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OS ATORES COM CORPOS DIFERENCIADOS E POÉTICA TEATRAL DE

BERTOLT BRECHT

OLIVEIRA, Felipe Henrique Monteiro1

RESUMO

O presente texto tem como objetivo suscitar a reflexão sobre a participação de


atores com corpos diferenciados no teatro contemporâneo sob a perspectiva da
poética brechtiana. Deste modo o estudo realiza concomitantemente uma
averiguação acerca da produção de estigmas e a forma em que eles se instauram,
se propagam e interferem na sociabilidade entre os seres humanos considerados
normais e os com corpos diferenciados, bem como na fazer teatral. No que tange ao
teatro à luz poética brechtiana na contemporaneidade, o texto demonstra que diante
da nova forma de dominação política e social, nada, nem mesmo o corpo fugirá da
métrica mercadológica, onde a soberania da força da imagem determina o padrão
de corpo perfeito, esquecendo das variadas funções que o corpo pode realizar seja
completo ou não, e é neste sentido que o ator com corpo diferenciado, que é
corriqueiramente estigmatizado, relegado ao ostracismo social, porque provoca e
desestabiliza a imagem tradicionalmente atribuída ao corpo humano “perfeito”, tem a
oportunidade de questionar, denunciar e subverter junto aos espectadores todo o
processo de estigmatização dos seres humanos com corpos diferenciados nas artes
cênicas e na sociedade contemporâneas.

Palavras-chave: Corpos Diferenciados; Teatro Participativo; Estigmas; Poética de


Bertolt Brecht.

1
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte com bolsa pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade
Federal de Alagoas. Fundador, encenador e ator da Cia. N'ATOS de Teatro. Membro do CRUOR Arte
Contemporânea.
ABSTRACT

This paper aims to inspire reflection on the participation of actors with different
bodies in contemporary theater from the perspective of brechtian poetics. Thus the
study concurrently conducts an investigation on the production of stigma and how
they are established, spread and interfere with the sociability of human beings
considered normal and those with different bodies, as well as in doing theater.
Regarding the brechtian theater to light in contemporary poetry, the text
demonstrates that before the new form of political and social domination, nothing, not
even flee the body of marketable metrics, where the sovereign power of the image
sets the standard for perfect body , forgetting the various functions that the body can
perform either complete or not, and it is this sense that the actor with differentiated
body, which is routinely stigmatized, ostracized social, because it provokes and
unsettles the image traditionally ascribed to the human body "perfect" has the
opportunity to question, expose and subvert the spectators along the entire process
of stigmatization of people with different bodies in the scenic arts and contemporary
society.

Keywords: Differentiated Bodies; Participatory Theatre; Stigmata; Poetic of Bertolt


Brecht.

Este escrito tem como finalidade realizar uma reflexão sobre o trabalho dos
atores com corpos diferenciados no teatro contemporâneo sob a perspectiva da
poética brechtiana, no entanto se faz necessário refletir inicialmente sobre estes
indivíduos na sociedade contemporânea.

Na contemporaneidade, tem se falado demasiadamente sobre o


reconhecimento e a aceitação da diversidade na vida em sociedade, ou seja, a
garantia de todos ao acesso às diferentes oportunidades socioeconômicas e
culturais, independentemente das peculiaridades de cada indivíduo e/ou grupo
social, no entanto na sociedade contemporânea nos deparamos cotidianamente com
uma ação inversa: exclusão.

O porquê disto é que a lógica da exclusão ainda perdura firmemente em uma


sociedade que marginaliza, rejeita a diferença e que evidentemente não costuma
considerar o pressuposto de que quanto mais se aumenta a distância entre poder e
qualidade de vida nos grupos humanos, maiores serão as probabilidades de
segregação. Logicamente, isto remete ao caráter político e público da sociedade a
um lugar secundário, onde ideais como justiça social, equidade, solidariedade e
democracia resultem em palavras vãs, porque não são prioritariamente os ideais
necessários em um mundo em que tudo passa pela métrica do capital.

Uma das armas mais poderosas utilizadas no processo de exclusão é o


antidiálogo, já que tem como propósito manter os seres humanos alheios e distantes
das decisões sobre o modelo e sobre as formas de organizar e intervir na vida
social, haja vista que esta estratégia de dominação incorre sobre a capacidade de o
sujeito pensar e problematizar sobre a realidade, impedindo-o de exercer o direito de
exprimir sua palavra, dialogar e dialetizar acerca da sociedade em que vive, o que,
desta maneira, o torna um indivíduo alienado e fragmentado. Ou seja, é visível que a
coisificação do ser humano está relacionada ao isolamento e a produção e
manipulação dos afetos, pois sem a oportunidade de dialogar e privado de canais de
debate e reflexão sobre suas relações com o mundo e com os outros, mais alienado
político, social e culturalmente se encontrará e ficará o indivíduo. Nesse sentido,
diante da garantia da passividade das diferenças e a divisão das igualdades, os
controladores levarão adiante a perpetuação do seu poder e assegurarão a
ampliação de sua força de coerção no processo de domínio cultural, e, claramente,
os sujeitos virarão meros fantoches do ponto de vista político-sócio-cultural, o que
intensifica cada vez mais o processo de exclusão.
No campo das artes inseridas nesta sociedade, e ao compreender que um
dos pressupostos para a possível instauração do processo inclusivo na sociedade é
a utilização do discurso e que a linguagem humana é mediada por dispositivos
discursivos e no seu cerne estão circunscritos os valores vigentes de cada época,
iniciei uma busca por um termo que fosse mais politicamente correto e não estivesse
carregado de qualquer espécie de discriminação, tarefa muito difícil nesta
sociedade, especificamente em relação ao trabalho artístico de pessoas que
comumente são designadas de “deficientes”, cunhei em conjunto com a Prof.ª Dr.ª
Nara Salles, o termo corpos diferenciados, e o publicamos pela primeira vez em
nosso artigo “Corpos Diferenciados: O Teatro No Processo Educativo” na Revista
eletrônica Extensão em Debate2, para designar pessoas com alguma chamada
“deficiência” corpóreo/mental, pois nos parece a princípio que diferenciado tem o
significado de apenas ser diferente, posto que no dicionário on-line Michaelis3,
diferente vem do latim differente e designa aquilo que é diverso, alterado, mudado,
modificado, variado. Diferentemente de outras denominações que estão em
consonância com o processo de exclusão e que tanto inferiorizam as pessoas com
corpos diferenciados, como por exemplo: deficiente, incapacitado, mongolóide, cego,
aleijado, doente, idiota, excepcional, demente, portador de necessidades especiais,
imbecil, inválido, cretino, coxo, manco, defeituoso, portador de deficiência, anão,
imperfeito.

Mas o reconhecimento e aceitação da diversidade esbarram no desejo de


assegurar a homogeneidade social, que é produzida a partir de uma aversão à
diferença, fazendo com que o ideal de inclusão, geralmente, tenha dificuldade para
se instaurar na sociedade. A discussão em torno da inclusão se estende à afirmação
da diferença, visto que há diferenças e há igualdades, e nem tudo deve ser igual e
nem tudo deve ser diferente. É imprescindível que o ser humano tenha o direito de
ser diferente quando a igualdade o descaracteriza e o direito de ser igual quando a
diferença o inferioriza.

E estes ideais são assegurados plenamente no teatro contemporâneo sob a


perspectiva da poética brechtiana, pois os indivíduos que, até então, eram postos à
margem dos processos e produtos artísticos ganham espaço, pois artistas percebem
sendo diferentes, podem e devem experimentar o que é dado como possibilidade a
qualquer corpo: fazer arte.

Os atores com corpos diferenciados, especialmente no teatro contemporâneo,


fazem surgir uma corporeidade peculiar em cena, pois ao apresentarem seus corpos
fora das expectativas normativas, ainda que não seja de sua vontade, interferem e
provocam reações de cunho social e estético que se opõem aos cânones cênicos
tradicionais. Porém, antes da inclusão efetiva no âmbito artístico, a presença destas
pessoas em cena se instala no âmago social e antropológico, visto que concerne a

2
In http://www.seer.ufal.br/index.php/extensaoemdebate/article/viewArticle/66 - Revista Extensão em
Debate · Vol. 1, No 1 (2010).
3
In http://michaelis.uol.com.br/ <acessado em 30 de novembro de 2011.>
um grupo, explícita ou implicitamente, excluído na medida em que suas condições
físicas se contrapõem aos padrões de corpo e de beleza estabelecidos.

O corpo humano, sendo diferenciado ou não, tanto na sociedade como na


cena, se caracteriza como uma matriz corpóreo/vocal, conceito defendido por Nara
Salles (2004), com o qual coaduno, onde o corpo é compreendido inicialmente
dentro de uma matriz identitária de auto-reconhecimento, relacionado ao meio
ambiente cultural, levando em consideração sua subjetividade: que corpo é esse;
que movimentos do cotidiano podem-se decodificar em extracotidianos para ter um
corpo significante; como se move este corpo nos vários ambientes vivenciados e o
que traz na memória e percepção corpórea, o imaginário deste corpo e as formas de
lidar com o corpo culturalmente estabelecidas. Nesse sentido, Brecht refletiu: os
seres humanos são sujeitos sócio-históricos e culturais.
E ainda em relação ao corpo, Todas as barreiras atitudinais aplicadas nas
pessoas com corpos diferenciados – preconceito, discriminação e estigma - são
oriundas do entendimento e contribuem para o fato de que o corpo é uma
construção social e cultural, logo indivíduo com corpo diferenciado, se não o tivesse,
poderia participar normalmente das relações sociais do seu cotidiano, mas como
apresenta singulares características corporais que fogem dos padrões normativos da
sua sociedade, seu corpo diferenciado acaba acentuando as atenções alheias, e por
consequência destas, os outros esquecem que o indivíduo é um ser humano como
outro qualquer. e isto ressalta o fato de que na contemporaneidade o estigma se
imputa mais nas relações interpessoais do que nas características corporais.

Neste viés, tanto Erving Goffman (1975) como Le Breton (2001) afirmam que
cada sociedade seleciona atributos que ajustam a maneira como cidadãos devem
ser. E esses atributos devem ser iguais para todos o que acaba resultando em
expectativas normativas. E os sujeitos que não se encaixam nelas acabam sendo
estigmatizados, como o é caso das pessoas com corpos diferenciados.

Um dado bastante interessante que Le Breton fala é sobre a relação do olhar


com o estigma, pois na vida contemporânea foi atribuído ao olhar a responsabilidade
de regular as manifestações e as atividades do corpo, assim nas relações
interpessoais, o olhar dos 'normais' submete aqueles com corpos fora dos padrões
de beleza e normalidade vigentes, a possibilidade de serem evitados a todo instante
da sociabilidade.
Sendo o corpo é uma construção social e cultural, pode-se entender o
significado e a percepção individual e coletiva do que vem a ser ideário sobre o
corpo para cada época ou ao longo da história. Assim, a sociedade atual, enraizada
da ideologia capitalista neoliberal, transforma os imaginários sociais das pessoas
com corpos diferenciados através dos meios de comunicação de massa.

Diante da nova forma de dominação política e social, nada, nem mesmo o


corpo fugirá da métrica mercadológica, onde a soberania da força da imagem
determina o padrão de corpo perfeito, esquecendo das variadas funções que o corpo
pode realizar seja completo, inteiro ou não.

Ocorrendo a proliferação de imagens de pessoas com corpos malhados,


esculpidos cirurgicamente e, por outro lado em contraste, os deteriorados, muitas
vezes ocasionados pelo uso de drogas, a publicidade nos meios de comunicação
em massa evoca, sob a égide da valorização corporal, no imaginário social, as
imagens de corpos, que na maioria das vezes os indivíduos não têm: saudáveis,
jovens, sedutores, bonitos, magros. Neste sentido, o sujeito com corpo diferenciado
passa cotidianamente, nas trocas sociais, por atitudes preconceituosas e
estigmatizantes, haja vista que seu corpo impede que os outros se identifiquem
fisicamente com ele, e consequentemente nós podemos atentar que o estigma se
instaura porque os seres humanos com corpos diferenciados fragmentam
simbolicamente a imagem convencional do corpo. E neste sentido eles passam a ser
associados à única certeza existencial da humanidade: a finitude humana.

Logo o ator com corpo diferenciado presente no cotidiano, quase sempre


opressor, durante o processo criativo e a encenação, geralmente, traz para a cena
sob a perspectiva da poética brechtiana mediante seu corpo, suas próprias
experiências, sua autobiografia, suas memórias, a possibilidade de questionar e
subverter junto com a audiência as relações sociais. Isto porque na procura por um
entrecruzamento entre vida real cotidiana e vida esteticamente organizada, o ator,
no teatro se converte em mediador do processo político-social e revalida que é
possível pensar "o político" sem aderir à política partidária.

O ator com corpo diferenciado através do efeito de distanciamento e dos


gestus traz para a cena brechtiana a possibilidade de expor os estigmas, pois
mesmo nas sociedades contemporâneas, práticas e ideologias excludentes
continuam vigorando e marginalizando, como nos outros períodos históricos, os
seres humanos com corpos diferenciados.

Está em pauta não somente a representação de um personagem, mas a


experiência do real pelo e no corpo do artista, tendo o corpo como força motriz da
ação, e desta forma se caracteriza não mais como a interpretação do real como ele
é, mas sua utilização auto-reflexiva, ou seja, ela é aquilo que é mostrado por
aqueles que a fazem e as provocações e questionamentos gerados a partir da ação.
Ou seja, ator com corpo diferenciado tem a oportunidade de inventar, executar e se
transformar na própria obra de arte, tornando-se simultaneamente criador, criatura e
criação, e não mais se impondo, apenas, como mero corpo ilustrador-reprodutor
textual em cena.

Portanto, no teatro contemporâneo sob a perspectiva da poética brechtiana,


os atores com corpos diferenciados, estigmatizados e corriqueiramente relegados ao
ostracismo social e artístico, provocam e desestabilizam a imagem tradicionalmente
atribuída ao corpo humano “perfeito” na cena brechtiana e na sociedade, os artistas
trazem registradas em seus próprios corpos, todas as situações depreciativas em
que viveram e vivem, e, sendo alvos da apreciação e da espetacularidade humana,
têm no teatro a oportunidade se tornarem interventores político-artístico e social no
mundo atual. Isto porque o teatro participativo de Bertolt Brecht surge como uma
possibilidade de consolidar investigações e de que se faz necessário pensar e
repensar sobre os nossos modos de lidar, compreender, reconhecer, aceitar e incluir
as diferenças e igualdades nas demais relações e manifestações sociais,
econômicas, políticas, culturais e artísticas. Entretanto, para isto acontecer é
imprescindível que estes cidadãos não sirvam apenas de pretextos para se
conseguir arrecadar benefícios referentes às relações e manifestações, nem
tampouco sejam inseridos dentro de um protecionismo exacerbado e estigmatizante
realizado em nossa realidade. Pois as artes cênicas na contemporaneidade não
impõem juízos de valor sobre quais são os corpos ou figurinos que devem ou não
participar e estar presente em cena, pois agora se objetiva discutir, reconhecer e se
apropriar da diversidade e da alteridade dos atores, dentre eles os com corpos
diferenciados.
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