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Ao Banho de Sol,

"Nossa vida é finita.


Tem um marco de proporcionalidade que o perdão excede".

Amélia Valcárcel. A memória, a justiça e o perdão.

Hesitei antes de escrever essas palavras. Havia algo a dizer que o formato
convencional da crítica parecia trair. Admito o momento de crise com a crítica,
que não se descola do momento de crise com a política, com os tribunais
virtuais, com os discursos, as representações e os julgamentos. Essa escrita
que se lança ao mundo pretensamente detentora de algo a dizer sobre o outro.
Como escrever sobre um trabalho que os corpos ainda cumprem em presença,
no qual ainda se colocam com toda sua carne e suas terminações nervosas? ,
Como gerar, a partir da crítica, um espaço de convívio? Ou precisaremos de
outra coisa? Outra forma de estar com as palavras e as obras e as pessoas?
Outra forma de negociar sentidos?

Por isso escrevo assim, feito arremedo de carta pública. Pensei endereçá-la às
atrizes Gláucia, Talita, Kelly e Mariana, mas seria um gesto metonímico: tomar
o autor pela obra. Por mais que estejam em cena, com seus corpos e humores,
por mais que a peça seja a elaboração cênica de uma vivência delas, "Banho
de Sol" é uma parte da obra que essas artistas vêm constituindo ao longo de
uma vida em cena. E tomar um momento como definidor de uma vida – o
próprio espetáculo alerta – é insuficiente.

Isso não significa que eu defenda uma visada pretensamente objetiva e


distanciada ao trabalho. Tal como é tecido, de suor e lágrima das mulheres
aprisionadas, das mulheres artistas, de homens e mulheres na plateia ou no
palco, "Banho de Sol" demanda um sujeito de carne e osso para tentar
estabelecer um diálogo.

Afinal, a primeira aproximação à peça já é da ordem desse encontro pessoal.


Quando Mariana, Kelly, Talita e Gláucia nos recepcionam e cumprimentam
com suas roupas "de passeio", essas que elas e nós podemos usar por não
estarmos condenadas ao cárcere, nos fazem pensar em nossos privilégios de ir
e vir e consumir com variada liberdade, de acordo com a rotina que a classe
social e a ideologia à qual nos alinhamos permita.

Este início, como um prólogo, convoca a um olhar crítico e estabelece algumas


diretrizes éticas determinantes para o trabalho, que eu compreendi como uma
espécie de "carta de intenções" que deixa vestígios para interpretarmos tudo o
que vem depois. É o momento de autocrítica, quando comentam ter passado
um ano dando aulas de teatro dentro de um presídio feminino para mulheres
presas por crimes hediondos e, só depois de encerrado o período, tomaram
consciência da prevalência de mulheres negras nessa condição de privação da
liberdade.

Com base nessa constatação tardia e no fato de serem quatro mulheres


brancas, Talita localiza o público (de maioria branca, como de praxe numa
instituição burguesa) e as artistas na estrutura social racista. "O sistema somos
nós", sintetiza.

O sistema somos nós

Adianto, aqui, que essa é uma das questões que insistiram na minha cabeça
dias após a peça. Embora afiada, a frase não me parece dar conta da
complexidade social a que alude. O sistema somos nós em que medida?

Como esse sistema opera? Por quais motivos é cruel e seletivo? Que poder de
decisão de fato temos, enquanto sujeitos, ou grupo social, dentro de uma
estrutura de cinco séculos, dominada por grupos de capital financeiro
inimaginável para trabalhadores de classe média?

Não sugiro que não tenhamos nenhuma responsabilidade ou possibilidade de


ação, pelo contrário. Mas penso que se o problema é estrutural, a
responsabilidade não pode ser individualizada, pois esbarra na impotência de
cada um, nos limites de ação de pequenas formações temporárias de "nós"
como é uma platéia de teatro.

Então, seria preciso discutir como o sistema se estrutura (pela exclusão dos
corpos "indesejáveis", pelo racismo...) e se atualiza; e por quais modos opera a
seleção racial que define quem será ou não punido. Entretanto, por efeito da
tomada de consciência racial posterior ao fim das aulas no presídio, só
pontualmente as questões de raça e classe são tratadas explicitamente na
dramaturgia das cenas criadas a partir dos encontros com as mulheres.

Entendo a escolha de abordagem de "Banho de Sol", então, como outra.


Menos política no sentido macro, mais de uma política da empatia. E até que
ponto é justo cobrar de uma obra o que ela não pretende ser?

Sim, o terreno que se abre é o da justiça. Mas não o do tribunal. Voltaremos a


isso depois.

Pacto dos pressupostos

Compreendi esse prólogo, então, como uma negociação de valores, no qual as


posições (anti-Bolsonaro e anti-Pena de Morte, sobretudo) são pactuadas
como premissas básicas. E é importante que elas não fiquem só implícitas,
mas sejam afirmadas, como pressupostos sem os quais o diálogo palco-plateia
seria inviável. Isso não significa que as artistas pressuponham que todos os
presentes partilhem das mesmas posições, mas que haja uma mínima abertura
ou disposição para olharmos pela perspectiva delas.

Afinal, quanta energia não gastamos tentando conversar com pressupostos


incompatíveis? Ou quando sucumbimos à agenda embrutecedora desse
governo, que bloqueias avanços da discussão pública quando questões como
a de gênero regridem ao azul x rosa, por exemplo?

Distâncias e visibilidades

O distanciamento crítico proporcionado de início é especialmente importante


porque a encenação que se segue se baseia na identificação e na catarse, com
altíssimo apelo emocional. Tão logo começa a narrativa do processo de
entrada das quatro na penitenciária, as atrizes criam um espaço imaginário de
muita empatia pela dor daquelas mulheres, submetidas a violências simbólicas
e físicas. A maior delas, a restrição da liberdade a um cubículo por anos a fio.
Minha reação e a de muitos ao redor foi de comoção.

O dispositivo cênico criado para dar concretude a esse ambiente carcerário


impossível de ser reproduzido em um teatro é um retângulo desenhado no
chão, com as medidas da cela, preservado permanentemente em cena, para
que a proporção da privação nunca seja esquecida. Nenhum outro esforço feito
pelas atrizes para restabelecer nos olhos alheios a percepção da humanidade
daquelas mulheres é mais contundente do que a noção espacial do quinhão de
mundo ao qual são restritas. Assim, “Banho de Sol” indaga como tais
condições podem preparar para um retorno sadio ao convívio social. Como não
enlouquecer ali?

Outro desafio para a encenação é como representar/presentificar essas


mulheres. As atrizes optam por não usar imagens nem depoimentos em áudio,
nada que identifique um rosto, uma voz, um corpo. Afinal, não fazem um
documentário sobre as habitantes do presídio feminino, tampouco uma
investigação social, política e jurídica do sistema carcerário ou da ideologia
punitivista. A peça é a dimensão humana do encontro dessas quatro atrizes
com aquelas mulheres, dentro dos limites e da grandiosidade dessa
experiência.

A ética que rege a cena é a da não exposição delas. Não reconhecemos quem
são, salvo exceções que, significativamente, correspondem a mulheres
brancas de classe privilegiada: a mulher que talvez tenha comandado Minas
Gerais por anos (não enquadrada como crime hediondo) e a que matou os
pais.

A opção das atrizes por se por no lugar delas nos diz algo sobre a
impossibilidade de representação de um outro em situação tão distinta. Ao
mesmo tempo, dá visibilidade à invisibilidade social das mulheres em situação
prisional. E mais: Mulheres da plateia são convocadas para a construção das
cenas; estas, sim, ocupam um lugar de representação do corpo coletivo das
presas e emprestam seus corpos à ideia professada de que "poderia ser uma
de nós ali".

Poderia? Penso que, no limite, sim. Pelas estatísticas sociais, menos provável.

No livro "Encarceramento em Massa", a pesquisadora abolicionista Juliana


Borges chama a atenção para como os presídios se configuraram como as
novas senzalas na sociedade brasileira e para a falta de uma perspectiva
interseccional na elaboração de políticas públicas. “As ideologias punitivista e
racista operam de modo tão articulado e estão tão internalizadas, que muitas
pessoas simplesmente não conseguem conceber uma realidade sem
aprisionamentos", diz a autora.

Este talvez seja o ponto central de “Banho de Sol”. Talita anuncia entre suas
intenções que, se houver ao menos uma pessoa presa injustamente, será
contra a existência de prisões. Em acordo, retomo, então, as palavras de
Juliana: “nesse sentido, é preciso buscarmos outras questões, mais profundas,
que garantam que cada vez menos pessoas sejam encarceradas e que não
precisemos mais de prisões” (BORGES, 2019, p. 117).

A experiência do público, contudo, encontra o limite de estar diante/dentro de


um palco povoado por pessoas brancas com suas roupas de passeio, que
muito dificilmente farão conexão com um presídio abarrotado de pessoas em
maioria negras impedidas de contato com o mundo exterior. Essa distância
entre a situação prisional e a cênica evidencia como a racialização dos corpos
em cena seria fundamental para o debate em questão.

Momento definidor

De todas as escolhas estéticas pautadas eticamente em “Banho de Sol”, a que


mais me perturba, e motiva esta escrita, é a de nunca abordar os crimes
cometidos. Com isso,de modo algum defendo que se instaurasse um tribunal
público para julgá-las – já basta os do Twitter, Instagram e Facebook.

Compreendo que a opção das artistas seja por lidar com aquelas mulheres
pelo que elas são para além de um ato cometido. Talita também tangencia
esse ponto no prólogo com uma questão de extrema pertinência, que ainda
reverbera em mim: quem gostaria de ser definido por um único momento de
sua vida?

A exceção acentua a recusa a abordar os atos cometidos quando, mais tarde,


ouvimos a única narrativa do “crime” de uma das mulheres anônimas. Um
relato trágico de abandono parental, pobreza, distúrbio psiquiátrico e
infanticídio (para usar aqui palavras cruas, deixando a experiência catártica a
quem ainda for assistir à peça). A construção impactante expõe os
mecanismos de exclusão social que pavimentam o caminho de uma mulher até
a cadeia, como exemplo concreto do que significa “não ter a quem recorrer".

O meu questionamento é sobre o efeito de ser esse o único relato de crime.


Um caso em que a ausência de medicação para o transtorno mental aponta
para um incidente de insanidade mental, expondo a falta de acesso a um
julgamento justo e, com isso, a falha na aplicação da lei, mais do que na
legislação em si. Ainda que concordemos com a simplificação de equiparar a
legislação à sua aplicação, como partes inseparáveis de um sistema jurídico
forjado por homens brancos, pergunto: por que apresentar ao público somente
a história de uma mulher cujo “crime” é mais facilmente justificável?

Sem dúvida, a estrutura racista produz numerosos outros casos em que as


condições sociais precipitam atos de violência ou mesmo de condenações
precipitadas ou equivocadas – se um policial é capaz de atirar em um menino
negro por “confundir” o guarda-chuva com uma arma, o que dirá aprisionar? Se
“Banho de Sol” fizesse esse recorte racial e social na estrutura da própria peça,
talvez não houvesse o que interpor nesta carta.

Mas hei de lembrar que entram na cena menções a mulheres brancas, ricas,
que mesmo em menor número também compõem a população carcerária.
Lembrar de que, entre as injustiças evidentes, sobram vítimas de atos
classificados como crimes hediondos, que sofreram violências irreparáveis; a
maior delas, a destituição da vida. Para reverter a desumanização das
mulheres em situação prisional, a encenação realiza o que eu vejo como um
apagamento de atos de violência cometidos. É preciso esquecer esses atos
para considerarmos a humanidade de quem os comete?

Nem tanto monstro, nem tanto vítima. Como olhar para essas mulheres e
conjugar o que vem do lugar social à singularidade? E, então, como fazer a
crítica ao sistema carcerário e ao punitivismo da nossa noção de justiça sem
desarticular qualquer possibilidade de atribuir responsabilidade a um ato
definitivo como o de estupro e/ou morte?

Outra síntese

Ainda no prólogo, Talita deixa explícito que fará a defesa dessas mulheres
porque o contrário disso já acontece cotidianamente (conhecemos os discursos
de “bandido bom é bandido morto” ou sobre gastos “excessivos” com pessoas
em situação prisional). Penso se “Banho de Sol” é a segunda parte de uma
estrutura dialética, que responde com defesa irrestrita à ofensiva social
desumanizadora, e se isso pode provocar no público uma síntese outra, dentro
do campo ético de cada um.
No meu caso, e por isso tento alguma pessoalidade nesta escrita, é impossível
assistir à peça sem considerar a vivência de uma morte por assassinato na
família (cometida por um homem branco de classe privilegiada). Quando Talita
alerta que, se alguém perdeu uma pessoa amada, respeita essa dor, mas a
questão da peça é outra, penso na irreparabilidade da morte. Não no luto de
quem fica, mas na privação absoluta de quem morre. Daí meu desconforto em
ter essa dimensão da violência totalmente encoberta em uma experiência
cênica catártica.

É no prólogo também que aparece algum dissenso entre as artistas, quando


Kelly se questiona repetidamente sobre a necessidade de adotarem uma
perspectiva mais crua. A dúvida dela persiste em mim, especialmente porque o
distanciamento crítico do prólogo não retorna ao palco.

Ressocialização

Para tornar viável a ressocialização de quem comete um ato criminoso, Juliana


Borges diz que "precisamos repensar o sistema de justiça que se organiza não
pela vingança e pela punição, mas, principalmente, pela restauração e pela
reconciliação" (2019, p. 119). Sem pretender equiparar a posição abolicionista
dela e a minha aqui expressa, deixo reverberarem algumas das críticas que ela
faz no sentido de reiterar a necessidade de discussões mais complexas e
aprofundadas sobre o tema, para além de um momento, de um ato, de um
trabalho único.

Penso que só isso poderia, diante da impossibilidade da reparação, abrir


espaço para fabularmos outra possibilidade de responsabilização de quem
comete um ato violento, que não seja a vingança nem o apagamento da
violência cometida.

Abraços,

Luciana Romagnolli

06 de junho de 2019

Ps. Encontrei aqui a lista de crimes hediondos segundo a legislação brasileira:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8072.htm

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