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Ética do vivo

Brvee ensaio a partir de "Meu Corpo Está Aqui", para a MITsp

Por Luciana Romagnolli

1. Passagens
O que é ética na cena teatral contemporânea? Não pretendo responder essa pergunta, apenas
recolocar alguns problemas que vêm orbitando meu pensamento há alguns anos diante de
práticas teatrais herdeiras de dois giros nas artes da cena: a virada performática, esta que
coloca o corpo em questão, e a virada social, que o contextualiza no mundo. Esses dois
movimentos põem em tensão a dimensão estética do fazer artístico não para elidi-la, mas
reiterar que cada forma é uma proposição de relação entre materiais e, portanto, carrega uma
ética.

Abro e fecho o parágrafo anterior com essa palavra tão antiga, associada ao ethos grego, ao
cânone ocidental. Há poucos dias, ouvi em uma banca e defesa de doutorado a escritora
curitibana Luci Colin observar que o antiético é um traço da arte pós-moderna. Talvez, ou a
vacilação sobre o que seria a ética, de modo a problematizar a moral vigente. De todo modo, o
pós-modernismo hoje desidratou-se, senão por suas contradições internas, pelo rebaixamento
da modernidade como parâmetro universal de qualidade artística, devorada pela embocadura
decolonial.

Falar em virada performática e contextual, o que remete a teóricos como a alemã Fischer-
Lichte, a inglesa Claire Bishop e o espanhol Oscar Cornago, mas também à mexicana Ileana
Dieguez, pode soar um debate da década (ultra)passada. Posso argumentar que a emergência
das (ou a atenção internacional enfim dada às) artes de países fora da Europa teria função
preponderante nessas transformações. Mas, me interessa mais uma lógica que contorne as
exclusões para sustentar algo das diferenças em jogo nos impasses culturais do campo
artístico.

Ética, entretanto, é um conceito que merece um tempo a mais. Primeiro, para separá-la da
moral, com seu conjunto de códigos pré-definidos culturalmente no interior de um sistema de
crenças, que não é universal. A ética, como a entendo aqui, não está escrita na pedra, é uma
prática que se faz com o corpo implicado. E não atende a ideais de elevação e pureza que
higienizariam o desejo e o gozo, numa assepsia falaciosa que suja os pés no fascismo. Quanto
mais alto o ideal de bem, mais é preciso excluir, segregar, mortificar da experiência corpórea.
Só uma ética desejante aposta no vivo.

Esta curva inicial contorna o vazio em questão no aparente paradoxo: a luta contra a
segregação não se sustenta nos ideais de bem (nem os cristãos nem os pagãos), pois o que se
segrega é sempre da ordem do que cada um, a sós ou em grupo, considera eliminável em si ou
no mundo, o mal, o outro.
Para conversar com "Meu corpo está aqui", então, convoco outros espetáculos: "E.L.A" e
"Hamlet". De distintos modos, são eles que me acompanham nesta escrita. Destaco a preciosa
revisão crítica que a atriz cearense Jéssica Teixeira faz em cena, no primeiro, expondo
documentalmente as conexões entre o nazismo e a medicina na definição de um corpo
"saudável" ou "normal", às custas das vidas de quem não atendesse aos parâmetros
estabelecidos, seja etnia, sexo, gênero, crença, peso, forma corporal etc.

Cabe observar também que há, ainda, quem se esqueça dos paradoxos da linguagem. Ela
funda o mundo, os corpos existem porque os chamamos de corpos, usando palavras, ou
haveria outra coisa, outro modo de (in)compreendê-los, mas a linguagem está sempre aquém
dos corpos que existem. Os entes escapam das bordas das nomeações e classificações que
delimitam seu ser. Quem ainda sustente um conceito de si como normal, praticou uma
segregação feroz do que em si não é.

"Meu Corpo Está Aqui" apresenta-se como um espetáculo em que pessoas com deficiência
falam abertamente de suas experiências. A esta altura do debate político, me parece
incontornável a marcação "com deficiência", que afirma a existência a quem historicamente
vem sendo excluído, com as particularidades que esse grupo enfrenta na sociedade. E crucial
a afirmação de que essa identificação é insuficiente para dizer das pessoas que estão em
cena. Vamos a ela.

2. Corpos existem
O nome do espetáculo diz algo muito importante sobre a nossa relação com os corpos. "Meu",
pronome possessivo: o corpo é isso que supomos ter, instaurando certa distância entre o eu e,
digamos, ele. E ele sempre está aqui, embora a posse seja questionável, pois o corpo escapa
ao controle, é impossível desfazer-se dele e continuar a existir. A cada um nos cabe nos haver
com o corpo que aconteceu, sem que caibamos muito bem nele.

Corpos falantes, que somos, que são os atores, oferecem ao público suas presenças, o que já
rompe um regime de invisibilidade e/ou inaudibilidade mantido por condições sociais
excludentes, dentre as quais as dificuldades de mobilidade urbana e as viés normativo de
saúde e beleza com que se sustenta o discurso capitalista. Estar, primeiro. Ser visto ou ser
escutado, depois. Ações antissegregatórias, que convocam os espectadores.

3. Falantes
"O que eu posso te dar?" "O que você pode me dar?" Essas perguntas são proferidas pelos
artistas que se apresentam sem instaurar uma distância ficcional entre suas vivências pessoais
e seus relatos, embora ela necessariamente exista, no mínimo, na passagem do acontecimento
vivido de modo irrepetível para a estruturação linguajeira da fala ou das Libras. São perguntas
que nos situam entre a demanda e o desejo, não sem um aceno à questão do poder.

Vamos nos deter aqui um momento. A começar pela relação de potência/impotência,


advertidos da associação entre deficiência e incapacidade, que pode tomar a forma de um
preconceito generalizado. Em um meio social infantilizado pela propaganda do
empoderamento, sob a qual se recobre não a impotência, mas o impossível, há de se dizer que
nenhum corpo pode tudo. O corpo é um limite, perecível, mortal, não todo simbolizável, embora
não sejam tão nítidas quais as suas fronteiras. Voltaremos a isso.

O apelo ao discurso jurídico tem sido um meio de extrema importância no laço social para
contrapor a negação de corpos ditos deficientes, restituindo-lhe as possibilidades de ir e vir, de
socialização, de vida.

Outra coisa é uma questionável tendência contemporânea de ortopedia do desejo, que se


baseia em uma confusão entre desejo e vontade, entre corpo imaginário e o pulsional. A ideia
de que se deva reeducar o desejo para que se torne menos "hegemônico", por exemplo. Dever
e educação são ações estranhas ao desejar, moralizantes, estabelecem novas normas e
culpas, para dizer pouco. Menos do que impor a domesticação do desejo segundo os ideais de
um grupo social, o que faz diferença talvez seja entender o desejo além da imagem e avesso
aos imperativos de gozo do discurso capitalista em sua propagação de corpos-modelos.
Desejar não é atender a ideais. Tampouco escolher quais corpos "consumir", como produtos
em uma prateleira, de rápida deglutição.

4. Sexuados
Os artistas de "Meu Corpo Está Aqui" se apresentam como sujeitos desejantes, com avidez
pela vida. Insurgem-se contra os lugares restritos que o discurso social guarda para eles no
campo do amor e do sexo. Colocam o erotismo em cena, partilham histórias de encontros
sexuais, de atração e rejeição.

Ocupam um espaço que se abriu no teatro contemporâneo para os ditos corpos desviantes,
uma expressão que tem me incomodado no que ela se sustenta semanticamente ainda na
crença de uma via. Lembro-me do áudio de divulgação da MITsp que escutei nestes dias antes
das peças, propondo tirar do centro aqueles que sempre estiveram lá. Há um passo a mais
sendo dado quando não entendemos a via como única nem a geografia centralizada. O que
pode emergir além dessa medição de distância em relação a um modelo são as diferenças
radicais de cada um, além das particularidades de grupo. Se o particular é parte de uma noção
de todo (conjunto), as singularidades são o que não faz grupo, escapa ao conjunto, distingue
um a um. Por isso, permitem uma afirmação mais radical da vida em suas incontáveis formas.

Apesar da função social que "Meu Corpo Está Aqui" propõe-se a realizar, ressituando corpos
de pessoas com deficiência nos laços afetivos e como seres sexuados, falantes, desejantes,
responsáveis por contar suas próprias histórias, a via que adotam se centraliza em discursos
semelhantes, que pouco permitem entrever do singular de cada sujeito ali, do que para cada
um é a experiência do corpo, consigo e com os outros.

Penso no "Hamlet", dos peruanos do Teatro La Plaza, que esteve no Mirada e no Festival de
Curitiba em 2022, e em como o comum da Síndrome de Down, ali, era temperado por cada ator
que trazia à cena um traço irrepetível, único, do seu modo de estar no mundo, do seu desejo. E
isso craquelava os estereótipos para além da conscientização racional ou do discurso jurídico
do direito à igualdade. Instaurava a possibilidade de olhar para cada sujeito com a abertura ao
desconhecido que é o outro.

Penso também no E.L.A., em que Jéssica Teixeira seduz a plateia com a compreensão de que
seu corpo é matéria sensível, de que o teatro é manejo de matérias sensíveis, e o erotismo da
cena se faz com os arranjos de voz e outros sons, de visualidades, de significações. Aí
encontramos um corpo que também se oferta como imagem, como forma, mas não só. Um
corpo pulsional e pulsante, que se constitui no olhar, na voz, nesses circuitos libidinais que
excedem as fronteiras da pele e capturam o outro.

Meu Corpo Está Aqui ainda se ancora mais nas pressuposições fixadas de identidades que
servem à demanda legislativa. Num momento em que os editais, festivais e capitais já
começam a entender a necessidade de desfazer as exclusões que a identificação eurocentrada
perpetuou, é importante tensionar um pouco mais a roda dos sentidos para permitir giros de
sensibilidade estética mais audaciosos.

Aqui podemos encontrar algumas escolhas formais que vêm se repetindo nos palcos e,
considerando o esvaziamento da repetição quando não resultante de uma lógica interna do
processo criativo, refletir sobre seus problemas ético-estéticos. A aparência de relato pessoal
direto para a plateia, sustentado pelo efeito de valor de verdade desse tipo de enunciação,
estabelece uma relação formal em que a verdade está de um lado - no palco - e deverá ser
aceita pelo outro - a plateia. Uma relação binária, em que as identidades se fixam, e o apelo se
dirige pela via discursiva do convencimento.

O teatro como local de testemunho e conversão ao bem guarda algo da lógica religiosa cristã.
O que nos faz sujeitos políticos, cidadãos, pessoas desejantes, não passa pela
condescendência. Isso, sim, seria subestimar quem se apresenta em cena. Ao som do "Infinito
Particular" de Marisa Monte, que ouvimos durante o espetáculo, pergunto quais mundos
singulares haveria a elaborar ali.

Entendo que quando aquele conjunto específico de corpos faz teatro, suas presenças, seus
movimentos, suas vozes e olhares, seus modos de estar no espaço e manejar as outras
materialidades da cena, seus usos da linguagem, suas elaborações intelectuais e suas
afetividades são o que há de mais desejante e vivo que o teatro pode abrigar. Aí sustenta-se o
estético como forma social e política.

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