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Hesitei antes de escrever essas palavras. Havia algo a dizer que o formato
convencional da crítica parecia trair. Admito o momento de crise com a crítica,
que não se descola do momento de crise com a política, com os tribunais
virtuais, com os discursos, as representações e os julgamentos. Essa escrita
que se lança ao mundo pretensamente detentora de algo a dizer sobre o outro.
Como escrever sobre um trabalho que os corpos ainda cumprem em presença,
no qual ainda se colocam com toda sua carne e suas terminações nervosas? ,
Como gerar, a partir da crítica, um espaço de convívio? Ou precisaremos de
outra coisa? Outra forma de estar com as palavras e as obras e as pessoas?
Outra forma de negociar sentidos?
Por isso escrevo assim, feito arremedo de carta pública. Pensei endereçá-la às
atrizes Gláucia, Talita, Kelly e Mariana, mas seria um gesto metonímico: tomar
o autor pela obra. Por mais que estejam em cena, com seus corpos e humores,
por mais que a peça seja a elaboração cênica de uma vivência delas, "Banho
de Sol" é uma parte da obra que essas artistas vêm constituindo ao longo de
uma vida em cena. E tomar um momento como definidor de uma vida – o
próprio espetáculo alerta – é insuficiente.
Adianto, aqui, que essa é uma das questões que insistiram na minha cabeça
dias após a peça. Embora afiada, a frase não me parece dar conta da
complexidade social a que alude. O sistema somos nós em que medida?
Como esse sistema opera? Por quais motivos é cruel e seletivo? Que poder de
decisão de fato temos, enquanto sujeitos, ou grupo social, dentro de uma
estrutura de cinco séculos, dominada por grupos de capital financeiro
inimaginável para trabalhadores de classe média?
Então, seria preciso discutir como o sistema se estrutura (pela exclusão dos
corpos "indesejáveis", pelo racismo...) e se atualiza; e por quais modos opera a
seleção racial que define quem será ou não punido. Entretanto, por efeito da
tomada de consciência racial posterior ao fim das aulas no presídio, só
pontualmente as questões de raça e classe são tratadas explicitamente na
dramaturgia das cenas criadas a partir dos encontros com as mulheres.
Distâncias e visibilidades
A ética que rege a cena é a da não exposição delas. Não reconhecemos quem
são, salvo exceções que, significativamente, correspondem a mulheres
brancas de classe privilegiada: a mulher que talvez tenha comandado Minas
Gerais por anos (não enquadrada como crime hediondo) e a que matou os
pais.
A opção das atrizes por se por no lugar delas nos diz algo sobre a
impossibilidade de representação de um outro em situação tão distinta. Ao
mesmo tempo, dá visibilidade à invisibilidade social das mulheres em situação
prisional. E mais: Mulheres da plateia são convocadas para a construção das
cenas; estas, sim, ocupam um lugar de representação do corpo coletivo das
presas e emprestam seus corpos à ideia professada de que "poderia ser uma
de nós ali".
Poderia? Penso que, no limite, sim. Pelas estatísticas sociais, menos provável.
Este talvez seja o ponto central de “Banho de Sol”. Talita anuncia entre suas
intenções que, se houver ao menos uma pessoa presa injustamente, será
contra a existência de prisões. Em acordo, retomo, então, as palavras de
Juliana: “nesse sentido, é preciso buscarmos outras questões, mais profundas,
que garantam que cada vez menos pessoas sejam encarceradas e que não
precisemos mais de prisões” (BORGES, 2019, p. 117).
Momento definidor
Compreendo que a opção das artistas seja por lidar com aquelas mulheres
pelo que elas são para além de um ato cometido. Talita também tangencia
esse ponto no prólogo com uma questão de extrema pertinência, que ainda
reverbera em mim: quem gostaria de ser definido por um único momento de
sua vida?
Mas hei de lembrar que entram na cena menções a mulheres brancas, ricas,
que mesmo em menor número também compõem a população carcerária.
Lembrar de que, entre as injustiças evidentes, sobram vítimas de atos
classificados como crimes hediondos, que sofreram violências irreparáveis; a
maior delas, a destituição da vida. Para reverter a desumanização das
mulheres em situação prisional, a encenação realiza o que eu vejo como um
apagamento de atos de violência cometidos. É preciso esquecer esses atos
para considerarmos a humanidade de quem os comete?
Nem tanto monstro, nem tanto vítima. Como olhar para essas mulheres e
conjugar o que vem do lugar social à singularidade? E, então, como fazer a
crítica ao sistema carcerário e ao punitivismo da nossa noção de justiça sem
desarticular qualquer possibilidade de atribuir responsabilidade a um ato
definitivo como o de estupro e/ou morte?
Outra síntese
Ainda no prólogo, Talita deixa explícito que fará a defesa dessas mulheres
porque o contrário disso já acontece cotidianamente (conhecemos os discursos
de “bandido bom é bandido morto” ou sobre gastos “excessivos” com pessoas
em situação prisional). Penso se “Banho de Sol” é a segunda parte de uma
estrutura dialética, que responde com defesa irrestrita à ofensiva social
desumanizadora, e se isso pode provocar no público uma síntese outra, dentro
do campo ético de cada um.
No meu caso, e por isso tento alguma pessoalidade nesta escrita, é impossível
assistir à peça sem considerar a vivência de uma morte por assassinato na
família (cometida por um homem branco de classe privilegiada). Quando Talita
alerta que, se alguém perdeu uma pessoa amada, respeita essa dor, mas a
questão da peça é outra, penso na irreparabilidade da morte. Não no luto de
quem fica, mas na privação absoluta de quem morre. Daí meu desconforto em
ter essa dimensão da violência totalmente encoberta em uma experiência
cênica catártica.
Ressocialização
Abraços,
Luciana Romagnolli
06 de junho de 2019