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Escrever uma crítica de teatro, tal como elaborar uma obra artística, e tal como
criar a vida que se quer viver, é questão de escolher uma via pela qual arranjar
as matérias do mundo que nos foram legadas repetidamente – e encontrar um
jeito de fazer algo novo com isso.
No debate após a peça, a artista Stéfani Belo situa esse cinismo como
consequência de vivências que não encontram crença possível em uma
sociedade que as exclui – falta um discurso que sustente suas existências no
que elas excedem, escapam dos sentidos estabelecidos. Dito de outro modo:
inadequados às nomeações que a linguagem oferece para dar um lugar no
mundo a cada corpo, qual posição discursiva lhes resta?
A curiosa contradição, aqui, é que o cinismo não vem, neste caso, sem alguma
crença ainda na tradição que se quer transgredir. Na estreia, uma das formas
como isso se mostrou foi o alongamento da história – já modificado para a
apresentação do dia seguinte com a supressão de cenas. Mais drama do que
cabaré, a dramaturgia olha para os crimes do passado que ainda os
assombram, mais do que se abre aos crimes do futuro. Prefere o roer repetido
das ratazanas às invenções que se possa fazer com aquilo que cai da
linguagem, seus restos, suas besteiras. Como seria fazer desses dejetos uma
nova língua?
Ao fim desta minha leitura, o que se transmite em Adoráveis Transgressões e
nas demais criações da Selvática é o gesto delirante como modo de vida
possível. No debate de C h ão, outro espetáculo desta Mostra Lúcia Camargo,
a diretora Marcela Levi já havia feito a defesa do delírio como imaginação
política. O delirante é isto que excede o normal, conferindo um lugar de
existência para o que a norma reservava à exclusão. Tanto dos corpos
completamente inaceitos, quanto daquilo que, nos corpos supostamente
“aceitos”, precisou ser excluído para melhor adequação.