês é aqui valorizada como
documento de processos sociais e culturais e também do espaço criado por eles como resposta
às necessidades e estímulos colocados pelo meio, além de expressar a permanência de formas
e de modos de ser característicos do Japão. O estudo tem, assim, claramente, uma perspectiva
de preservação dos testemunhos históricos da saga japonesa no Brasil,

O último texto selecionado, Arquitetura vernacular: Vale do Paraíba, de Antônio Luiz Dias de
Andrade, trata da arquitetura que surge na periferia de grandes centros urbanos como expressão
da interdependência entre uma economia urbana e industrial e outra rural e agrária, sustentada
pela precariedade dos investimentos nesta última esfera como uma forma de regulagem de
preços para o mundo urbano que consome seus produtos. Esta seria, segundo o autor, a razão
de se encontrar nas zonas rurais formas persistentes de organização espacial, programas
inalterados, sistemas construtivos, partidos e mesmo intenções plásticas. Para Andrade, na
simplicidade dessa arquitetura se encontrariam informações preciosas para o estudo dos
sistemas construtivos tradicionais, além do entendimento da permanência, em edificações novas
e mesmo contrariamente à legislação municipal, de um partido edilício típico do século XIX,
caracterizado pela implantação da edificação na testada do lote; ausência de recuos laterais;
planta organizada em sala, cômodo intermediário e serviços ao fundo; cobertura em duas águas,
com cumeeira paralela à via; baldrames apoiados diretamente no solo; estrutura feita com

19
madeira geralmente em seção natural e vedações de pau a pique. Assinala ainda a permanência
de soluções originárias da arquitetura rural, devido ao êxodo de populações. Neste caso, as casas
desligam-se do ordenamento urbano, sendo dispostas nos lotes de modo desordenado, sendo
ainda dotadas de latadas, galinheiro e forno de barro. A partir dessas constatações, o autor realiza
um inventário da presença dessa arquitetura em localidades e áreas rurais do Vale do Paraíba,
São Paulo, assinalando semelhanças e particularidades, associando a precariedade da posse da
terra à das construções e caracterizando essa cultura como “organizada em torno de padrões
mínimos”, inclusive quanto às formas de lazer. Dá uma atenção especial às festas religiosas
populares e aos espaços que criam para abrigar seus programas, como barracas, ranchos para
festeiros, rústicas capelas erguidas em devoção a um santo ou como pagamento de promessa.

No final do texto, Andrade retoma sua reflexão sobre as razões econômicas dessas
permanências, associando-as também ao sistema colonial e à divisão internacional do trabalho,
que levaria países menos desenvolvidos a se equilibrarem em dívidas, contradições e miséria.
Além disso, a concentrarem os aperfeiçoamentos técnicos nos investimentos mais rentáveis,
como uma prerrogativa de grupos econômicos e financeiros dominantes. Para ele, este quadro
ajudaria a entender o renovado interesse por tecnologias alternativas e inspiradas em formas pré-
capitalistas de produção, como os mutirões para produção habitacional ou o melhoramento de
técnicas construtivas como taipa e adobe. Entende que seriam formas de se evitar mudanças
efetivas e de atenuar pressões sociais com investimentos de baixo custo. Assim, para Andrade,
único autor a publicar artigo sobre o tema da arquitetura popular na Revista do Patrimônio nesse
período, conforme já assinalado, essas formas tradicionais de construir e de habitar seriam
importantes e válidas como fontes ou categorias de análise histórica, sociológica e econômica,
por isso as registra e documenta, mas não são algo a ser preservado ou valorizado como
patrimônio, salvo se efetivamente pertencentes ao passado. Não teriam então valor como algo
vivo e ainda presente: seriam signos do atraso, da dependência econômica e do descaso. Esta,
contudo, não pode ser considerada uma postura predominante nos anos 1970 e 80, pois outros
autores como Marízia Patrício (1983), aproximam-se dessa arquitetura mestiça e descendente
dos mucambos de Freyre, como uma tipologia de grande valor patrimonial e social.

Cabe observar, que todos os textos selecionados para mostrar a relação entre arquitetura popular
e patrimônio nesse momento são fartamente ilustrados com desenhos e fotografias, o que os
aproxima dos inventários para documentação do patrimônio construído já ensaiados nos anos

20
1930 e 40. Escritos, em sua quase totalidade, por profissionais da arquitetura e do urbanismo,17
dão ênfase à descrição dos sistemas construtivos e ao registro de elementos espaciais,
arquitetônicos e aos programas de uso. Outra observação pertinente diz respeito à posição
desses autores no campo do patrimônio e à sua capacidade de influenciá-lo e/ou delimitá-lo. Em
comparação com os autores do período anterior, não temos aqui autoridades consagradas, pelo
menos não ainda, como Antônio Luiz Dias de Andrade, Hugo Segawa e Walter Pires se tornarão
depois.18 Apenas o primeiro trabalhava no IPHAN à época da publicação do seu texto, mas todos
podem ser caracterizados como uma nova geração que chega ao campo do patrimônio e põe em
questão a visão e a prática anterior, mas ainda sem força para mudá-la. Com exceção do texto
de Valentini, de perfil mais técnico, todos os demais derivam diretamente ou possuem traços
claros de pesquisa acadêmica aplicada à preservação do patrimônio. Assim, seu impacto no
campo foi significativo com relação à quantidade e ao perfil crítico dos estudos, mas, ao mesmo
tempo, pequeno, no sentido de constituir a arquitetura popular um alvo prioritário de ações
concretas de preservação. A despeito dos questionamentos que caracterizam os anos 1980, sua
reverberação prática não foi, portanto, grande, assim como sua capacidade de mudar a
mentalidade e a cultura institucional. A arquitetura popular seguiu sendo um objeto de interesse
para pesquisa e reflexão, mas sem vínculo direto com a ação protetiva. Arquiteturas e obras de
arte de caráter mais monumental continuaram sendo os principais elementos da construção do
edifício patrimonial. Mas textos, como os aqui analisados, já expressam as rachaduras nessa
obra – fissuras que foram aprofundadas, ainda nos anos 1980, pelos tombamentos de bens
culturais incluídos no que Aloísio Magalhães denominava de “patrimônio não consagrado”, como
o Quilombo dos Palmares (Serra da Barriga-AL), o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho
(Salvador-BA), o Presépio do Pipiripau (Belo Horizonte-MG), o conjunto de casas de madeira de
imigrantes italianos em Antônio Prado (RS) e a Fábrica de Vinho de Caju Tito Silva (João Pessoa-
PB). Esses tombamentos, contudo, embora envolvessem arquiteturas, expressões, saberes e
engenhos populares, destinavam-se a defender o seu caráter de monumentos históricos, no
sentido estabelecido pela Carta de Veneza, bem como de testemunhos do papel do negro, dos
imigrantes europeus e da cultura popular na formação da nacionalidade. Não chegavam a atribuir
à suas construções e espaços um valor específico como patrimônio.

17
Dentre os autores citados, apenas Celina Kunyioshi é historiadora.
18
Antônio Luiz Dias de Andrade tornou-se dirigente do IPHAN em São Paulo e Walter Pires foi, por muitos anos,
dirigente do Departamento do Patrimônio Histórico da cidade de São Paulo. Hugo Segawa, por sua vez, notabilizou-
se no campo acadêmico como um dos mais importantes historiadores da arquitetura moderna no Brasil.

21
DEPOIS DOS ANOS 1990

O campo do patrimônio caracteriza-se nos anos 1990 pela consolidação da perspectiva


antropológica, iniciada nos anos 1970, na constituição de patrimônios, instaurando um
progressivo deslocamento do interesse das “coisas” (objetos concretos) para os saberes e suas
expressões, algo que foi consubstanciado na expressão “patrimônio cultural imaterial”. No plano
internacional, o período é marcado pela relativa diminuição do poder dos países europeus na
delimitação do conteúdo e dos interesses do campo do patrimônio e pelo crescimento da
influência de países asiáticos, capitaneados inicialmente pelo Japão (e, em seguida, pela China).
Juntamente com países africanos e latino-americanos, essas nações vinham insatisfeitas com a
noção de patrimônio cultural praticada pela UNESCO a partir da promulgação da Convenção de
1972, a seu ver, excessivamente calcada numa noção de monumentalidade e de autenticidade
inadequadas aos seus contextos culturais. Essa reação asiática expressou-se na nomeação de
Koïshiro Matsura para a presidência dessa organização internacional, na criação do seu Setor de
Patrimônio Imaterial, na implementação do Programa Obras Primas do Patrimônio Cultural Oral
e Imaterial da Humanidade e no lançamento do Sistema Tesouros Humanos Vivos como principal
referência para a salvaguarda dessa dimensão do patrimônio. Esse sistema, derivado da Lei da
Cultura japonesa promulgada em 1950,19 baseia-se no fortalecimento da transmissão de saberes
e habilidades para novas gerações, mediante a declaração de mestres excepcionais de
determinadas práticas, fazeres e manifestações culturais como “Tesouros Humanos Vivos”.
Segundo essa visão asiática, o “patrimônio” não são as coisas produzidas ou os eventos em si,
mas os saberes e habilidades de pessoas que possibilitam sua existência e configuração no
tempo e no espaço. Esse raciocínio é transposto também à arquitetura, pois o que importa,
segundo essa concepção, não é a edificação – que pode ou mesmo deve ser substituída –, mas
os saberes e técnicas que são capazes de reproduzi-la e mantê-la em uso. A aprovação pela
Assembleia Geral da UNESCO, em 2003, da nova Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial, constituiu o ponto culminante e o principal marco desse processo.

No Brasil, antes mesmo que essas ideias começassem a reverberar, por ocasião do aniversário
de 60 anos da criação do IPHAN, inaugurou-se um movimento de resgate e retomada da
concepção ampliada de patrimônio proposta pela vanguarda artística modernista dos anos 1920
e pela FNPM nos anos 1970 e 80. Contudo, com uma importante diferença agora, ou seja, o

19
Bunka Cho, ou Lei da Cultura, foi uma resposta à invasão cultural americana no Japão após a Segunda Guerra
Mundial.

22
reconhecimento da necessidade de criação de novos instrumentos de identificação e proteção
para que a tarefa de salvaguardar esses bens culturais vivos pudesse ser bem-sucedida. A partir
de seminário realizado pelo IPHAN em Fortaleza, em 1997,20 foram lançadas as bases de uma
nova política de salvaguarda que passou a ser desenvolvida a partir do ano 2000, com a
promulgação do Decreto 3.551, que criou o Registro de bens culturais de natureza imaterial e o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Naquele mesmo ano, foi concluído e testado o
Inventário Nacional de Referências Culturais (doravante INRC), instrumento de produção de
conhecimento para instrução de processos de Registro e determinação das prioridades dessa
política.

Ao longo dos anos 2000 e 2010, desenvolveu-se no Brasil uma política de salvaguarda dessa
dimensão imaterial do patrimônio cultural que produziu impactos importantes no campo, tanto no
sentido da agregação de novos agentes, quanto da colocação em xeque da cultura institucional
dominante. Detentores ou sujeitos produtores de bens culturais imateriais e suas organizações
ganharam relevo nessa arena, assim como os profissionais (em geral antropólogos) que realizam
a mediação entre eles e o Estado, que passaram a disputar com os especialistas tradicionais do
campo a competência de valorizar e constituir patrimônios. No que toca à arquitetura, essa
mudança se expressou numa migração do foco de interesse na edificação, seus programas e
espaços, para a técnica construtiva, para os saberes e conhecimentos que possibilitam sua
existência concreta e para os usos e sentidos que as mantêm vinculadas à vida cotidiana e à
cultura dos grupos sociais. Sob esse prisma, a edificação torna-se resultado dos conhecimentos
de determinados sujeitos e sua preservação abordada em função da possibilidade de
transmissão e permanência de seus saberes.

Essa mudança de perspectiva se refletiu em textos produzidos por intelectuais do campo que
reivindicaram a necessidade de se abordar o patrimônio como conjunto representativo das
referências culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira (MENESES, 2018), e “de
transferir o excessivo e por vezes exclusivo foco de interesse nos bens (materiais ou imateriais),
e no poder público, para os sujeitos – os agentes humanos, nas suas multiformes interações”
(MENESES, 2017, p. 49). O interesse acadêmico pelo tema do patrimônio se renovou sob essa
perspectiva, bem como ampliou-se a patrimonialização de bens culturais afro-brasileiros,
indígenas ou vinculados às chamadas “comunidades tradicionais”. Os olhares se voltaram para

20
O Seminário Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção, foi realizado pelo IPHAN em novembro de
1997, em Fortaleza, como parte das comemorações do aniversário de 60 anos da instituição.

23
as regiões Norte e Centro-Oeste, sendo, de certa forma, emblemático dessas tendências e
também dos impactos da salvaguarda da dimensão imaterial do patrimônio sobre a material, o
tombamento da Casa de Chico Mendes, em Xapuri (AC). Neste tombamento, o foco do valor
atribuído à casa é ainda o fato de ter sido moradia do célebre seringueiro e ambientalista morto
em consequência da sua defesa da floresta amazônica, mas a descrição da edificação como um
exemplar representativo da arquitetura popular dos seringais do Norte também ocupa um lugar
importante no processo. A argumentação favorável à sua patrimonialização, contudo, não deriva
dessas características e sim da casa e seus pertences serem, e funcionarem como, potentes
mediadores da memória, da ação e da identidade de um grupo representativo da sociedade
brasileira. Mas nessa tomada de consciência da ausência do Norte nas políticas de preservação
do patrimônio reverbera também, certamente, a ação de ONGs ambientalistas que amplificaram
o papel e a importância de lideranças regionais no cenário internacional e junto ao setor cultural.

O interesse de arquitetos não necessariamente pertencentes ao campo do patrimônio pelas


técnicas tradicionais ou modos tradicionais de construir renovou-se igualmente neste momento,
com o retorno da defesa de uma “arquitetura ecológica”, no sentido de adequada ao ambiente, e
com baixo custo energético.21 Animadas por esse tipo de abordagem e também por eventuais
tendências ligadas a fluxos turísticos, surgem casas burguesas construídas em taipa de mão ou
em adobe, ao passo em que cresce exponencialmente no seio dos segmentos sociais de menor
renda, tanto urbanos quanto rurais, o acesso e o uso de materiais industrializados na construção
e nos acabamentos (LEVORIN, 2020). É importante observar que, na maior parte desses casos,
o móvel não é a preservação de um saber considerado patrimônio, mas a proteção do meio
ambiente, o amor pelo pitoresco e, ainda, a exclusividade que emana de um modo de construir
alternativo e inusitado. Já nos casos em que o turismo promove a valorização de expressões da
arquitetura tradicional e funciona como elemento dinamizador da economia de certas localidades,
a retomada de técnicas construtivas tradicionais vem a reboque dessa valorização, adquirindo
um sentido semiótico ou cosmético. Rezende, Vale e Moreira (2018) descrevem esse tipo de
apropriação ao analisarem a retomada das construções em adobe na localidade de Bichinho, em
Minas Gerais, em decorrência do desenvolvimento do turismo na região.

21
A exemplo da atuação do arquiteto Johan van Lengen, com seu livro O Manual do Arquiteto Descalço (1984) e o
Instituto TIBÁ (Tecnologia Intuitiva e Bio-Arquitetura), que fundou em 1987, um dos precursores desse interesse nos
anos 1980.

24
Quanto ao interesse do campo do patrimônio pela arquitetura popular a partir dos anos 2000, é
possível assinalá-lo em, pelo menos, dois níveis: o da valorização do saber-fazer tradicional e da
ampliação do seu uso contemporâneo como forma salvaguarda; e o da vinculação dessa
produção popular ao patrimônio de grupos étnicos ou sociais específicos, com vistas à
consolidação da narrativa culturalmente multifacetada da nação iniciada nos anos 1980. Podem
então ser apontados como representativos desses interesses os textos: As lacunas nos
tombamentos de terreiros de candomblé: permanências do patrimônio afro-brasileiro na cidade,
de Fábio Velame (2011); O Projeto dos Mestres Artífices: preservação do saber-fazer da
construção tradicional, de Leonardo Castriota (2012); Pilotis são palafitas: sobre ecologia da
arquitetura e saberes que resistem na Amazônia Marajoara, de Fernando Mesquita (2018); e
Arquitetura tradicional de terra no Vale do Ribeira – entre a cultura quilombola e a colonização
japonesa, de Alain Briatte Mantchev e Akemi Hijioka (2018).

Em As lacunas nos tombamentos de terreiros de candomblé (2011), Velame aborda a


constituição do espaço religioso do culto aos eguns do Terreiro Omo Ilê Agboulá de modo amplo
e em sua relação com o assentamento urbano no qual se localiza, na Ilha de Itaparica, Bahia. O
artigo, que foi publicado em edição universitária, decorre de dissertação de mestrado defendida
em 2007, que subsidiou a instrução do processo de tombamento deste terreiro em 2015. Neste
texto, a atribuição de valor como patrimônio ao terreiro e espaços relacionados não é uma
discussão ou proposta e sim um pressuposto. O que é criticado é o modo lacunar como outros
tombamentos dessa natureza foram feitos, sem levar em consideração a história (e a memória)
dos deslocamentos realizados por essas comunidades para fortalecer e manter os seus lugares
de culto. Assim, são abordados os espaços para além dos muros do terreiro que também o
constituíram, apontando-se que seriam essenciais para a conservação e salvaguarda das suas
dimensões material e imaterial. O Terreiro Omo Ilê Agboulá instalou-se, nos anos 1940, em área
próxima à praia de Ponta de Areia, em Amoreiras, transferindo-se em seguida para a localidade
de Barro Vermelho, onde permaneceu até os anos 1960. Por fim, deslocou-se para o Alto da Bela
Vista, onde se encontra até hoje. Esse périplo foi consequência do desenvolvimento da função
balneária da Ilha de Itaparica a partir dos anos 1940 e da consequente abertura de vários
loteamentos para veranistas que foram expulsando o terreiro e seus espaços até onde ele se
encontra atualmente. Velame mostra que para a comunidade de culto, essas antigas localizações
continuam sendo sagradas e reverenciadas em rituais anuais, como o da festa dos presentes às
divindades das águas em 2 de fevereiro. Todos os anos, neste dia, o cortejo ritual que sai da
sede do terreiro em direção ao mar percorre as ruas de Bela Vista e de Ponta de Areia,

25
“desterritorializando” o terreiro do seu espaço circunscrito e o “reterritorializando” nas ruas da
localidade, fazendo circular nelas o axé e sacralizando, assim, o espaço urbano. O texto reivindica
então uma compreensão mais ampliada e menos reificada desse patrimônio religioso, que vá
além das suas edificações e objetos fixos e contemple suas relações históricas com o espaço
urbano, suas práticas e rituais. Em suma, uma concepção desse espaço religioso popular menos
fixada em algumas estruturas construídas, e mais articulada à constituição de uma rede de
lugares sagrados que são permanentemente ativados por meio da realização de rituais.

O texto de Castriota (2012), por sua vez, focaliza a preservação do saber-fazer nas construções
tradicionais e pode ser visto, em termos institucionais, acadêmicos e de posicionamento no
campo, como o mais representativo dos vínculos estabelecidos entre arquitetura popular e
patrimônio no período em análise. Foi produzido e publicado no âmbito do Projeto Mestres e
Artífices da Construção Tradicional, implementado pelo IPHAN a partir de 2008, como parte
fundamental da política de identificação e salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, em
parceria, neste caso, com a Universidade Federal de Minas Gerais. O projeto, que se inseriu em
uma iniciativa maior, de âmbito nacional, envolvendo trabalhos análogos realizados nos estados
da Bahia, Pernambuco e Santa Catarina, correspondeu à aplicação da metodologia do INRC ao
tema das técnicas construtivas tradicionais, com vistas à identificação e ao cadastramento de
mestres construtores e à documentação dos seus saberes em localidades de Minas Gerais onde
técnicas que utilizam terra e pedra ainda são vigentes e correntemente utilizadas na construção.
Outro objetivo central do projeto era a certificação dos mestres e artífices identificados, de modo
a facilitar sua inserção no mercado de trabalho da conservação e restauração do patrimônio
edificado e da execução de obras públicas e de produção habitacional em certas regiões. Um
projeto, portanto, que parte do entendimento de que a salvaguarda como patrimônio desse tipo
de saber-fazer passa pela sua valorização técnica e pela manutenção de sua vigência e uso
contemporâneos e não pela preservação do seu produto, ou seja, a edificação.

Castriota focaliza neste texto a nova concepção de patrimônio cultural imaterial que possibilitou
essa abordagem, e que enfatiza a importância dos processos de criação e de transmissão dos
conhecimentos sobre o seu produto ou expressão material. Isso possibilitou conceber as técnicas
construtivas tradicionais como patrimônio e sua inventariação temática como uma forma
importante de registrá-las e salvaguardá-las enquanto referências culturais. Esta última noção
surge como fundamental neste texto, pois assinala que a salvaguarda desse patrimônio se faz
também a partir dos sentidos e valores que lhe são atribuídos por seus detentores e demais

26
atores sociais que o interpretam e com ele convivem. Concebido dessa forma, o patrimônio
implicaria uma abordagem metodológica interdisciplinar capaz de colocar essa arquitetura de
ampla apropriação popular em relação com o seu meio natural e cultural, bem como com seu
contexto territorial. Uma arquitetura que existe, portanto, para além de sua dimensão física.

Em Pilotis são palafitas (2018), Mesquita defende uma abordagem semelhante à de Castriota,
mas discute principalmente a dificuldade de se reconhecer a arquitetura popular como patrimônio
na ação institucional do campo. Publicado na Revista do Patrimônio nº 37, o texto deriva de
dissertação de mestrado defendida em 2017 sobre a arquitetura vernácula ribeirinha na
Amazônia marajoara, que tomou como estudo de caso a cidade de Afuá, no Pará. Neste texto,
que descreve as características construtivas e espaciais desse assentamento, o autor defende
um entendimento da arquitetura vernácula como espaço habitado ou construído intencionalmente
fora “dos circuitos reificados do saber”, que objetiva a lógica social e os valores culturais de
determinado grupo. As casas e os assentamento ribeirinhos sobre palafitas da Amazônia
sintetizariam essa concepção, bem como representariam um modo de habitar específico pautado
pela interação com o meio e, em espacial, com os rios. A despeito disso, da noção ampliada de
patrimônio em vigência e do fato de que esse tipo de arquitetura dá sentido a paisagens culturais
e urbanas, Mesquita observa que a atribuição de valor patrimonial a ela não seria consenso.
Advoga, assim, que se repense a proteção ao patrimônio edificado no país, com vistas à
superação do foco exclusivo nas edificações e em favor do reconhecimento de uma produção
arquitetônica à qual os sujeitos sociais atribuem valor. Em suma, que o ambiente construído
concebido como patrimônio seja visto como um “ambiente vivo”, no qual se buscaria resguardar
não apenas os objetos, mas as referências aos modos de vida nele impressos.

O artigo de Mantchev e Hijioka sobre a arquitetura tradicional de terra de grupos quilombolas e


de descentes de imigrantes japoneses no Vale do Ribeira, em São Paulo, pode ser considerado
um exemplo do interesse de profissionais e pesquisadores situados fora do campo do patrimônio
por este tema, mas com o reconhecimento subjacente do seu valor patrimonial. Mantchev é
especialista neste tipo de arquitetura e membro do CRATerre – organização internacional
renomada que reúne pesquisadores das construções em terra –, e Hijioka é pesquisadora da
área de habitação e sustentabilidade. Ambos atuam profissionalmente em projetos de resgate e
melhoria da cultura construtiva em terra e madeira, inclusive junto a comunidades tradicionais. O
texto foi publicado em 2018 fora dos canais de difusão tradicionais do campo do patrimônio, em
congresso realizado no Brasil sobre construções com terra. Trata fundamentalmente das trocas

27
culturais entre as culturas quilombola e nipônica no que toca à construção com taipa de mão,
uma técnica de apropriação comum entre essas duas culturas. Após a descrição das
características arquitetônicas e construtivas comuns e específicas das edificações quilombolas e
“japonesas”, os autores assinalam a constituição no Vale do Ribeira de uma cultura construtiva
híbrida que teria se desenvolvido sobretudo nas comunidades oriundas da imigração japonesa,
a partir do seu contato com a cultura local quilombola, mais antiga e mais adaptada à área. Suas
características seriam: a utilização da madeira da palmeira juçara na confecção do entramado
que recebe o barro; a predominância do uso do sapê no lugar da palha de arroz; o uso imediato
do barro após o seu preparo e a separação do tipo de terra adequado a cada aspecto da
construção nas proximidades da obra; a observância do tempo certo e da técnica para coleta dos
insumos (madeira, cipó, terra).

CONCLUSÃO

Na primeira fase (1930-40) deste estudo sobre o reconhecimento da arquitetura popular como
patrimônio, vemos o papel central do IPHAN. Por uma clara iniciativa de Rodrigo M.F. Andrade,
tratava-se de dar alguma atenção ao “engenho popular”, a essa contribuição à cultura material
brasileira, dentro de um projeto geral de nação que implicava compreender o passado,
identificando nele os processos formadores particulares da civilização brasileira que forjariam o
país no século XX. Esse aspecto operativo era mais evidente nos textos de Lúcio Costa. Luís
Saia, a partir de vestígios escassos, tentava compreender o que era a casa bandeirista, como a
arquitetura que respondia a aspectos tanto da vida familiar como da sociedade no Brasil Colônia,
e depois como parte de uma história mais ampla do Estado de São Paulo, com suas etapas
próprias e reflexos espaciais. Paulo Thedim Barreto, ao contrário, parte de exemplares ainda
íntegros e vigentes, e estuda a arquitetura popular especificamente piauiense em sua adaptação
ao local, a partir da frente de colonização predominantemente maranhense. Gilberto Freyre
destoa um pouco desse grupo porque trata de um tipo edilício que, embora arcaico, ainda existia
nas cidades, e poderia ser pensado como uma alternativa viável de moradia, no seio de uma
outra modernidade que evitasse a “mucambofobia” e, com isso, ignora os valores propriamente
nacionais que estavam até mesmo nos rústicos mucambos. O Sudeste e o Nordeste concentram
as atenções como focos históricos da civilização luso-brasileira.

28
O período de 1970 a 1980, como dito, vê uma expansão do campo do patrimônio com exemplares
arquitetônicos mais singelos sendo incorporados como importantes. O corpo de profissionais
dedicados se amplia, com novos veículos de comunicação, cursos de formação e novos
organismos de preservação, mas, sobretudo, com a incorporação mais ativa do valor etnológico
e antropológico da arquitetura popular. O debate e o interesse sobre o tema são acompanhados
pelo IPHAN, mas desenvolve-se também em outros espaços, que correm em paralelo, com seus
muitos pontos de contato. Vemos a presença do multiculturalismo, que identifica contribuições
para além da preponderância da herança portuguesa ao absorver elementos ameríndios e
africanos e, em especial, dos imigrantes, como os japoneses em São Paulo e os poloneses no
Paraná. Esse tipo de interesse estende os olhares também para a região Sul. Sai de pauta a
identificação de soluções arquitetônicas nacionais ou mesmo estaduais, dotadas de um espírito
geral “brasileiro” ou como parte de uma história nacional, articulando as distintas regiões do país.
No seu lugar, vai se desenhando um mosaico mais intrincado, não raro com especificidades em
locais pontuais ou em tipos particulares de construção. E entram em cena os fenômenos
decorrentes da relação campo-cidade e do espaço intraurbano propriamente dito, como as
favelas ou as grandes intervenções em tecidos urbanos tradicionais consolidados.

O terceiro período, depois de 1990, assiste à consolidação da perspectiva antropológica, com o


claro deslocamento da atenção conferido a saberes e outros aspectos intangíveis em vez de às
coisas, tais como edifícios e bens móveis. O arcabouço legal e institucional do IPHAN, que se
desenvolve para atender a esta outra abordagem, também viabiliza pesquisas nesse sentido e
ajuda a criar novos espaços para esse debate. Influencia os organismos de preservação das
outras esferas do poder público e avança para regiões do país menos estudadas, como o Centro-
Oeste e o Norte. A valorização do saber-fazer é acompanhada da presença crescente no campo
do patrimônio de grupos étnicos ou sociais, que reivindicam sua posição de agentes de atribuição
de valor no reconhecimento institucional daquele patrimônio que lhes diz respeito. Consolida-se,
assim, o que é tanto um giro nos aspectos simbólicos e culturais do patrimônio, quanto no sentido
de uma nação mais propriamente multicultural. Embora no primeiro período a idéia de explicar
ou descobrir (e hoje pensaríamos em “construir”, do ponto de vista discursivo) um país, digno de
figurar no mundo, fosse uma perspectiva sempre presente, ao passo que na terceira o “Brasil” já
não era um problema intelectual, mas algo tido como dado, um ponto de partida não mais posto

29
em questão. No máximo, encontramos o gestor público pensando em termos de um conjunto22,
agora definido por esse mosaico, mas não os intelectuais e pesquisadores do tema.

Esse ensaio, certamente, não pretende esgotar todas as nuances da relação arquitetura popular
e patrimônio. Os dados recolhidos mostram claramente, contudo, que o interesse por este tema
cresce e se diversifica, em termos de agentes e objetos, nesses quase 100 anos de constituição
de um campo do patrimônio no Brasil, sem que, entretanto, esse crescimento corresponda à
implementação de ações de salvaguarda em igual medida. A despeito dos avanços recentes, o
campo ainda hesita em reconhecer que o que genericamente é chamado de “edificação histórica”
corresponde, no mais das vezes, a uma expressão da arquitetura popular.

22
Desde o lema Brasil, país de todos ou do projeto Brasil, país de todos os ritmos, até a concepção do Carnaval
Multicultural do Recife, passando pelo município de Curitiba, com sua série de espaços públicos dedicados aos
povos que compuseram a cidade (árabes, japoneses, poloneses, etc.).

30
REFERÊNCIAS

Deverão constar apenas autores e obras mencionadas no texto, obedecendo-se as normas da


Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). A formatação segue o mesmo padrão do
corpo do texto, porém com entre linhas – 1,15.

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