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MODOS DE EXISTÊNCIA EM QUATRO OBRAS DE LEONORA CARRINGTON

Conference Paper · January 2022


DOI: 10.29327/31ENANPAP2022.513517

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Andrey Parmigiani da Silva


Universidade do Estado de Santa Catarina
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MODOS DE EXISTÊNCIA EM QUATRO OBRAS DE LEONORA CARRINGTON

MODES OF EXISTENCE IN FOUR WORKS OF LEONORA

Rosângela Miranda Cherem / UDESC


Andrey Parmigiani / UDESC

RESUMO
O artigo aborda quatro obras de Leonora Carrington, a partir das quais se destacam as
marcas de seu universo poético e conceitual, suas figurações imagéticas e soluções
plásticas. Na escultura Cómo hace el pequeño cocodrilo a criação de seres situados em
zonas intersticiais entre passado e presente, animal e humano, natural e artificial, crenças e
incertezas. Na pintura Green tea uma paisagem encontra reverberação num texto, onde a
artista narra os abusos vividos durante uma internação psiquiátrica. Em La maja del Tarot,
observa-se uma referência explícita à cartomancia, embora se afirme como ponto de
abertura para além de qualquer simbologia reducionista. Lepidóptera apresenta a figuração
de um ser composto por três criaturas, através da qual a artista se posiciona e defende a
imaginação como modo de resistir e criação como modo de viver com coragem.

PALAVRAS-CHAVE
Leonora Carrington. História da arte. Surrealismo. Pintura. Escultura.

ABSTRACT
This article addresses four works by Leonora Carrington, from which the main brands that
define her poetic universe and conceptual horizon, her imagetic figurations and solutions in
terms of plastic language. In the sculpture Cómo hace el pequeño cocodrilo the creation of
beings located in interstitial zones between past and present, animal and human, natural and
artificial, beliefs and uncertainties. In the painting Green tea a landscape finds reverberation
in a text, where the artist narrates the abuse experienced during a psychiatric hospitalization.
In La maja del Tarot, an explicit reference to cartomancy, although it asserts itself as an
opening point beyond any reductionist symbology. Lepidoptera a being composed of three
creatures, through which the artist positions herself and which trigger the understanding of
imagination as a way of resisting and creation as a way of living with courage.

KEYWORDS
Leonora Carrington. Art history. Surrealism. Painting. Sculpture.

1
Um crocodilo gigante como existência mínima

Imagem 1. Leonora Carrington, Como hace el pequeño cocorilo, 2000. Escultura em bronze, 8,5 m x
4,8 m (5 toneladas). Paseo de la Reforma, Ciudad de México. Foto: Sebaso Benutzer. Fonte:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:20150717_IMG_6719_by_sebaso_(20433483078).jpg>
Acesso em: 11 de jun. 2022.

Como hace el pequeno cocodrilo (Imagem 1) é uma escultura com enormes


medidas em relação à escala do corpo humano, patinada em tons azuis
acinzentados e concebida para caber dentro de uma grande fonte em forma de
bacia equipada com água e pedras. Apresenta um animal que rema um barco, cuja
proa possui cabeça semelhante a dos demais passageiros, embora seja maior e o
único a estar com a boca aberta. Sua autora, Leonora Carrington
(Lancashire, 1917 - Cidade do México, 2011), já era conhecida como pintora e tinha
pouco mais de quarenta anos quando começou a ser escultora, devido aos
incentivos do amigo promotor de arte, Isaac Masrii. Deu a escultura feita em 2000 o
mesmo título de uma tela feita em 1998, onde seres semelhantes apareciam num
cenário cósmico. O título consiste numa referência ao trecho do livro Alice no País
das Maravilhas, de Lewis Carroll (1832-1898), no qual a protagonista recita um
poema paródico, referente a uma poesia moralista de Isaac Watts (1674-1748) sobre
a importância do trabalho duro:

Como o pequeno crocodilo


Faz sua cauda brilhar
Espalhando a água do Nilo
Ao sol, dourada, no ar!

Tão alegre, tão bonzinho,


Abre as garras, bem sutil,
E acolhe cada peixinho
Em seu sorriso gentil!
(CARROLL, 2010, p. 31)

Assim como nas aventuras de Lewis Carroll, aqui nada é o que aparenta ser, tudo
parece estar num estado alterado, destinado a embaralhar as certezas. Essa
escultura teve como primeiro habitat o Parque Chapultepec, espaço mexicano
considerado sagrado desde tempos pré-colombianos. Ocorre que durante os 16
anos em que esteve lá, sua fonte permaneceu desligada e sem água, escondida
entre os diversos automóveis que circulavam pelo seu entorno. Sob autorização da
artista, foi levada para uma praça pública, na esquina da Rua Havre com a Avenida
Paseo de la Reforma, possibilitando que mais pessoas tivessem acesso, com mais
liberdade para poderem se aproximar e tocá-laii. Assim, a artista não apenas
engendrou uma nova forma no mundo, mas deu-lhe possibilidade para continuar
existindo dentro de um novo contexto e com novas oportunidades de conexão a
partir de um o novo ambiente.

Referindo-se ao pensamento de Étienne Souriau em Les différents modes d’


existence, publicado originalmente em 1943, David Lapoujade reconhece como
existências “um pôr do sol, uma fachada de um edifício, uma ilusão de ótica, uma
dança de elétrons, um triângulo isósceles, uma ideia abstrata (...)” (LAPOUJADE,
2017, p. 27) e acrescenta a esta lista “todas as “entidades frágeis e inconsistentes”
que duplicam o mundo das coisas e dos pensamentos (...)” (LAPOUJADE, 2017, p.
34). Assim considera os seres imaginários, os quais existem através de nossas
crenças, são instaurados por nossos afetos, medos e desejos. Dizer que existem “é
dizer que não têm apenas uma existência subjetiva, mas que nos fazem agir, falar,
pensar em função da maneira de ser que nossa crença lhes dá” (LAPOUJADE,
2017, p. 35). Depois considera os seres virtuais, ainda mais frágeis do que os seres
imaginários ou da ficção pois aparecem e desaparecem em segundos, sua condição
é serem inacabados e sofrerem infinitas mutações: “eles não têm nenhuma solidez,
nenhum lugar determinado, nenhuma consistência. Por um lado, é o universo mais
amplo e mais rico - pelo menos na aparência - mas é também o mais evanescente, o
mais inconsistente, o mais próximo do nada” (LAPOUJADE, 2017, p. 38). Assim,
eles estão na exterioridade do mundo e precisam ser alcançados conforme nosso
poder de apreensão:

Trechos de conversas tornam-se o germe de uma narrativa, os


traços de um rosto transformam-se em um eventual retrato, algumas
notas formam o começo de uma melodia, um roteiro torna-se filme,
uma intuição torna-se sistema etc. Não há uma só realidade que não
esteja acompanhada de uma nuvem de potencialidades, que a segue
como se fosse sua sombra. Cada existência pode tornar-se uma
incitação, uma sugestão ou o germe de outra coisa, o fragmento de
uma nova realidade futura. Toda existência torna-se legitimamente
inacabada. (LAPOUJADE, 2017, p. 39).

Neste sentido a escultura Como hace el pequeno cocodrilo pode ser como uma
existência que se relaciona com a existência da própria cidade. Parece que um
enorme animal transporta outros seres, dos quais, talvez cinco sejam filhotes,
enquanto um maior parece conduzi-los na condição de remador. É então que
começam as dúvidas. O pequeno crocodilo a que se refere o título, seria o
barqueiro, ou o próprio barco? Quando a obra é relacionada ao poema citado, surge
outra questão: a proa com a mesma cara dos demais seres só que maior e com a
enorme boca aberta equivaleria ao pássaro que carrega os peixinhos? Pretende
conviver pacificamente com eles ou devorá-los?

De todo modo, o animal que serve para dar título à obra não se apresenta como
uma figuração realista. Não se assemelha a um pássaro com bico estranho, nem a
um crocodilo com seus dentes pontiagudos e quatro patas curtinhas. Se a escultura
de bronze foi feita para um território com peso ancestral, ao invés de barco, não
seria mais apropriado considerá-la como uma espécie de mesa associada a um altar
de oferendas?

Ao mesmo tempo enigmática e lúdica, transportada para o coração de uma cidade


cosmopolita regida pelo capital financeiro, a obra tornou-se vizinha de enormes
prédios de arquitetura moderna com vidros espelhados que abrigam grandes
escritórios e instituições financeiras.
Assim, a escultura já não se parece mais com um simples monumento destinado a
adornar um parque ou a homenagear um espaço urbano, cujos habitantes seguem
acelerados, esquecidos de seu passado milenar. Embora tenha sido criada como um
ser ficcional, na sua condição de existência artística, podemos reconhecê-la para
além da realidade imaginativa de quem a criou. O deslocamento parece ter
reverberado: as múltiplas possibilidades narrativas, onde o passado e o presente, o
animal e o humano, o natural e o artificial, as crenças e as incertezas se
entrecruzam, orientando e desorientando transeuntes que seguem transportados por
forças que desconhecem, num rumo que permanece insondável. Diante da
impossibilidade de apreender a completude das imagens, na profusão de
virtualidades que gera, a obra persiste como testemunha dos mesmos desafios que
trouxeram Leonora Carrington ao México: Como existir em um mundo que parece
não dar espaço para nossa existência?

Um jardim onde viceja o incompreensível

Imagem 2. Leonora Carrington, Green Tea, 1942. Óleo sobre tela, 61 cm x 76.2 cm. Acervo MoMA,
Nova York. Fonte: < https://www.moma.org/magazine/articles/456> Acesso em: 11 de jun. 2022.

O mundo ainda estava em guerra quando Leonora Carrington pintou Green Tea
(Imagem 2), um jardim, cuja alameda conduz a um pátio que se abre para três
caminhos distintos. Tudo parece muito agradável, até que começamos a reparar em
detalhes mais sutis: no primeiro plano, numa espécie de cova rasa, avistamos
frágeis raízes, três morcegos, um par de casulos e um ninho com pássaros revoltos.
Pelo lado esquerdo, há um corpo misteriosos e hierático, muito pálido, meio múmia e
meio estátua, vestido com uma túnica estampada, como se fosse o couro de uma
vaca malhada. Seus olhos estão fechados, sua cabeça apresenta um estranho
tocado, coroa, com cortinado ou penteado, seus pés descalços pisam um chão
definido por um círculo que o delimita. Logo atrás, há o que poderia ser um forno
aberto, bule ou chaleira, cuja tampa apresenta quatro cabeças de veados. Tudo é
bem figurativo, embora pouco realista. Pelo lado direito há dois animais com cores
distintas. O branco parece um pônei de raça, tem postura elegante e garbosa. O
animal em tom vermelho-amarronzado parece uivar e se debater, suas mamas
indicam tratar-se de uma fêmea. Só então percebemos melhor: cada animal está
acorrentado ao rabo do outro, sendo que ambos se parecem com frágeis caules,
possuindo na ponta uma copa verdejante, podadas para enfeitar um jardim. Bem ao
fundo avistamos as torres de uma cidade populosa.

Assim, como no Jardim das Delícias de Hieronymus Bosch (1450-1516),


reconhecemos nesta tela, a paisagem de uma manhã edênica, onde as leis do
mundo supra-lunar mantêm as coisas num estado anterior ao da nomeação e
classificação pela linguagem humana. Todavia, convém lembrar que as sombras
estão presentes, silenciosas e breves testemunhas de que nem tudo são luzes. Dois
anos após esta pintura, e três anos depois de ter chegado ao México, Leonora
Carrington publicou Lá embaixo (1972). Como em outros de seus textos, borrava
todos os limites entre o real e a ficção, mas nesse em particular, tramou os
dolorosos acontecimentos enfrentados por uma internação psiquiátrica na Espanha
entre 1940 e 1941, sob os auspícios de sua família, num dos períodos mais
convulsos da história em escala global: “É em meio ao cheiro de morte e
decomposição que se espalha rapidamente pela Europa que Leonora experimenta
em seu próprio corpo a brutalidade dos tratamentos psiquiátricos (...)” (SALGADO,
CARRINTON, 2021, p. 79). Assim, o livro nasce das feridas profundas relacionadas
aos abusos físicos e psicológicos que viveu, como um modo de trazer o conteúdo de
suas dores processadas em relatos imaginativos e esotéricos, combinando
consciente e inconsciente, sonho e realidade, pulsão de vida e pulsão de morte.

Embora o título da pintura Green Tea, permaneça mais enigmático do que o do texto
Lá embaixo, ambos os trabalhos parecem remeter a uma realidade, cujo acesso só
se tornou possível por meio de recursos ficcionais. Em ambos a artista procurava
mesclar o mundo racional e a realidade irracional como um modo de elaborar as
experiências traumáticas, impossíveis de encontrar uma racionalização à altura do
vivido. A correspondência entre a linguagem pictórica e a literária pode ser melhor
alcançada através de um desenho inserido no livro junto com uma espécie de
legenda, onde a autora assinala sua estadia no hospício de Santander, e pontua os
lugares indicados no mapa de acordo com o que foi mencionado no texto (Imagem
3).

Imagem 3. Páginas 30 e 31 do livro Lá em baixo, de Leonora Carrington. (Imagem de


CARRINGTON, 2021, p.30 – p-31).

Tendo testemunhado as dores da primeira guerra mundial, em 1919, Sigmund Freud


(1856-1939) publicou um texto cujas reflexões se desdobravam do conto O homem
de areia, de E. T. A. Hoffmann (1776-1822), onde o protagonista evidencia seu
pavor por uma figura advinda desde a infância e que o acompanhou ao longo de
toda sua vida até chegar a um desfecho desastroso. A partir deste gatilho, explora o
sentido da palavra unheimlich como oposto e também muito próximo a heimlich,
sinônimo de uma realidade doméstica e familiar. Interessado pelo campo da
estética, não como simplesmente teoria da beleza, mas como teoria das qualidades
do sentir, esclarece que não se trata de realidades estanques ou adversas, pois um
mesmo fenômeno vivido de modo bastante doméstico e íntimo ou nativo e próximo
pode conter um sentido assustador, ou terrificante e sinistro, capaz de despertar
angústia e horror (FREUD, 2020).

Neste sentido, a distância entre o que foi reprimido e o que foi superado não pode
ser transposta para a ficção sem modificações profundas; pois o reino da fantasia,
depende do fato de que o seu conteúdo não se submete à realidade da vigília,
necessitando ser regido pelas leis do travestimento das condensações e desvios,
dos sentidos manifestos e sobretudo dos que permanecem latentes, sem que jamais
possamos tocá-los plenamente. Se é verdade que isto vale para os sonhos, é
também aqui que a relação entre o dizer e ver de Leonora Carrington, através da
literatura e da pintura, parecem manter uma carga onírica com admirável intimidade
ficcional:

Do lado de fora desse jardim, tão verde e tão fértil, há uma paisagem
árida; à esquerda, uma montanha no alto da qual há um templo
druida. Esse templo, pobre e arruinado, é o meu templo, foi
construído para mim, também pobre e arruinada; contendo apenas
madeira seixa, será o lugar onde vou morar, vindo visitá-lo todo dia;
depois vou ensinar a você o meu Conhecimento. (CARRINGTON,
2021, p. 34).
Um baralho com semelhanças moventes.

Imagem 4. Leonora Carrington, La maja del Tarot, 1965. Óleo sobre tela, 201 x 179.1 cm. Fonte:
<https://www.gallerywendinorris.com/artists-collection/leonora-carrington> Acesso em: 11 de jun.
2022.

É noite escura, um corpo resplandece sobre fundo dourado. Tudo é mistério, dos
astros no céu às ruínas meio palacianas, dos seres que flutuam ao chão que se
desfaz. A cartela de cores reduzida pelas variações cromáticas em torno de branco
e preto, amarelo e vermelho. Em La maja del Tarot (Imagem 4), a figuração remete à
imagem de uma mulher. A vestimenta estampa formas triangulares ou poligonais
com desenhos incrustrados que indicam os Arcanos Maiores do Tarot de Waite. No
centro, a forma maior reproduz a carta XIX, denominada O Sol. Na parte superior
pode-se ainda reconhecer, tanto pelas figuras como pelo número sobre elas, as
seguintes cartas: O Diabo XV, O Mundo XXI, O Julgamento XX, A Força VIII, A
Temperança XIV, cartas em geral associadas a empoderamento, enquanto no
centro pode-se reconhecer: A Lua XVIII, A Roda da Fortuna X, Os Enamorados VI, A
Imperatriz III e, finalmente, abaixo, duas cartas consideradas difíceis que sugerem
fortes mudanças e desestabilizações, formando os ombros da cabeça invertida, O
Enforcado XII e A Torre XVI.

Voltemos agora a nossa atenção para a protagonista que apresenta dois troncos e
duas cabeças compondo uma unidade. Uma cabeça virada para cada lado, na parte
superior há um inseto no centro de sua testa, na parte inferior sua cabeça é
atravessada por uma meia lua. Veste ainda uma espécie de echarpe, em cuja
extremidade há uma pipa emplumada de rosto monstruoso. Registros dão conta de
que nenhum dos dois troncos femininos remete ao autorretrato da artista, mas ao de
uma amiga, a atriz mexicana “La Doña” María Félix (1914-2002)iii. Seriam dois
corpos juntos ou apenas um corpo com duas cabeças representando opostos
emocionais ou situações complementares e invertidas? Do lado direito de quem
olha, duas mãos entrelaçadas parecem complementar uma gestualidade delicada
que lembram aranhas tecendo os fios quase invisíveis do próprio vestido. A mão
direita, direcionada para baixo, segura uma teia, cuja aranha branca parece seguir
tecendo.

Seres estranhos se multiplicam na escuridão, como máscaras ou esculturas que


guardam uma remota construção, o mesmo acontece no céu, e se dão a ver por
uma claridade semelhante a de um relâmpago. Vultos se espalham pelo firmamento,
destacando-se um monstro com tentáculos, rosto escuro e olhos reluzentes,
iluminados, além de formas fantasmáticas que esvoaçam parecendo águas-vivas,
bolhas e estrelas. Há um outro foco de luz que ilumina o chão onde se avistam
formas pouco discerníveis, quatros insetos, além de outras formas imprecisas,
misturas de vegetais e animais, organismos e esferas ou utensílios. Assim, apesar
da intensidade do clarão que adentra o lado esquerda da tela, nada é revelado e
quase tudo permanece obscuro.

No pequeno, texto intitulado A doutrina da semelhança (1935-36), Walter Benjamin


(1892-1940) analisa como certos procedimentos guardados nos primórdios da magia
e das caçadas permitem pensar ainda como as similitudes são construídas, embora
mantendo o inexplicável salto em que algo pré-existente parece escapar. Abordando
os processos que engendram a semelhança, observa que os mesmos fazem parte
de arquivo que atravessou da pré-história à antiguidade, perpassando a leitura de
pegadas e o poder revelador dos astros, vísceras e outros acasos, através dos quais
os destinos humanos foram vinculados. Ao situar a semelhança sobre o fluxo das
coisas, observa que era a própria linguagem que se elaborava. Ao refletir que os
humanos de outros tempos liam as imagens abstratas das constelações, pondera
que se existiram leituras sobre o destino humano a partir dos astros, “pode-se supor
que o dom mimético, outrora o fundamento da clarividência migrou, gradativamente,
no decorrer dos milênios, para a linguagem e para a escrita, nelas produzindo um
arquivo completo de semelhanças extra-sensíveis” (BENJAMIN, 1985, p. 112).
Desse modo, permite pensar um procedimento ancestral e renitente da experiência
humana, marcado pelo princípio a que chamou de “busca da semelhança
inverificável, movida por uma proximidade empática” (BENJAMIN, 1985, p. 113).

Considerando o fundo de La Maja del Tarot, ao lado direito da figura principal,


observa-se uma lua cheia coroada, como acontece na figura da Sacerdotisa II, do
Tarot de Raider-Waite, contornada pelos mesmos vultos boreais do resto da
composição, fato que conduz nosso olhar para o símbolo do infinito sobre a cabeça
da personagem, tal como a carta do arcano maior que governa os quatro naipes do
baralho: O Mago I. Contudo, a referência explícita ao tarot, presente tanto na
figuração como no título da obra, não é o suficiente para que a reduzamos a uma
mera representação ou releitura da carta do baralho, pois o trabalho pictórico parece
se afirmar mais como ponto de abertura para o vocabulário de uma complexa
linguagem do que algum tipo de símbolo-significado reducionista, sendo que a tela
demanda um olhar sensível e imaginativo, criando um espaço entre o espectador e a
imagem, colocando-o no lugar do mais novo tarólogo. Assim, Leonora Carrington
permite abrir as possibilidades de leitura, partindo da montagem de um novo arquivo
de semelhanças, lembrando que aquilo que chamamos de evidência não passa de
uma vidência, e o que chamamos de visualidade não passa de uma aparição, cujo
sentido sempre se monta a partir de uma extra-parte. Afinal, assim como na leitura
de tarot, também na pintura alcançamos diferentes camadas e horizontes quanto
mais variadas forem as plausibilidades explicativas e afetos explicativos que
colocarmos em jogo.
Um pensamento funâmbulo como modo de refratar-se

Imagem 5. Leonora Carrington. Lepidóptera. Óleo sobre tela, 99.1cm x 71.1 cm, 1968. Acervo
Leonora Carrington Museo. Fonte: <https://www.leonoracarringtonmuseo.org/la-lepidoptera> Acesso
em: 11 de jun. 2022.

Na tela Lepidóptera (Imagem 5) vemos um ser simbiótico, composto pela


justaposição de três diferentes criaturas sobre um fundo de cor laranja chapado. Na
base há um animal bicéfalo, com uma cabeça de abutre e outra de felino. Em seu
peito, como se fosse um coração pulsante, há um rosto solar semelhante a um
amuleto ou guia. Seu corpo amarelo manchas pretas lembra uma onça ou guepardo.
Como se o estivesse montando, com os pés agarrados ao seu dorso para garantir
equilíbrio, há uma outra criatura delineada com traços ligeiros. Seus braços estão
levantados e seu rosto se assemelha a uma máscara pesada que contrasta com
uma túnica esvoaçante que parece vestir. Acima de ambos, há uma terceira forma
que lembra uma borboleta, cujas asas estão abertas e apresentam quatro ocelos,
falsos olhos que lhes servem como defesa, sendo que no centro superior desta
forma triangular há o símbolo do infinito e sobre ela há uma chama que ilumina e
resplandece, formando uma espécie de aura. Importante lembrar que o título remete
à ordem dos insetos que inclui as borboletas e mariposas.

Esta obra cheia de simbologias também encontra uma explicação associada ao


período em que foi feita. Conforme o site do Museu Leonora Carrington, a pintura
simboliza seu apoio às manifestações estudantis ocorridas em 13 de agosto de
1968, em defesa da liberdade e contra o governo do México. Dois meses depois, os
jovens acabaram massacrados e a artista deixou o país para morar em Nova York
por um tempo (GOMEZ, 2018). Entre os estudantes que sofreram repressão das
forças estatais estava seu filho, aluno de Teatro. A artista, que já era reconhecida
quis deixar ali, uma manifestação de apoio, menos como um panfleto político e mais
como um modo de se posicionar em coerência com sua trajetória pessoal. Tal
entendimento provém do fato de que passou a maior parte de sua vida excluída do
circuito das galerias e instituições de arte, despercebida pela crítica e pela história
da arte, sobrevivendo com limites financeiros, sem reconhecimento do público ou
dos governos, mas manteve em seu percurso a coragem de resistir com suas
convicções e persistir dentro de suas buscas mais profundas.

Interrogando o entendimento sobre o que seja uma obra prima e como chegamos ao
nome dos grandes mestres, Didi-Huberman aborda o conceito de obra para além de
um belo objeto, numa situação desterritorializada, mas que permanece atravessada
como algo inestimável. Para o autor, o artista que se arrisca nesta empreitada não
visa impor seu nome, nem mesmo busca alcançar algum tipo de poder e só pode ser
soberano por um fio, mantendo-se posicionado num equilíbrio frágil e arriscado,
sempre sujeito a iminência de um desastre (DIDI-HUBERMAN, 2019).

Corrobora com este entendimento teórico-conceitual do historiador francês, o fato de


que Lepidóptera conta com dois fragmentos escritos em preto e acentuados por um
par de braços avulsos em posição de levante ou súplica. A esquerda é possível ler:
”No es el retrato de un politico, No tampoco de um granadero, No esta em el ejercito,
No maltrata ni asesina a nadie, es um dibujo livre, quiero guardar mi libertad”. Na
frente do animal que parece se dirigir a um ponto desconhecido, levando tanto o
corpo mascarado como a falena que está mais acima, lê-se um segundo fragmento
textual: “Poor victories; but if you dare be brave, And pleasure in your conquest,
have, First kill th’ enormous giant, your Disdain; And let th’ enchantress Honour, next
be slain; And like a Goth or Vandal rise, Deface records and histories Of your own
arts and triumphs over men, And without such advantage kill me then, John Donne,
1633, England”. Trata-se de um trecho do poema The Damp (1963) feito por John
Donne (1572-1631), defendendo a importância de se despir dos valores externos
“vitoriosos”, tais como o desdém e a honra, para encontrar através deste
desnudamento, o seu próprio valor. Assim, os dois escritos da tela parecem articular
um pensamento onde a liberdade e o valor próprio sustentam a coragem se colocar
no mundo e resistir aos desafios mais avassaladores. E não seria este um modo de
exercer a soberania artística?

Imaginar para resistir e criar para viver

Leonora Carrington era oriunda de uma família aristocrática contra a qual se rebelou
muito cedo. Estudou arte, na Itália e depois em Londres, tendo viajado e vivido em
vários países até se estabelecer no México. Antes de prosseguir, cabe mencionar
dois aspectos. O primeiro se refere aos artistas de seu meio e juventude. Antes de
chegar ao México em 1941, passou três anos em Paris, convivendo com nomes
como Max Ernst, André Breton, Joan Miró, Salvador Dalí e Pablo Picasso. Contudo,
sua poética não parece ter-se voltado para as questões do erotismo, temática
bastante cara às abordagens surrealistas masculinas. Sua produção privilegia
questões relacionadas ao mundo místico e onírico, onde imaginação e delírio menos
pareciam se avizinhar da psicanálise freudiana, tão ao gosto daquele circuito e mais
se aproximar de certas realidades culturais, de modo íntimo e pessoal. Neste
sentido, em entrevista feita ao jornal El País, Leonora disse:

“Jamás me consideré una femme-enfant como André Breton quería


ver a las mujeres. Ni quise que me entendieran así, ni tampoco
intenté cambiar a los demás. Yo caí en el surrealismo porque sí.
Nunca pregunté si tenía derecho a entrar o no". (CARRINGTON,
Leonora. Leonora Carrington: "No me arrepiento de mi vida"
[Entrevista concedida a] ORGAMBIDES, Fernando. 1993).

O segundo aspecto, diz respeito ao fato de que ainda não havia chegado aos 30
anos quando se viu afetada pela segunda guerra mundial. Sua adolescência e
juventude foram impactadas pela perseguição nazista, em particular pelo envio de
seu então companheiro, Max Ernst (1891-1976), para um campo de concentração. A
partir daí, teve que a fugir para Espanha e depois para Portugal, onde conheceu um
escritor mexicano, Renato Leduc (1897-1986), com quem se mudou para o México e
onde seguiu sua vida como artista. Desde então, estreitou uma amizade e
interlocução duradoura com Remédios Varo (1908-1963) e, junto com esta, além de
Frida Kahlo (1907-1954), passou a figurar uma espécie de trio da história da arte
mexicana. Nos anos 50 a artista produziu uma série de desenhos que,
posteriormente, foram publicados em Londres como livro infantil sob o título The milk
of dreams. Na década seguinte executou um mural, através do qual tornou seu
nome bastante conhecido, El mundo mágico de los mayas, criado para um concurso
de arte da Escola do Museu Nacional de Antropologia e História do México. Para
realizá-lo, viajou até Iucatán e pesquisou sobre o povo maia e sua cultura na época
pré-colombiana, abordando assim a relação entre os indivíduos e as forças da
natureza.

Neste sentido, o que se pode constatar como parte de suas preocupações poéticas
tem a ver com uma atração por um mundo situado para além do humanismo
europeu. Suas diferentes cosmologias permitem reinventar a vida, remetendo a
diferentes modos e condições de existência, priorizando a criação de mundos
sintonizados com outros povos e culturas. Oriunda deste repertório tão atual em
tempos pós pandemia, não à toa, é justamente este escopo de interesses,
preocupações e sensibilidades que a 59ª. Bienal de Veneza toma como temática,
apropriando-se do título do pequeno livro acima mencionado. E aqui estamos, diante
de uma artista que fez da imaginação um instrumento de resistência e da criação
seu modo de viver, extraindo sempre o leite dos sonhos, o qual agora nos alimenta
para que possamos seguir encarando os desafios neste tempo que nos coube viver.

Referências

BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Walter Benjamin. Magia e técnica,
arte e política. Obras escolhidas, vl I, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 112.

CARRINGTON, Leonora. Lá embaixo. São Paulo: 100/ Cabeças, 2021.


CARROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Moderna, 2010.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobre o fio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2019.

FREUD, Sigmund. O infamiliar e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

GOMEZ, Frida. "Lepidoptera", o grito de Leonora Carrington pelo massacre de 1968


que a levou a deixar o México. 09 de Outubro de 2018. Disponível em:
https://www.sdpnoticias.com/columnas/lepidoptera-carrington-matanza-leonora-grito.html .
Acesso em: 11 de jun. 2022.

LAPOUJADE, David. As Existências Mínimas. São Paulo: N-1, 2017.

ORGAMBIDES, Fernando. Leonora Carrington: "No me arrepiento de mi vida". 17 de


abril de 1993. Disponível em:
https://elpais.com/diario/1993/04/18/cultura/735084001_850215.html . Acesso em 11 de jun.
2022.

SALGADO, Marcos Rogério. Notas sobre o texto. In: CARRINGTON, Leonora. Lá embaixo.
São Paulo: 100/ Cabeças, 2021.

Notas

i MACMASTERS, Merry (October–December 2020). "Leonora Carrington and Sculpture" (PDF). In: Voices of
Mexico. Centro de Investigaciones sobre América del Norte. pp. 41–47. Mexico City: Archived from the original
on 5 June 2021. Retrieved 3 June 2021.
ii Imagens do local em que a escultura está instalada. Disponível em: <
https://www.google.com/maps/@19.429001,-99.1625257,3a,75y,334.49h,91.61t/data=!3m6!1e1!3m4!1sASv-
dIKyykJrmDHSkqBx1A!2e0!7i16384!8i8192>
iii Em La Doña Maria Felix - An Inspiring Muse, http://theholyenchilada.blogspot.com/2010/04/la-dona-maria-felix-

inspiring-muse.html

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