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All content following this page was uploaded by Andrey Parmigiani da Silva on 23 May 2023.
RESUMO
O artigo aborda quatro obras de Leonora Carrington, a partir das quais se destacam as
marcas de seu universo poético e conceitual, suas figurações imagéticas e soluções
plásticas. Na escultura Cómo hace el pequeño cocodrilo a criação de seres situados em
zonas intersticiais entre passado e presente, animal e humano, natural e artificial, crenças e
incertezas. Na pintura Green tea uma paisagem encontra reverberação num texto, onde a
artista narra os abusos vividos durante uma internação psiquiátrica. Em La maja del Tarot,
observa-se uma referência explícita à cartomancia, embora se afirme como ponto de
abertura para além de qualquer simbologia reducionista. Lepidóptera apresenta a figuração
de um ser composto por três criaturas, através da qual a artista se posiciona e defende a
imaginação como modo de resistir e criação como modo de viver com coragem.
PALAVRAS-CHAVE
Leonora Carrington. História da arte. Surrealismo. Pintura. Escultura.
ABSTRACT
This article addresses four works by Leonora Carrington, from which the main brands that
define her poetic universe and conceptual horizon, her imagetic figurations and solutions in
terms of plastic language. In the sculpture Cómo hace el pequeño cocodrilo the creation of
beings located in interstitial zones between past and present, animal and human, natural and
artificial, beliefs and uncertainties. In the painting Green tea a landscape finds reverberation
in a text, where the artist narrates the abuse experienced during a psychiatric hospitalization.
In La maja del Tarot, an explicit reference to cartomancy, although it asserts itself as an
opening point beyond any reductionist symbology. Lepidoptera a being composed of three
creatures, through which the artist positions herself and which trigger the understanding of
imagination as a way of resisting and creation as a way of living with courage.
KEYWORDS
Leonora Carrington. Art history. Surrealism. Painting. Sculpture.
1
Um crocodilo gigante como existência mínima
Imagem 1. Leonora Carrington, Como hace el pequeño cocorilo, 2000. Escultura em bronze, 8,5 m x
4,8 m (5 toneladas). Paseo de la Reforma, Ciudad de México. Foto: Sebaso Benutzer. Fonte:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:20150717_IMG_6719_by_sebaso_(20433483078).jpg>
Acesso em: 11 de jun. 2022.
Assim como nas aventuras de Lewis Carroll, aqui nada é o que aparenta ser, tudo
parece estar num estado alterado, destinado a embaralhar as certezas. Essa
escultura teve como primeiro habitat o Parque Chapultepec, espaço mexicano
considerado sagrado desde tempos pré-colombianos. Ocorre que durante os 16
anos em que esteve lá, sua fonte permaneceu desligada e sem água, escondida
entre os diversos automóveis que circulavam pelo seu entorno. Sob autorização da
artista, foi levada para uma praça pública, na esquina da Rua Havre com a Avenida
Paseo de la Reforma, possibilitando que mais pessoas tivessem acesso, com mais
liberdade para poderem se aproximar e tocá-laii. Assim, a artista não apenas
engendrou uma nova forma no mundo, mas deu-lhe possibilidade para continuar
existindo dentro de um novo contexto e com novas oportunidades de conexão a
partir de um o novo ambiente.
Neste sentido a escultura Como hace el pequeno cocodrilo pode ser como uma
existência que se relaciona com a existência da própria cidade. Parece que um
enorme animal transporta outros seres, dos quais, talvez cinco sejam filhotes,
enquanto um maior parece conduzi-los na condição de remador. É então que
começam as dúvidas. O pequeno crocodilo a que se refere o título, seria o
barqueiro, ou o próprio barco? Quando a obra é relacionada ao poema citado, surge
outra questão: a proa com a mesma cara dos demais seres só que maior e com a
enorme boca aberta equivaleria ao pássaro que carrega os peixinhos? Pretende
conviver pacificamente com eles ou devorá-los?
De todo modo, o animal que serve para dar título à obra não se apresenta como
uma figuração realista. Não se assemelha a um pássaro com bico estranho, nem a
um crocodilo com seus dentes pontiagudos e quatro patas curtinhas. Se a escultura
de bronze foi feita para um território com peso ancestral, ao invés de barco, não
seria mais apropriado considerá-la como uma espécie de mesa associada a um altar
de oferendas?
Imagem 2. Leonora Carrington, Green Tea, 1942. Óleo sobre tela, 61 cm x 76.2 cm. Acervo MoMA,
Nova York. Fonte: < https://www.moma.org/magazine/articles/456> Acesso em: 11 de jun. 2022.
O mundo ainda estava em guerra quando Leonora Carrington pintou Green Tea
(Imagem 2), um jardim, cuja alameda conduz a um pátio que se abre para três
caminhos distintos. Tudo parece muito agradável, até que começamos a reparar em
detalhes mais sutis: no primeiro plano, numa espécie de cova rasa, avistamos
frágeis raízes, três morcegos, um par de casulos e um ninho com pássaros revoltos.
Pelo lado esquerdo, há um corpo misteriosos e hierático, muito pálido, meio múmia e
meio estátua, vestido com uma túnica estampada, como se fosse o couro de uma
vaca malhada. Seus olhos estão fechados, sua cabeça apresenta um estranho
tocado, coroa, com cortinado ou penteado, seus pés descalços pisam um chão
definido por um círculo que o delimita. Logo atrás, há o que poderia ser um forno
aberto, bule ou chaleira, cuja tampa apresenta quatro cabeças de veados. Tudo é
bem figurativo, embora pouco realista. Pelo lado direito há dois animais com cores
distintas. O branco parece um pônei de raça, tem postura elegante e garbosa. O
animal em tom vermelho-amarronzado parece uivar e se debater, suas mamas
indicam tratar-se de uma fêmea. Só então percebemos melhor: cada animal está
acorrentado ao rabo do outro, sendo que ambos se parecem com frágeis caules,
possuindo na ponta uma copa verdejante, podadas para enfeitar um jardim. Bem ao
fundo avistamos as torres de uma cidade populosa.
Embora o título da pintura Green Tea, permaneça mais enigmático do que o do texto
Lá embaixo, ambos os trabalhos parecem remeter a uma realidade, cujo acesso só
se tornou possível por meio de recursos ficcionais. Em ambos a artista procurava
mesclar o mundo racional e a realidade irracional como um modo de elaborar as
experiências traumáticas, impossíveis de encontrar uma racionalização à altura do
vivido. A correspondência entre a linguagem pictórica e a literária pode ser melhor
alcançada através de um desenho inserido no livro junto com uma espécie de
legenda, onde a autora assinala sua estadia no hospício de Santander, e pontua os
lugares indicados no mapa de acordo com o que foi mencionado no texto (Imagem
3).
Neste sentido, a distância entre o que foi reprimido e o que foi superado não pode
ser transposta para a ficção sem modificações profundas; pois o reino da fantasia,
depende do fato de que o seu conteúdo não se submete à realidade da vigília,
necessitando ser regido pelas leis do travestimento das condensações e desvios,
dos sentidos manifestos e sobretudo dos que permanecem latentes, sem que jamais
possamos tocá-los plenamente. Se é verdade que isto vale para os sonhos, é
também aqui que a relação entre o dizer e ver de Leonora Carrington, através da
literatura e da pintura, parecem manter uma carga onírica com admirável intimidade
ficcional:
Do lado de fora desse jardim, tão verde e tão fértil, há uma paisagem
árida; à esquerda, uma montanha no alto da qual há um templo
druida. Esse templo, pobre e arruinado, é o meu templo, foi
construído para mim, também pobre e arruinada; contendo apenas
madeira seixa, será o lugar onde vou morar, vindo visitá-lo todo dia;
depois vou ensinar a você o meu Conhecimento. (CARRINGTON,
2021, p. 34).
Um baralho com semelhanças moventes.
Imagem 4. Leonora Carrington, La maja del Tarot, 1965. Óleo sobre tela, 201 x 179.1 cm. Fonte:
<https://www.gallerywendinorris.com/artists-collection/leonora-carrington> Acesso em: 11 de jun.
2022.
É noite escura, um corpo resplandece sobre fundo dourado. Tudo é mistério, dos
astros no céu às ruínas meio palacianas, dos seres que flutuam ao chão que se
desfaz. A cartela de cores reduzida pelas variações cromáticas em torno de branco
e preto, amarelo e vermelho. Em La maja del Tarot (Imagem 4), a figuração remete à
imagem de uma mulher. A vestimenta estampa formas triangulares ou poligonais
com desenhos incrustrados que indicam os Arcanos Maiores do Tarot de Waite. No
centro, a forma maior reproduz a carta XIX, denominada O Sol. Na parte superior
pode-se ainda reconhecer, tanto pelas figuras como pelo número sobre elas, as
seguintes cartas: O Diabo XV, O Mundo XXI, O Julgamento XX, A Força VIII, A
Temperança XIV, cartas em geral associadas a empoderamento, enquanto no
centro pode-se reconhecer: A Lua XVIII, A Roda da Fortuna X, Os Enamorados VI, A
Imperatriz III e, finalmente, abaixo, duas cartas consideradas difíceis que sugerem
fortes mudanças e desestabilizações, formando os ombros da cabeça invertida, O
Enforcado XII e A Torre XVI.
Voltemos agora a nossa atenção para a protagonista que apresenta dois troncos e
duas cabeças compondo uma unidade. Uma cabeça virada para cada lado, na parte
superior há um inseto no centro de sua testa, na parte inferior sua cabeça é
atravessada por uma meia lua. Veste ainda uma espécie de echarpe, em cuja
extremidade há uma pipa emplumada de rosto monstruoso. Registros dão conta de
que nenhum dos dois troncos femininos remete ao autorretrato da artista, mas ao de
uma amiga, a atriz mexicana “La Doña” María Félix (1914-2002)iii. Seriam dois
corpos juntos ou apenas um corpo com duas cabeças representando opostos
emocionais ou situações complementares e invertidas? Do lado direito de quem
olha, duas mãos entrelaçadas parecem complementar uma gestualidade delicada
que lembram aranhas tecendo os fios quase invisíveis do próprio vestido. A mão
direita, direcionada para baixo, segura uma teia, cuja aranha branca parece seguir
tecendo.
Imagem 5. Leonora Carrington. Lepidóptera. Óleo sobre tela, 99.1cm x 71.1 cm, 1968. Acervo
Leonora Carrington Museo. Fonte: <https://www.leonoracarringtonmuseo.org/la-lepidoptera> Acesso
em: 11 de jun. 2022.
Interrogando o entendimento sobre o que seja uma obra prima e como chegamos ao
nome dos grandes mestres, Didi-Huberman aborda o conceito de obra para além de
um belo objeto, numa situação desterritorializada, mas que permanece atravessada
como algo inestimável. Para o autor, o artista que se arrisca nesta empreitada não
visa impor seu nome, nem mesmo busca alcançar algum tipo de poder e só pode ser
soberano por um fio, mantendo-se posicionado num equilíbrio frágil e arriscado,
sempre sujeito a iminência de um desastre (DIDI-HUBERMAN, 2019).
Leonora Carrington era oriunda de uma família aristocrática contra a qual se rebelou
muito cedo. Estudou arte, na Itália e depois em Londres, tendo viajado e vivido em
vários países até se estabelecer no México. Antes de prosseguir, cabe mencionar
dois aspectos. O primeiro se refere aos artistas de seu meio e juventude. Antes de
chegar ao México em 1941, passou três anos em Paris, convivendo com nomes
como Max Ernst, André Breton, Joan Miró, Salvador Dalí e Pablo Picasso. Contudo,
sua poética não parece ter-se voltado para as questões do erotismo, temática
bastante cara às abordagens surrealistas masculinas. Sua produção privilegia
questões relacionadas ao mundo místico e onírico, onde imaginação e delírio menos
pareciam se avizinhar da psicanálise freudiana, tão ao gosto daquele circuito e mais
se aproximar de certas realidades culturais, de modo íntimo e pessoal. Neste
sentido, em entrevista feita ao jornal El País, Leonora disse:
O segundo aspecto, diz respeito ao fato de que ainda não havia chegado aos 30
anos quando se viu afetada pela segunda guerra mundial. Sua adolescência e
juventude foram impactadas pela perseguição nazista, em particular pelo envio de
seu então companheiro, Max Ernst (1891-1976), para um campo de concentração. A
partir daí, teve que a fugir para Espanha e depois para Portugal, onde conheceu um
escritor mexicano, Renato Leduc (1897-1986), com quem se mudou para o México e
onde seguiu sua vida como artista. Desde então, estreitou uma amizade e
interlocução duradoura com Remédios Varo (1908-1963) e, junto com esta, além de
Frida Kahlo (1907-1954), passou a figurar uma espécie de trio da história da arte
mexicana. Nos anos 50 a artista produziu uma série de desenhos que,
posteriormente, foram publicados em Londres como livro infantil sob o título The milk
of dreams. Na década seguinte executou um mural, através do qual tornou seu
nome bastante conhecido, El mundo mágico de los mayas, criado para um concurso
de arte da Escola do Museu Nacional de Antropologia e História do México. Para
realizá-lo, viajou até Iucatán e pesquisou sobre o povo maia e sua cultura na época
pré-colombiana, abordando assim a relação entre os indivíduos e as forças da
natureza.
Neste sentido, o que se pode constatar como parte de suas preocupações poéticas
tem a ver com uma atração por um mundo situado para além do humanismo
europeu. Suas diferentes cosmologias permitem reinventar a vida, remetendo a
diferentes modos e condições de existência, priorizando a criação de mundos
sintonizados com outros povos e culturas. Oriunda deste repertório tão atual em
tempos pós pandemia, não à toa, é justamente este escopo de interesses,
preocupações e sensibilidades que a 59ª. Bienal de Veneza toma como temática,
apropriando-se do título do pequeno livro acima mencionado. E aqui estamos, diante
de uma artista que fez da imaginação um instrumento de resistência e da criação
seu modo de viver, extraindo sempre o leite dos sonhos, o qual agora nos alimenta
para que possamos seguir encarando os desafios neste tempo que nos coube viver.
Referências
BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Walter Benjamin. Magia e técnica,
arte e política. Obras escolhidas, vl I, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 112.
SALGADO, Marcos Rogério. Notas sobre o texto. In: CARRINGTON, Leonora. Lá embaixo.
São Paulo: 100/ Cabeças, 2021.
Notas
i MACMASTERS, Merry (October–December 2020). "Leonora Carrington and Sculpture" (PDF). In: Voices of
Mexico. Centro de Investigaciones sobre América del Norte. pp. 41–47. Mexico City: Archived from the original
on 5 June 2021. Retrieved 3 June 2021.
ii Imagens do local em que a escultura está instalada. Disponível em: <
https://www.google.com/maps/@19.429001,-99.1625257,3a,75y,334.49h,91.61t/data=!3m6!1e1!3m4!1sASv-
dIKyykJrmDHSkqBx1A!2e0!7i16384!8i8192>
iii Em La Doña Maria Felix - An Inspiring Muse, http://theholyenchilada.blogspot.com/2010/04/la-dona-maria-felix-
inspiring-muse.html