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Crimes do futuro

Escrever uma crítica de teatro, tal como elaborar uma obra artística, e tal como
criar a vida que se quer viver, é questão de escolher uma via pela qual arranjar
as matérias do mundo que nos foram legadas repetidamente – e encontrar um
jeito de fazer algo novo com isso.

A via que tomo neste texto é a de uma pergunta sobre os modos de


coexistência dos corpos em Adoráveis Transgressões, espetáculo da Selvática
que estreou no Festival de Curitiba 2023. Mais particularmente, uma pergunta
sobre a posição que esses corpos encontram nos discursos que herdaram, ou
que os atravessaram até aqui. 

A Selvática formou-se do encontro de artistas independentes e de dissidentes


de outros grupos, que organizam modos de ação coletiva desde 2011 e, não à
toa, mantêm uma casa de mesmo nome. Um espaço aberto na conservadora
Curitiba, onde se abrigue a pluralidade de uma “micromultidão” de sujeitos com
interesses por aquilo que escapa à moral burguesa, por sustentar uma atitude
transgressora diante de uma norma que os exclui, por sonhar revoluções e
concretizar as mínimas subversões no convívio esteticamente arquitetado, que
faz das produções artísticas um modo de vida.

Se, naquele início de década, a Selvática ocupava uma posição mais


“marginal” em relação à cena teatral da cidade, hoje, doze anos depois, o estar
à margem se perpetua como estética e política, enquanto os espetáculos
produzidos já adentram o circuito oficial. É, agora, o caso da estreia de
Adoráveis Transgressões na Mostra Lúcia Camargo, com direção de Gabriel
Machado e dramaturgia criada com a pesquisadora pernambucana Renata
Pimentel.

Adoráveis Transgressões começa fora do teatro, onde espectadores são


recebidos com vodka tônica e avisos de que este não é um espetáculo para ser
visto com sobriedade. Neste “Coquetel das loucas” preambular, travamos os
primeiros contatos com personagens de uma Rússia decadente e com
ratazanas infiltradas para pilhar aquela herança. Eis uma síntese de uma
dramaturgia fragmentária, profusa, prolixa, operada pelo acúmulo de
referências e de releituras, na chave do deboche e do desbunde. Uma imensa
pilha de restos de um grande evento que se decompõem sob o peso uns dos
outros. É disso que se trata: de um legado cultural canônico que se despedaça
e é corroído pelas dentadas dos seres apartados em submundos.

Quatro são os textos de referência, dois de Léo Glück, dramaturga curitibana,


radicada em São Paulo, que retorna à Selvática, e traz entre eles uma
recriação das Três Irmãs de Tchékhov em “melodrama rocambolesco”; e dois
de Copi, o transgressor argentino de Paris. Essa composição de dramas
desestruturados coloca a peça sob uma espécie de sombra paterna do drama
russo, com/contra o qual os corpos em cena se debatem. Para tanto, usam
como ferramentas de escracho e libertação o cabaré e o melodrama,
expressões populares latino-americanas de descolonização do imaginário
europeizado.
Ao enredar uma história de mordomas e ratazanas, ainda que decomposta, a
peça sustenta uma crença no drama. Nos figurinos, as modelagens e padrões
referenciados à Rússia persistem, ainda que se suprimam peças de roupa,
exponham nudezes e, na maquiagem, pipoquem nos rostos formas coloridas
que poderiam ser versões circenses de mutações cronenberguianas (penso
aqui no filme Crimes do Futuro). Faz-se o elogio ao bizarro e à besteira – esta
à qual Lacan nos convida a dar bom uso, pois faz vacilar a norma social de
produção de sentidos. Voltarei a isso em breve.

No escracho ao cânone, a transgressão é operada sobre uma herança da qual


não se quer abrir mão. Entendo que isso coloca algumas perguntas, como se o
coletivo chegasse a um impasse – tchekhoviano – entre transgressão e
tradição. O que se quer transformar e o que se quer perpetuar? Sem a
persistência da tradição, o que haveria a transgredir? A que se destina a
tradição da transgressão? E ao persistir, a transgressão mantém afiada a
navalha de seu talhe?

No avesso da transgressão, o seu reverso, uma tradição ainda reverenciada. E


o que me parece estar em jogo é justamente isto: como aqueles corpos
invadidos e colonizados pelas palavras do cânone ocidental e, por essas
mesmas palavras, excluídos da possibilidade de nomeação, senão por sua
inadequação às normas que sustentam a heterossexualidade branca patriarcal
como universal – como esses corpos se arranjam com uma herança que tão
violentamente marca suas carnes?

A linguagem, em sua organização discursiva, é transmissão de tradição, ao


partilhar os sentidos possíveis dentro de uma cultura. É o aparelho que exclui
as existências que escapam às nomeações disponibilizadas por essa cultura
em seu afã classificatório e normatizador. Portanto, podemos dizer que esses
sujeitos não encontram posição possível nos discursos estabelecidos. Daí um
cinismo que reverbera em Adoráveis Transgressões à medida que a
dramaturgia se definha, num processo incessante de corrosão dos sentidos.

No debate após a peça, a artista Stéfani Belo situa esse cinismo como
consequência de vivências que não encontram crença possível em uma
sociedade que as exclui – falta um discurso que sustente suas existências no
que elas excedem, escapam dos sentidos estabelecidos. Dito de outro modo:
inadequados às nomeações que a linguagem oferece para dar um lugar no
mundo a cada corpo, qual posição discursiva lhes resta?

A curiosa contradição, aqui, é que o cinismo não vem, neste caso, sem alguma
crença ainda na tradição que se quer transgredir. Na estreia, uma das formas
como isso se mostrou foi o alongamento da história – já modificado para a
apresentação do dia seguinte com a supressão de cenas. Mais drama do que
cabaré, a dramaturgia olha para os crimes do passado que ainda os
assombram, mais do que se abre aos crimes do futuro. Prefere o roer repetido
das ratazanas às invenções que se possa fazer com aquilo que cai da
linguagem, seus restos, suas besteiras. Como seria fazer desses dejetos uma
nova língua?
Ao fim desta minha leitura, o que se transmite em Adoráveis Transgressões e
nas demais criações da Selvática é o gesto delirante como modo de vida
possível. No debate de C h ão, outro espetáculo desta Mostra Lúcia Camargo,
a diretora Marcela Levi já havia feito a defesa do delírio como imaginação
política. O delirante é isto que excede o normal, conferindo um lugar de
existência para o que a norma reservava à exclusão. Tanto dos corpos
completamente inaceitos, quanto daquilo que, nos corpos supostamente
“aceitos”, precisou ser excluído para melhor adequação.

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